domingo, 15 de maio de 2011

Líbia

Apoio ao povo líbio para derrotar Kadafi! Não à intervenção da OTAN!
Escrito por Ángel Luis Parras
Ter, 03 de Maio de 2011 18:47
É impossível encontrar neste momento um país árabe que não esteja sendo sacudido por revoltas ou mobilizações. A crise econômica mundial fustiga os países do Oriente próximo e o Magreb.
São os trabalhadores/as destes países emigrados na Europa os primeiros a perder os seus postos de trabalho e, com isso, caem vertiginosamente os envios para seus países de remessas de dinheiro. O FMI vem impondo programas de privatização de serviços públicos, de redução drástica dos gastos dos estados, de diminuição do número de trabalhadores públicos e funcionários... Nada que nos soe estranho aqui, mas cujas consequências são muito mais demolidoras nestes países com taxas de desemprego que superam em média os 50% da população economicamente ativa. A este quadro há que somar, a partir dos finais de 2010, o maior aumento de preços dos alimentos desde 1990 e suas consequências nos países árabes, que são uma das grandes zonas do mundo importadoras de alimentos. A Líbia, por exemplo, importa 75% dos alimentos que consome.
Acrescenta-se a essa situação o ódio aos Governos títeres das grandes potências imperialistas, ditaduras encarregadas de aplicar os planos do FMI à custa da fome do povo e que se sustenta sob estados de exceção que se prolongam por décadas. É neste cenário que os acontecimentos da Tunísia se acendem como um rastilho de pólvora e, o efeito dominó se espalha em toda a região unida por sentimentos de nacionalidade, tradição de luta e repúdio para com o imperialismo e o sionismo. Assistimos a um processo de levantes, a uma revolução que tem como bandeiras (como diz a declaração da Corriente Roja perante os acontecimentos da Tunísia) a luta pelo pão, pelo trabalho e pela liberdade. Um processo revolucionário em que se destacam os/as jovens, fustigados pelo desemprego e nenhuma possibilidade sequer de emigrar.
Por estas razões, todas as revoltas populares nos países árabes foram vistas com enorme simpatia e apoio incondicional, desejando o seu triunfo. Assim o entendemos na Corriente Roja, por isso saímos à rua em apoio ao povo tunisiano e egípcio logo que soubemos dos levantes.
Os acontecimentos da Líbia, pelo contrário, desencadearam uma polêmica em toda a esquerda, uma polêmica difícil e muito dura. O posicionamento perante os acontecimentos da Líbia envolve sem dúvida posições de princípio e as linhas divisórias não estão reunidas nas correntes mais tradicionais ou em organizações mais próximas ideologicamente. Assim as posições vão, entre outras, dos que se colocaram, desde o início do processo, ao lado de Kadafi, com especial veemência o Presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, o da Venezuela, Chávez, Fidel Castro e a direção cubana, aos que apoiaram desde o começo o levante popular contra Kadafi, como a Frente Popular de Libertação da Palestina, o Partido Comunista dos Trabalhadores da Tunísia, a LIT-QI, o Hezbollah...
Mais além do posicionamento concreto, um debate desta natureza exige mais rigor do que aquele que se desprende de toda essa esquerda que sustenta ateoria da conspiração, não só por tudo o que representa a Líbia, mas também porque o choque se pode repetir perfeitamente, inclusive ampliado, se a revolução árabe avança na Síria ou na Argélia.
Teoria da conspiração ou luta de classes?
O surpreendente deste debate é que, quando não há um só país do mundo árabe que tenha ficado livre das revoltas populares, se negue a ligação deste processo com o líbio.
Para quem procurou desde o início diferenciar o levante na Líbia do processo geral no Oriente Médio e no mundo árabe, a razão mais utilizada é que essa mobilização é dirigida pela “Frente Nacional pela Salvação da Líbia [NFSL na sigla em inglês], (...) uma organização financiada pela CIA que chama o povo líbio a reiterar um juramento de lealdade ao rei Idris el-Senusi como líder histórico do povo líbio”.
Recentemente, Julio Anguita [dirigente do Partido Comunista Espanhol, ndt], num ato público, se unia a esta explicação, assinalando os acontecimentos da Líbia como algo alimentado por agitadores financiados pela CIA. Isto é, segundo este raciocínio, em todos os países árabes existem levantes, salvo na Líbia, que é uma provocação amotinadora manobrada pela CIA.
Esta forma de explicar os fenômenos políticos e/ou sociais está, sem dúvida, muito próxima da proliferante teoria da conspiração. No entanto, coloquemo-nos por um momento nessa tese e aceitemos que o que acontece na Líbia se explica como parte de um plano traçado pela CIA. Surgem então numerosas dúvidas:
Kadafi era o homem do imperialismo: na Líbia, desde 2003 e especialmente a partir de 2006, as multinacionais faziam o que queriam; o FMI, oito dias antes do levante popular, felicitou publicamente o governo líbio pelos planos que estava aplicando. Kadafi foi fotografado com todos os presidentes do mundo e convidado, especialmente, por Obama para a Reunião de Cúpula do G-8. Kadafi apoiou com entusiasmo Ben Ali, o ditador tunisino, e Mubarak, quando os dois estavam sendo questionados pelos levantes populares, e lhes ofereceu refúgio na Líbia. Kadafi é o homem que dispõe das chaves de ouro de Madrid e é amigo declarado de José María Aznar. É sócio de Berlusconi, e o governo líbio é acionista do grupo aeronáutico e de defesa Finmeccanica, controlado pelo Estado italiano; acionista da empresa de petróleo ENI, da têxtil Olcese e do clube de futebol Juventus, entre outros. Inclusive o Governo líbio participa como acionista nas Comunicaciones Quinta, da qual o acionista majoritário é Berlusconi.
