segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Índios

Relato da viagem às comunidades Guarani-Kaiowá     Imprimir        E-mail   
Escrito por Pedro Andrade  
Quarta, 05 de Dezembro de 2012



O caminho da Rodovia MS-295 revela uma triste paisagem: os imensos campos de soja, que se estendem por todos os lados até onde os olhos podem ver no horizonte. Por cada quilômetro que passamos nos deparamos com uma paisagem inexoravelmente idêntica à anterior. Em uma das porteiras posso ler as palavras “Fazenda Feliz Progresso”. Não posso deixar de pensar no que consiste esse progresso e no que a ideia de progresso esconde. Victor Hugo afirma que o progresso é uma engrenagem que, quando começa a funcionar, sempre esmaga um ser humano. Em “Ondas e Sombras”, um dos mais belos capítulos de Os Miseráveis, o progresso é retratado como a impiedosa marcha da sociedade humana, que não dá atenção às almas que se vão perdendo. Nessa viagem eu também pude conhecer a outra face do progresso.



Chegamos ao Mato Grosso do Sul com uma autorização de participar da visita local do Ministério Público Federal às comunidades Guarani-Kaiowá, em nome de nossa organização, a Advogados Sem Fronteiras. Tivemos a honra de ter como nosso guia uma liderança Guarani ameaçada de morte, que já conhecíamos no papel, mas não pessoalmente. Por coincidência, estávamos começando a trabalhar em uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos que pedia a proteção, por parte do Estado brasileiro, justamente para essa liderança local.



A Rodovia MS-295 nos levava para a comunidade de Pyelito Kue/Mbarakay, que havia sido responsável pela carta de “morte coletiva”, na qual declaravam que somente sairiam mortos de sua tekoha – suas terras tradicionais – e que tanta projeção deu recentemente à causa Guarani-Kaiowá. Felizmente, a comunidade já não enfrentava mais o risco de uma reintegração de posse (um “despejo”), devido ao sucesso do recurso interposto pelo Ministério Público Federal no Mato Grosso do Sul (MPF/MS) e pela Advocacia-Geral da União (AGU), na figura do Procurador Federal Frederico Aluisio C. Soares (1). Entretanto, a comunidade ainda estava submetida a uma grave realidade.



Em um vídeo produzido pela ASCURI (Associação Cultural dos Realizadores Indígenas) em 24 de outubro de 2012, uma liderança local relatava a dificuldade de acesso a alimentos, a ausência de entregas de cestas básicas pela FUNAI e falta de visitas por parte da FUNASA – a despeito da presença de um grande número de crianças no acampamento. Um ataque de grupos privados de segurança havia sido perpetrado em 23 de agosto de 2011, que chegou a ser classificado de “genocídio” pelo MPF/MS, no qual diversas mulheres, crianças e idosos ficaram feridos.



Após esse ataque, a comunidade foi obrigada a se refugiar em um território de somente dois hectares, que impossibilitava as mínimas condições de subsistência. A única possibilidade de entrar e sair do acampamento atualmente é através do largo rio Jogui (Hovy). Para atravessar, a população local precisa passar pelo rio, tendo somente como apoio um fio de arame que foi amarrado de um lado ao outro da margem. É mediante essa travessia que passam crianças, idosos, mulheres carregando seus filhos ou homens carregando as cestas básicas recebidas por meio de um cordão amarrado em suas cabeças. O problema do envio de cestas básicas parece ter sido temporariamente resolvido, uma vez que, com a recente mobilização da Força Nacional no Mato Grosso do Sul (2), também foram enviadas algumas cestas básicas para a comunidade local.



Também tivemos a oportunidade de conhecer uma mulher Guarani-Kaiowá que foi estuprada por oito homens brancos quando saiu da comunidade em outubro deste ano. Ainda assim, ela afirma que não sairá da área ocupada. Conhecemos também uma mulher idosa que mostrou um ferimento no braço esquerdo, decorrente de um ataque anterior, no qual ainda tinha uma bala alojada. Na saída da comunidade, representantes do MPF/MS tentaram apelar para a boa-fé e negociar com o fazendeiro local da Fazenda Cambará. Pediram que ele permitisse a passagem dos indígenas pela estrada, a fim de evitar que fossem obrigados a se deslocar pelo rio, garantindo, assim, o seu direito de ir e vir. O fazendeiro foi categórico: não permitiria que nenhum indígena passasse por suas terras. O Procurador da República, Marco Antonio Delfino de Almeida, em minha opinião um dos atores mais esclarecidos em todo esse processo, afirmou ao final da viagem: “a situação dos Guarani-Kaiowá é pior do que um campo de refugiados”.



Outra aldeia que visitamos foi a de Ypo'i, no município de Paranhos, na qual fomos recebidos com danças e cantos pelos membros locais. Essa comunidade também enfrenta algumas atrocidades peculiares. Em 14 de novembro de 2012 o córrego que fornece água para o acampamento foi envenenado por algum produto químico ainda desconhecido. Um dos indígenas nos mostrou algumas fotos e um vídeo de baixa qualidade que conseguiu fazer por meio de seu celular, o qual evidenciava uma grande quantidade de espuma branca boiando acima da superfície do córrego. Um funcionário da FUNAI presente afirmou que, após receber a denúncia, se deslocou até a comunidade e coletou certa quantidade da água do rio para análise em laboratório. Durante esse evento, afirmou que pôde sentir o mal-cheiro que exalava do rio. Ainda aguardamos os resultados dos testes da água coletada.



Não foi a primeira ocorrência de violência contra a comunidade de Ypo'i. Em 31 de outubro de 2009, foi perpetrado um ataque de grupos privados armados, no qual homens que portavam armas de fogo espancaram e desferiram tiros aleatórios contra os indígenas que, por sua vez, fugiram para a Terra Indígena de Pirajuí. Posteriormente, sentiram falta de quatro pessoas, dentre as quais dois professores da escola indígena que nunca mais apareceriam. O corpo de Genivaldo Vera foi encontrado no córrego. O corpo de Rolindo Vera, seu primo, nunca foi encontrado (3). Em nossa visita escutamos o relato do pai de Genivaldo, que contava como seu filho havia sido sequestrado e morto pelos chamados “pistoleiros”. Também escutamos o relato da mãe de Rolindo que, assim como Antígona na peça de Sófocles, pedia pelo mais básico dos direitos, situado acima de qualquer lei dos homens: o direito de enterrar o corpo de seu filho.



No município de Paranhos, visitamos também o acampamento de Arroio Corá. Poder-se-ia dizer que a situação jurídica desse acampamento é sui generis se isso não se repetisse também em outras localidades. A comunidade de Arroio Corá já foi declarada, demarcada e homologada desde 21 de dezembro de 2009, mas a homologação foi suspensa devido à decisão do ministro Gilmar Mendes, no Supremo Tribunal Federal (STF). Dos 7.175 hectares demarcados pela FUNAI, apenas 700 são ocupados pelos indígenas e, segundo o relatório da demarcação das terras de Arroio Corá, dezessete fazendas ocupavam os 6.475 hectares restantes em 2004. Um indígena me demonstrou incompreensão face à suspensão de um Decreto presidencial de homologação de terra indígena, perante a qual não se pode responder senão com o sentimento de impotência: “a assinatura do presidente não vale nada?”. A existência de um Decreto presidencial de homologação, de nenhuma maneira, significa a pacificação. Recentemente, em agosto de 2012, houve um ataque de grupos privados armados na comunidade, no qual desapareceu o indígena Eduardo Pires (4). Segundo relatos locais, ele teria sido levado pelos “pistoleiros”. Também morreu uma criança indígena de dois anos, chamada Geni Centurião. A comunidade afirma que ela teria passado mal após o ataque e falecido.



Após todas essas visitas, tivemos a oportunidade de nos encontrar com diversos outros atores relacionados com o conflito. Reunimo-nos com membros da OAB/MS, com membros e advogados do CIMI e, até mesmo, com uma família de fazendeiros, que pediu uma reunião com os membros da Advogados Sem Fronteiras a fim de relatar o conflito a partir do seu ponto de vista. Nesse encontro, eles nos relataram algumas irregularidades na atuação das lideranças indígenas e defenderam o direito de compensação financeira para os proprietários de boa-fé que compraram as terras da União sem saber que eram terras indígenas. A advogada do grupo argumentou: “Todo o problema da violência está na ocupação das terras por parte dos indígenas, se não houvesse ocupações, não haveria violência”. Mas esse argumento me lembra de uma frase de Bertolt Brecht: “Do rio que tudo arrasta, diz-se que é violento. Mas ninguém chama violentas às margens que o comprimem”.



Foi a violência a marca do relacionamento do Estado brasileiro com os Guarani-Kaiowá desde a criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1910 e as migrações forçadas promovidas contra os indígenas no Mato Grosso do Sul a partir da década de 1930, a fim de incentivar a colonização do Centro-Oeste. A violência marcou a venda ilegal das terras tradicionais dos Guarani-Kaiowá. A violência ainda marca a sua relação com o Estado atualmente, devido à demora na demarcação de suas terras e na suspensão de Decretos de homologação pelo STF. Os Guarani-Kaiowá sempre foram e ainda são invisíveis para o Estado brasileiro. São eles as verdadeiras vítimas da “impiedosa marcha do progresso”, citada por Victor Hugo.



Nota:



1) Justiça Federal de Navirai-MS, Decisão em sede de Agravo de Instrumento que revoga a liminar de reintegração de posse no processo nº 0000032-87.2012.4.03.6006.



2) Portaria MJ nº 2.169 de 19 de setembro de 2012, “Operação Guarani”.



3) Processo nº 0002988-16.2011.4.03.6005.



4) Em 13/08/2012, a pedido do MPF/MS, foi instaurado o Inquérito Policial (IPL) 0387/2012.



Pedro Andrade é advogado, membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB/MG e da Advogados Sem Fronteiras

Contato:  pedroandradeint(0)gmail.com
(Correio da Cidadania)

Poemas

Juras secretas






Jura secreta 15 sonhos de verão

lendo em teu livro/corpo
corpo/livro que me empresta
este poema é o que resta
das mil e umas noites de verão
quando pensei em Teerã
você sonhava comigo
e eu coloquei no teu umbigo
veneno doce da maçã

e o vermelho sangue da pitanga
foi o que ficou na minha tanga
quando beijou meu sexo de manhã

e eu solto velas ao vento
na travessia espaço e tempo
sendo real ou tanto faz
com a linguagem que invento
para aportar teu porto e cais





Jura secreta 14



eu te desejo flores lírios brancos
margaridas girassóis rosas vermelhas
e tudo quanto pétala
asas estrelas borboletas
alecrim bem-me-quer e alfazema



eu te desejo emblema
deste poema desvairado
com teu cheiro teu perfume
teu sabor teu suor tua doçura



e na mais santa loucura
declarar-te amor até os ossos



eu te desejo e posso :
palavrArte até a morte
enquanto a vida nos procura





Jura secreta 13

o tecido do amor já esgarçamos
em quantos outubros nos gozamos
agora que palavro itaocaras
e persigo outras ilhas
na carne crua do teu corpo
amanheço alfabeto grafitemas

quantas marés endoidecemos
e aramaico permaneço doido e lírico
em tudo mais que me negasse
flor de lótus flor de cactos flor de lírios
ou mesmo sexo sendo flor ou faca fosse
Hilda Hilst quando então se me amasse

ardendo em nós salgado mar e Olga risse
olhando em nós flechas de fogo se existisse
por onde quer que eu te cantasse ou amavisse


Jura secreta 12


taubaté
tremembé
tamanduateí
tabatinga
taguatinga
tracunhenhem
tucuruví



toda palavra nua me tesa
como o t da tua tigresa
Matisse que nunca vi





Jura secreta 11 engenho 484 para jiddu saldanha

arrancar do gesto
a palavra chave
da palavra a imagem xis
tudo por um risco
tudo por um triz

o trem bala (cospe esqueletos
no depósito da Central)
fuzil pode ser nosso brinquedo:
novo enredo para o próximo carnaval


Jura secreta 10


fosse o que eu quisesse
apenas um beijo roubado em tua boca
dentro do poema nada cabe
nem o que sei nem o que não se sabe



e o que não soubesse
do que foi escrito
está cravado em nós
como cicatriz no corte
entre uma palavra e outra
do que não dissesse





Jura serceta 9

não fosse o teu amor
o meu conforto
e eu teu anjo torto
como seria
se a jura secreta
não fosse mais que um poema
e se eu não te amasse
como Glauber no cinema
o que tenho aqui
no corpo em transe: a quem daria?





