Em cinco capitais, atos contra mega-evento misturam-se às bandeiras por participação política, transporte e serviços públicos de qualidade. Conheça sete dos motivos
Por Marina Amaral, na Publica
Já foram gastos 27,4 bilhões de reais na Copa e a previsão atual é de custo total de 33 bilhões, uma quantia que se aproxima do total do orçamento federal em educação para este ano: 38 bilhões de reais. Uma priorização de recursos que a população questiona nas ruas, assim como a concentração do dinheiro público na construção de estádios, em muitos casos, como em Manaus e Cuiabá, “elefantes brancos” sem futuro aproveitamento.
Além disso, as obras de mobilidade urbana – apresentadas pelo governo como o principal legado para as cidades-sede – atualmente orçadas em 12 bilhões de reais – privilegiam os acessos viários para carros (viadutos, alargamentos de avenidas) e a rota aeroportos-hoteis-estádios que não é necessariamente a prioritária para a mobilidade urbana no cotidiano das cidades. Um exemplo claro é Itaquera, onde as obras reivindicadas pela comunidade foram suspensas enquanto se investe a todo vapor nas obras de acesso ao estádio. Promessas em investimento em transporte público, como a construção do metrô de Salvador e o Monotrilho da linha Ouro em São Paulo foram retiradas da Matriz de Responsabilidades (o orçamento federal para a Copa) e o transporte público chegou a ser prejudicado no Rio de Janeiro, onde os moradores e comércio sofrem com a falta do tradicional bondinho – que não circula desde 2011 – depois de um acidente denunciado pelos moradores como resultante de um projeto equivocado de modernização (que teve de ser refeito e ainda não está pronto)
Por fim, as obras de mobilidade urbana são as principais responsáveis pelas remoções de comunidades, ameaças ambientais e perda de equipamentos públicas.
Remoções violentas e Demolições indesejáveis
Os movimentos sociais contabilizam 170 mil pessoas ameaçadas ou já removidas e/ou recebendo indenizações de 3 a 10 mil reais, para os que comprovam a propriedade do lote, e bolsas-aluguel de menos de 1 salário mínimo para os demais. Não raro os despejos são feitos de forma violenta, sem transparência nem diálogo entre poder público e moradores. No morro da Providência no Rio de Janeiro, por exemplo, as pessoas descobriram que seriam expulsas quando suas casas apareciam marcadas, sem nenhuma negociação prévia.
Além das casas, os moradores perdem também suas comunidades, em alguns casos centenárias, amigos, vizinhos, tradições. Via de regra são enviados para longe de suas raízes e cotidiano e perdem a infraestrutura urbana dos bairros mais centrais, caso por exemplo, da ameaçada comunidade da Paz, em Itaquera, São Paulo. As indenizações recebidas são muito menores que os preços de aluguéis e imóveis nos bairros atingidos pelas obras da Copa, forçando a ida para longe também dos que podem decidir seu rumo. A especulação imobiliária em torno dos estádios e melhorias feitas para tornar a cidade mais atraente para os turistas expulsam moradores que seriam beneficiados pela evolução, dos morros Rio de Janeiro à zona leste de São Paulo, agravando o problema extenso de carência de moradias nas grandes cidades brasileiras.
O patrimônio social e cultural também foi prejudicado, como mostrou a expulsão de representantes das etnias indígenas que ocupavam o antigo Museu do Índio, no Rio de Janeiro,reconhecido pelos antropólogos como marco da relação entre indios e brancos no Brasil, o histórico estádio do Maracanã foi descaracterizado por uma reforma que já custou 1,2 bilhões aos cofres públicos e acompanhado da destruição de equipamentos públicos esportivos, como o ginásio Célio Barros para construir estacionamentos e acessos viários em torno do estádio.
Legislação de exceção para cumprir as exigências da FIFA
Desde que o Brasil fechou o acordo com a FIFA, o governo vem criando leis por Medidas Provisórias para assegurar os interesses da FIFA e de seus parceiros (Lei Geral da Copa), permitir que Estados e Municípios se endividem além do exigido pela Lei de Responsabilidade Fiscal para investir em obras da Copa, abreviar licenciamento ambiental e dispensar licitações.
