segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Pensamentando

A flor, a menina e o alaúde
por Audrey de Mattos
Havia na casa, naquele tempo, um menininho franzino que estava sempre inventando histórias. Diziam. Ele entrou correndo pela casa, interpelando criadas, tios, primos com uma pergunta insistente, que saía esganiçada de dentro do seu desespero. À pergunta sôfrega devolviam, sem paciência, ou com ares de quem tratasse com um mentiroso contumaz, a mesma resposta, como se tivessem combinado: “- viu o quê?”

Dizem que já faz anos, muitos anos. Hoje a casa, palco dos acontecimentos, velha e com ares de mal assombrada ostenta musgo em suas paredes de tijolos aparentes, muitas folhas pelo chão do enorme jardim, umas por cima das outras, as debaixo já apodrecidas, cortinas esfarrapadas nas janelas, detrás das quais parece sempre haver alguém à espreita e uma placa de “vende-se” encravada na terra do canteiro, tão velha quanto a casa e um tanto descaída. A decadência da placa acaba por espantar os poucos que se detém a observar a propriedade com um misto de ganância e repúdio.
Mas nem sempre foi assim. Nos tempos dos Açucenas a casa se abria todas as manhãs em cortinas para fora, a tomar sol, e em tapetes batidos e estendidos por cima dos muros. As crianças mais novas, que ainda não iam à escola – ao Grupo, como então se dizia – corriam pelo jardim e pelo quintal em gritos de puro contentamento diante da vida, ou da beleza do dia ou, quem sabe, da infinidade de possibilidades que a casa gigantesca oferecia à curiosidade dos miúdos ávidos diante do mundo que ainda lhes era tão novo, tão surpreendente.

Pois foi num desses dias de sol ameno, porém quente e brilhante, em que se lavavam os pisos e se quaravam as cortinas – porque no final de semana haveria a festa do aniversário do avozinho – que ela apareceu pela primeira vez. Saiu de trás de uma margarida, onde se estivera escondendo por toda a manhã, um tantinho amedrontada com a azáfama das arrumadeiras que carregavam braçadas de almofadas, arrumavam-nas na varanda para que tomassem o sol cálido e bom e sumiam, para logo em seguida reaparecerem com tapetes, cortinas ou montanhas de roupas; uns tinham o mesmo destino das almofadas, outras eram atiradas no amplo tanque de pedra, para serem mergulhadas em espuma, escovadas e torcidas antes de ganharem um lugar na corda, de onde lançariam olhares de soberba às pobres almofadas atiradas ao chão e se poriam a balançar suavemente com o vento, deleitosas dos raios de sol, já então altos, a abrasar-lhes as faces úmidas e cheirosas da lavagem recente.
lençois balançando no varal.
Era uma menina muito branca, pálida mesmo, como se jamais se tivesse detido, por um segundo que fosse, sob a luz do sol. Não tinha as bochechas esbraseadas dos meninos da sua idade, nem os joelhos rotos, nem as unhas sujas. Toda ela beirava o divino, não fosse o cabelo volumoso, de um castanho avermelhado, que se espalhava revolto e um tanto maltratado ao redor de seu rosto incomum. Trajava ainda um vestido onde se viam todas as cores em flores e rabiscos, embora, ao primeiro olhar, se dissesse que era amarelo. Mas logo se entendia que era porque o vestido carregava a luz do sol. Os olhos, de um redondo imenso e comovente, não tinham o mesmo brilho do olhar das crianças mas, longe de serem apagados, traziam uma vividez jamais vista numa criatura da Terra, como que uma chama feita de uma luz estrangeira, que devagar envolvesse a quem ousasse encará-la, mas que se pudesse desvanecer a qualquer momento.
Tinha o seu meio metro mal medido, era magra como devem ser as aparições e os seus bracinhos finos, rematados por mãos diminutas, faziam, com as mangas curtas do vestido, um contraste tão bonito do branco com o arco-íris desordenado que mal se notava o alaúde que abraçavam sem esforço, ainda que o alaúde fosse quase do tamanho da menina. Talvez fosse um alaúde leve ou talvez os braços finos tivessem uma força insuspeitada. Fosse como fosse, ela deixou a margarida onde se estivera escondendo e com passinhos cuidadosos, que se assemelhavam a pequeninos saltos foi-se chegando para perto das almofadas na varanda. Quem sabe o colorido delas lhe tivesse soprado a ideia de que eram meio aparentadas de seu vestido e ela tivesse achado que fosse um bom plano chegar-se e permitir que entabulassem conversa, o vestido e as almofadas. Subiu sem dificuldade os altos degraus, o que não era pouco espantoso para suas pernas curtas; curvou-se como numa reverência, encostou a pontinha do pé descalço em uma das almofadas e pareceu se deliciar com o calor gostoso que vinha delas. Seus lábios, de um vermelho vivo, como sujos de uma fruta silvestre qualquer recém mastigada, relaxaram num sorriso que não era mais que um esboço, porém muito mais deleitosos que se sorrissem. Sentou-se sobre um dos travesseiros, fechou os olhos, ajeitou o alaúde e começou a tocar.
Do instrumento saía uma música maviosa, capaz de paralisar em êxtase o mais indiferente dos viventes. Durante alguns minutos, não mais que dois ou três, o tempo suspendeu sua urgência, aquietou-se, encolheu-se no cantinho do relógio e, aconchegado ao cuco, entregou-se com delícia às notas divinais. Também as crianças emudeceram de súbito, e o silêncio dava ainda mais encanto ao som que se espalhava sem pressa, sem sobressalto. As criadas ficaram embasbacadas no meio da labuta e o avozinho, que logo no final de semana sopraria noventa e duas velinhas, desceu devagar as escadas, todavia com um ímpeto de pernas só visto nos seus áureos tempos. Áureos tempos, era assim que falavam as noras, os filhos e até os vizinhos. O avozinho dirigiu-se à menina que saiu de trás da flor como se ela sempre tivesse estado lá, recostada nas almofadas mornas tangendo seu alaúde, a imensidão de seu olhar devorando tudo em volta. Fez-lhe uma mesura de cavalheiro que já não se vê e convidou-a a dançar. Ela repousou o alaúde em duas almofadas e deu-lhe uma piscadela tão gentil e tão cúmplice que ele continuou tocando como se sobre suas cordas deslizassem, ainda, aquelas mãozinhas quase irreais. Levantou-se com a agilidade das fadas, retribuiu a mesura, aceitou a mão que se lhe oferecia e entregou-se aos passos da dança, enquanto seu vestido se ia tornando num vestido de baile e o pijama do avozinho se metamorfoseava num legítimo tuxedo.