Jura secreta 8



hoje vi na rua a palavra ibirapitanga
que eu não conhecia
e mesmo não a conhecendo
já sabia que existia
assim como:



ibirapitinga
ibiratininga
annhangabaú
anhanguera
araraquara
jabaquara
ibirapuera




Jura secreta 7

fosse Sampa uma cidade
ou se não fosse não importa
essa cidade me transporta
me transborda me alucina
me invade inter fere na retina
com sua cruel beleza

como Oswald de Andrade
e sua realidade
como Mário de Andrade
e sua delicadeza



Jura secreta 6


o que passou não ficará já foi
a menina dos meus olhos
roubou a tua menina
e levou para festa do boi



fosse um Salgado Maranhão
nosso batismo de fogo
25 de março
e o morro queimando em chamas
no canto pro tempo nascer



e o amor que a gente faria
o sol acabou de fazer




Jura secreta 5

não fosse essa alga
queimando em tua coxa
ou se fosse e já soubesse
mar o nome do teu macho
o amor em ti consumiria

Olga Savary
no sumidouro dos meus dias

o couro cru
na antropofágica erótica
carne viva
tua paixão em mim
voraz língua nativa



Jura secreta 4


a menina dos meus olhos
com os nervos à flor da pele
brinca de bem-me-quer
ela inda pensa que é menina
mas já é quase uma mulher




Jura secreta 3

fosse essa jura sagrada
como uma boda de sangue
às 5 horas da tarde
a cara triste da morte
faca de dois gumes
naquela nova granada
e Federico Garcia Lorca
naquela noite de Espanha
não escrevesse mais nada



Jura secreta 2


não fosse esse punhal de prata
mesmo se fosse e eu não quisesse
o sangue sob o teu vestido
o sal no fluxo sagrado
sem qualquer segredo



esse rio das ostras
entre tuas pernas
o beijo no instante trágico
a língua sem que ninguém soubesse
no silêncio como susto mágico
e esse relógio sádico
como um Marquês de Sade
quando é primavera




Jura secreta 1

a língua escava entre os dentes
                      a palavra nova
fulinaimânica/sagarínica
algumas vezes muito prosa
outras vezes muito cínica

tudo o que quero conhecer:
           a pele do teu nome
a segunda pele o sobrenome
no que posso no que quero

a pele em flor a flor da pele
a palavra dândi em corpo nua
a língua em fogo a língua crua
a língua nova a língua lua

fulinaímica/sagaranagem
palavra texto palavra imagem
   quando no céu da tua boca
a língua viva se transmuta na viagem



Jura Secreta


não fosse essa jura secreta
mesmo se fosse e eu não falasse
com esse punhal de prata
o sal sob o teu vestido
o sangue no fluxo sagrado
sem nenhum segredo



esse relógio apontado pra lua
não fosse essa jura secreta
mesmo se fosse eu não dissesse
essa ostra no mar das tuas pernas
como um conto do Marquês de Sade
no silêncio logo depois do susto


Artur Gomes
www.juras-secretas.blogspot.com
(Palavras Diversas)

domingo, 27 de janeiro de 2013

Martin Luther King

Martin Luther King,
Um Homem Chamado Pastor

Por Jetro Fagundes, especial para sua coluna no QTMD?

I

luther-kingVento parceiro da liberdade,
sei que lembras até demais
o Pastor Profeta de verdade,
amigo da Justiça e da Paz

Pastor americano libertário
que no ardor da fé, paixão
sem tá nem aí para salário
foi pra rua defender irmão

No tempo do mau caratismo
cem anos depois da abolição
imperava o segregacionismo
sob a benção da Constituição

Segregacionismo, uma peste
negro nem podia bem andar
da Costa Leste à Costa Oeste,
Miami ao rumo do Canadá

Negro mostrava em sua face
a mais justificada indignação
de ser cidadão de sub classe
num país que diz ser cristão

Pra se ter uma idéia, ora vejamartin_luther_king
da desfaçatez descomunal
até mesmo dentro de igreja
segregacionismo era normal

Negros sofriam desrespeitos
no ônibus, colégio, hospital
e o cúmulo do preconceito:
sem direito a voto universal

Branca de tanta imoralidade
uma certa Casa cara de pau
dava toda institucionalidade
a tal perverso regime racial

Tempo em que só atabaques
os irmãos das justiças sociais
protestavam contra ataques
das leis racistas tão imorais

O negro, pra falar a verdade
só via o seu direito ser igual
nos espaços da irmandade
“o terreiro do seu ancestral”

Quase que em prosa e verso
Luther King deu o seu tom:
martin_luther_king3
9ABD7“Pior que o grito do perverso
é o covarde silêncio do bom”

Vento, que ama a boa prosa
versificando pro meu jardim
um dia, uma belíssima Rosa
foi causa dum belo estopim

Rosa Parks, Flor do Alabama
num ato pra lá de libertador
recusou se conviver na lama
do preconceito imoral de cor

Num dia, sentada no banco
Parks não aceitou se levantar
pra ceder lugar a um branco
que pegou coletivo no lugar

Quando Rosa Parks foi presa
sob acusação de sublevação
o Pastor, saindo em defesa
organiza grande mobilização

I I

E contra tal racismo coiote
segregacionismo anti cristão
viu negros fazendo boicotes
em várias partes da região

O Pastor Martin Luther King
sem menor medo de ser feliz
fez rua virar em santo ringue
nas lutas pelos Direitos Civis

E com apoio da Providencia
negro, índio, minoria povão
faz uso da não violência
contra regime de segregação

martin_luther_king 2Praticante da não violência
o homem chamado Pastor
se torna na santa paciência
mobilizador transformador

Com ações transformadoras
a paciência, fé e moderação
usa de técnicas inovadoras:
Greves, piquete, ocupação…

Coisas que o Deus soberano
do Alto lhe dava orientação
e que Gandhi, o líder indiano
era-lhe fonte de inspiração

Porta voz da Fé e Liberdade
honrando Chamado Pastoral
ocupou prédio, universidade
e até Corte Suprema Federal

Ruas, praças, vias, passarelas
claro que podem testemunhar
passeatas mais lindas, belas,
força do movimento popular

Tendo a frente um Profeta
grande, magnífica multidão
com cartazes, batia de testa
contra a sinistra segregação

Impressionantes, magníficas
nessas divina manifestações
a santa ira humana pacífica
fazia as mais bonitas orações

Todo ser Cristão Conscientemartin-luther-king
sabe que o Deus Libertador
fez-se presente nas gentes
que deram apoio ao pastor

Apoiando o filho de Atlanta
o próprio povo teve noção
que quando ele se levanta
unido, vence toda opressão

Guerreiro dos mais criativos
foi no seu método inovador
o Instrumento do Deus Vivo
na defesa do povo sofredor

Apesar da ter vida ameaçada
e de sofrer inúmeras prisões
não desistiu das caminhadas
contra as racistas instituições

Vento, irmão da caminhada
o homem chamado Pastor
além de ter casa ameaçada
recebia recado ameaçador

I I I

Legítimo Crente Protestante
falava do espiritual, do social
vivia em perigos constantes
sem fugir da missão pastoral

Martin_Luther_King_Jr_NYWTSMartin Luther King Pacifista
real cumpridor do seu papel
de Reverendo Pastor Batista
se tornou um Cidadão do Céu

Pastor consagrado e ousado
disse lá na terra do Tio Sam
em tom também indignado
“Não à Agressão ao Vietnã”

Contra as intenções malditas
do imperialismo da ambição
defendeu o povo Vietnamita
massacrado pela sua nação

Honrando o seu apostolado
nunca se curvou ante o mal
e achava que profeta calado
não passa de agente de baal

Pastor pra lá de respeitado
pelos seus feitos imemoriais
foi dignamente contemplado
com o Premio Nobel da Paz

Quando num dia já previsto
foi baleado pelo ódio, rancor
rumou pros rumos de Cristo
Fez a vontade do seu Senhor

E o Luther King martirizado
por peitar lei do seu doutor
para sempre será lembrado
como um exemplo de Pastor

O que uma companheirada
faz em fileiras, ocupações,
este Pastor das caminhadas,
fez em estações, repartições

No Céu de Atlanta, Carolina
do Texas… a Águia com dor
canta em memória divina
do Homem Chamado Pastor

Mas seu sonho tão sonhado
hoje é plena, pura realização
o negro além de ser votado
pode até dirigir a sua nação
dr-martin-luther-king-i-have-a-dream-speech4

Luther King durante o discurso “I have a dream”

Canta para o companheiro
que tem homenagem oficial
Terceira segunda de janeiro
no País é Feriado Nacional

Canta pra quem fez a hora
acontecer, orgulhoso da cor;
Pra ti, Vento que inda chora
saudoso do cidadão Pastor

Canta lá nos Unidos Estados
com as garras da indignação
vendo um País endinheirado
base de saque, leviana mão

Seu canto, embora tristonho
hoje já nem é de tanta dor
o homem do sonhado sonho
realmente se chamava Pastor.

=> Este cordel é também in memorian de Josias Fagundes, o sumano das histórias intermináveis.

*Jetro Fagundes colabora com o “Quem tem medo da democracia?”, onde mantém a coluna:

“Ventos do Marajó“

Obesidade Infantil

A canetada contra a obesidade infantil

por Reinaldo Canto*

Há quem afirme que se trata de intervenção do Estado, um problema a ser combatido por uma sociedade livre e soberana. Esses mesmos costumam alegar que a liberdade de expressão é um direito sagrado e não deve sofrer qualquer interferência governamental.
sa12 A canetada contra a obesidade infantil

Quais os limites da publicidade infantil? Foto: Istock Photos

Isso pode ser verdade em determinadas circunstâncias, mas quando esse pseudo “direito” se sobrepõe mesmo a questões de saúde pública, aí merece ser questionado, ainda mais se essas ações “intervencionistas” visem à proteção da saúde das nossas crianças.

É exatamente o caso de dois projetos de lei, os PLs (1096/2011 e 193/2008) aprovados no final do ano na Assembleia Legislativa de São Paulo. Eles têm o objetivo de combater a obesidade infantil, um mal que já afeta 30% das crianças e pode até mesmo ser visto como verdadeira epidemia em nosso país.

O primeiro deles veta a comercialização de lanches com brindes e o segundo restringe a publicidade de alimentos não saudáveis direcionada a crianças.

Os pais conhecem bem essas questões: nossos filhos por vezes querem ir a lanchonetes conhecidas como fast food, cujos alimentos possuem baixo nível nutricional e alta presença de açucares e gorduras, apenas para adquirir um brinquedo.

Já o bombardeio incessante da publicidade em programas e canais infantis hipnotizam os pequenos para consumo daqueles biscoitos, doces e salgadinhos. Na hora das refeições se estabelece uma batalha desigual entre comidas saudáveis e naturais contra os mágicos pacotes de algo parecido com alimentos, oferecidos pelos coloridos e estimulantes anúncios da televisão.

Claro que existem outros fortes fatores contribuintes para o sobrepeso infantil, tais como o sedentarismo e os videogames, mas os controles propostos nos dois projetos de lei paulistas serão grandes aliados nessa luta caso sejam sancionados pelo governador Geraldo Alckmin.

Aliás, para que isso ocorra, o Instituto Alana, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor, a Rede Nossa São Paulo e a Aliança pela Infância entre outras, lançaram uma petição online para que a população possa demonstrar seu apoio aos projetos e pressionem o governador paulista a assina-los até o dia 30 de janeiro. Ela está disponível em português e em inglês nesse link: http://www.change.org/SancionaAlckmin.

Caso São Paulo adote essas leis estará em ótima companhia, pois países europeus como Inglaterra, França e até vizinhos como Chile, além de cidades norte-americanas como São Francisco possuem leis semelhantes. Será uma grande inspiração para todo o país também enfrentar com seriedade o problema da obesidade infantil.

Governador, que tal começar bem a semana com uma “canetada” em favor de uma vida mais saudável e sustentável para nossas crianças?