Alguns exemplos do prejuízo que essa legislação traz para a população:
- as zonas de exclusão: a FIFA estabelece uma área em um raio de até 2 quilômetros em volta do estádio - a zona de exclusão - como seu território. Ali controla a circulação de pessoas, a venda de produtos, fiscaliza o uso de marcas que considera suas – o próprio nome do evento Copa 2014 e o mascote, entre outros – protege a exclusividade de venda dos produtos de seus patrocinadores – da cerveja ao hamburger – e se encarrega da segurança. Segundo a ONG Streetnet, na África do Sul 100 mil ambulantes perderam a fonte de renda durante a Copa e situação semelhante – caracterizada como violação ao direito ao trabalho e perseguição por trabalhar em espaço público – está prevista no Brasil onde mais de mil ambulantes já perderam postos de trabalho por causa das obras da Copa, principalmente em Belo Horizonte, Brasília, Cuiabá, Fortaleza e Porto Alegre
- isenções fiscais, exceções legais: a criação de punições e tipificação de crimes para proteger os interesses da FIFA e seus parceiros – que pune por exemplo, quem utiliza símbolos da Copa para promover eventos em bares e restaurantes ou que fere a exclusividade das marcas da FIFA – é um dos abusos permitidos pela Lei Geral da Copa, que também isenta de impostos uma série de entidades e indivíduos indicados pela FIFA prejudicando as receitas do país que arca até com toda a responsabilidade jurídica em acidentes/incidentes, danos e processos, incluindo o pagamento dos advogados da FIFA e parceiros.
- obras estaduais e municipais faraônicas e/ou contra os interesses da população: o caso mais gritante é da construção de um Aquário em Fortaleza , sem laudo arqueológico e com diversas falhas no EIA-Rima, a um custo superior a 280 milhões de reais enquanto o Ceará vive uma de suas piores secas. Em São Paulo, no Rio de Janeiro, Salvador e outras cidades-sede os governos estaduais e municipais também participam do investimento em dinheiro público em estádios que serão posteriormente explorados pela iniciativa privada . Em Natal, a construção do estádio põe em risco as dunas, e em Recife uma área até então preservada está sendo completamente alterada para instalar equipamentos relacionados à Copa, como hotéis e centros de apoio ao estádio.
- superfaturamento, custos elevados e desvios de recursos públicos: as sete maiores empreiteiras do Brasil – que são também as principais doadoras de recursos eleitorais para os principais partidos e políticos – beneficiaram-se da Lei 12.462/2011 RDC – Regime Diferenciado de Contratações Públicas – para determinar preços, aumentá-los através de cláusulas e aditivos frequentemente justificados pelo ritmo das obras e pela reformulação de projetos equivocados. O TCU já comprovou irregularidades na arena Amazonas, na reforma do Maracanã, na construção do estádio em Brasília, no aeroporto de Manaus. O Ministério Público do Distrito Federal entrou com ação contra superfaturamento e outras irregularidades no VLT de Brasília.
Violação ao direito à informação e à participação política
(Outras palavras)
sábado, 29 de junho de 2013
Edward Snowden
GOVERNO DE HONG KONG sobre Edward Snowden
Edward Snowden
Glenn Greenwald
O Sr. Edward Snowden deixou Hong Kong hoje (23/6/2013), por decisão pessoal, por um terceiro país, por via legal e normal.
O Governo dos EUA, antes, pedira ao Governo de Hong Kong, que emitisse ordem de prisão para averiguações [orig. a provisional warrant of arrest] contra o Sr. Snowden.
Dado que os documentos apresentados pelo Governo dos EUA não preenchiam todas as exigências da lei de Hong Kong, o Governo de Hong Kong solicitou ao Governo dos EUA que fornecesse informação adicional, para que o Departamento de Justiça pudesse considerar o pedido do Governo dos EUA, depois de o pedido satisfazer as exigências legais.
Dado que o Governo de Hong Kong até agora não tem informação suficiente para ordenar a prisão requerida, não há qualquer base legal para impedir que o Sr. Snowden deixe Hong Kong.
