"O verdadeiro teste moral da humanidade (o mais radical, situado num n�vel t�o profundo que escapa ao nosso olhar) s�o as rela��es com aqueles que est�o � nossa merc�: os animais" (Milan Kundera).
Senhoras e senhores, nossas observa��es emp�ricas permitem-nos concluir que os c�es sorriem, riem e gargalham. Antigo relato do pai iniciou nossa recolha. Vendo-se sozinho na casa, permitiu que as cachorras da �poca entrassem e refestelassem-se no carpete. Assistindo ao futebol na sala de televis�o, afirmou que, ao olhar para uma delas - Diana, a �nica cachorra brava que tivemos -, flagrou-a deitada com a barriga para cima, olhando-o e "dando risada".
Distintos membros da assembleia, outra n�o pode ser nossa conclus�o a respeito da risada canina quando diariamente nossa Carmela segura com os dentes a barra de nossa roupa e gane de tal forma que um vizinho rec�m-mudado poderia cogitar de maus tratos. Diariamente andamos pela casa com ela segurando nossa roupa, ganindo e mantendo tal garbo na marcha que as psiquiatrias
humana
e animal poderiam realizar rico estudo de caso. Por vezes, andamos � toa apenas para conferir at� onde segue a fanfarronice. Nossa hip�tese inicial � de feliz gargalhada por reencontrar seus familiares. Mesmo que entremos apenas para atender ao telefone ou � campainha e voltemos. Quando larga-nos a roupa, apanha o que estiver mais � m�o - ou mais � boca, do seu ponto de vista - e segue-nos ainda resmungando. N�o � toa que a s�tima parte d'A insustent�vel leveza do ser, intitulada O sorriso de Karenin, desanuviou t�o tr�gica leitura e foi recebida com reconhecimento.
Nobres dignit�rios, oportuna a lembran�a. O encontro com a obra foi mais uma das provoca��es j� mencionadas algures: n�o havia jornal ou revista que abr�ssemos e n�o encontr�ssemos alguma men��o ao autor e ao livro, mesmo que se tratasse do recente lan�amento de outro. V� l�, cumpra-se nossa sina - e antes todas as sinas fossem assim - e leiamo-lo. Embora triste, � uma �tima obra, merecedora da perman�ncia que tem. Salvo inspira��o para a presente coluna, percebemos que as idas e vindas de Tereza e Tomas, Sabina e Franz servir�o de base para futuras medita��es. Voltemos aos c�es.
Honrados leitores, outra verdade colhida das p�ginas do livro encontramos durante as reflex�es de Kundera sobre o mito da expuls�o do Para�so. Diz ele que "o c�o jamais fora expulso do Para�so". Ao contr�rio, aceitou a miss�o de acompanhar o ser humano, este ingrato. Ingratid�o que vai da agressividade de quem lhe d� pontap�s � histeria de quem o veste de boneca e exp�e-no a outros rid�culos. Ingratid�o verificada na pesquisa laboratorial e na horrenda fala "mas � s� um cachorro", seja qual for a circunst�ncia. "H� milh�es de cachorros no mundo". H� milh�es de humanos no mundo.
�nclitos assistentes, dever�amos sempre encarar nossos animais e recordarmo-nos de nossa responsabilidade para com suas vidas. Nossos c�es, dever�amos segur�-los por baixo dos focinhos, agradecer-lhes a companhia no ex�lio e dar-lhes um biscoito. Si apressados, sequer sa�mos ao quintal, pois h� um ritual a ser cumprido: roupa puxada por uma, sa�da desembestada da outra em busca do rato - que n�o existe -, co�ada vigorosa em ambas. Chora-co�a-deita-co�a. Uma prefere no lombo, entre os pelos e com for�a. A outra o umbigo: seja qual for a posi��o em que estivermos, dar� um jeito de encaminhar nossa m�o. Saiamos sem estas aten��es e depararemos com olhares pasmos, como de algu�m a pensar: "Como? Sem co�ada? E toda esta recep��o que organizamos? N�o h� justi�a no mundo?".