* Reinaldo Canto é jornalista especializado em Sustentabilidade e Consumo Consciente e pós-graduado em Inteligência Empresarial e Gestão do Conhecimento. Passou pelas principais emissoras de televisão e rádio do País. Foi diretor de comunicação do Greenpeace Brasil, coordenador de comunicação do Instituto Akatu pelo Consumo Consciente e colaborador do Instituto Ethos. Atualmente é colaborador e parceiro da Envolverde, professor em Gestão Ambiental na FAPPES e palestrante e consultor na área ambiental.

** Publicado originalmente no site Carta Capital.
(Carta Capital)

Renato Prata Biar – Gostaria de ter fé…

Por Renato Prata Biar(*), especial para sua coluna no QTMD?

fé versus razão

De acreditar em santos, em deuses, em Deus
ou outra coisa qualquer.

Gostaria de ter fé…
Aquela fé cega, ociosa
Que retire as minhas culpas
e perdoe minhas palavras mentirosas
Apenas com um ato de genuflexão.

Gostaria de ter fé…
De acreditar numa vida após a morte e no paraíso eterno
De que tudo já está traçado
e que os homens maus vão realmente para o inferno.
Que terei uma segunda chance
Mesmo que não me lembre por um único instante
da outra vida que vivi;
Ficando livre para cometer os mesmos erros que,
na tal da outra vida, também aqui cometi.

Gostaria de ter fé…
De acreditar na ingênua e simples luta
do bem contra o mal.
De que o bem sempre vence
E que nunca será derrotado
De que todos os homens são bons
Quem os desvia do caminho do bem é o pobre do diabo.

Gostaria de ter fé…
De acreditar que a existência de ricos e pobres
Assassinos e vítimas
Fome e fartura
Alagamentos e secas
São consequências de uma incompreensível vontade divina –
e mais incompreensível ainda é a Sua justiça.
E que esse mesmo Ser, que tudo pode, tudo sabe e tudo vê
Mesmo vendo tudo isso e podendo reverter
Nada faz, nada ouve, nada vê.

Gostaria de ter fé…
Mas a fé é avessa às perguntas
Inimiga das dúvidas
e depreciadora da ação.
A fé não move nada!
É a mais completa paralisação
E, em muitos casos, uma verdadeira regressão.

Cada homem é uno, indivisível, imprevisível como ser.
Mas sem o outro não somos nada…
Somos apenas um livro, num lugar onde ninguém o deseja ler.
Homens, entendam de uma vez:
são os seus atos que mudam e transformam o mundo,
que criam e produzem a História;
Então é nos homens que se deve crer.

Enfim, gostaria de ter fé…
Mas, pensando bem,
Que dom maravilhoso é não tê-la.

*Renato Prata Biar é historiador.  Colabora com o “Quem tem medo da democracia?”

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Saramago

José Saramago – memorial de um génio
publicado em artes e ideias por miguel oliveira | 22 comentários

José Saramago morreu no dia 18 de Junho de 2010. Nobel da literatura, génio das palavras, mestre do texto. Controverso, comunista, ateu. Um tributo à pessoa que marcou a história da literatura universal, que faz periclitar as bases da História e do senso comum, e que deu um novo sentido ao mundo e ao ser humano. Uma história de vida e uma obra imperdível, uma “viagem de elefante”.

José Saramago morreu no dia 18 de Junho de 2010. Não sabemos se teve ou não um encontro com Deus, no céu, no inferno, ou no “desqualificado purgatório”, mas podemos ter a certeza que ambos precisavam de ajustar contas. Ateu convicto, José Saramago tem Deus como um dos temas-fetiche das suas obras. Era com Ele que gostava de conversar, era sobre as suas representações terrestres que dissertava com uma brilhante clareza interpretativa, muitas vezes recheada de causticidade, atraindo polémicas e excomunhões de muitos lados.

Saramago encontra-se agora, porventura, num, seu e claro, vazio inconsciente. Um vazio que se preenche, como acontece sempre com alguém literariamente famoso que perece, num crescendo de interesse limitado no tempo, como também sempre acontece com o interesse súbito pela obra do perecido que renasce no consciente colectivo, com as vontades de evasão do presente e da realidade quotidiana dos cultos e incautos mortais, com a leitura das suas obras. Agora encontra-se na escuridão da sua própria ausência, presente aos latejantes de vida na significância com que estruturou as letras, as mesmas peças com que jogamos o jogo da vida em verbo, sem, no entanto e inevitavelmente, a perícia da exposição do capital intelectual e a arte da construção literária saramaguiana, ou, talvez, o encontremos um dia a conversar com Blimunda Sete-Luas, num metafísico “Memorial do Convento” (1982), esta agora hiperciente da azáfama e dos interstícios da vida, e d’ “As Intermitências da Morte” (2005).

Apenas vagamente, conhecemos nós Saramago nos seus tempos de juventude. Sobeja um hiato temporal entre a primeira publicação do jovem escritor, bem depois das noites de sono partilhadas na cama com os avós Jerónimo e Josefa e os porcos, numa Azinhaga Ribatejana dos tempos da meia sardinha onde as pessoas eram constantemente “atiradas ao chão” por forças opressoras e esmagadoras, essa Azinhaga que o petrificou em estátua num banco de jardim, e a profícua e epopeica revolução literária, 30 anos depois.

Saramago não foi um académico e não ganhou prémios literários aquando da sua juventude. Saramago não foi sequer unanimemente querido, consensual, ou, como por vezes acontece nas esferas culturais e espectaculares, adulado. Terá inclusive dividido a população portuguesa, este anti-herói para parte do senso comum e para a grande parte da mediocridade política. Saramago não competiu o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa, porque não o deixaram. Os cordéis da manipulação literária e os senhores das marionetas políticas e religiosas não o permitiram. A humanização do mito de Jesus Cristo, n’ “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1991), foi a desculpa para tentar olvidar o homem que pôs Portugal (no mapa) e Espanha, o iberismo saramaguiano, a navegar pelo oceano, na sua “Jangada de Pedra” (1986). Países à deriva na unificação atracada de uma Europa cada vez mais distante e, paradoxalmente, maior. Portugal é um estado laico. A separação dos poderes entre a igreja e o estado estão, há muito, constitucionalmente definidos e aprovados. A dissecação de Jesus Cristo, o desdobramento do mito, do homem-deus em homem-(demasiado)humano, colocou no parlamento uma inflamada discussão sobre se seria este Saramago um homem suficientemente português para representar uma nação tão histórica e histericamente conectada a um deus (pátria, família) que este homem, português de nascença é certo, não acreditava. Talvez não suficientemente português mas suficientemente reconhecido mundialmente, Saramago arrecadou o Nobel da Literatura em 1998 e, justiça divina, o Prémio Camões em 1995. Não se refugiou no país que não aceitava as suas ideias, vá, os seus romances misto fusional de uma realidade tépida e uma ficção transpirada, como se se tapassem as lacunas de realidades incertas com o vómito de tempos deploráveis. Não se refugiou sequer, nem o degredo psicológico parece ser um motivo. Não hoje. Saramago escolheu na sua ibéria o recanto de memória mais distante dos homens que o rejeitaram, perto daqueles que são “as maiores vítimas do capitalismo ocidental”. O destino foi Lanzarote, a poucos quilómetros da costa africana. Ilha perdida das Canárias, Espanha, inóspita. Um acaso desidratado, um pedaço de terra negra onde escolheu viver e amar. Temos a certeza que se a ibéria se desprendesse do resto da Europa, Lanzarote ficaria no sítio, a ver passar ao largo a sua assustadora alucinação tectónica. Em Lanzarote nasceu uma epidemia contagiosa que colapsa a sociedade, uma cegueira espontânea que viria a revelar o que de mais extremo veste o ser humano – da animalidade à racionalidade, da violação ao amor. Ainda assim, esta penosa experiência para o autor e para o leitor, o “Ensaio Sobre a Cegueira” (1995), é uma “longa tortura” que mostra que nós, humanos, “não somos bons”. Dos mesmos olhos que viveram a visão da escuridão mundial vieram as lágrimas, durante a apresentação da adaptação deste ensaio ao cinema, ao lado do director brasileiro Fernando Meirelles.

De Saramago podemo-nos essencialmente deleitar com cerca de 30 anos de obra, de uma literatura “anti-gramatical”, ou seja, que reduz grande parte da portugalidade, a sua enorme língua e as suas orgulhosas regras gramaticais, a um estilo novo e único, um estilo que transforma o hermético das convenções, da pontuação e dos parágrafos, do senso do tamanho frásico, numa literatura encadeada, numa leitura do pensamento, numa leitura que se lê sem se conseguir parar. Pelo menos até Saramago querer. Desmistifica o mergulho profundo e embrenhado no romance, alertando e antecipando os pensamentos e as dúvidas do leitor, tornando a relação entre ambos mais verdadeira, porém mais dominada. Incorrecta ou elitista, dizem alguns, eis uma forma de desconstruir centenas de anos de convenções e acordos em algumas dezenas de anos de romances, poemas e peças teatrais, contos e crónicas, viagens, diários e memórias e “A Maior Flor do Mundo” (2001), o único título infantil. É a língua algo em constante mutação, não é assim, querido acordo ortográfico? Deve então ser a escrita de Saramago um corte, um raio, uma faísca de mudança nessa transformação, nessa mutação.

Saramago foi, é e será tão importante para a literatura portuguesa e mundial como o foram Fernando Pessoa ou Carlos Drummond de Andrade. Eis o homem que quando fala não mede o comprimento do sentido das palavras, em oposição à medida do comprimento interpretativo da sua escrita. Um homem que “quando se enfurece é simpático”, um autoproclamado “pessimista pela razão, optimista pela vontade”. Saramago diz o que pensa e o pensamento dele ecoa em palavras não polidas, despidas, em construções sólidas da sua verdade. Sem medo. Assume-se como comunista, ponto. Não ortodoxo, ponto. A tudo isto se chama, supomos, liberdade de expressão. Liberdade essa que por entre tantos anos de luta parece ainda periclitar nas certezas de alguns eruditos.

O funeral reuniu muitos simpatizantes, amigos, amantes da sua literatura, curiosos e a natural nata politizada. Notou-se, no entanto, e de alguma forma despreocupadamente (pela irrelevância no caso), a ausência daquele que na altura em que um evangelho incendiou um parlamento era o primeiro-ministro, o actual Presidente da República Portuguesa, o Senhor Professor Doutor Aníbal Cavaco Silva. Politicamente correcto, como sempre e como tem que ser, não se coibiu, com uma expressão entediada e simuladamente entristecida, de ler um comunicado escrito por um seu qualquer assessor. Um escrito banal daquele a quem Saramago chamou “o mestre da banalidade”. Acredito que sentisse uma perda para o país, mas não muito.

José Saramago morreu no dia 18 de Junho de 2010. Saramago não pertence ao céu, para onde voou o fumo da combustão do seu corpo, mas sim à terra, local onde agora repousam as suas cinzas. Se de perto tocar Saramago as estrelas será sentado na “sua” passarola, onde a bordo conta a Blimunda Sete-Luas e a Baltazar Sete-Sóis “O Conto da Ilha Desconhecida” (1997). Foram “Os Poemas Possíveis” (1966) que nos deixou, e todas as letras encadeadas, “Deste Mundo e do Outro” (1971).


migueloliveira
Sobre o autor: miguel oliveira; possui o cérebro na ponta dos dedos. Pinta palavras em ecrãs de computador com aquilo que sintetiza do mundo e diz possuir um rádio no lugar da cabeça. Saiba como fazer parte da obvious.

Pensamentando

Saudades
em coisas minhas por m aresta em 22 de jun de 2012 às 13:37
A falta daquilo que se não viveu. Ou o desejo daquilo que nunca se experimentou e que, permanecendo por saber, vai ganhando espaço naquilo que se é.

Tenho saudades do tempo em que as palavras me saíam como chuva em dias cinzentos. Do tempo em que olhava para fora e os olhos se perdiam no espaço, sem me preocupar com o tempo e o caminho que demorava para regressar.