A pergunta é inevitável: Por que é que a CIA organizaria um complô contra um homem com semelhante currículo?
O que aconteceu nos oito dias que transcorreram entre o comunicado do FMI felicitando o Governo de Kadafi e os levantes populares de 17 de fevereiro para que o imperialismo mudasse de política e ajudasse levantes populares contra o que era, até essa data, um Governo aliado?
A teoria da conspiração percorre às correntes políticas mais díspares. Kadafi, por exemplo, também opina que é uma conspiração, mas, segundo ele, trata-se de um complô da Al-Qaeda e da OTAN que a apoia: “Enfrentamo-nos com o terrorismo da Al-Qaeda por um lado e, por outro, o da OTAN, que agora apoia a Al-Qaeda”.
Historicamente, as intervenções da CIA se caracterizam por impulsionar golpes militares, mas surpreende que na Líbia a CIA tenha estimulado e continue estimulando uma revolta popular, principalmente no meio de uma ebulição como a do mundo árabe, sacudido por revoltas por todos os lados. Pareceria um bombeiro louco jogando gasolina em torno de um grande incêndio.
Mas, uma vez mais, suponhamos que seja verdade e a CIA se posicionou capitaneando uma revolta popular contra o que, apenas há um mês, era um Governo amigo. Por que nos primeiros momentos em que o levante varria as tropas de Kadafi, o imperialismo esperou para intervir até que Kadafi se recompusesse e o movimento “insubordinado” fosse massacrado e reduzido a Benghazi? Por que quando os insurgentes pediam armas, os Governos, entre eles o espanhol, as negaram?
O marxismo, e em especial Lênin, apesar de não terem Internet nem páginas web, liam e reliam a própria imprensa burguesa e definiam a sua política não com base em conspirações, mas em análises das classes, do seu papel, suas contradições, internacionais e nacionais. Onde ficam, nesta teoria conspiratória, as classes sociais, o caráter de classe dos Estados, as contradições entre os movimentos sociais e suas direções...?
Tal como para os velhos gregos e romanos a transformação do mundo se explicava pelo Destino, para os teóricos da conspiração tudo está escrito, “atado e bem atado” para que aconteça de uma determinada maneira. Assim explicam os acontecimentos da Líbia.
Qualquer dado da realidade é secundário ou se explica porque o imperialismo “nos confunde”. “Não podemos guiar-nos pelos meios de comunicação do imperialismo”, mas não se incomodam em ler e reler os dados poucos ou muito que tenhamos; agitam contra a leitura dos jornais burgueses para não ficarem presos na confusão. Tanto faz o que diga o inimigo! Os únicos artigos, isso sim, que merecem serem lidos são os “verdadeiros”, aqueles que procedem de opiniões que “demonstram” a conspiração da CIA.
No entanto, não têm depois o menor cuidado em sustentar a sua teoria conspiratória de um movimento liderado – supostamente desde o primeiro dia – pela NFSL, baseando-se num informe do New York Times de 25 de fevereiro.
Os critérios de Lênin para “descobrir a verdadeira essência de uma guerra”
Diante das guerras, contra os pacifistas que condenavam toda a guerra por princípio, e frente aos oportunistas que capitulavam aos Governos e aos estados burgueses, Lênin exigia determinar a natureza da guerra, antes de definir uma posição política.
Para os defensores da teoria da conspiração na Líbia basta repetir que “tudo é uma montagem”, “a imprensa mente” e uma vez iniciada a intervenção imperialista já não há nada a discutir porque a posição revolucionária se define com base a que o “inimigo ataca”. Com essa forma de raciocinar, parece em vão perguntar-lhes aquilo que Lênin exigia responder antes de definir uma política: Qual é a natureza desta guerra?
Lênin, que certamente dedicava horas e horas para ler todo jornal burguês que caísse em suas mãos, polemizando sobre a guerra com todos os que faziam “caricatura do marxismo”, dizia: “Como descobrir a “verdadeira essência” da guerra, como determiná-la? A guerra é a continuação da política. É preciso estudar a política que precede a guerra, a política que leva e levou à guerra”; “O filisteu não compreende que a guerra é a “continuação da política” e por isso se limita a dizer que “o inimigo ataca”.
Com mais veemência, Lênin continua a polêmica: “Se não fizéssemos assim, esqueceríamos a exigência principal do socialismo científico e de toda a ciência social em geral e, além disso, nos privaríamos de compreender a guerra atual (...). É possível explicar a guerra sem relacioná-la com a política precedente deste ou daquele Estado, desse ou daquele sistema de Estados, destas ou daquelas classes? Repito uma vez mais: esta é a questão principal, que sempre se esquece e cuja incompreensão faz com que, de dez discussões sobre a guerra nove sejam uma disputa vã e mero palavreado. Nós dizemos: se vocês não estudaram a política praticada (...), se não demonstraram a ligação desta guerra com a política precedente, não entenderam nada desta guerra”.
Para os teóricos da conspiração, todos estes critérios de Lênin são prescindíveis. As explicações dos fenômenos políticos ou sociais que acontecem no mundo não precisam de fundamento científico, material, nem marxista, basta saber que “o inimigo ataca”. Como na velha ditadura [espanhola] que nos coube suportar durante quarenta anos, qualquer revolta social se explicava pelos “agitadores estrangeiros e profissionais pagos com o ouro de Moscou”.