Mas durou apenas dois ou três minutos. Logo os gritos estridentes da gurizada cortavam os ares e as criadas alvoroçadas se esbarravam a meio caminho do tanque ou do fogão, ainda mais apressadas, porque o cuco, despertado pelo movimento brusco do tempo que então voltara a correr, apareceu à porta do relógio, estremunhado, a dar conta às pessoas de que já eram horas e havia, ainda, muito trabalho a ser feito.
Por isso, ninguém viu a dança do avozinho com a menina que veio do jardim. Por isso ninguém viu quando um avozinho em pijamas subiu devagar as escadas enquanto outro avozinho, esse em roupas de gala, rumava com passos garbosos em direção ao quintal. Ia pela mão de uma menininha vestida de princesa que segurava um alaúde cor de mate.
Havia na casa, naquele tempo, um menininho franzino que estava sempre inventando histórias. Diziam. Ele tinha também uns olhos arredondados que fitavam o mundo com espanto e delícia e no fundo deles também brilhava uma espécie de lamparina vinda de não se sabe que terras maravilhosas. Enquanto o passarinho do relógio bocejava o meio-dia, acordando a fome nas pessoas, o menininho entrou correndo pela casa, interpelando criadas, tios, primos com uma pergunta insistente, que saía esganiçada de dentro do seu desespero. À pergunta sôfrega devolviam, sem paciência, ou com ares de quem tratasse com um mentiroso contumaz, a mesma resposta, como se tivessem combinado: “- viu o quê?”
Ele tentou falar da menininha escondida atrás da margarida do canteiro, da música que decerto todos tinham ouvido, do avozinho que se multiplicara em dois e fugira, vestido de rei, canteiro afora, enquanto o outro, vestido com o pijama de sempre, fingia dormir um sono pesado, fingia não acordar mais, só para dar tempo ao outro de escapar.
Não é preciso dizer que ninguém deu ouvidos ao menininho. Durante muitos anos depois daquele final de semana, ainda o casarão se abriu, cortinas ao sol, para os dias que chegavam sempre, para o tempo que trazia as cabeleiras brancas, o silêncio dos corredores, as crianças tornadas em homens. O casarão se abriu diariamente até o último Açucena bater o portão e partir, não sem antes lhe dirigir um derradeiro olhar, em que brilhava o fogo de uma lamparina mágica.


audreymattos
Artigo da autoria de Audrey de Mattos.
Formada em Jornalismo e em Letras. Mestranda em Estudos Literários..
Saiba como fazer parte da obvious.

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