Saudades desses dias, dos dias bons, em que o vermelho sabia a cerejas e o azul não era mais que a cor mais bonita do mundo. Do tempo em que ainda faltava tempo, em que o relógio era um adereço que eu não usava e os livros - mais do que trazerem as letras dos outros - se enchiam das minhas letras e das minhas próprias histórias.

Saudade infinita desses tempos. Quando pensava "e se?" e me divertia com a ideia de que, se me apetecesse, podia virar à direita ou à esquerda e seguir por uma estrada que não tinha escolhido. Saudade do imprevisto? Não. Saudade da possibilidade. Da possibilidade de poder ser, de poder experimentar, da sensação de poder descobrir o que já todos tinham descoberto mas que eu - na entrada daquilo que é possível - sabia que ainda me faltava conhecer.

Nada me prende. Nada me constrange. Nada me ata.

Falta-me apenas a força. E sobra-me a saudade.

monicaaresta
Artigo da autoria de m aresta.
escrever simplesmente pelo prazer de juntar as palavras.
Saiba como fazer parte da obvious.

Cortázar

A CASA QUE HABITA EM CORTÁZAR
em literaturas por Leandro Andrade em 07 de ago de 2012 às 17:41

Habitar a memória do outro e seus espaços: um percurso topoanalitico através da narrativa literária.

    Nos gustaba la casa porque aparte de espaciosa y antigua (hoy que las casas antiguas sucumben a la más ventajosa de la liquidación de sus materiales) guardaba los recuerdos de nuestros bisabuelos, el abuelo paterno, nuestros padres y toda la infancia.


  Revelar o espaço que “habita” um conto de Julio Cortázar. Desconstruir a narrativa literária para que o espaço se torne visível. Reconstruí-la, como exercício gráfico, para melhor compreender as relações entre dois irmãos – Irene e Eu – e a casa que vai sendo invadida por uma entidade informe que pode implicar em incontáveis significados. Estes são os pretensiosos objetivos deste pequeno ensaio.

Se o escopo é bachelariano – pois é preciso vasculhar a memória das personagens, como dispositivo topoanalítico –, o empreendimento é construtivista, como procedimento sistêmico que deve acomodar partes em totalidades: desenhar em torno dos conceitos emergentes das imagens mentais. E afirmar a condição construtivista do conto de Cortázar é uma redundância necessária. Li Cortázar, pela primeira vez, aos quatorze anos: poucas histórias tiveram, em mim, tamanha potência para o desequilíbrio; poucas estórias, em minha imaginação, se fizeram tão profundamente permanentes.

Casa tomada, memorável conto do escritor argentino, foi publicado originalmente em 1951, como parte de um volume intitulado Bestiário, pequeno livro que reúne relatos que, por um lado, ilustram uma realidade fantástica, e por outro, expressam o complexo tecido psicológico que se urde desde o interior das personagens que habitam essa realidade.

Confesso-me um leitor cativo do autor, e assim se explica, em primeiro plano, a escolha deste conto para conduzir o exercício proposto. O que dizer frente a uma obra intitulada La vuelta al dia en ochenta mundos (1967), profusão de fragmentos colecionados aqui e ali e dos quais emerge uma inesperada unidade? O que dizer do destino de um grupo de pessoas comuns que são lançadas em uma insólita viagem sem destino conhecido, como acontece no romance Los prêmios (1960)? Como comentar essa densa crônica da condição latino-americana, transladada à Paris e atravessada pela sensível história de amor por Ludmila, que compõe o Libro de Manuel (1973)? Como percorrer Rayuela (1963), compartilhando a vida com Horácio e Maga, vivendo um amor intenso em um duplo mundo de duplos sentidos?

Se enumero esses que são - para um leitor incondicionalmente disposto, em se tratando de Julio Cortázar, a suspender a descrença - inesquecíveis acontecimentos literários, que só podem acontecer no torvelinho que é o mundo de Cortázar (agora sob o codinome Lobo), é somente para acomodar-me no interior de Fafner, a Kombi-dragão que o escritor, juntamente com a esposa e também escritora, Carol Dunlop (codinome Ursinha), utilizaram para empreender a insensata aventura que é percorrer a autopista Paris-Marselha, ao longo de um mês, realizando nada menos que sessenta e cinco paradas, como escalas poéticas, cada qual num dos parking que se encontram pelo caminho. E a cada parada, os movimentos e diálogos fazem eclodir breves relatos que compõem, ao final, mais uma subversão literária.

Essa viagem, que deveria durar apenas algumas horas, é, pois, o enredo vagamundo de Los autonautas de la cosmopista (1982). E eu deverei necessariamente recordar que o autor já havia se debruçado sobre a “ecologia” das auto-estradas, quando publicou, em 1966, o conto La autopista del sur, pequena obra-prima que desconstrói toda a expectativa de normalidade, o que a certa altura, para o leitor, já não importa para nada, eis que o que Cortázar nos conta é uma história de amor.

De Julio Cortázar, o homem, o pouco que sei quase nenhum traço revela das casas vividas pelo escritor. Mas isso se torna irrelevante, quando se conhece em detalhes, mais e mais precisos, que as leituras repetidas fazem decantar, aquela que é a Casa tomada, onde os personagens, Irene e Eu, serão deixadas à vereda, tornadas nômades de si mesmos e, talvez, na imaginação do leitor. Dessa casa algures, ocupamo-nos aqui.

Todavia, a escolha do conto não se circunscreve apenas através desta coleção de recordações literárias, expressão de um apreço especial pela obra de Cortázar, mas antes porque, de sua leitura, emana a condição de obra poética exigida por Gaston Bachelard. Um mapa topoanalítico vai sendo gradualmente traçado pelo autor e conduz o leitor através da casa que, mais do que cenário estático para a narrativa dos temores fantasmáticos de um casal de irmãos, é uma personagem em movimento que dá a espessura envolvente e sufocante ao relato, deslocando-nos ao longo de seus cômodos e corredores, rumo ao saguão, diafragma que remete ao simbolismo próprio das antigas casas urbanas argentinas:

    Lembro-me bem da divisão da casa. A sala de jantar, uma peça com gobelinos, a biblioteca e três quartos grandes ficavam na parte mais afastada, a que dá frente para a Rodríguez Peña. Um único corredor, com sua maciça porta de carvalho, separava essa parte da ala dianteira, onde havia um banheiro, a cozinha, nossos quartos de dormir e o living central, com o qual se comunicavam os quartos e o corredor. Entrava-se na casa por um saguão de azulejos, e a porta principal dava para o living. De maneira que a gente entrava por esse saguão, abria a porta e já estava no living; tinha, dos lados, as portas dos nossos quartos e, à frente, o corredor que levava à parte mais afastada; seguindo pelo corredor, ultrapassava-se a porta de carvalho e, mais adiante, começava o outro lado da casa, ou então se podia virar à esquerda, justamente antes da porta, e seguir por um corredor mais estreito, que levava à cozinha e ao banheiro. Quando a porta estava aberta, dava para ver que a casa era muito grande; caso contrário, tinha-se a impressão de um desses apartamentos que se constroem agora, onde uma pessoa mal pode se mexer. Irene e eu vivíamos sempre nesta parte da casa, quase nunca íamos além da porta de carvalho, salvo para fazer a limpeza, pois é incrível como junta poeira nos móveis.


O texto permite descobrir, assim, uma casa em Buenos Aires. Indo além, permite localizá-la na geografia da cidade, com a menção à rua de nome Rodriguez Peña. O percurso narrado, de outro modo, sugere a distribuição dos cômodos, a hierarquia doméstica a qual pertencem, a totalidade limitada por paredes que se adivinha (porque argentinas) sólidas.

E, se há uma porta e um saguão que conectam a casa à cidade, há também a porta interior, a porta de carvalho, que divide a casa em duas escalas de vivências de maior ou menor intimidade. É quando essa porta se fecha, que a casa, apequenada pela circunscrição aos quartos de dormir, diminuída em superfície mas adensada em possibilidades de fantasia, torna-se cada vez mais Irene e Eu, as coisas que se deixam para trás, os novelos de Irene e os livros de seu irmão, suas pequenas rotinas privadas, e que, gradativamente, lhes são roubadas.

Desta maneira, a intriga se revela através da entidade sem corpo e sem nome que, pouco a pouco, ocupa os espaços da casa e empurra-os rumo a um lugar além da porta de entrada, e eis que ao leitor é deixada a tarefa de preencher, com sentido ou perplexidade, essa lacuna intencional.

Juan Fresán, renomado artista gráfico argentino, antes já havia trilhado o percurso da casa cortazariana, decupando-a, em seus múltiplos compartimentos. Em uma bem cuidada edição datada de 1969, a Casa tomada ganha forma e precisão. As palavras de Cortázar, lentamente, quadro por quadro, preenchem os cômodos, até tomá-los completamente. O corredor estreito vincula todos os espaços que conformam a planta-baixa, mas, ao passo do deslocamento dessa presença irracional que gradualmente se apodera de cada um deles, intensifica-se a separação entre a casa realmente vivida e aquela outra, deixada para trás.

Mas é preciso destacar, também, na narrativa, o papel do narrador, e então se percebe o dispositivo que faz de Julio Cortázar um notável desenhador de mapas mentais. Cabe ao irmão de Irene reconstituir, através das palavras, as rotinas e os espaços que habitam as memórias familiares, enquanto vão perdendo a si mesmos, recuando em si mesmos, a cada avanço do monstro invisível.

A quem pertencem as lembranças contadas pelo narrador? A casa construída na imaginação de Cortázar – casa que, uma vez tomada pela imaginação do leitor, já não lhe pertence – tornou-se plural, através das múltiplas possibilidades de leituras. E, como o autor deixa revelar, ela é construída com matéria onírica:

    A maior parte dos meus contos nasceu de meus sonhos e pesadelos, todos eles foram escritos imediatamente depois, numa espécie de segundo estado onírico. Sou dominado pelo ambiente geral do conto, sem saber de fato o que vai se passar. Escrevo para me curar de uma espécie de obsessão.


Eis o espaço do outro, o lugar da transferência. Emprestar as memórias desse outro, imiscuir-se em seus lugares mais íntimos, descobrir o outro em nossa própria morada. Assim, enquanto percorro essa casa em Buenos Aires, enquanto eu a preencho, cômodo por cômodo, com meus próprios sonhos e minhas próprias obsessões, outras tantas casas emergem para dar forma à arquitetura projetada pelo escritor argentino, deixando ler conceitos, urdindo-se no espaço como corpo de muitos ângulos, forças oblíquas, intenções. Desta maneira, à casa dos irmãos, Irene e Eu, somam-se outras casas visitadas no exercício da imaginação literária.

Todas as casas vividas se intersectam, cedo ou tarde, fornecendo matéria-prima para desenhar outros percursos futuros. Assim, como não voltar às palavras do escritor - um único corredor, com sua porta maciça de carvalho -, e (antes) não impregná-las de imagens que vêm da proximidade dos cômodos que formam a casa e todas as casas mais, e (depois) não revivê-las, contaminadas pelos muitos corredores (traduções e traições) das tantas casas desenhadas ao longo da vida?

E então, como não sentir-me parte inclusa da casa, como não descobrir-me sujeito assujeitado pela economia da casa e da cidade e das normas que conformam sua ecologia? Como não pressentir que algo vai acontecer, que alguma coisa acontece dentro de mim, e se expõe lá fora, em espaços outside do corpo e da imaginação, in-between - o mundo e eu -, e é irreversível como o passo do tempo, mas que às vezes parece enredado em mise en abyme?

    Questão de espaço. E, portanto, também, questão de passarelas, de passagens, que comunicam lugares, espaços diferentes.


Em Cartas a uma jovem psicanalista, assim Heitor O'Dwyer de Macedo, psicanalista brasileiro radicado em Paris, definiu a construção da condição de enquadre em sua prática clínica. Penso, talvez apressadamente, que, se serve à psicanálise, serve também para enquadrar o espaço entre arquitetura e literatura; espaço entre o processo criativo do arquiteto e a liberdade do contador de histórias; espaço entre a contingência e a circunstância, relação entre o que seja ou não essencial à natureza das coisas, como categorias tensionadas no ato de projetar.