Os fatos da realidade
Além das conclusões políticas que se queira extrair, o dado objetivo é que assistimos a uma onda revolucionária em todo o mundo árabe e no Oriente Próximo. Na Líbia o Governo de Kadafi, o homem das multinacionais do petróleo, que garante o saque imperialista, enfrenta protestos e lutas que culminaram em 17 de Fevereiro numa insurreição popular.
Vejamos um exemplo simples. Samir El Magrebi, um estivador do porto de Benghazi, enquanto explicava a um correspondente de um jornal venezuelano que ganha 200 dinares e vive com a sua família num quarto da casa de seus pais num bairro muito humilde, El Zeitún, afirmou: "Somos seis irmãos e três irmãs, e apenas três dos nove têm trabalho. Encontrar hoje em dia um emprego é muito difícil, quase impossível”. “A primeira coisa que precisamos que melhore depois da revolução são as questões de habitação, o emprego e os salários. É o que todos nós esperamos, que a situação melhore".
Como no resto da região, a mobilização coloca o centro das suas exigências na luta contra o aumento dos preços e na exigência das necessidades mais elementares, contra o governo corrupto e pelas liberdades democráticas básicas.
A revolta de 17 de Fevereiro se espalha pelas principais cidades do país e se fortalece na região da Cirenaica, de velha tradição opositora a Kadafi. O ditador responde reprimindo a ferro e fogo os protestos, o que, longe de pará-los, gera um enfrentamento armado. A utilização do exército contra os protestos, longe de resolver o problema, abre uma crise profunda no regime.
Setores do Exército desertam, ministros, diplomatas e "homens de negócios" deixam as fileiras do regime e passam para a oposição. Os rebeldes assaltam quartéis e arsenais de armamento, para enfrentar assim os batalhões de elite e os mercenários de Kadafi.
Um site nada suspeito do pró-imperialismo como voltairenet.org informava o seguinte: "O governo de Netanyahu solicitou à empresa Global CST que socorresse o regime amigo do coronel Kadafi (... ) [e que] recrutasse e transportasse até 50.000 mercenários, o que parece ser um projeto bastante ambicioso".
Para quem identifique bem o sionista Netanyahu, mas não tanto a empresa mencionada, tem que dizer simplesmente que a Global CST é uma multinacional especializada, entre outras coisas, no comércio de mercenários de guerra e é dirigida pelo Major General Israel Ziv aposentado do exército sionista.
Assim, os fatos constatam que, ao contrário do Egito e da Tunísia, o regime é incapaz de controlar institucionalmente a revolta e se divide. Kadafi apela aos batalhões de elite e aos mercenários para sufocar os protestos que, longe de sucumbir, se generalizam, e os acontecimentos se transformam assim numa Guerra Civil.
A transformação de um levante popular em guerra civilé o fato objetivo e a diferença qualitativa, no momento, da Líbia em relação ao Egito ou à Tunísia.
Voltando às exigências de Lênin antes de definir uma política, qual é a natureza desta guerra? É preciso dizer que a intervenção da OTAN na Líbia, a guerra imperialista se produz sobre a existência de outra Guerra prévia, a guerra civil. Assim, na Líbia, estamos em meio a duas guerras. Os defensores da teoria da conspiração negam de fato a existência da primeira e reduzem o conflito líbio a uma só guerra, "o imperialismo ataca"; negam assim o levante popular e acabam objetivamente sendo os defensores confessos ou inconfessos de Kadafi.
O movimento insurgente e a sua direção
Para todos os defensores da teoria da conspiração da CIA, a diferença da Líbia como Egito e a Tunísia está precisamente na direção do processo. Para todos eles a direção do levante e a mobilização em si são iguais, o que dá à insurreição um caráter reacionário, contrarrevolucionário, insubordinado, como diz Anguita.
Definir a natureza de um movimento pela direção é um erro tão comum entre alguns setores da esquerda como alheio ao marxismo.
Os acontecimentos recentes no Estado espanhol são pródigos em exemplos. As mobilizações operárias recentes foram encabeçadas por uma direção corrupta, parte do regime e aliada do governo. Cada mobilização que convocou, o fez pensando em colocar-se melhor na negociação perante o governo e trair a luta, incluindo a greve geral. Alguns setores da esquerda, apoiando-se neste fato correto, negaram-se algumas vezes a participar nas mobilizações convocadas pelas CCOO e UGT, inclusive negaram-se a apoiar a greve geral do passado 29 de Setembro. Por que é que apoiamos essas mobilizações, participamos nelas e impulsionamos com entusiasmo uma greve geral, quando sabíamos antecipadamente da natureza dessa direção e o que pretendia? Não sabíamos que iam trair? O que fazíamos "misturados" com traidores e corruptos, agentes do regime e do sistema?
Setores dessa esquerda que hoje diferencia a Líbia do resto do processo revolucionário árabe participaram desde o primeiro momento nas manifestações de apoio ao levante na Tunísia e Egito. E quem era a direção nesses processos?
