SÓ POR UM INSTANTE
Gerusa Leal
Bum. Bum. Bum. Bum. O socador golpeia o chão compactando o solo, bum, bum, bum, bum. A poeira cinzenta cobre as botas cinzentas sem cadarços sem meias as pernas magras mergulham nas calças desbotadas e os joelhos dobram e esticam e bum, bum, bum, bum, e as mãos ressecadas pelo cimento e calejadas pela madeira das hastes do socador que bum, bum, bum, bum, e a camisa bem gasta aberta no peito que se contrai e distende enquanto o socador continua, bum, bum, bum, bum, e a cabeça que levanta deixando ver o rosto e bum. O socador pousa na terra, a mão segura a ponta da camisa e passa no rosto enxugando o suor. E ela vê então o pedreiro, mas só por um instante, um ínfimo instante que dura apenas o tempo de lembrar-se de si. Aperta o passo atravessa a rua as pessoas indo e vindo, e só vê agora as fachadas das lojas, as placas, os pontos de referência, está com pressa e não sabe direito o caminho.
Perde-se. Perde a hora. Perde a urgência e se senta na tora de madeira embaixo da árvore. E bum... bum... bum... bum... Deixa a moça ela tá descansando e bum... bum... bum... Menino, para de mexer aí e bum... bum... bum... e o ônibus parou e abriu a porta e alguém subiu dando bom dia ao cobrador. Será que tá passando mal? e bum... bum... tá, tá, tá, tá, tá, tá, tá, reconhece o martelo na madeira desmontando o tapume.
O cheiro da rua é forte, mistura de esgoto com fruta, verdura, carne, suor, óleo diesel e flores. Suspira e bum. Sumiu tudo ao redor, tudo parou, ela sumiu-se de si. Foi tanto tempo, foi quase nada, e aos poucos bum... bum... bum... bum... o sangue correndo nas veias, o silêncio zumbindo ao redor e bum, bum, bum, bum, bum, está atrasada, abre os olhos, levanta, atravessa a rua, caminha alguns passos, reconhece a fachada da loja, sobe as escadas, apanha o relógio que deixou no conserto, coloca no pulso, desse os degraus lentamente, agora tem tempo. Tic. Tac. Tic. Tic. Tic. Merda, parou outra vez.
(Gerusa Leal é escritora entre o conto e o poema. Psicóloga de formação, leitora crônica. Pernambucana, recifense, reside em Olinda. Tem escritos publicados em várias coletâneas e antologias. Alguns contos e poemas premiados isoladamente e seu primeiro livro-solo, “Versilêncios”, é Prêmio Edmir Domingues de Poesia 2007 da Academia Pernambucana de Letras. Trabalha num livro de contos, colabora com a revista eletrônica Histórias Possíveis)
(Diversos Afins)
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