CRÔNICAS DE BERLIM (COLUNA DO FLÁVIO AGUIAR)
05/05/2011, 13:29
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Vamos aproveitar esse ar primaveril do começo de maio para fazer um passeio incomum nas cercanias de onde vivo.
Esclareço: moro num apartamento num prédio de 1899, que resistiu incólume aos bombardeios da Segunda Guerra.
Fica no distrito de Schöneberg, que quer dizer “Morro bonito”, apesar da região ser plana que nem o pampa sul-americano. É um bairro enorme. Antes da guerra era um dos redutos do movimento socialista e antifascista. A tal ponto que um de seus “Kiez” chamava-se “Rote Insel”, que quer dizer “Ilha Vermelha”. “Kiez” é uma palavra de difícil tradução, já que a divisão semântica das localizações urbanas em nossa língua não é a mesma do alemão. Pode ser “bairro”, mas no sentido, por exemplo, de que a “Ilha Vermelha” estava para “Schöneberg” assim como a “Vila Indiana” está para o “Butantã”. De qualquer modo, os nazistas varreram a “Rote Insel” e a resistência do mapa.
A rua onde moro, a Zietenstrasse, fica perto da estação de metrô Nollendorfplatz, em cuja entrada há sempre um buquê de flores lembrando os homossexuais mortos pelos nazistas, pois muitos moravam e ainda moram por aqui.
Mas saiamos logo pela Zietenstrasse, em direção à linha de metrô, uma das mais antigas de Berlim (essa sim bombardeada na Segunda Guerra). Agasalhemo-nos: a primavera vai pelo meio, mas os dias ainda estão frios, apesar de ensolarados. Atravessemos por debaixo da linha do metrô de superfície, com seus arcos de metal e suas carrancas de pedra nas laterais, e vamos logo em busca, cerca de um quilômetro adiante, do Landwehrkanal, um dos tantos canais de água que cortam a cidade de Berlim. Os berlinenses costumam dizer, orgulhosamente, que Berlim tem mais pontes do que Veneza (embora Hamburgo os tenha mais ainda). A comparação é um pouco exagerada, porque Berlim tem o dobro da área total de Veneza, e 12 vezes sua população. Mas enfim, orgulho é orgulho.
Voltaremos ao Landwehrkanal. Agora vamos atravessá-lo através de uma dessas tantas pontes e chegar onde quero, primeiro ponto de nosso passeio de agora: a Stauffenbergstrasse. Seu nome é uma homenagem ao Coronel Carl Phillip Maria Schenk Graf von Stauffenberg (que quer dizer Conde de Stauffenberg), um dos organizadores do atentado contra Adolf Hitler em 20 de julho de 1944. Foi o próprio Stauffenberg quem colocou a bomba junto de Hitler, em seu QG na Prússia Oriental (numa cidade hoje parte da Polônia). Ironia do destino: foram preparadas duas bombas, mas como Stauffenberg tinha apenas uma mão, em conseqüência de um ferimento de guerra, ele só pode levar uma. O atentado falhou: quatro pessoas morreram no QG, mas Hitler não. Entretanto, Stauffenberg, que se retirara do local pouco antes, voou para Berlim convencido de que o Führer morrera. Veio direto para o QG nesta rua onde estamos, para deflagrar a “Operação Valquíria”, que deveria concluir com a instalação de um novo governo.
Surpreendido, com outros oficiais conspiradores, pela notícia de que o atentado falhara, Stauffenberg foi fuzilado na madrugada de 21 de julho pelo comandante do QG, General Friedrich Frommer, que também era um dos membros da trama. Fromm fuzilou o conde e mais três oficiais na esperança de inocentar-se, apagando os “arquivos”. Não adiantou: descoberto e denunciado, foi enforcado em 12 de março de 1945, um mês e meio antes do fim da guerra.
Esse QG hoje abriga o “Memorial da Resistência Alemã”, com dados sobre os que resistiram à fúria nazista. Três coisas saltam aos olhos do visitante. Primeira, a resistência foi muito maior do que parece à primeira vista. Segunda, compreende-se uma das razões de sua ineficácia: ela foi fragmentada demais, com seus diversos “braços” agindo separadamente. Terceira, uma das razões de seu fracasso foi o caráter implacável da repressão nazista. Como observou um amigo meu (alemão), ali onde outros hesitariam, os nazistas não hesitavam, agindo com toda a violência capaz e necessária para esmagar os inimigos, adversários, e até mesmo os dissidentes. Como no caso dos conspiradores de 20 de julho de 1944.