As massas egípcias protagonizaram um levante exemplar contra o Governo de Mubarak, a Praça da Liberdade foi o símbolo desse levante, mas à frente dele colocaram-se dirigentes burgueses e reacionários, como a Irmandade Muçulmana ou os partidários do pró-imperialista El Baradei. O exército egípcio, a instituição chave do regime, assessorada e legitimada pelo imperialismo, desarmava os manifestantes enquanto deixava entrar na praça os bandos de Mubarak para causar estragos. As massas que gritavam contra o governo e conseguiram derrubar Mubarak acabaram aplaudindo o Exército. O movimento passou a ser controlado, por agora, pelo regime. Hoje no Egito o exército de Mubarak preserva o poder e, com ele, todos os seus pactos de fome e miséria e sustenta o imperialismo e o sionismo. Por que participamos então com entusiasmo nas manifestações de apoio às revoltas no Egito, quando tinham à frente semelhante direção pró-imperialista e na Praça se clamava pela intervenção do Exército egípcio?
A explicação não é outra: nós jamais confundimos o movimento com a sua direção. A natureza política de um movimento popular de protesto é determinada pelo objetivo, a que ou a quem se enfrenta, porque o movimento para um marxista é por definição inconsciente, não tem consciência do rumo geral da luta nem dos seus objetivos históricos. As massas quando se mobilizam fazem-no em reação àquilo que vivem, repudiando o que os condena à miséria ou à opressão. Sobre essa ação inconsciente, objetiva, atuam as direções políticas, o fator subjetivo, consciente, sejam estas direções mais ou menos fortes, sejam mais ou menos prestigiadas, sejam revolucionárias ou reacionárias. Sobre o impulso objetivo da ação das massas atuam esses elementos conscientes, que representam interesses de classes diferentes e opostos, para dirigir em um ou em outro sentido o processo, dotando-o de um programa.
Para os marxistas esse processo, longe de ter um caminho linear, está cheio de tensões, contradições e enfrentamentos entre as distintas forças que vão disputar essa direção. Trava-se assim uma luta viva, audaz, cujo resultado não é predeterminado por nenhum conspirador nem força alguma do destino.
A luta na Líbia e a direção do processo
Qual é então a natureza dos protestos contra Kadafi? O fato concreto, fartamente conhecido, é que desencadeiam primeiro as mobilizações e depois a repressão do regime. Os protestos na Líbia começaram, como em outros países árabes, quando surge o processo da Tunísia. No dia17 de Fevereiro, as manifestações contra Kadafi, encabeçadas pelos familiares das vítimas do massacre ocorrido na prisão de Abu Salim, em Trípoli, há 15 anos (onde foram assassinados 1200 presos, e a detenção do advogado dos familiares desses presos) foram respondidas a tiros pelas forças de Kadafi. Desencadeiam-se, assim, os acontecimentos atuais. O povo líbio, farto de ver se deteriorarem as suas condições de vida, farto de corruptos e de uma ditadura que se prolongava por mais de 40 anos, como na Tunísia e no Egito, sai às ruas. É um movimento progressivo, objetivamente revolucionário e objetivamente anti-imperialista, pois enfrenta o governo títere do FMI e do imperialismo.
Uma pergunta fundamental que toda a esquerda deveria se fazer é o que fariam se estivessem lá? Se estivéssemos na Líbia, nós estaríamos sem duvidar por um minuto ao lado dos que saíram às ruas contra Kadafi, apoiando esse movimento, independentemente da sua direção. E quanto mais reacionárias sejam essas direções, mais obrigados estamos a intervir para impedir que elas tomem a direção do movimento.
A Al Jazeera e numerosos meios de comunicação mundiais deram conta da constituição, desde o início da revolta, dos chamados Comitês Populares. Para quem tenha interesse nos relatos do lado dos insurgentes, há abundante informação gráfica e sonora, entre os quais num órgão de comunicação nada suspeito de pró-imperialismo, como a Telesur venezuelana e a sua correspondente na Líbia, Reed Lindsay.
Após os acontecimentos de 17 de Fevereiro, alastram-se por todo o país Comitês Populares. Onde as tropas de Kadafi foram expulsas, esses Comitês os encarregados de assegurar a provisão de alimentos; assegurar a eletricidade; obter petróleo para o abastecimento de combustíveis às empresas elétricas; assegurar a distribuição de alimentos e água. Esses Comitês são os que asseguraram que os funcionários que trabalham nas sucursais locais do Ministério das Finanças, nos lugares onde se juntaram à revolução, "assinassem os cheques que garantem o pagamento dos salários"; esses Comitês armados asseguraram as tarefas de defesa e o funcionamento das agências do Banco Central. Foram eles que asseguram que, nos bancos que haviam retomado o seu trabalho, se permitisse retirar diariamente até 160 dólares.
A ausência de instituições nos lugares libertados foi substituída por estes Comitês. Não é nada difícil adivinhar o que todo este processo significa, porque todo processo revolucionário, quando derruba o Estado e a sua coluna central, o exército, se divide, se vê obrigado a substituir todo este maquinário, a improvisá-lo, neste caso.
Quem é a base de todas essas milícias e do movimento de insurreição? Como em muitos outros países árabes, são os jovens (shaba) homens e mulheres, que encabeçaram o levante contra o tirano.
Basta observar as reportagens fotográficas para ver umas milícias improvisadas, mal armadas, com pouca disciplina, sem estrutura de comando. Bem longe dos disciplinados, bem pagos e melhor armados batalhões de elite que defendem Kadafi. Basta observar para ver as milícias armadas, produto de um levante popular, muito parecidas às que qualquer um pôde ver nos primeiros momentos da revolução espanhola contra o golpe militar fascista.
É a partir daí que aparece o fator determinante, a direção revolucionária que existe ou não antes da explosão, mas que não se pode improvisar, inventar, sobre a marcha dos acontecimentos. Como assegurar a milícia? Como centralizar os esforços de abastecimento, militares,…? Como criar organismos centralizados a nível nacional ante a dispersão local? Como constituir um governo centralizado de todas as zonas libertadas?