O Governo de Hong Kong já informou o Governo dos EUA sobre a partida do Sr. Snowden.
Simultaneamente, o Governo de Hong Kong escreveu formalmente ao Governo dos EUA, exigindo esclarecimentos sobre notícias de que sistemas de computadores em Hong Kong teriam sido invadidos por agências do Governo dos EUA. O Governo de Hong Kong continuará a acompanhar essa questão, para proteger direitos legais do povo de Hong Kong.
FIM DO COMUNICADO/Domingo, 23/6/2013, 16h05 (horário de Hong Kong).
Postado por Castor Filho às 18:29:00
(Redecastor)
Edward Snowden
Glenn Greenwald
O Sr. Edward Snowden deixou Hong Kong hoje (23/6/2013), por decisão pessoal, por um terceiro país, por via legal e normal.
O Governo dos EUA, antes, pedira ao Governo de Hong Kong, que emitisse ordem de prisão para averiguações [orig. a provisional warrant of arrest] contra o Sr. Snowden.
Dado que os documentos apresentados pelo Governo dos EUA não preenchiam todas as exigências da lei de Hong Kong, o Governo de Hong Kong solicitou ao Governo dos EUA que fornecesse informação adicional, para que o Departamento de Justiça pudesse considerar o pedido do Governo dos EUA, depois de o pedido satisfazer as exigências legais.
Dado que o Governo de Hong Kong até agora não tem informação suficiente para ordenar a prisão requerida, não há qualquer base legal para impedir que o Sr. Snowden deixe Hong Kong.
O Governo de Hong Kong já informou o Governo dos EUA sobre a partida do Sr. Snowden.
Simultaneamente, o Governo de Hong Kong escreveu formalmente ao Governo dos EUA, exigindo esclarecimentos sobre notícias de que sistemas de computadores em Hong Kong teriam sido invadidos por agências do Governo dos EUA. O Governo de Hong Kong continuará a acompanhar essa questão, para proteger direitos legais do povo de Hong Kong.
FIM DO COMUNICADO/Domingo, 23/6/2013, 16h05 (horário de Hong Kong).
Postado por Castor Filho às 18:29:00
(Redecastor)
Pornografia
Da pornografia e seus demônios
em artes e ideias por Michael Pantaleão
Uma breve análise da evolução da pornografia, desde a origem do termo até a conquista de tais produções no grande mercado 'mainstream' mundial, e as problemáticas que esse gênero de criação imagética produz.
A pornografia é uma das formas mais antigas de representação do corpo humano nu e do ato sexual. Suas realizações sobreviveram o passar do tempo e se transformaram de acordo com a época e o contexto social em que se encontravam no momento.
Pornografia. A palavra deriva do grego clássico porno, que significa “prostituta” em conjunto com o sufixo –grafia, que indica um escrito sobre determinado assunto. Logo, podemos entender o termo pornografia como “um escrito descritivo ou uma ilustração de prostitutas”. A pornografia é, inicialmente, a representação explícita de uma matéria sexual com o intuito de gerar algum tipo de gratificação, que hoje encontra diversos meios para se propagar como a literatura, os jogos eletrônicos, revistas especializadas, filmes, etc.
Para compreender este fenômeno, devemos ter em mente que as primeiras manifestações desta natureza aconteceram há muito mais tempo do que imaginamos. Como exemplos, citarei primeiramente uma escultura encontrada na Áustria, que se acredita ter sido feita entre 2500 e 2000 a.C., intitulada Venus de Willendorf. A imagem representa uma figura feminina nua. Já no século XIX, o pintor e gravurista japonês do período Edo (1603-1868) causou uma ruptura na arte nipônica ao mostrar suas obras contendo um alto teor explícito (para a época e para a sociedade em que elas se inseriam). Uma das mais famosas é The Dream of the Fisherman's Wife (1814), onde uma mulher é estimulada sexualmente por dois polvos. No mesmo século, Gustave Courbet provocou a crítica e os consumidores de arte na França com uma de suas pinturas mais simbólicas da estética realista, L'Origine du monde, que trata-se do retrato o corpo despido de uma mulher, dando especial foco em seu abdômen e órgão genital.