Mas voltemos à rua. Façamos uma pequena volta pela Sigismundstrasse, onde vemos uma velha casa ainda esburacada pelas balas dos tiroteios da tomada de Berlim pelo Exército Vermelho. Uma placa relembra aquele tempo: “As feridas da memória”. Vamos agora de novo pela Stauffenbergstrasse até o Lanwehrkanal. Andemos agora por suas margens, em particular a da esquerda, do outro lado da rua onde estávamos. Vamos admirando suas belas árvores, muitas castanheiras (nada a ver com as nossas, são árvores que mais parecem plátanos e jacarandás), alguns chorões (ou salgueiros), e, se tivemos sorte, veremos até algum barco de passeio navegando nele.
Vamos assim chegar a um outro Memorial que quero lhe mostrar, caro ou cara leitor ou leitora e visitante. A certa altura encontramos à sua margem, sobre o balaústre, as letras em metal: “Rosa Luxemburg”. No muro diante das letras, uma placa relembra que neste lugar o corpo da extraordinária militante foi jogado no canal por seus assassinos, membros dos “Freikorps”, uma organização paramilitar que veio a ser uma das células de origem do movimento nazista e de suas SS e AS. Isso aconteceu no dia 15 de janeiro de 1919. Além de Rosa, foram assassinados Karl Liebknecht e na seqüência mais de mil militantes socialistas, comunistas e social-democratas. Infelizmente isso se deu sob o olhar complacente ou conivente do governo social-democrata de então, que liderava a república recém proclamada. Em conseqüência das perturbações em Berlim, durante algum tempo o Parlamento, que votava a nova constituição, foi se reunir na pequena cidade de Weimar (onde moraram Goethe, Lizst e Nietzsche, entre outras personalidades), e por isso o período entre guerras, na Alemanha, é conhecido pelo nome de “República de Weimar”.
Rosa nasceu numa cidade hoje polonesa, então parte do Império Russo. Mas sua militância se deu mesmo na Alemanha.
Bom, depois desse passeio agradável, podemos re-atravessar o canal, percorrer ainda algumas centenas de metros ao lado de uma das alas do Jardim Zoológico de Berlim (que visitaremos outro dia) e ir nos assentar no Café am neuen See – Café à beira do novo lago – um agradável “Biergarten” nos dias que vão da primavera ao outono.
Como hoje está ainda um pouco frio, convido o nosso ou a nossa visitante a tomar, ao invés da generosa cerveja alemã ou de algum dos seus conhecidos vinhos brancos, uma taça de vinho tinto. Pois há bons vinhos tintos na Alemanha, embora mais desconhecidos, produzidos nas regiões de Baden e Franken, por exemplo, entre outras.
Façamos um brinde àqueles tantos e tantas militantes que nessa Alemanha, nela nascidos ou não, por sobre ou sob a fúria nazista, antes, durante ou depois dela, dedicaram e (alguns) deram suas vidas pela liberdade, pela fraternidade, pela humanidade. E pela igualdade também. Afinal, não esqueçamos que hoje, quando fizemos nosso passeio e erguemos nosso brinde, 5 de maio, é o dia do aniversário de Karl Marx.
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Flávio Aguiar nasceu em Porto Alegre (RS), em 1947, e reside atualmente na Alemanha, onde atua como correspondente para publicações brasileiras. Pesquisador e professor de Literatura Brasileira da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, tem mais de trinta livros de crítica literária, ficção e poesia publicados. Ganhou por três vezes o prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro, sendo um deles com o romance Anita (1999), publicado pela Boitempo Editorial. Também pela Boitempo, publicou a coletânea de textos que tematizam a escola e o aprendizado, A escola e a letra (2009), finalista do Prêmio Jabuti, e o recente Crônicas do mundo ao revés (2011). Colabora com o Blog da Boitempo quinzenalmente, às quintas-feiras.
(Blog do Boitempo)
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