Porque, habitante desse longo e estreito corredor, que serve para misturar imagens de muitas origens, a entidade invisível ganha existência e orienta o mapa do acontecimento. Escalas de auto-semelhança: cidade, casa, sujeito (pele-periferia / pensamento-centro, ou vice-versa). Transparências, transparecenças: na casa em que moro, nessa cidade algures, no sul do Brasil, há um corredor que se cerra com uma porta de vidro.




leandroandrade
Artigo da autoria de Leandro Andrade.
Quando eu nasci veio um anjo me dizer: - Vai, guri, ser quase na vida... E eu achei bacana e fui... pois quasar é quase estrela ... o que pouca coisa não é!.
Saiba como fazer parte da obvious.

Chipanzés

Chimpanzés demonstram ter sentido de justiça
Resultados de experiência foram publicados na «Proceedings of the National Academy of Sciences»
2013-01-15
Investigadores do Yerkes National Primate Research Center, da Universidad de Emory e da Universidade da Georgia demonstraram que os chimpanzés (Pan troglodytes) possuem um sentido de justiça que normalmente só é atribuído aos humanos.

Na experiência que realizaram, os investigadores aplicaram o chamado 'jogo do ultimato' aos chimpanzés, jogo experimental de economia que tenta mostrar que os critérios da justiça prevalecem sobre os do benefício.

Os resultados, que foram publicados esta semana na «Proceedings of the National Academy of Sciences» (PNAS), revelam que a aversão humana à injustiça e a preferência por “finais justos” tem uma longa história evolutiva compartida com o ancestral comum de humanos e chimpanzés.

Segundo a autora principal, Darby Proctor, “durante anos, o jogo do ultimato foi considerado um padrão para determinar o sentido da justiça em humanos”. No jogo, é proposto um prémio a um indivíduo que só lhe será atribuído se ele o dividir com outro. O primeiro tem então de fazer uma proposta antes que ambos obtenham o prémio. Por norma, as ofertas são de 50 por cento, e a recusa em ofertas menores é grande.“Exactamente o mesmo que registamos na experiência com os chimpanzés”, diz a cientista.

“Os chimpanzés comportam-se de uma forma semelhante aos humanos, repartindo os prémios equitativamente. Ainda que não possamos explicar o que motiva estes primatas a comportarem-se assim, podemos dizer que o seu comportamento é justo como é o do ser humano no mesmo contexto”, acrescenta.

“Está demonstrado que a sobrevivência depende em grande medida de um certo grau de colaboração” e em espécies colaborativas é provável que ter um sentido do que é justo permita a um indivíduo seleccionar os sócios mais cooperativos – os que se comportam de forma mais justa.

Na experiência foram postos à prova seis chimpanzés adultos e 20 crianças humanas, entre os dois e os sete anos de idade, que jogaram uma versão modificada do ultimato. No jogo, um indivíduo tinha de eleger uma de duas fichas de cores diferentes que, por conta própria ou em colaboração, podiam ser trocadas por recompensas (pedaços de comida para os chimpanzés e cromos autocolantes para as crianças).

Uma ficha significava prémios equivalentes para os dois jogadores, enquanto a outra favorecia a escolha individual em detrimento do companheiro. Depois, o jogador necessitava de dar a ficha ao seu companheiro para que pudesse trocar pelo prémio, sendo que assim, ambos tinham de chegar a um acordo.

Tanto os chimpanzés como as crianças responderam como habitualmente o fazem os humanos adultos. Se a cooperação era necessária, os chimpanzés e as crianças repartiam os prémios equitativamente.

No entanto, perante um companheiro mais passivo, que não tinha oportunidade de rejeitar a oferta, tanto crianças como chimpanzés escolhiam a opção mais egoísta. Segundo os investigadores, os chimpanzés são altamente cooperativos no seu meio e provavelmente necessitam ser sensíveis à distribuição das recompensas para assim acederem aos benefícios da cooperação.
(Ciencia hoje)

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Andaraí

Esta postagem foi  realizada em Andaraí, cidade no interior baiano, a 8 horas de viagem de Salvador, de ônibus

Livros

As cores com que me pinto e desenho
em coisas minhas por m aresta em 22 de out de 2012 às 16:50
Haverá um tempo em que não estaremos cá, e a nossa presença tomará a forma do espaço que deixámos e que não mais ocupamos.
Nesse tempo, recordar-nos-ão pelo que fizemos e pelo que deixámos de fazer, pelos sorrisos que entregámos e por aqueles que guardámos avaramente para nós. Recordar-nos-ão pela nossa história. Aquela que escrevemos e desenhámos, e aquela que os outros ainda pintarão no nosso lugar.

 Nos tempos em que era pequena e a minha vida se resumia a muito menos de um par de décadas, os meus olhos enchiam-se de luz de cada vez que percorria, num passo tão apressado quanto me permitiam as minhas pequenas pernas, a meia dúzia de quilómetros que separavam a casa dos meus pais de uma outra casa.
A grande, a mágica, a biblioteca, aquela onde contos e histórias se recolhiam e onde estantes compridas de livros ofereciam, a quem as quisesse visitar, narrativas de outros tempos e espaços reais e imaginados.
Outros mundos, outros povos, outras histórias semelhantes ou diferentes das nossas.

Naqueles e noutros livros encontrei e fiz amigos; nas suas páginas me revi, com heróis e vilões me zanguei. E li o que era o amor, e o ódio e a frustração; e perdi horas de sono, imaginando sonhos com que enchi as horas em que consegui dormir. Neles, e por eles, me apaixonei.
Talvez por isso escreva, e desenhe e pinte.
Talvez, por causa deles, dos livros, tenha sentido a necessidade de - à semelhança daqueles que despenderam horas da sua vida para criar, em palavras ou imagens, novas horas de novas vidas - deixar um registo, em palavras e em cores, daquilo que sou e de que sou feita, um relato do que fui e um esboço do que espero ser, do que penso e do que sinto.
Um pedaço de mim, feito imagem ou palavra.
Sem métrica, sem técnica, sem domínio da escrita.
As cores com que me pinto e desenho, apenas isso.

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Fernando Pessoa escreveu que : “Se depois de eu morrer, quiserem escrever a minha biografia, não há nada mais simples. Tem só duas datas – a da minha nascença e a da minha morte. Entre uma e outra todos os dias são meus.”
A estas, acrescento apenas: e o que é meu, deixo-o a todos vós.

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(sobre livros antigos e dedicatórias, vale a pena ler ou reler o "Eu te dedico", da Jessica Parizotto. alguém que - parece-me - também tem amor pelos livros :) )

monicaaresta
Artigo da autoria de m aresta.
escrever simplesmente pelo prazer de juntar as palavras.
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O Palco

Eu e o palco
em coisas minhas por m aresta
Percebo perfeitamente o que dizem quando dizem que o palco transforma-nos, que no palco somos outra pessoa ou, ainda, que quando saio daquele chão de madeira e suor volto a ser eu. Porque também já experimentei isso.
Ainda que tenha sido (apenas) em peças de escola.



  

Há qualquer coisa nos palcos que me atrai.
Não sei se é o cheiro a madeira, a cera, se é das luzes, do som oco dos passos, de ter uma plateia inteira (e de preferência vazia) à minha frente, mas o certo é que os palcos me atraem desde pequenina.
Experiência de palco tenho pouca, e mesmo assim essa pouca pouco é mais que umas quantas representações em festas de escola.
Mas, mesmo essas – num palco que não cheirava a madeira, a cera, e que não tinha uma plateia vazia – tornaram-se momentos de liberdade que são, ainda hoje, impossíveis de esquecer.


Quando se sobe a um palco ganha-se uma liberdade de acção, de discurso, de atitude e sentimento que na maior parte das vezes não é possível na vida real.
O palco, enquanto ambiente circunscrito a uns metros e contextualizado a um tempo definido, torna lógico o comportamento e a expressividade mais dissonante.
No palco poderia dizer “queria que todas as pessoas desaparecessem e me deixassem só, comigo e com eu mesma”, que ninguém viria perguntar se eu estava bem, a quem me referia em particular ou pedir desculpa por não terem reparado nos meus problemas.

Porque às vezes não os há.

Às vezes apetece, apenas, inventar diálogos e conversas que só existem na imaginação, que não são auto-retratos nem resultado de uma análise profunda e introspectiva.
Apetece fingir que se é outra pessoa apenas pelo prazer que tiramos disso, sem estar a tecer qualquer crítica ou a mostrar, representando, que não se está bem com aquilo que se é.


Imaginar.


Falta-nos imaginação.
Falta-nos, sobretudo, acreditar nessa capacidade que tínhamos em pequeninos e que o tempo e o crescimento se encarregou de desvalorizar.

Deve ser isso que me atrai no palco - no palco em si, não na ideia de palco.
Porque no palco posso declamar a balada da neve; posso ser bailarina, fazer uma pirueta e abraçar-me enquanto faço uma vénia, e não correr o risco de receber, no final, o sempre e eterno comentário “tu não és assim”.
Porque há o palco, e há a vida.

E isso faz toda a diferença :)


  


monicaaresta
Artigo da autoria de m aresta.
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Memoriando


Dos quintais da memória
em Crônica por Giovana Damaceno em 27 de fev de 2012 às 19:42 | 1 comentário

Mais um longo passeio por memórias que auxiliam na construção dos dias atuais.

Senti falta de infância. Senti falta de ser criança. Doeu a saudade de tempos frescos, de família em casa, pai, mãe, irmãos, primos, do café cheiroso no bule às quatro da tarde e do pão quentinho chegando no cestão de vime do padeiro de bicicleta. Deu aquele aperto no coração ao me lembrar do quintal, da horta, da ameixeira, do galinheiro, do poço com tampa de pedra bem pesada que eu brincava em cima. Saudade dos colos, cuidados, carinhos, inocência.

Nem toda criança teve ou tem o que tive; não viveu a liberdade de ter um quintalzão de terra, brincar na lama, ter uma garnizé de estimação, poder passar um dia inteiro de calor apenas de calcinha, tomar banho no tanque quando se é bem pequena e mais tarde de mangueira, espalhando água por todo lado. Andei de velocípede (alguém sabe o que é isso?), depois tive uma bicicleta. Tinha uma caixinha de bolas de gude, um coelhinho de borracha, e um piano, e uma boneca chamada Katy.

A família passava horas de uma tarde de fim de semana chupando cana, que minha mãe descascava e cortava; todo mundo sentado no quintal, sem pressa. Ou então meu pai mandava minha irmã ir à sorveteria Spumel comprar picolé. E lá ia com um isopor e trazia aquele monte de picolé, cujos sabor e textura ainda me lembro perfeitamente. E a turma era grande. Além dos seis filhos sempre havia um agregado: primo, prima, tia, passando uns tempos. O movimento era grande, divertido, trabalhoso pra minha mãe, que dava conta de tudo sozinha, mas ela também gostava.

Para mim eram tempos muito felizes, pelo menos calmos. Os irmãos mais velhos, adultos ou quase, já ingressavam no mundo das responsabilidades, mas a caçula aqui ainda demoraria a vislumbrar este mundo. Preferia as histórias que eu mesma criava com os móveis da minha casinha: armário, fogão, panelinhas, sofás. A gente criava um mobiliário inteiro de caixas de fósforo, encapado com tecidos variados. Minha mãe fazia roupas para a minha boneca e ela virava uma personagem fashion.

Um dia, com uma colega de infância, plantei uma semente de ameixa amarela (Nêspera). Durante anos acompanhei o crescimento daquela árvore que ficou enorme e acredito que ainda esteja lá. Se não me falha a memória foi o último pé de ameixa amarela que vi. Também não esqueço o sabor e a textura daquela frutinha carnuda de casca peluda e caroços redondos.

Na segunda fase da infância já morava em outra casa. Não tinha um quintal tão extenso, mas a qualidade estava nas árvores frutíferas ao meu dispor. Vamos ver se me recordo de todas: abacate, romã, goiaba vermelha, mexerica, figo, mamão, manga espada, limão e até uma parreira de uva. E mais outra coisa que a casa anterior não tinha: terraço. Levei boas palmadas na bunda por me arriscar a caminhar no beiral. Na calçada havia um fícus italiano (que na verdade é indiano), que com aquelas raízes aéreas era diversão pura quando meu pai não estava por perto.