A pornografia encontrou seu auge no final do século XIX com os filmes eróticos, que surgiram logo após a criação do motion picture em 1895, tendo Eugène Pirou e Albert Kirchner como pioneiros dessa nova arte. O cinema trouxe consigo a possibilidade de popularização de um tipo de manifestação que até então estava oculto pela subjetividade artística e a dificuldade em compreendê-la (e até mesmo usufruir dela, visto que o acesso à arte nunca foi democrático). A quantidade de cenas produzidas e a facilidade em acessá-las contribuíram para a naturalização de tais manifestações visuais.
Apesar do grande espaço que a pornografia acabou conquistando na cultura visual contemporânea, alguns movimentos assumem-se terminantemente contra tais manifestações por diversos motivos. Uma das maiores fontes de argumentação contra o a pornografia encontra-se em grupos cujas crenças religiosas mostram-se contrárias à exibição explícita do corpo nu e do ato sexual. Apesar de não existir nenhuma passagem na Bíblia que diretamente proíba a produção ou o consume de imagens com teor sexual, muitos adeptos da Igreja Católica baseiam-se na interpretação de Mateus 5:27-28 para contestar esta prática: “Vocês ouviram o que foi dito: 'Não adulterarás'. Mas eu digo: Qualquer que olhar para uma mulher e desejá-la, já cometeu adultério com ela no seu coração”.
Algumas feministas mostram-se também contra a pornografia pelo seu caráter misógino, argumentando que esta é uma industria que comercializa o corpo feminino, além de ser cúmplice na violência contra a mulher. é preciso entender que os filmes pornográficos, por exemplo, caracterizam-se pela atuação de profissionais (atores) pagos pelo serviço, tratando-se, por isso, de uma obra fictícia. No entanto, “representation refers to the use of language and images to create meaning about the world around us” (Sturken e Cartwright, 2009). Tais produções cinematográficas ajudam a criar uma ideia falsa do corpo da mulher, da sexualidade, do desejo e do ato sexual em si.
Estes filmes tem a tendência de colocar o homem no papel de dominador, de “líder”, aquele que conduz o ato sexual e encontra o prazer enquanto prova para o espectador (e para si mesmo) sua masculinidade, enquanto a mulher é caracterizada apenas como um objeto - é coisificada, perdendo seu ato, sua voz e seu prazer.
Além disso, a figura social da mulher é completamente distorcida a partir do momento em que os filmes pornográficos tem a tendência de retratá-la como um ser fácil, indefeso, que está sempre disponível para o ato sexual independente da situação, do local e do parceiro. “Women who charge men with sexual abuse are not believed. The pornographic view of them is: they want it; they all want it” (MacKinnon). Outra questão a ser abordada pela crítica feminista à pornografia é a disseminação da violência contra a mulher através de filmes eróticos, além do silenciamento das mulheres ao tentarem expressar suas próprias vontades. Vemos o estupro, por exemplo, ser comumente erotizado em produções direcionadas ao grande mercado.
Logo, o desejo de criar uma pornografia sem relações assimétricas de poder entre duas (ou mais) pessoas, com uma visão real sobre a sexualidade, onde o prazer é compartilhado e a mulher caracterizar-se-ia como um ser ao invés de um objeto são as motivações para a criação de um novo tipo de imagens. Esta pornografia, que se transforma num meio de expressão feminista, detém uma pequena mas crescente parcela no mercado. É um trabalho consciente para contradizer - e problematizar - outras pornografias que representam o ser humano como objetos sexualmente unidimensionais.
O movimento da pornografia feminista procura ressignificar as imagens que essas manifestações visuais costumavam transmitir aos seus espectadores. O prazer masculino e feminino são igualmente importantes. Um bom exemplo é a coletânea de curta-metragens pornofeministas suecos Dirty Diaries, produzida por Mia Engberg com produções de diversas diretoras. A produção foi recebida com críticas negativas e controvérsias em seu país de origem, especialmente pelo fato do orçamento dos filmes ter vindo do governo Sueco.