Eminentes estudiosos, um livro acompanha-nos h� onze anos e j� foi citado em coluna anterior sobre nossos companheiros. � Da dificuldade de ser c�o, do franc�s Roger Grenier. Lemos sobre o labrador Marley, mas a compara��o entre as duas obras � ilustrativa para a compara��o entre o que � um cl�ssico e o que � um livro de esta��o. Procurando mais uma vez nosso exemplar do Grenier no arm�rio, verificamos que o personalizamos de tal forma que poderemos reconhec�-lo de longe. Um selo da Rep�blica da Kampuchea (?) e uma figura adesiva em suas primeiras p�ginas; o carimbo com nosso nome; diversas anota��es a l�pis a respeito de outros c�es de outras obras. Interrompemos a coluna para abri-la ao acaso e acrescentarmos: "a Karenin, de Kundera". Sim, porque o mesti�o de S�o Bernardo com pastor alem�o que leva o nome do personagem de Tolstoi � f�mea. Al�m deste, agregamos �s p�ginas de Grenier as seguintes lembran�as:
1 - o c�o Chiquinho da s�rie de livros Patas na Europa, de Antonio Costella, professor e diretor do Museu da Xilogravura da cidade de Campos do Jord�o;
2 - o amor de Simon Bol�var pelos c�es, conforme descrito por Garc�a Marques n'O General e seu labirinto, que chegou ao ponto de recolher um vira-lata agredido por outro c�o e cham�-lo por seu pr�prio nome;
3 - o feroz buldogue "Falstaff" na Ni�totchka Noezv�nova, de Dostoievsky;
4 - os c�es da ra�a Fox-terrier, entre os quais o filhote "Old" do conto A Insola��o, de Oscar Quiroga;
5 - os "Merimbicos" e "Brinquinhos" de Monteiro Lobato;
6 - a rela��o de Walter Scott com os c�es, descrita no quarto volume da enciclop�dia de ra�as Nossos amigos os c�es, no cap�tulo dedicado ao Scottish Deerhound;
7 - o cachorrinho "Tom" mencionado por Lampedusa no conto autobiogr�fico Recorda��es da Inf�ncia;
8 - o desastrado "Argo" do conto de Italo Svevo;
9 - a pobre cadela de Hitler, sacrificada a t�tulo de experi�ncia, seja qual for a justificativa;
10 - o charmoso "Kurika", cuja biografia em prosa po�tica forma o deleitoso C�o como n�s, do portugu�s Manuel Alegre.
Criteriosos examinadores, � ep�grafe podemos acrescentar que mesmo a respeitabilidade de um regime pol�tico pode ser avaliada pela maneira como os c�es s�o tratados. Kundera menciona o canic�dio em massa ocorrido na Rep�blica Tcheca ap�s a invas�o sovi�tica. Sorte an�loga tiveram os c�es chineses sob a ditadura de Mao-Tse-Tung. N�o temos motivos para acreditar em melhoras ap�s horrenda not�cia vinda deste mesmo pa�s, a respeito do abate a pauladas dos c�es excedentes. As reuni�es visando a aproxima��o com pa�ses do Oriente deveriam seguir pauta na qual se abordasse diretamente a continuidade ou n�o do uso de c�es na alimenta��o. "Continuar�o fazendo uso de carne canina? Continuar�o recorrendo � tradi��o para manter esta esp�cie de canibalismo? Muito obrigado, sua amizade e parceria n�o nos interessam".
Sarracena equipe, a verdadeira caridade supera as barreiras interpostas entre um humano e outro e aperfei�oa-se ao alcan�ar as demais esp�cies. Acompanhamos o trabalho de uma noite de um grupo de jovens dedicado a levar p�o e sopa aos moradores das ruas taubateanas. Um dos atendidos foi um senhor acompanhado de seu c�o J�nior. Servido do refazedor l�quido, nele mergulhava o p�o que oferecia ao seu amigo e guardi�o. O morador seguinte, fazia do seu carrinho de catan�as a arma��o da barraca noturna. Suas duas cachorrinhas - Xuxa e Menina - costumavam dormir com ele sob o pano. Entretanto, como naquele dia algu�m furtou parte de seus guardados e elas n�o deram o costumeiro alarme, despejou-as para o relento.
Interessados conselheiros, a amizade granjeada ao longo dos anos - quase escrev�amos "s�culos" - fez com que colh�ssemos mais lembran�as da conviv�ncia que das p�ginas. Como esquecer a Zimba, que se empanturrou de tal forma com as sobras fornecidas pela cozinheira em certo dia, depois n�o conseguindo sequer deitar-se? Como olvidar a j� mencionada Diana, quem criou tal pavor pela piscina a ponto de puxar-nos para fora dela pelos bra�os? Como deixar de lembrar-nos da sofrida Gabi que, devidamente provocada, surtava e desembestava pelo jardim formando diversas vezes o n�mero "8" entre os canteiros? A principal mem�ria que ficou do Eduardo, o vira-lata de nossa av�, foi provocada por uma de suas fugas e pela provid�ncia tomada pelos pedreiros que trabalhavam na casa vazia pelo desencarne dela. Caso ele escapasse, poderia ser reconhecido de longe pelo carnavalesco colar de havaiano que lhe enrolaram ao pesco�o. Provid�ncia in�til, infelizmente.
Complacentes amigos, a v�s que suportastes nossas divaga��es e a n�s vos irmanam pelo amor aos ditos irracionais, nosso "Muito Obrigado".
Nota do Editor:
Leia tamb�m "Homens, C�es e Livros", de Adriana Baggio, e "Hist�rias de gatos", de Carla Ceres.
Ricardo de Mattos
(Digest. Cultural)
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