Guantánamo abriga 160 presos inocentes ou pouco perigosos
O iraniano Bajtiar Bamari era tradutor e morava no Afeganistão no final de 2001. Os Estados Unidos lutavam então no país para derrubar o regime talibã e encontrar Osama Bin Laden. Ocorreu-lhe que poderia ser uma boa ideia aproximar-se da base norte-americana de Kandahar para oferecer seus serviços como intérprete e guia. Enganou-se. Foi preso e levado para Guantánamo no dia 17 de maio de 2002, onde passou dois anos preso. Não tinha nenhum vínculo com a Al Qaeda nem com os talibãs. Também não os tinha o diretor de escola sudanês Al Rachid Raheem, preso em sua casa de Peshawar (Paquistão) quando estava pronto para dormir; nem Mahngur Alijan, um afegão que fazia uma parada para comprar remédios; nem o turco Ibrahima Shafir Shen, que fugia da guerra; nem Noor Ahmad, que acabou em Guantánamo por não ter dinheiro para pagar um suborno à polícia paquistanesa depois que os agentes o pegaram sem documentos.
A reportagem é de Mónica Ceberio Belaza e está publicada no jornal El País, 25-04-2011. A tradução é do Cepat.
As fichas secretas do Departamento de Defesa sobre os presos de Guantánamo contêm dezenas de histórias similares. Homens sem nenhuma vinculação com o terrorismo islâmico nem com os talibãs que foram presos por razões que nem as próprias autoridades norte-americanas conhecem, como se reconhece em documentos nos quais se admite sua inocência, o erro cometido e se recomenda que sejam libertados ou transferidos para o seu país de origem. Apesar disso, alguns dos presos sem motivo passaram um, dois, três, e até nove anos na prisão.
Os Estados Unidos acabaram determinando que 83 presos não representavam absolutamente nenhum risco, e de outros 77 se diz que é “improvável” que sejam uma ameaça para o país ou seus aliados. Ou seja, que ao menos um de cada cinco internos foi levado à prisão de forma arbitrária, segundo as próprias avaliações dos militares norte-americanos. De outros 274 se considera que só “talvez” representem um perigo, de forma que as fichas secretas demonstram que os Estados Unidos não acreditavam seriamente na culpabilidade ou ameaça de quase 60% de seus prisioneiros. Mesmo assim, foram enviados à ilha de Cuba.
O ex-presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, abriu o campo de prisioneiros no dia 11 de janeiro de 2002. Nessa primeira época o número de pessoas deslocadas à base que não tinham a menor ligação com a Al Qaeda foi muito grande. Especialmente, em alguns países. No Afeganistão, por exemplo. A metade dos afegãos – o grupo majoritário de presos, 28% do total – foi depois qualificada como de risco baixo ou inexistente. O descontrole e a arbitrariedade, segundo revelam os documentos secretos, eram grandes. Eram privados de liberdade mesmo que os prisioneiros não tivessem cometido delitos nem crimes de guerra. Por via das dúvidas sabiam de algo. Para o caso de se tinha um primo ou um irmão nas filas dos talibãs. Para o caso de se em seu povoado vivesse algum líder que interessava à inteligência norte-americana. Por seu “conhecimento geral das estradas de ingresso no Afeganistão” ou sobre o “recrutamento forçoso do talibã”, como consta em várias fichas. As ações concretas do detido eram irrelevantes. Todos os que chegavam à prisão eram qualificados de combatentes inimigos mesmo que não tivessem indícios de que realmente o fossem.
Enquanto os Estados Unidos lutavam contra os talibãs, estes percorriam os povoados do Afeganistão obrigando jovens a entrar em suas fileiras. Costumavam pedir a cada família que contribuísse com dinheiro ou ao menos com um homem. Sahibjan Torjan se ofereceu como voluntário para evitar o recrutamento de seu pai, mas mais tarde se negou a lutar. Os talibãs o prenderam durante 30 dias. Nem essa operação o livrou de Guantánamo. A Aliança do Norte o capturou e os norte-americanos o levaram à prisão no dia 4 de maio de 2002. Estava com 21 anos. Quatro meses depois reconheceram sua inocência em uma ficha secreta: “Baseando-nos na informação atual, o detento não é filiado à Al Qaeda nem líder talibã. (...) Não tem mais valor de inteligência para os Estados Unidos. (...) Não representa uma futura ameaça para os interesses americanos”, asseverou o comandante Michael E. Dunlavey. Demorou ainda seis meses para voltar ao seu país. Jon Muhamed Barakzai também sofreu o recrutamento forçado. Mas não chegou a combater. Nem sequer recebeu treinamento. Voltava ao seu povoado quando foi preso, entregue aos norte-americanos e conduzido à prisão. Um pai que foi buscar seu filho na frente, em Kandahar, também acabou em Guantánamo.
A prisão chegou a ter um preso inocente de 89 anos em Guantánamo. Sofria, além disso, de demência senil, artrite e de depressão profunda. No complexo de casas em que morava, os soldados encontraram um telefone por satélite Thuraya e uma lista de números de pessoas “suspeitas” de serem talibãs. O idoso não sabia de quem era o telefone nem sabia usá-lo, mas foi feito prisioneiro e conduzido à prisão. Acabou passando com êxito pela prova do polígrafo e as autoridades norte-americanas reconheceram que não representava perigo nem ameaça alguma para o seu país.
A arbitrariedade do sistema penitenciário não só fica clara nas fichas em que os militares reconhecem a inocência de um preso. A vulnerabilidade das garantias processuais básicas pode ser apreciada em muitas outras, nos critérios indeterminados e gerais que servem para fundamentar uma prisão. Os princípios de humanidade e de proporcionalidade nas penas, de intervenção mínima, de legalidade, não existem em Guantánamo. Sobre o afegão Osman Khan, nascido em 1950, afirmam que “possivelmente” seja um membro do talibã, mas que “não foi determinado com nenhuma segurança”. Apesar disso, qualificam-no como de “risco médio” e recomendam que fosse transferido, mas para que continuasse preso no país de acolhida. De outro detento só se indica que “se suspeita” de sua relação com “elementos subversivos”. Um certo Mohammed Nasim aparece como interno 453. Os Estados Unidos duvidam que seja seu verdadeiro nome. Não sabem quem é, mas assumem que “talvez” tenha “valor de inteligência” e “risco alto” e propõem que continue em Guantánamo. “Há diferentes possibilidades sobre sua identidade real”, assinalam. “Entre elas, a de que seja um ex-ministro de Educação talibã”.
A presunção de inocência não existe em Guantánamo. É o detento quem tem que demonstrar que não é terrorista nem talibã. Não havia provas contra o afegão Yamatollah Abdul, por exemplo, mas se suspeita de sua culpabilidade porque “quando é pressionado a explicar detalhadamente sua história dá desculpas e não colabora”. “É evasivo e reticente em reconhecer certas coisas”, afirma outra ficha. Quando falam sobre Khudai Dad, diagnosticado como esquizofrênico, pedem que continue preso porque seu testemunho tem “pouca credibilidade”. Ao lado desta informação, um relatório médico adjunto detalhava alucinações e episódios de psicose aguda do enfermo. Também não foram apresentadas evidências contra um adolescente afegão de 15 anos trazido para a prisão. Não apenas era inocente, como era uma vítima. Antes que o Exército dos Estados Unidos o fizesse prisioneiro, um grupo armado talibã o havia sequestrado e violentado.
(Inst. Humanitas Unisinos)
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