Deste momento da minha vida de criança em diante, a família em casa começou a diminuir, com os casamentos dos irmãos. E a realidade trazida por aquele mundo que eu não conhecia foi se abrindo diante dos meus olhos. Era a adolescência chegando e com ela todas os compromissos da vida pré-adulta. Já curtia namorico na escola, me preocupava sozinha com a obrigação dos estudos, mas não abandonava minha pequena mobília e minhas bonecas. Tornei-me moça, como se dizia na época, mas queria continuar brincando de queimada e garrafão no meio da rua. Parecia um prenúncio do conflito que viveria em todos os meus dias. Cresci sem querer crescer.

Embora a saudade possa incomodar, pois tais momentos não voltam, é prazeroso lembrar e saber que desfrutei de tudo isso. E agora, três décadas depois, sinto que acontece uma nova transição, como a do início da adolescência, e a percebo por não curtir tanto mais minha família de origem, mas sim, a que criei. Cada irmão está voltado para sua própria família, enquanto outros se foram. É hora de fazer novos esforços, para crescer mais um pouquinho, desta vez sem conflitos, pois a idade já não permite a negação do avanço. Porém, permaneço a desfrutar os quintais das lembranças, pois são eles que mantêm viva a história que vou continuar contando.


giovanadamaceno
Artigo da autoria de Giovana Damaceno.
Jornalista e cronista. Editora de redes sociais e de conteúdo web do UniFOA. Autora de "Mania de Escrever" e de "Depois da chuva, o recomeço"..
Saiba como fazer parte da obvious.

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Arte

“Sabes que "poesia" é algo de múltiplo;
pois toda causa de qualquer coisa
passar do não-ser ao ser é “poesia”,
de modo que as confecções de todas as artes são “poesias”,
e todos os seus artesãos poetas.”



Terminei mais um estudo baseado nas obras dos mestres da pintura. Fiz em pastel sobre papel cartão esta pintura acima, usando como referência o quadro de Jan Vermeer Retrato de uma jovem mulher. No ano passado já tinha feito, em óleo sobre tela, um estudo também sobre outra obra de Vermeer, Moça com brinco de pérola. No Atelier de Arte Realista de Maurício Takiguthi onde estudo atualmente, essa dedicação a conhecer o mais profundamente a técnica dos velhos mestres é parte da nossa formação e aprendizado.

Mas não é uma novidade em termos de método porque sabemos que grandes pintores alcançaram grandes alturas porque se lançaram à aventura de penetrar nas obras de arte realizadas por grandes artistas que os precederam. Pois assim é a nossa história humana: vamos evoluindo, vamos criando e recriando o mundo, mas sabemos que atrás de nós há gerações e gerações de grandes seres humanos que continuam nos inspirando e mesmo iluminando nossos caminhos como verdadeiros faróis. O grande Isaac Newton (1643-1727), cientista e filósofo, disse certa vez que se pôde enxergar mais longe é porque estava “sobre ombros de gigantes”, provavelmente se referindo a Galileu e Kepler, dois gigantes que vieram antes dele.

Isso é muito importante saber, qualquer que seja a área de nossa vida: não podemos esquecer que se aqui estamos e no ponto em que estamos, muito devemos aos que nos antecederam. Muito temos o que aprender com o passado para poder construir o futuro que queremos.

Nas escolas de artes atuais, em sua maioria, infelizmente, o estudo dos mestres se reduz a saber de sua biografia, dos movimentos de que participavam, em que “ismo” se encaixava sua arte. A tradição parece ser uma palavra que engasga na boca dos que ensinam arte em escolas e faculdades. Pelo contrário, os novos “ensinadores de arte” parecem gostar de repetir que o aluno deve “se soltar” (o que isso significa?), deve esquecer qualquer tentativa de querer desenhar baseado na realidade, e, o que é pior, não recomendam mais o desenho, o exercício, o estudo com linhas e massas. “Soltem-se”, entoam eles em coro...

Há alguns dias atrás assistimos, no Atelier, ao filme Jiro: dreams of sushi sobre um mestre artesão de sushi, considerado hoje um dos melhores do mundo. Mas onde sushi tem a ver com pintura e desenho? Recomendo que se veja o filme para se buscar compreender melhor que, na verdade, sushi e pintura tem muitos pontos em comum, no sentido de que o trabalho de alguém está por trás disso.

Na verdade, desde a tradição grega sabemos o quanto a genialidade de um ser humano não é dom divino. Nulle die sine linea (nenhum dia sem uma linha) estava escrito na porta de entrada do atelier do pintor grego Apeles, que viveu no século V a.C., que não deixava passar um só dia sem que se exercitasse em sua arte. Todos os grandes artistas, de Da Vinci a Michelangelo, de Vermeer a Velázquez, de Bach a Beethoven, de Delacroix a Picasso, todos, sem exceção, dedicavam horas diárias de suas vidas à sua arte e, se se tornaram os gênios que foram, essa genialidade foi desfraldada após muito exercício, muita aplicação, muito estudo.

Minha experiência pessoal nestes últimos anos tem me mostrado que venho aprendendo muito mais do que desenhar e pintar! Porque desenhar e pintar são duas atividades humanas que exigem um redesenho interno da alma, no sentido de que há uma integração entre o que eu sou como pessoa e o resultado do meu trabalho. Cada avanço que faço, cada sutileza de cor que meus olhos agora veem (antes não viam), cada conceito apreendido (mais do que aprendido) além de trazer uma felicidade nova me mostra o que há mais além, mais a conquistar, mais a aprender, mais a ser. Me mostra também que cada traço desenhado, cada toque novo do pincel é um instante que ganho diante do tempo que foge.

Num certa cena do filme, Jiro, o velho mestre de sushi, fala: “Vou continuar a subir, tentar alcançar o topo, porém ninguém sabe onde o topo está!” Essa busca da excelência na arte, essa caminhada em direção ao Real mais profundo, onde vamos colhendo camadas de percepção dele que fogem à percepção comum, é fugidia, exige dedicação, empenho, perseverança, paciência, trabalho... Porque o “topo”, que está lá mais à frente, parece se mover, e isso enriquece ainda mais essa busca. Porque nessa dedicação ao estudo da arte, quanto mais aprendemos, mais vemos que podemos mais, que há mais a ser descoberto e que, no final das contas, nos deparamos mesmo é com a inesgotabilidade do Real! Isso, por si só, é objeto do mais puro fascínio para quem pratica o estudo de arte, seja desenho, pintura, escultura, teatro, literatura, dança, música...

Infelizmente isso tudo é muito longe do que é ensinado nas escolas! Nesse mundo de correria, ensina-se que as coisas devem ser feitas de forma rápida, mesmo com qualidade mediana. Nos acostumamos a viver com o mediano como se isso fosse normal! Infelizmente o que se ensina é que a genialidade é um dom de Deus, que se nasce gênio. Um tipo de pensamento que subestima a capacidade do ser humano de buscar com seu trabalho a sua própria perfeição. Mas não perfeição no sentido místico, moralista em certo sentido. Perfeição no sentido de alcançar mesmo que seja a simplicidade da forma, como podemos ver na escultura de Alberto Giacometti, por exemplo. Mesmo que seja para não pintar o Belo, porque o Feio também faz parte do nosso mundo...

Alguém já disse que o estilo pessoal é a expressão da alma do artista. Mas eu pergunto, como alcançar essa expressão de alma sem estudo, sem busca, sem prática? Isso me faz lembrar de Michelangelo. Um dia ele teria dito que quando olha para uma pedra ele já sabe que partes dela precisa retirar para que se mostre a figura que ele quer. É isso aí, é preciso lapidar o diamante para que ele brilhe!


(vermelho.org)

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Boldrin

Rolando Boldrin o Poeta Caipira
por Eli Boscatto


Pouco lembrado pela mídia, outro dia ele deu uma entrevista numa rádio que acabei perdendo, uma pena. Rolando Boldrin tornou-se um ícone da cultura nacional que muito provavelmente só será devidamente lembrado depois da sua morte. Uma personalidade que é a cara do sertão, da terra, do mato, um “caipira” com muito orgulho. Mas acima de tudo, ele nos transmite uma autenticidade de propósitos, uma paixão pelo que faz e acredita que fica difícil não admirá-lo num país tão carente de boas intenções; as verdadeiras claro.

Gosto de vários estilos musicais e alguns que confesso, não costumo ouvir com frequência mas tenho grande respeito, são as canções de raiz ou MPB regional . Aí estão incluídos, além de outros, Almir Sater, Renato Teixeira e, Rolando Boldrin. Ele representa o homem simples do campo, um pouco ingênuo, um tanto crente e talvez por causa disso, feliz e hospitaleiro.

Rolando Boldrin é cantor, ator, compositor e parece dotado daquela sabedoria das coisas da terra, é um poeta caipira, mas não é um personagem que venda qualquer produto nem é procurado pelos holofotes. Atualmente apresenta o programa Sr.Brasil na TV Cultura e toca um projeto cultural chamado “Vamos Tirar o Brasil da Gaveta!”. Como ator, no passado já participou de muitas novelas, peças e filmes.

“Eu amo os atores que sabem que a única recompensa que podem ter – não é o dinheiro, não são os aplausos – é a esperança de poder rir todos os risos e poder chorar todos os prantos” Plínio Marcos.

Boldrin nasceu na pequena cidade interiorana de São Joaquim da Barra no estado de São Paulo. Desde pequeno, aos sete anos, já tocava a viola e começou já uma empreitada musical junto com seu irmão aos 12 anos de idade, formando a dupla Boy e Formiga que era bem sucedida na rádio do município.

Devido a incentivos por parte de seu pai, Boldrin foi aos dezesseis anos para a capital São Paulo de carona em um caminhão. Lá, antes de finalmente emplacar na carreira de cantor, foi sapateiro, frentista, carregador, garçom e ajudante de farmacêutico. Aos 18 serviu o exército em Quitaúna e nos anos que seguiram dedicou-se à atividade musical.

Assim Boldrin debutou em 1960 como um participante do disco de sua futura esposa, que tornou-se sua produtora na época, Lurdinha Pereira. Lançou seu primeiro disco solo, pela Continental, O Cantadô, em 1974.



Hoje aqui, oiando pra vancê meu pai,
To me alembrando quanto tempo faz
Que pela primeira vez na vida eu chorei.
Não foi quando nasci pru que sei que vim
berrando...

E disso ninguém se alembra, não.
Foi quando um dia eu caí...levei um trupicão,
Eu era criança. Me esfolei, a perna me doeu,
Quis chorá, oiei pra vancê, que esperança.
Vancê não correu pra do chão me alevanta.

Só me oiô e me falô:
- Que isso, rapaz ? Alevanta já daí...
HOMI NÃO CHORA.

Aquilo que vancê falô naquela hora,
Calou bem fundo,
pru que vancê era o maió homi do mundo.
Não sabia menti nem pra mim nem pra
ninguém...
O tempo foi passando...cresci também...
Mas sempre me alembrando..

HOMI NÃO CHORA. Foi o que vancê falô.
O mundo foi me dando os solavanco,
Ia sentindo das pobreza os tranco...
Vendo as tristezas vorteá nossa famía,
E as vêiz as revorta que eu sentia era tanta
Que me vinha um nó cego na garganta,
Uma vontade de gritá... berrá, chorá... mas quá...
Tuas palavra, pai, não me saía dos ouvido...
HOMI NÃO CHORA.

Intão, mesmo sentido, eu tudo engolia
E segurava as lágrima que doía...
E elas não caía, nem com tamanho de
Quarqué uma dô...

Veio a guerra de 40... e eu tava lá... um homi feito,
Pronto pra defendê o Brasí.
Vancê e a mãe foram me acompanhá pra despedi.
A mãe, coitada, quando me abraçô, chorô de saluçá.
Mas, nóis dois, não.
Nóis só se oiêmo, se abracêmo e despedimo
Como dois Homi. Sem chorá nem um pingo.
Ah, me alembro bem... era um dia de domingo.
Também quem é que pode esquecê daquele tempo ingrato ?
Fui pra guerra, briguei, berrei feito um cachorro do mato,
A guerra é coisa que martrata...
Fiquei ferido... com sodade de vancês... escrevi carta.
Sonhei, quase me desesperei, mas chora, memo que era bão
Nunca chorei...
Pruque eu sempre me alembrava daquilo
que meu pai falô:
- HOMI NÃO CHORA.