Como a realidade não tolera o vazio, começa a se produzir uma luta, repleta com certeza de tensões, choques e contradições abertas, entre os distintos setores sociais e políticos em disputa que se vêm obrigados a resolver todos estes problemas.
Os dados conhecidos indicam que se generalizaram os Conselhos Municipais, e começou a coordenação entre eles em algumas zonas. Inicialmente, todos os dados apontam para um papel relevante da chamada "Coalizão revolucionária de 17 de Fevereiro", cujo porta-voz é Abdelhafed Ghoga, jurista e defensor dos direitos humanos. Há estórias muito vagas de difícil comprovação que situam entre as milícias rebeldes muitos militantes "islamitas e comunistas".
Acrescenta-se a esse panorama de caos nas fileiras da insurreição, produto da falta de uma direção unificada, a saída maciça da Líbia do que é a componente central da classe trabalhadora líbia, os trabalhadores imigrantes, em especial os egípcios. Numa população de cerca de 6,5 milhões de habitantes, incluindo mais de 1,5 milhões de trabalhadores estrangeiros, estima-se entre um milhão e um milhão e meio as pessoas que saíram da Líbia desde o início do conflito.
A formação do chamado Conselho Nacional aparece como a resposta "necessária" tanto para "colocar ordem" nas fileiras dos insurgentes como para estabelecer um interlocutor com o regime e o mundo.
A formação do Conselho Nacional reflete as tensões internas e os objetivos diferentes de seus próprios componentes. As diferenças geracionais e políticas entre eles são notórias. "O Conselho foi útil para manter a coesão. É normal que no princípio existam diferentes pontos de vista. Não é fácil que todos aceitem a autoridade do Conselho… O mais difícil é controlar os jovens", declarava Mohamed Gheriani, um dos seus mais importantes porta-vozes.
Não apenas essas declarações confirmam as contradições entre o Conselho Nacional e a base rebelde. No mesmo dia em que a ONU aprovava a resolução autorizando a intervenção na Líbia, milhares de pessoas manifestavam-se numa praça central de Benghazi para festejar a notícia. As imagens, retransmitidas pela Al Jazeera, mostram na praça um enorme faixa muita difundida em fotos, com um lema em inglês: "Não à intervenção estrangeira, o povo líbio pode agir sozinho".
O Conselho Nacional, integrado por 31 membros, na maioria clandestinos, é composto por representantes das várias cidades, por figuras de prestígio na luta pelos direitos democráticos e por um núcleo duro de homens procedentes do regime de Kadafi (e sem notícias da irrelevante e tão citada NFSL). Para citar alguns ex-kadafistas, cabe mencionar Abdul Fatah Younis, ex-chefe do Ministério do Governo, que passou para o lado da sublevação nos primeiros dias da revolução; Ali Aziz Al Issawi, que foi ministro da Economia de Kadafi e se demitiu do posto de embaixador na Índia; o ex-ministro da Justiça Mustafá Abdel Yalil, que deixou este posto em 21 de Fevereiro. O Conselho começa assim a ser ocupado por "personalidades respeitadas, intelectuais, e homens de negócios".
Conseguir que esse Conselho "cumpra a sua missão" não é tarefa fácil, por isso o líder supremo das forças da OTAN, o almirante James Stavridis, afirmou perante o Senado dos EUA que se detectaram "indícios" da presença de elementos da Al Qaeda e do Hezbollah entre as forças rebeldes. "Estamos analisando bem de perto o conteúdo, a composição e as personalidades dos líderes da oposição", disse. No mesmo sentido, o ministro dos Assuntos Exteriores francês, Alain Juppé, manifestava as suas dúvidas sobre o mesmo Conselho, em cujo reconhecimento havia sido pioneiro o governo gaulês: "O Conselho Nacional de Transição líbio (CNT) não “tem o monopólio” da representação dos rebeldes no seu país".
O imperialismo apressou-se a reconhecer esse Conselho, em primeiro lugar para ajudá-lo a colocar "ordem" e disciplina às indisciplinadas milícias e, em especial, como eles próprios reconhecem, nos mais jovens.
A formação do Conselho Nacional, longe das teorias da conspiração, mostra as contradições internas e a luta numa revolução, entre o caráter objetivo antiditatorial e anti-imperialista que expressa o levante das massas e a ausência de una direção revolucionária, o que permite a homens do velho regime e setores burgueses ("homens de negócios") situarem-se na liderança para reconduzir esse levante para uma transição acordada com o imperialismo e que consigam salvar do regime de Kadafi.
Qual é o objetivo da intervenção militar do imperialismo?
Contam que quando o governo prussiano pediu ao general Karl Von Clausewitz um plano de guerra para enfrentar a França, Clausewitz respondeu: diga-nos qual é o objetivo político e nós traçaremos o plano de guerra. Este célebre general prussiano do século XIX, autor do tratado "Sobre a guerra", foi sempre muito respeitado por Engels e, sobretudo, por Lênin. É dele essa célebre e muito conhecida frase que Lênin repete "a guerra é a continuação da política por outros meios".
Os governos imperialistas, por mais perversos e canalhas que sejam, estão longe de ser catalogados como idiotas ou acéfalos que não sabem o que fazem. Por isso, o Ministro francês da Defesa, Longuet, fazendo eco das tensões surgidas nas fileiras aliadas, recordava: "Se não há um projeto político não faz sentido intervir". Qual é então o objetivo político que precede a intervenção? Para os defensores da teoria da conspiração resume-se a colocar um sinal de igual entre esta intervenção e a do Iraque.
