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Zé Celso e As Bacantes
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Por Luiz Rosemberg Filho & Sindoval Aguiar
Rio de Janeiro – Para nós, hoje, com mais de 60 anos, o Teatro Oficina foi a nossa universidade possível em anos muito difíceis. Em 1964, as escolas e universidades enveloparam o saber, rotulando como subversivos tudo e todos que ainda pensavam. Mas o ciclo militar não foi só empobrecedor como doloroso. Não só incorporou a desgraça como espetáculo, como também o gangsterismo dos despreparados, mas obcecados pelo poder. Duas décadas de irresponsabilidade e atraso. Deu no que deu; Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula-lá...Todos zeladores de um continuísmo diferente na forma, mas igual no conteúdo demagógico. E com um detalhe importante; todos com um vasto sorriso nos lábios, vendidos como democratas!
Só que das maquinações do poder não se pode esperar outra coisa, que não um profundo desprezo pelo pensamento profundo. Elemento espectral que nunca deixam expandir pois a m... imutável da TV, dá-lhes mais segurança no confinamento palaciano, onde tramam uma eterna continuidade da mesmice política, econômica e cultural, virando o mundo de hoje “num laboratório do apocalipse’’. Sábio Karl Kraus! E através da conservação do horror sempre espetacularizado, uma constante e eficiente reprodução da ideologia dominante.
Ou seja, é-nos traumático e cômico vermos ainda hoje, os velhos e “novos” políticos sempre falando pomposas besteiras na TV. Meticulosos na grossura, não lhes faltam habilidades para mentir. Lamacentos e primitivos acham-se deuses, só que de significação alguma. Diante de total perplexidade nos voltamos uma vez mais para o Teatro Oficina, sabiamente transformado em Usina/Uzona. Uma vez mais um novo deslumbramento pânico do prazer e do corpo como referência de um saber mais precioso do humano lado da vida. Um novo ensinamento que nos refaz de décadas e décadas de vergonha e tristeza. Não há mais tempo para, uma vez mais, esquecermos do sonho. É o que nos ensina estas Bacantes incrustadas nas brasas do prazer, do afeto, do humor e do sorriso da criança que descobre o mundo.
De um José Celso Martinez Correa humano, demasiadamente humano, como profetizava a arte fundada nas origens da tragédia. Com este mestre brasileiro pondo de ponta-cabeça o nosso racionalismo ocidental, numa simbiose de atemporalidade com os deuses, para provar que nenhum poder possui autonomia genuína, então, também, não possui história genuína. Sem legitimidade, portanto, na imposição ideológica para fazer de nós o que sempre faz, massificando tudo e todos.
Em Bacantes, as diferenças despontam entre Apolo e Dionísio, o diretor/Tirésias, faz simbiose de co-irmãos, entre deuses olímpicos e não olímpicos. Com o teatro Oficina, esta Usina/Uzona transformada na maior biodigestora de tragédias do planeta, dando vida humana à barbárie. A divina Grécia, a origem de Homero, nesse culto assombroso é uma experiência pioneira, épica, em um verdadeiro arrebatamento pela beatificação da orgia, única no teatro brasileiro. É impressionante como José Celso assumiu a sua total atemporalidade transcendente, superando a realidade banalizada e vigiada.
Impondo-se como sujeito além do passado, para carregá-lo sem a tormenta da melancolia de não transformá-lo. E sem querer assumir seu papel como vanguarda, o que geralmente acontece com aqueles que nem estão à altura de beijar-lhes os pés! Na realidade, a dita vanguarda nada teria a definir nesse universo nietzschiano, além das dialéticas que a arte carrega e, só ela pode carregar, como o espaço da utopia.
O grande perigo e ameaça de trabalhos como o desse mestre do teatro no Brasil é que se houver pelo menos um seguidor a coisa por aqui pode melhorar muito, subvertendo até este teatrão medíocre de maus atores televisivos. Corre-se o risco de até o nome do país mudar: Grécia/Brasil! Pela pulsão de vida abatendo a morte! A derrota desta herança maldita de vivermos mascarados! A apoteose final, um arrebatamento que nos deixará de vez no paraíso!