Agora, vendo vancê aí... desse jeito... quieto...
sem fala,
Inté com a barbinha rala, pru que não teve tempo de fazê..
Todo mundo im vorta, oiando e chorando pru vancê...
Eu quero me alembrá... quero segurá... quero maginá
Que nóis dois sempre cumbinemo de HOMI NÃO CHORÁ... quero maginá que um dia vancê vorta pra nossa casa
Pobre... e nóis vai podê de novo se vê ansim, pra conversá.
Intão vem vindo um desespero, que vai tomando conta...
A dô de vê vancê ansim é tanta... é tanta, pai,
Que me vorta aquele nó cego na garganta e uma lágrima
Teimosa quase cai...
Óio de novo prôs seus cabelo branco... e arguém me diz
Agora pra oiá pela úrtima vez..que tá na hora de vancê
Embarcá.

Passo a minha mão na sua testa que já não tem mais pensamento... e a dô que tô sentindo aqui dentro,
Vai omentando...omentando, quase arrebentando
Os peito...e eu não vejo outro jeito senão me descurpá.
O sinhô pediu tanto pra móde eu não chorá... HOMI NÃO CHORA... o sinhô cansô de me falá...mas, pai,
Vendo o sinhô ansim indo simbora... me descurpe, mas,
Tenho que chorá.




eliboscatto
Artigo da autoria de Eli Boscatto.
Formada em Ciências Políticas e Sociais, curiosa, inquieta, adora se emocionar. Pretensa poeta..
Saiba como fazer parte da obvious.

Saramago

José Saramago – memorial de um génio
publicado em artes e ideias por miguel oliveira | 22 comentários

José Saramago morreu no dia 18 de Junho de 2010. Nobel da literatura, génio das palavras, mestre do texto. Controverso, comunista, ateu. Um tributo à pessoa que marcou a história da literatura universal, que faz periclitar as bases da História e do senso comum, e que deu um novo sentido ao mundo e ao ser humano. Uma história de vida e uma obra imperdível, uma “viagem de elefante”.

José Saramago morreu no dia 18 de Junho de 2010. Não sabemos se teve ou não um encontro com Deus, no céu, no inferno, ou no “desqualificado purgatório”, mas podemos ter a certeza que ambos precisavam de ajustar contas. Ateu convicto, José Saramago tem Deus como um dos temas-fetiche das suas obras. Era com Ele que gostava de conversar, era sobre as suas representações terrestres que dissertava com uma brilhante clareza interpretativa, muitas vezes recheada de causticidade, atraindo polémicas e excomunhões de muitos lados.

Saramago encontra-se agora, porventura, num, seu e claro, vazio inconsciente. Um vazio que se preenche, como acontece sempre com alguém literariamente famoso que perece, num crescendo de interesse limitado no tempo, como também sempre acontece com o interesse súbito pela obra do perecido que renasce no consciente colectivo, com as vontades de evasão do presente e da realidade quotidiana dos cultos e incautos mortais, com a leitura das suas obras. Agora encontra-se na escuridão da sua própria ausência, presente aos latejantes de vida na significância com que estruturou as letras, as mesmas peças com que jogamos o jogo da vida em verbo, sem, no entanto e inevitavelmente, a perícia da exposição do capital intelectual e a arte da construção literária saramaguiana, ou, talvez, o encontremos um dia a conversar com Blimunda Sete-Luas, num metafísico “Memorial do Convento” (1982), esta agora hiperciente da azáfama e dos interstícios da vida, e d’ “As Intermitências da Morte” (2005).

Apenas vagamente, conhecemos nós Saramago nos seus tempos de juventude. Sobeja um hiato temporal entre a primeira publicação do jovem escritor, bem depois das noites de sono partilhadas na cama com os avós Jerónimo e Josefa e os porcos, numa Azinhaga Ribatejana dos tempos da meia sardinha onde as pessoas eram constantemente “atiradas ao chão” por forças opressoras e esmagadoras, essa Azinhaga que o petrificou em estátua num banco de jardim, e a profícua e epopeica revolução literária, 30 anos depois.



Saramago não foi um académico e não ganhou prémios literários aquando da sua juventude. Saramago não foi sequer unanimemente querido, consensual, ou, como por vezes acontece nas esferas culturais e espectaculares, adulado. Terá inclusive dividido a população portuguesa, este anti-herói para parte do senso comum e para a grande parte da mediocridade política. Saramago não competiu o Prémio Camões, o mais importante prémio literário da língua portuguesa, porque não o deixaram. Os cordéis da manipulação literária e os senhores das marionetas políticas e religiosas não o permitiram. A humanização do mito de Jesus Cristo, n’ “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (1991), foi a desculpa para tentar olvidar o homem que pôs Portugal (no mapa) e Espanha, o iberismo saramaguiano, a navegar pelo oceano, na sua “Jangada de Pedra” (1986). Países à deriva na unificação atracada de uma Europa cada vez mais distante e, paradoxalmente, maior. Portugal é um estado laico. A separação dos poderes entre a igreja e o estado estão, há muito, constitucionalmente definidos e aprovados. A dissecação de Jesus Cristo, o desdobramento do mito, do homem-deus em homem-(demasiado)humano, colocou no parlamento uma inflamada discussão sobre se seria este Saramago um homem suficientemente português para representar uma nação tão histórica e histericamente conectada a um deus (pátria, família) que este homem, português de nascença é certo, não acreditava. Talvez não suficientemente português mas suficientemente reconhecido mundialmente, Saramago arrecadou o Nobel da Literatura em 1998 e, justiça divina, o Prémio Camões em 1995. Não se refugiou no país que não aceitava as suas ideias, vá, os seus romances misto fusional de uma realidade tépida e uma ficção transpirada, como se se tapassem as lacunas de realidades incertas com o vómito de tempos deploráveis. Não se refugiou sequer, nem o degredo psicológico parece ser um motivo. Não hoje. Saramago escolheu na sua ibéria o recanto de memória mais distante dos homens que o rejeitaram, perto daqueles que são “as maiores vítimas do capitalismo ocidental”. O destino foi Lanzarote, a poucos quilómetros da costa africana. Ilha perdida das Canárias, Espanha, inóspita. Um acaso desidratado, um pedaço de terra negra onde escolheu viver e amar. Temos a certeza que se a ibéria se desprendesse do resto da Europa, Lanzarote ficaria no sítio, a ver passar ao largo a sua assustadora alucinação tectónica. Em Lanzarote nasceu uma epidemia contagiosa que colapsa a sociedade, uma cegueira espontânea que viria a revelar o que de mais extremo veste o ser humano – da animalidade à racionalidade, da violação ao amor. Ainda assim, esta penosa experiência para o autor e para o leitor, o “Ensaio Sobre a Cegueira” (1995), é uma “longa tortura” que mostra que nós, humanos, “não somos bons”. Dos mesmos olhos que viveram a visão da escuridão mundial vieram as lágrimas, durante a apresentação da adaptação deste ensaio ao cinema, ao lado do director brasileiro Fernando Meirelles.

De Saramago podemo-nos essencialmente deleitar com cerca de 30 anos de obra, de uma literatura “anti-gramatical”, ou seja, que reduz grande parte da portugalidade, a sua enorme língua e as suas orgulhosas regras gramaticais, a um estilo novo e único, um estilo que transforma o hermético das convenções, da pontuação e dos parágrafos, do senso do tamanho frásico, numa literatura encadeada, numa leitura do pensamento, numa leitura que se lê sem se conseguir parar. Pelo menos até Saramago querer. Desmistifica o mergulho profundo e embrenhado no romance, alertando e antecipando os pensamentos e as dúvidas do leitor, tornando a relação entre ambos mais verdadeira, porém mais dominada. Incorrecta ou elitista, dizem alguns, eis uma forma de desconstruir centenas de anos de convenções e acordos em algumas dezenas de anos de romances, poemas e peças teatrais, contos e crónicas, viagens, diários e memórias e “A Maior Flor do Mundo” (2001), o único título infantil. É a língua algo em constante mutação, não é assim, querido acordo ortográfico? Deve então ser a escrita de Saramago um corte, um raio, uma faísca de mudança nessa transformação, nessa mutação.

Saramago foi, é e será tão importante para a literatura portuguesa e mundial como o foram Fernando Pessoa ou Carlos Drummond de Andrade. Eis o homem que quando fala não mede o comprimento do sentido das palavras, em oposição à medida do comprimento interpretativo da sua escrita. Um homem que “quando se enfurece é simpático”, um autoproclamado “pessimista pela razão, optimista pela vontade”. Saramago diz o que pensa e o pensamento dele ecoa em palavras não polidas, despidas, em construções sólidas da sua verdade. Sem medo. Assume-se como comunista, ponto. Não ortodoxo, ponto. A tudo isto se chama, supomos, liberdade de expressão. Liberdade essa que por entre tantos anos de luta parece ainda periclitar nas certezas de alguns eruditos.

O funeral reuniu muitos simpatizantes, amigos, amantes da sua literatura, curiosos e a natural nata politizada. Notou-se, no entanto, e de alguma forma despreocupadamente (pela irrelevância no caso), a ausência daquele que na altura em que um evangelho incendiou um parlamento era o primeiro-ministro, o actual Presidente da República Portuguesa, o Senhor Professor Doutor Aníbal Cavaco Silva. Politicamente correcto, como sempre e como tem que ser, não se coibiu, com uma expressão entediada e simuladamente entristecida, de ler um comunicado escrito por um seu qualquer assessor. Um escrito banal daquele a quem Saramago chamou “o mestre da banalidade”. Acredito que sentisse uma perda para o país, mas não muito.

José Saramago morreu no dia 18 de Junho de 2010. Saramago não pertence ao céu, para onde voou o fumo da combustão do seu corpo, mas sim à terra, local onde agora repousam as suas cinzas. Se de perto tocar Saramago as estrelas será sentado na “sua” passarola, onde a bordo conta a Blimunda Sete-Luas e a Baltazar Sete-Sóis “O Conto da Ilha Desconhecida” (1997). Foram “Os Poemas Possíveis” (1966) que nos deixou, e todas as letras encadeadas, “Deste Mundo e do Outro” (1971).


migueloliveira
Sobre o autor: miguel oliveira; possui o cérebro na ponta dos dedos. Pinta palavras em ecrãs de computador com aquilo que sintetiza do mundo e diz possuir um rádio no lugar da cabeça. Saiba como fazer parte da obvious.

Pensamentando

detalhes
em coisas minhas por m aresta em 04 de jan de 2013 às 16:04
Há pouco, bateram à minha porta. Era uma senhora já de idade, rosto queimado pela idade e pelo trabalho da terra. "Passou por mim e não me saudou", disse. E eu fiquei a pensar, até agora, no significado que podem ter gestos que - para nós - poderão não ser mais do que sinais de boa educação.

Passo por ela todos os dias, quando levo a minha filha à escola. É velha (agora usa-se "idosa", ou "sénior"), mas não quer assumir que o é. Diz que "velhos são os trapos", recusa-se a que a tratem como alguém que tem 83 anos. Sente-se nova, tem a força dos novos, por isso é nova.
Trabalha de sol a sol, e é nisso mesmo que a vejo todos os dias: enxada na mão, chapéu de palha e lenço a proteger a cabeça, vestida de negro e curvada sobre a terra que sempre conheceu e que ama como poucos a saberão amar.

- "Passou por mim e não me saudou", disse-me.

Primeiro não percebi, ainda absorta na tarefa que aquele bater à porta interrompera. Depois tentei explicar, dizer que estava com pressa, que já era tarde, e que por isso mesmo não tive, como costume, o gesto de levantar a mão em dois segundos que - para mim - se esquecem no virar da curva.
Não me quis ouvir. Não querendo ouvir as minhas explicações, quis antes que entendesse as dela.

- "E eu vim cá... porque quando passou eu não levantei a cabeça, mas foi porque com o sol não a vi, e depois fiquei a cismar que se calhar tinha ficado zangada por causa disso. Mas olhe que não vi mesmo."

Disse-lhe que não, que estava mesmo com pressa, que não me zangara ou ficara aborrecida.

- "Pronto, então" - disse-me por fim, com um sorriso que lhe trouxe (ainda) mais rugas ao rosto - "É que todos os dias a vejo, a si e à sua menina... e quando me diz bom dia eu fico assim com uma coisa que nem sei. Olhe, fico mais leve, a enxada nem pesa".