Se o objetivo político é o mesmo que na guerra do Iraque, acabar com Sadam Hussein, ocupar militarmente o Iraque e impor um governo colonial, por que a resolução da ONU recusa expressamente a ocupação da Líbia? Por que, como diz muito bem a declaração da Corriente Roja, "não só permaneceram impassíveis enquanto o levante popular estava sendo arrasado, como também negaram explicitamente armas quando a resistência as pediu?” Por que as petrolíferas continuaram a financiar Kadafi? Por que, mais surpreendentemente ainda, Obama e Zapatero afirmam taxativamente: "A operação na Líbia não pretende expulsar Kadafi"; "A resolução 1973 do Conselho de Segurança da ONU não pretendia nem pretende a expulsão do coronel Kadafi, o seu objetivo era adverti-lo para que deixasse de usar as armas contra o seu povo, e se não o fizesse a comunidade internacional estaria disposta a usar a força para colocar fim aos assassinatos do seu povo" (Zapatero).
Para sermos fiéis a esse conselho de Lênin, "a guerra é a continuação da política", basta observar as operações militares. Desde que começaram no dia 19 de Março, as operações da OTAN se centram no ataque aéreo nas posições de Kadafi e ao bombardeio com mísseis Tomahawk. Cada bombardeio permite que as tropas rebeldes avancem, mas assim que ele é cessado as forças de Kadafi recuperam novamente terreno. Se o objetivo é, como no Iraque, acabar rapidamente com Kadafi, ocupar militarmente o país e impor um governo colonial, por que esta forma de intervenção militar que nem acaba com Kadafi, nem permite o triunfo dos insurgentes?
Recordemos o conselho de Lênin: "demonstrar a ligação desta guerra com a política precedente", "explicar a guerra relacionando-a com a política precedente deste ou daquele Estado, desse ou daquele sistema de Estados, destas ou daquelas classes". Onde ficam as análises da crise econômica mundial, das divisões interimperialistas pelos mercados? Onde ficam as análises de um imperialismo atolado em duas guerras como as do Iraque ou Afeganistão? Os teóricos da conspiração apagam com o cotovelo o que escreveram com a mão apenas umas semanas antes da eclosão do conflito.
Que a intervenção na Líbia está gerando tensões nas próprias fileiras do imperialismo e destes com países como Rússia e China é sabido em todo o mundo. O chefe dos imperialistas, Obama, foi claro: "Ampliar a nossa missão militar na Líbia para provocar a mudança de regime seria um erro... A aliança ter-se-ia dividido, teríamos que colocar tropas no terreno, os perigos enfrentados por nossos soldados aumentariam assim, como a nossa responsabilidade nos acontecimentos seguintes".
Com uma crise econômica mundial que inclui uma redução de gastos militares nos EUA de 55 bilhões de euros, com duas guerras não solucionadas e uma região inteira sacudida por levantes populares, repetir a política do Iraque é um suicídio. A recente reunião do imperialismo em Londres conclui dizendo que todos querem "a soberania, independência, integridade territorial e unidade nacional líbia". Sem ignorar um ápice da demagogia e os truques imperialistas, são declarações notavelmente diferentes das realizadas na guerra do Iraque.
As resoluções da ONU, a negação reiterada em dar armas aos rebeldes, as ações militares da OTAN e as declarações do imperialismo, em especial do seu comandante superior, Barack Obama, mostram o objetivo político da intervenção, como diz a declaração da Corriente Roja, é assegurar o controle da região e impor a "estabilidade" numa área estratégica para os recursos energéticos, porque perante os crescentes levantes populares, os governos e regimes políticos da região mostram-se incapazes de manter a estabilidade política.
Diferentemente do Egito e da Tunísia, não conseguiram um acordo por dentro do regime para desmantelar o levante porque na Líbia a mobilização destruiu o estado e a coluna vertebral dele, o exército. Nem Kadafi, apoiado nos seus mercenários e tropas de elite, nem a direção da insurreição, que não demonstra controlar a população e ser a direção indiscutível, garantem por si só essa estabilidade; por isso as ações militares da OTAN estão ao serviço de encurralar a ambos e forçar um acordo negociado de unidade nacional, uma transição negociada sob a tutela imperialista.
Se a política do imperialismo fosse simplesmente derrubar Kadafi, teria bastado armar desde o primeiro dia a oposição até aos dentes e não dar tréguas com os ataques aéreos para acabar com Kadafi em dois dias, sem necessidade de que um só soldado da OTAN pisasse o solo da Líbia. Mas, reiteremos uma vez mais, um Conselho Nacional que não demonstrou ser o representante de todos os insurgentes e muito menos capaz de controlar os jovens armados, não é garantia alguma para o imperialismo.
A proposta de Franco Frattini, ministro dos Assuntos Exteriores italiano, a potência com mais presença na Líbia, é clara: "impulsionar uma reconciliação nacional líbia". "A solução da crise será política, não militar", repete o beligerante Sarkozy. Abrir as portas ao exílio de Kadafi, sem lhe pedir contas pelo passado, como fizeram com Ben Ali e Mubarak, é não só a "proposta política" em que aposta o imperialismo, mas também a que se soma o próprio filho de Kadafi e figura central do regime, Saif Al-Islam. A declaração do Conselho Nacional comprometendo-se a respeitar todos os acordos internacionais assinados pela Líbia (a mesma coisa que adotaram como primeira medida os militares egípcios), o recente discurso de Kadafi afirmando que aceitaria qualquer decisão da União Africana e o envio a Londres de emissários do regime abrem ainda mais a porta a essa negociação que é um "segredo" de polichinelo.