É necessário pensarmos na pornografia como uma forma de expressão plurissignificativa, que pode carregar significados diversos em situações diversas, sendo estas mensagens direcionadas a diferentes públicos capazes de (re)interpretá-las e extrair delas novos valores.
michaelpantaleao
Artigo da autoria de Michael Pantaleão.
Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio..
Saiba como fazer parte da obvious.
em artes e ideias por Michael Pantaleão
Uma breve análise da evolução da pornografia, desde a origem do termo até a conquista de tais produções no grande mercado 'mainstream' mundial, e as problemáticas que esse gênero de criação imagética produz.
A pornografia é uma das formas mais antigas de representação do corpo humano nu e do ato sexual. Suas realizações sobreviveram o passar do tempo e se transformaram de acordo com a época e o contexto social em que se encontravam no momento.
Pornografia. A palavra deriva do grego clássico porno, que significa “prostituta” em conjunto com o sufixo –grafia, que indica um escrito sobre determinado assunto. Logo, podemos entender o termo pornografia como “um escrito descritivo ou uma ilustração de prostitutas”. A pornografia é, inicialmente, a representação explícita de uma matéria sexual com o intuito de gerar algum tipo de gratificação, que hoje encontra diversos meios para se propagar como a literatura, os jogos eletrônicos, revistas especializadas, filmes, etc.
Para compreender este fenômeno, devemos ter em mente que as primeiras manifestações desta natureza aconteceram há muito mais tempo do que imaginamos. Como exemplos, citarei primeiramente uma escultura encontrada na Áustria, que se acredita ter sido feita entre 2500 e 2000 a.C., intitulada Venus de Willendorf. A imagem representa uma figura feminina nua. Já no século XIX, o pintor e gravurista japonês do período Edo (1603-1868) causou uma ruptura na arte nipônica ao mostrar suas obras contendo um alto teor explícito (para a época e para a sociedade em que elas se inseriam). Uma das mais famosas é The Dream of the Fisherman's Wife (1814), onde uma mulher é estimulada sexualmente por dois polvos. No mesmo século, Gustave Courbet provocou a crítica e os consumidores de arte na França com uma de suas pinturas mais simbólicas da estética realista, L'Origine du monde, que trata-se do retrato o corpo despido de uma mulher, dando especial foco em seu abdômen e órgão genital.
A pornografia encontrou seu auge no final do século XIX com os filmes eróticos, que surgiram logo após a criação do motion picture em 1895, tendo Eugène Pirou e Albert Kirchner como pioneiros dessa nova arte. O cinema trouxe consigo a possibilidade de popularização de um tipo de manifestação que até então estava oculto pela subjetividade artística e a dificuldade em compreendê-la (e até mesmo usufruir dela, visto que o acesso à arte nunca foi democrático). A quantidade de cenas produzidas e a facilidade em acessá-las contribuíram para a naturalização de tais manifestações visuais.
Apesar do grande espaço que a pornografia acabou conquistando na cultura visual contemporânea, alguns movimentos assumem-se terminantemente contra tais manifestações por diversos motivos. Uma das maiores fontes de argumentação contra o a pornografia encontra-se em grupos cujas crenças religiosas mostram-se contrárias à exibição explícita do corpo nu e do ato sexual. Apesar de não existir nenhuma passagem na Bíblia que diretamente proíba a produção ou o consume de imagens com teor sexual, muitos adeptos da Igreja Católica baseiam-se na interpretação de Mateus 5:27-28 para contestar esta prática: “Vocês ouviram o que foi dito: 'Não adulterarás'. Mas eu digo: Qualquer que olhar para uma mulher e desejá-la, já cometeu adultério com ela no seu coração”.
Algumas feministas mostram-se também contra a pornografia pelo seu caráter misógino, argumentando que esta é uma industria que comercializa o corpo feminino, além de ser cúmplice na violência contra a mulher. é preciso entender que os filmes pornográficos, por exemplo, caracterizam-se pela atuação de profissionais (atores) pagos pelo serviço, tratando-se, por isso, de uma obra fictícia. No entanto, “representation refers to the use of language and images to create meaning about the world around us” (Sturken e Cartwright, 2009). Tais produções cinematográficas ajudam a criar uma ideia falsa do corpo da mulher, da sexualidade, do desejo e do ato sexual em si.