Fechei a porta, voltei ao meu mundo, e fiquei a pensar.

Todos os dias temos gestos que, para nós, são parte de uma rotina; outros ainda, sombras de uma educação que vem de trás, ou manifestações de uma forma de ser que desenvolvemos ao longo do tempo.
Gestos, apenas. Um bom dia, um obrigada, um dar lugar num autocarro.
Gestos que nos apaziguam, que nos deixam aquele lavar de consciência, aquela sensação de que se não melhorámos o mundo, pelo menos não o deixámos pior.
Civismo, dizem uns. Educação, dizem outros. "Uma coisa que nem sei", disse aquela senhora que se sente nova.
Gestos simples e desprendidos que, ainda que não o saibamos, podem fazer a diferença para um outro alguém.

E fiquei a pensar que, na verdade, a vida está nos detalhes. Nos pedacinhos de nada e de tudo, nas intenções que podem nem passar disso, nos gestos e nos olhares mais simples.
A vida pode estar num "bom dia".
Ainda que seja breve. Ainda que se desvaneça na curva.
Um "bom dia" que, sendo quase nada, significa quase tudo.


monicaaresta
Artigo da autoria de m aresta.
escrever simplesmente pelo prazer de juntar as palavras.
Saiba como fazer parte da obvious.

Remédios antigos

 Astros da botica do povo


Vermes do passado
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Por Ruy Castro
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Recebo do amigo João Antonio Buhrer, colecionador de lixo gráfico, um exemplar do "Almanaque Brasil" para 1957, que ele deve ter encontrado na gaveta de uma avó (não necessariamente dele) ou pelo qual pagou R$ 1 numa feira de velharias. O "Almanaque Brasil" concorria com o "Almanaque Capivarol" e outros, e era tão revelador quanto. E o que ele revelava? Que, a julgar pelos anúncios, os brasileiros de 1957 -em plenos "anos dourados"- eram uma antologia de mazelas.
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Confira pelos remédios. Problemas de rins, bexiga e ácido úrico? Tomava-se o Uredol. Ou o Urolítico. Ou os Comprimidos Diuréticos do Abacateirol. Tremedeira, impaludismo, maleita e sezão? Palutônico era a solução. Disfunções menstruais, tipo escassez ou excesso?
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Reguladores infalíveis eram o Xavier, o Menstrol, o Eugynol e o Fluxo Sedatina (que avó, mãe e filha, todas deviam usar). E as fraquezas sexuais se combatiam com o Sexuol (só para homens) e o poderoso Uterol, que os cavalheiros deviam evitar.
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Azia, má digestão, dores de estômago? Ninguém dispensava a Magnesia Phosphatada -assim mesmo, com essa ortografia pré-cabralina. Gripes, resfriados, dores de cabeça? Usava-se o Transpirol, embora algumas correntes filosóficas, mais ortodoxas, preferissem o Peitoral de Cereja. E não havia caspa que chegasse perto de cabelo, barba e bigode se o cidadão aplicasse Pilogênio.
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Alguns medicamentos eram batizados com fascinantes palavras "porte-manteaux", que, de tão criativas e bem construídas, pareciam inventadas por Haroldo de Campos. O Tencrivermil, por exemplo, fulminava oxiúros, lombrigas e solitárias. O Uterovarol dedicava-se à lanternagem do útero e do ovário. O Prisoventril, como é óbvio, à prisão de ventre. E a Panvermina, a vermes e opilação.
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Hoje, o Brasil é outro. Os vermes já não se abatem com purgantes.
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................
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João Antonio Buhrer encaminha regularmente a uma gama de amigos Brasil afora (e não me surpreenderia se também do exterior) fotos/textos sobre os mais diversificados temas culturais do País e de outras plagas: artes gráficas, fotos antigas, curiosidades em geral, MPB, coisas simplórias com que se depara em suas andanças por sebos e ruas de Campinas-SP (onde reside) e arredores, etc etc.
.
Faço parte do rol de felizardos amigos, com satisfação.
.(Blog do Nassif)

domingo, 20 de janeiro de 2013

Comunicado II

Aos meus amigos, aos internautas, aos 'milhões' de acompanhantes deste humilde blogue sujo:
              Estou de partida segunda, 21-1, para Andaraí, cidadezinha no interior da Bahia, na Chapada Diamantina. Lá farei, como fazia em Cipó, tb no interior, medicina no PSF.
Hoje, domingo, postarei o conteúdo dos meus 2 blogues, p segunda. Mas na segunda, já estarei em Andaraí, n sei se terei tempo de postar p terça.
Perdõem-me, Deuses tb trabalham...

Guerrilha Virtual

Aaron Swartz e o manifesto da Guerrilha Open Access
Enviado pelo pessoal da VilaVudu

Ler também: 15/1/2013, redecastophoto, em: Aaron Swartz (1986-2013), ativista, combatente da liberdade, "hacker"

Aaron Swartz – gênio, menino prodígio que, muito jovem ajudou a inventar o começo de tudo que o mundo hoje entende como “era online”: co-desenvolveu RSS e Reddit e adiante tornou-se ativista – suicidou-se, aos 26 anos. O corpo foi encontrado na 6ª-feira, 11/1/2013, no Brooklyn, informou Ellen Borakove, porta-voz do Instituto Médico Legal de New York (12/1/2013). Pastebin (excerto)

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Talvez você já tenha ouvido a história: Aaron Swartz, o magrão aí da foto, estava pesquisando no centro de ensino da universidade em que estuda, o MIT de Cambridge, entre os dias de 24 de setembro de 2010 e 06 de janeiro de 2011, quando resolveu baixar alguns arquivos de uma página de repositório de artigos. Resultado: Swartz foi processado e enfrenta uma investigação que pode deixá-lo 35 anos na prisão, além de ter que pagar uma multa de US$ 1 milhão.

O site era o JSTOR, criado em 1995 e do qual participam atualmente 7 mil bibliotecas e organizações que formam um acervo de quase 350 mil artigos, segundo o The New York Times. Supostamente, é um serviço sem fins lucrativos [conforme a própria descrição], mas que cobra US$ 19 por mês de quem quer acessar os seus papers. Como indicou um leitorno caderno Link, a CAPES gastava R$ 75 milhões em 2007 com o repositório.

Swartz tem um currículo que fez o JSTOR desconfiar de suas intenções. Criador do Open Library, mantido pelo Internet Archive; criador do Watchdog.net, um portal Excelencias dos Estados Unidos; co-fundador do Reddit, um site de avaliação de links para conteúdo na web; co-autor do sistema de feeds de RSS. Ainda em 2009, tornou públicas 20 milhões de páginas do poder judiciário dos EUA.

Os caras do JSTOR não curtiram muito a ideia de ele baixar de seu laptop 4 milhões e 800 mil artigos e resumos da base de dados do serviço. Um “significativo mau uso”, nas palavras deles. Swartz não tinha nem divulgado o download, mas o JSTOR o acusou de “fraude eletrônica, fraude de computador, de obtenção ilegal de informações a partir de um computador protegido”.

Swartz se entregou na manhã de 19 de julho no Tribunal de Boston e se declarou inocente das acusações. Pra ser liberado, teve que pagar US$ 100 mil de fiança. As investigações seguem, mesmo que o jovem tenha devolvido os arquivos baixados. A próxima audiência está marcada para o dia 9 de setembro.

Muito se noticiou o enrosco de Aaron. O mais estranho foi ver inúmeros sites jornalísticos se referirem ao incidente como um “roubo” [n’é G1?], como se copiar dados fosse a mesma coisa que tirá-los de lá. O site QuestionCopyright lembrou muito bem da musica de Nina Paley: “Copiar não é roubar”. Agora, em defesa de Aaron foi criado também uma espécie de petição pública – em um site que ele mesmo criou, o Demand Progress [assina lá se você simpatiza com a ideia].

Outra forma de apoiar a causa foi a que vários sites começarem a republicar o Manifesto da Guerrilla Open Access, um profético texto escrito por Aaron em seu blog, lá no ano de 2008. E é ele que republicamos e traduzimos abaixo. No texto, o autor critica a forma como o conhecimento ainda é tratado, mesmo com todos os recursos informacionais de hoje. E no fim também indica: de que lado tu vai ficar?

“Informação é poder. Mas, como todo o poder, há aqueles que querem mantê-lo para si mesmos. A herança inteira do mundo científico e cultural, publicada ao longo dos séculos em livros e revistas, é cada vez mais digitalizada e trancada por um punhado de corporações privadas. Quer ler os jornais apresentando os resultados mais famosos das ciências? Você vai precisar enviar enormes quantias para editoras como a Reed Elsevier.

Há aqueles que lutam para mudar esta situação. O Movimento Open Access tem lutado bravamente para garantir que os cientistas não assinem seus direitos autorais por aí, mas, em vez disso, assegura que o seu trabalho é publicado na internet, sob termos que permitem o acesso a qualquer um. Mas mesmo nos melhores cenários, o trabalho deles só será aplicado a coisas publicadas no futuro. Tudo até agora terá sido perdido.

Esse é um preço muito alto a pagar. Obrigar pesquisadores a pagar para ler o trabalho dos seus colegas? Digitalizar bibliotecas inteiras mas apenas permitindo que o pessoal da Google possa lê-las? Fornecer artigos científicos para aqueles em universidades de elite do Primeiro Mundo, mas não para as crianças no Sul Global?

Isso é escandaloso e inaceitável.

“Eu concordo”, muitos dizem, “mas o que podemos fazer? As empresas que detêm direitos autorais fazem uma enorme quantidade de dinheiro com a cobrança pelo acesso, e é perfeitamente legal – não há nada que possamos fazer para detê-los. Mas há algo que podemos, algo que já está sendo feito: podemos contra-atacar.

Aqueles com acesso a esses recursos – estudantes, bibliotecários, cientistas – a vocês foi dado um privilégio. Vocês começam a se alimentar nesse banquete de conhecimento, enquanto o resto do mundo está bloqueado. Mas vocês não precisam – na verdade, moralmente, não podem – manter este privilégio para vocês mesmos. Vocês têm um dever de compartilhar isso com o mundo.  E vocês têm que negociar senhas com colegas, preencher pedidos de download para amigos.

Enquanto isso, aqueles que foram bloqueados não estão em pé de braços cruzados. Vocês vêm se esgueirando através de buracos e escalado cercas, libertando as informações trancadas pelos editores e as compartilhando com seus amigos.

Mas toda essa ação se passa no escuro, num escondido subsolo. É chamada de roubo ou pirataria, como se compartilhar uma riqueza de conhecimentos fosse o equivalente moral a saquear um navio e assassinar sua tripulação. Mas compartilhar não é imoral – é um imperativo moral. Apenas aqueles cegos pela ganância iriam negar a deixar um amigo fazer uma cópia.

Grandes corporações, é claro, estão cegas pela ganância. As leis sob as quais elas operam exigem isso – seus acionistas iriam se revoltar por qualquer coisinha. E os políticos que eles têm comprado por trás aprovam leis dando-lhes o poder exclusivo de decidir quem pode fazer cópias.

Não há justiça em seguir leis injustas. É hora de vir para a luz e, na grande tradição da desobediência civil, declarar nossa oposição a este roubo privado da cultura pública.

Precisamos levar informação, onde quer que ela esteja armazenada, fazer nossas cópias e compartilhá-la com o mundo. Precisamos levar material que está protegido por direitos autorais e adicioná-lo ao arquivo. Precisamos comprar bancos de dados secretos e colocá-los na Web. Precisamos baixar revistas científicas e subi-las para redes de compartilhamento de arquivos. Precisamos lutar pela Guerilla Open Access.

Se somarmos muitos de nós, não vamos apenas enviar uma forte mensagem de oposição à privatização do conhecimento – vamos transformar essa privatização em algo do passado. Você vai se juntar a nós?

Aaron Swartz
Julho de 2008, Eremo, Itália.

P.S.: Agradecimentos ao Andre Deak pelos conselhos na parte final da tradução – que, aliás, não é nem pretende ser definitiva, mas apenas uma contribuição para a divulgação do texto.
Postado por Castor Filho às 02:47:00
(Redecastor)