As ações militares da OTAN acompanham, como a sombra acompanha o corpo, a pressão para impor essa política.
Contra o imperialismo com e a partir da revolução ou contra a intervenção para defender Kadafi?
A declaração da Corriente Roja, no último dia 10 de Março, afirmava:
"Que os povos do mundo devem se mobilizar contra a intervenção imperialista executada pela OTAN, pelo direito à autodeterminação dos povos e contra o regime de Kadafi, com o objetivo de impedir – em primeiro lugar – qualquer apoio direto ou indireto do Governo espanhol à agressão imperialista.
Manifestamos o nosso apoio ao levante do povo líbio para derrotar o regime de Kadafi, no marco das revoluções dos povos árabes contra os governos pró-imperialistas e corruptos. O armamento dos trabalhadores e das classes populares líbias e o surgimento de uma direção política que se oponha firmemente às ingerências das potências imperialistas e que saiba desenvolver até as suas últimas consequências uma estratégia de insurreição armada contra o regime de Kadafi são a única garantia de que o povo líbio possa conquistar à total soberania nacional, a democracia, a liberdade e a possibilidade de avançar para o socialismo".
Os que, como nós, defendem esta posição são taxados dos "Nem... Nem". Tomar essa definição de um programa de televisão lamentável, um triste reality show dedicado aos jovens que "Nem estudam Nem trabalham", mostra muito pouco respeito, muito pouca imaginação e um nível político lamentável.
Atacam-nos por defender a mesma posição dos que na primeira guerra do Iraque diziam "Nem OTAN nem Sadam". Inclusive afirmam que não somos consequentes com a posição mantida até agora de que nós defendemos um país atacado pelo imperialismo independentemente do regime que esse país tenha. Continuamos a defender firmemente a pés juntos esse mesmo princípio, assim como o fizemos nas guerras do Iraque. Mais ainda, quem como eu que milito há anos na LIT-QI teve de ouvir não poucos insultos dos que se calavam e ficaram escandalizados quando, durante a guerra das Malvinas, defendemos a Argentina, em plena ditadura, contra a agressão da Inglaterra.
Surpreende-me especialmente que muitos dos que, com justíssima razão, dizem "Nem PSOE, Nem PP" se tornem agora tão contrários a dizer "Nem…, Nem…”. Mas na guerra da Líbia quem nos acusa de "Nem... Nem" só podem fazê-lo desde um ponto de vista: desconhecer a existência da guerra que precede a intervenção imperialista, desconhecendo o levante popular contra Kadafi. Na realidade os "Nem... Nem" não existem; dizer "Nem Sadam Nem OTAN", quando havia uma guerra de agressão imperialista, só poderia ser a bandeira do neutralismo frente a essa guerra, isto é, a bandeira da capitulação vergonhosa à agressão imperialista.
Quem diz "OTAN não, Fora Kadafi", longe de qualquer neutralismo, mantém a coerência exata da nossa posição: estamos contra a intervenção imperialista e a favor de que a insurreição derrote Kadafi. Deixamos claro que estamos contra a intervenção imperialista, mas não somos neutros na guerra civil aberta, queremos que os insurgentes líbios não deixem nenhum rastro do regime do pró-imperialista e tirano Kadafi.
O paradoxo do debate é que a posição que agita contra os “Nem... Nem” acaba sendo neutralista numa das duas guerras em curso, a guerra civil líbia, e por essa via acabam numa capitulação completamente ao regime de Kadafi. Pior ainda, mostram uma inconsequência extrema. Se não existe tal guerra civil como nós afirmamos e se tudo é uma montagem, se aqui não existe mais guerra do que a da agressão imperialista, por que não exigir apoio militar a Kadafi, porque não exigir voluntários e armas para defender a Líbia, a de Kadafi, contra o imperialismo? Por que não exigir de todas as organizações e Governos árabes armas e voluntários para ir para a Líbia? Em vez de tudo isso, os "anti-imperialistas" declaram-se agora partidários convictos da "não ingerência".
Construir um movimento de massas em apoio às revoluções árabes e contra a intervenção imperialista
Aqueles que se declaram partidários de organizar um grande movimento de massas contra a intervenção imperialista estão obrigados a reconhecer a realidade tal qual ela é. Os/as companheiros/as que convocam nas suas fábricas, nas suas empresas ou a nas mesquitas às manifestações contra a intervenção da OTAN, se encontram com uma realidade que está a anos luz dos abundantes comentários do site Kaos en la red e de algumas reuniões da "vanguarda anti-imperialista". A imensa maioria da classe operária, incluindo nela boa parte dos melhores ativistas operários ou a imensa maioria da chamada comunidade árabe, não estão de fato contra a intervenção da OTAN ou têm importantes dúvidas sobre se esta é o "mal menor". Pior ainda, existe um dado demolidor que deveria fazer refletir os teóricos da conspiração: o que acontece nos países árabes que - estando sacudidos por um processo revolucionário em toda a região - não têm manifestações maciças contra a intervenção? Por que no Líbano, Tunísia e Egito não vieram milhões às ruas para dizer não à intervenção imperialista?