Com o início de última cena denso e cadenciado, com todos os gêneros e estilos musicais, com a preferência pelo andante, com o agradecimento pelas premissas de um novo tempo, de uma gloriosa caminhada em verdadeira manifestação com todos: atores, deuses e platéia na celebração de uma conjunção de harmonias. Para despertar a alma de um país que não pode adormecer sem a grandeza dessa embriaguez do conhecimento.
Nessa Grécia/Brasil das Bacantes, José Celso, além da direção difícil e complexa, superou tudo com nada o intimidando. Tirésias, o mitológico cego, sábio e adivinho, é também um verdadeiro Apolíneo, a desbarbarizar e purificar cultos e magias pela descontração entre a tensão e a poesia. E por que não, sendo também, um nosso verdadeiro Eurípedes, pela ossatura compacta e magistral de difícil espetáculo? Uma concepção operística bem Brasil, carnavalizada, crítica, satirizante, doce, lírica e musical demais, humanamente musical! Estético e formal! Pelo domínio livre e seguro da concepção. De um grande teatro de arena, para um teatro de galerias, Usina/Uzona! O universo do caos transformando a nossa cultura espetacularizada em uma bacanalização, em que o mundo dos deuses não nos chega como ópio, confrontos ou antagonismos. Mas como atemporalidade de entendimentos e da máxima projeção possível, fazendo o passado dançar pelo seu horror, na embriaguez do prazer e da alegria, pactuando com o presente para um melhor entendimento de nossas mazelas.
Só carregamos esquecimentos e aculturações para a periferia, mas sem poder transfigurá-la, pois somos também, dor da melancolia, como em Walter Benjamin. Vemos, então, que sob as graças de uma compulsiva direção, podemos definir a grandeza e a riqueza da concepção, pelo encurtamento de espaços definida também, pela atemporalidade e sinapses de fundo sintagmático enriquecido: teatro/cinema. Com a peça virando filme. Teatro, cinema, ciência e tecnologia, modernidade e cultura na superação de ideologias e tecnologias. Na superação dos falsos valores que, diariamente, mais de 100 milhões de telespectadores, julgando-se exorcizados pela ignorância, o desentendimento, a banalização do consumo e o fetiche, se dão como carrascos e linchadores dos culpados que os catatônicos espetáculos das telinhas se esmeram em criar e produzir em altíssimo nível digital e tecnológico. Na entronização dos deuses que o biodigestor da humana Usina/Uzona irá reciclar na atemporalidade das mutações das Bacantes.
Bacantes, este orgulho para a eternidade da Grécia, símbolo da arte, marcando diferenças que somente a cultura do saber pode superar pela coragem e ousadia de Eurípedes, e que Zé Celso encarou para uma superação do Brasil. Aqui, um trabalho de dimensão Oswaldiana, Villalobiana e que Wilhem Reich, gostaria de ter assistido, homenageado que foi ao lado do cinema Glauberiano. Aqui o que esteve presente foi a mais apologética expressão de liberdade e a consciência de pulsão corajosa de prazer e alegria em sua máxima potência de embriaguês e prazer. Em uma humana epifania da transgressão!
Uma Bacante musical! Indispensável uma especialíssima reverência à grandeza musical deste trabalho que nos orgulha muitíssimo. Sem ela alguma coisa ficaria no ar, à procura de seu próprio corpo, perdidos os movimentos de que a expressão do humano e dos deuses precisam agregar. E de que não podem prescindir até o encontro de superações e entendimentos, para a harmonia do todo, o que a montagem sistematizou. Porque o silêncio musical é um mistério e, que a música deste trabalho, soube desvelar! Estamos ou estivemos por algumas horas sagradas no paraíso!
31/5/2009
Fonte: ViaPolítica/Os autores
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Zé Celso encontra com Gerald Thomas, Judith Malina, Flora Sussekind e o público no Theaterlab em Nova Iorque para assistir à projeção de Bacantes, dvd recém-lançado do Festival Teat(r)o Oficina. Em seguida conversam sobre a cultura de Dionisos como mostra este vídeo fotografado por Marcelo Drummond:
Sobre o mesmo tema, leia também uma entrevista de Zé Celso para a Deutsche Welle:
http://www.dw-world.de/dw/...
http://www.dw-world.de/dw/...
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