segunda-feira, 16 de maio de 2011

Pensamentando

Peixinhos



Leandro Konder
Sex, 06 de Maio de 2011 12:41
Leandro KonderTrinta anos atrás, o poeta Ferreira Gullar me contou uma historinha que jamais esqueci. O protagonista do relato era um comerciante português que havia enriquecido no Brasil. De repente, não se sabe por que, o homem resolveu comprar uns peixinhos coloridos que viu em Lisboa.
Trouxe-os para o Rio. Porém, as condições da viagem, naquela época, eram precárias. Instalados num grande recipiente de vidro, os peixes não suportaram a longa viagem e morreram todos.
Sem admitir sua derrota, o português tomou providências que deveriam garantir sua importação: alugou um navio e contratou uma equipe de especialistas para assegurar a sobrevida dos peixes. Durante a viagem, contudo, os peixinhos morreram.
O português, então, tornou a alugar a piscina do navio, onde colocou os peixinhos e acrescentou à sua carga um vigoroso tubarão. Em seguida, reiniciou a viagem que deveria durar vários dias. Terminou no Rio de Janeiro. O comerciante luso verificou que metade dos peixinhos tinha sido comida pelo tubarão. A outra metade, entretanto, defrontada com a morte iminente, sobreviveu.
Outra historinha que eu gostaria de contar aqui é a do escritor Franz Kafka e também fala de animais. Kafka coloca como narrador da história um cavalo que participou de uma batalha entre seres humanos e comenta a guerra de que participou.
Ele constata que teria muito a perder se fosse o vencedor, pois estaria sendo olhado com inveja mesquinha por parte dos demais participantes. Os animais e seus jóqueis corriam risco de vida e, quando se via o resultado, eles lamentavam fazer tanto esforço por uma experiência humanamente tão pobre.
Após a vitória, o exército ocupou o bosque e a pequena fortaleza em que o campeão (o coronel inimigo) se instalara. Com sinceridade, o cavalo achava estranhas aquelas criaturas que brigavam e corriam risco de morte para mudar a situação de modo que tudo permanecesse como estava. Ao ver o comandante vitorioso instalado no calabouço (por motivo de segurança), o cavalo perdedor achava muita graça.
Ler é uma aventura mais rica do que parece. Cada leitor, ao interpretar o que está lendo, por mais prudente que seja, promove uma adequação de aspectos do texto lido ao panorama em que se encontra no plano do pensamento e da ação. A sensibilidade do autor busca sempre a percepção do bom leitor.
Cada um de vocês faça a experiência. Sem rituais ou fanatismos, vocês verão que os dois contos acolhidos neste jornal dão conta de que uma imagem, uma síntese pode mudar no leitor algo da sua maneira de ver o mundo.
As lições que o século XX nos deu tiveram momentos brilhantes, mas os autores cometeram erros graves. A literatura é uma expressão criada por artistas muito diferentes uns dos outros, porém todos legítimos. Façam a propaganda que quiserem, os escritores de talento não se reduzirão a meros agitadores ordinários. E também – pressupondo o talento – os "dinossauros" da direita devem ser reconhecidos (e devidamente criticados) na política cultural.
Os contos de Kafka e Ferreira Gullar são ilustrações magníficas da possibilidade de que um escritor talentoso, com motivação literária peculiar, é capaz de ir mais fundo do que um conservador na compreensão dessas criaturas que nós chamamos o gênero humano.
Nós, da esquerda, somos desafiados cotidianamente por adversários cuja escassez de escrúpulos precisamos combater. Enfrentamos situações mais dolorosas e menos asseadas do que as da direita. É normal que tenhamos cometido erros, mas temos consciência de que, em comparação com o conservadorismo, teremos agido menos como delinqüentes do que as figuras cheias de empáfia que nos atropelam.
Não é preciso o papel em branco, chamando os leitores e provocando a polêmica com os conservadores. Os dois contos que deram início a esta reflexão feita a partir de Ferreira Gullar e Franz Kafka demonstram que o ponto de partida de uma obra literária não existe na forma de uma semente, que brotará de qualquer maneira; como tudo na realidade humana, a literatura depende também de trabalho.
Leandro Konder é filósofo
[Publicado no jornal Brasil de Fato]

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