Para os defensores da teoria da conspiração a explicação é simples: os poderosos meios de comunicação mentem, falsificam e confundem, gerando assim um estado de opinião determinado. Mas os meios de comunicação começaram a ser assim agora? Que saibamos sempre foram assim, mentirosos, falsificadores, etc. Como explicar então que milhões de pessoas no mundo tenham saído para as ruas contra a intervenção no Iraque, que nos países árabes todas e cada uma das intervenções do imperialismo tenham trazido milhões para as ruas e nesta seja um deserto?
Dizem que as grandes mentiras, para que tenham credibilidade social, necessitam de una dose de verdade. A grande mentira do imperialismo, de que intervém na Líbia para salvar a população civil, se assenta numa dose de verdade – que Kadafi está passando a ferro e fogo a população que se levantou contra ele. Quando qualquer pessoa do mundo, e principalmente neste país, ouviu Kadafi dizer que entraria em Benghazi como Franco entrou em Madrid, acabou tendo a dose definitiva de verdade que a fez engolir a grande mentira.
Querer combater as mentiras do imperialismo negando os fatos da realidade, essas "doses de verdade", é a aposta segura para não construir nenhum movimento anti-imperialista.
Afirmar que "o que une" é o repúdio da intervenção da OTAN, que esse deve ser o acordo "mínimo" para impulsionar um movimento contra a guerra, é apostar em não construir esse movimento de protesto contra a intervenção. Porque dizer só "Não à intervenção da OTAN" desconhecendo a guerra civil em curso, desconhecendo a recusa de todos os governos em enviar armas aos rebeldes, é dizer “Não à OTAN... e que Kadafi faça recuar os rebeldes”; é, em definitivo, o apoio inconfesso a Kadafi. Essa política é um crime para o processo revolucionário nos países árabes e arma de motivos os que, desgraçadamente, opinam que essa intervenção "é o mal menor".
Temos que impulsionar um movimento contra a guerra que diga "OTAN Não, Fora Kadafi", que grite como foi feito em Madrid "Não à intervenção, sim à revolução". Temos que levar esse debate às empresas, aos sindicatos e especialmente aos trabalhadores/as árabes imigrantes, para explicar pacientemente que apoiar os trabalhadores/as e o povo líbio para que acabem com Kadafi exige que nos oponhamos à intervenção da OTAN e exijamos armas para os insurgentes, como afirma a declaração da Corriente Roja. Temos que manifestar todo o apoio e solidariedade aos que pegaram em armas contra Kadafi, por isso não queremos uma intervenção a serviço de substituir uma tirania por outra, pela pior de todas as tiranias, a das grandes potências. Não queremos que a OTAN com o regime de Kadafi – ou ainda que seja sem Kadafi e os setores do Conselho Nacional que vêm desse mesmo regime –, roubem ao povo líbio o seu direito à vitória. Não queremos um "novo regime" que continue o saque dos recursos da Líbia, entregando as riquezas do país às multinacionais; não queremos um novo regime que, a mando do FMI, continue a condenar a juventude ao desemprego e à miséria. Por isso, o levante de 17 de Fevereiro só triunfará se for o povo armado a derrotar Kadafi e a fechar a porta à OTAN.
Seguramente que mais de um "anti-imperialista" gritará aos céus: pedem armas aos governos imperialistas! Falta mais alguma prova da capitulação ao imperialismo?
Será preciso recordar-lhes, entre outros, que Ho Chi Min e o Vietnã pediram e receberam armamento do imperialismo norte-americano na sua luta contra os imperialismos francês e japonês e, que saibamos, ninguém os acusou por isso de pró-imperialistas. Os partisans italianos e franceses na II Guerra Mundial exigiram mais de uma vez armamento aos exércitos norte-americano e britânico sem que ninguém os acusa-se por isso de pró-imperialistas saxões. E não foi uma das grandes reivindicações da República em 1936 o pedido de ajuda militar às potencias imperialistas, os chamados aliados? Não foi sempre um motivo de denúncia o miserável embargo de armas que o governo Blum fez à República e a recusa dos aliados em enviar essas armas?
Em todos os casos citados, pedir armas é uma exigência básica, o direito dos povos de se defenderem dos tiranos; é, além disso, uma forma direta de desmascarar a demagogia imperialista. Os que falam em defender o povo líbio, por que lhe negam o direito a defender-se? Mas é, sobretudo, a demonstração clara e sincera de que queremos a vitória do povo líbio frente a Kadafi.
Apoiar os insurgentes líbios, exigir armas para a sua defesa, é a maneira de colocar uma barreira entre os jovens armados e a direção capituladora do Conselho Nacional; é a melhor maneira de criar pontes com esses setores que defendem "Não à intervenção estrangeira, o povo líbio pode fazê-lo sozinho".
O futuro da Líbia com um novo regime surgido da unidade nacional ou da completa derrota do regime de Kadafi não vai fechar o processo revolucionário. O novo regime terá que responder às reivindicações econômicas, sociais e democráticas que estão na base do levante que hoje sacode a Líbia e todos os povos árabes. Nenhum governo colonial poderá satisfazer essas reivindicações e isso dá base material à continuidade da luta. Mas os que de forma confessa ou inconfessa se colocarem ao lado de Kadafi não terão nada que dizer, porque estiveram do lado do tirano que o povo derrubou.

Nota:
[1] Fragmentos de textos de Lênin sobre a guerra. As duas citações correspondem a dois artigos: “Sobre a caricatura de marxismo e o economicismo imperialista” (1916) e “A guerra e a revolução” (1917). Os destaques a negrito são meus.

Tradução: Renata Cambra

(LIT-QI)

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