Estes filmes tem a tendência de colocar o homem no papel de dominador, de “líder”, aquele que conduz o ato sexual e encontra o prazer enquanto prova para o espectador (e para si mesmo) sua masculinidade, enquanto a mulher é caracterizada apenas como um objeto - é coisificada, perdendo seu ato, sua voz e seu prazer.
Além disso, a figura social da mulher é completamente distorcida a partir do momento em que os filmes pornográficos tem a tendência de retratá-la como um ser fácil, indefeso, que está sempre disponível para o ato sexual independente da situação, do local e do parceiro. “Women who charge men with sexual abuse are not believed. The pornographic view of them is: they want it; they all want it” (MacKinnon). Outra questão a ser abordada pela crítica feminista à pornografia é a disseminação da violência contra a mulher através de filmes eróticos, além do silenciamento das mulheres ao tentarem expressar suas próprias vontades. Vemos o estupro, por exemplo, ser comumente erotizado em produções direcionadas ao grande mercado.
Logo, o desejo de criar uma pornografia sem relações assimétricas de poder entre duas (ou mais) pessoas, com uma visão real sobre a sexualidade, onde o prazer é compartilhado e a mulher caracterizar-se-ia como um ser ao invés de um objeto são as motivações para a criação de um novo tipo de imagens. Esta pornografia, que se transforma num meio de expressão feminista, detém uma pequena mas crescente parcela no mercado. É um trabalho consciente para contradizer - e problematizar - outras pornografias que representam o ser humano como objetos sexualmente unidimensionais.
O movimento da pornografia feminista procura ressignificar as imagens que essas manifestações visuais costumavam transmitir aos seus espectadores. O prazer masculino e feminino são igualmente importantes. Um bom exemplo é a coletânea de curta-metragens pornofeministas suecos Dirty Diaries, produzida por Mia Engberg com produções de diversas diretoras. A produção foi recebida com críticas negativas e controvérsias em seu país de origem, especialmente pelo fato do orçamento dos filmes ter vindo do governo Sueco.
É necessário pensarmos na pornografia como uma forma de expressão plurissignificativa, que pode carregar significados diversos em situações diversas, sendo estas mensagens direcionadas a diferentes públicos capazes de (re)interpretá-las e extrair delas novos valores.
michaelpantaleao
Artigo da autoria de Michael Pantaleão.
Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio..
Saiba como fazer parte da obvious.
Rede Globo
Rede Globo, o povo não é bobo
Escrito por Plínio de Arruda Sampaio Jr.
Assustada com as mobilizações populares que romperam duas décadas de marasmo político e letargia social, após um momento de perplexidade e desorientação, a ordem estabelecida deu uma primeira resposta à revolta social que toma conta do Brasil. Seu ponto de vista aparece na estética e no discurso da grande mídia falada e escrita. Não por acaso, as grandes redes de televisão tornaram-se um dos alvos preferenciais da fúria popular, ao lado de outros símbolos do poder burguês e da modernidade fútil - os prédios públicos, os bancos, as concessionárias de automóveis.
Por representar o que há de mais comprometido com o capitalismo selvagem, a perspectiva da Rede Globo é emblemática de como a plutocracia enxerga as mobilizações populares que ameaçam seus privilégios seculares. As imagens da Rede Globo são quase que invariavelmente feitas a partir de duas perspectivas: do alto das coberturas dos prédios e dos helicópteros ou atrás da tropa de choque. É uma metáfora de como a burguesia lida com o conflito social: distante dos problemas da população e em oposição frontal a quem luta por direitos coletivos.
Preocupados com a possibilidade de que a revolta popular se transforme numa revolução política, a grande mídia martela dia e noite palavras de ordens que têm como objetivo neutralizar o potencial subversivo das ruas. No “fim da história”, as rebeliões não podem ter causa. Daí a insistência em instrumentalizar a ira contra os partidos da ordem – PT, PSDB, PMDB, PSB, etc. – para estigmatizar todo e qualquer partido e para banir toda e qualquer bandeira política que possa dar um horizonte revolucionário à energia humana que brota de baixo para cima.
Consignas e bandeiras da contra-revolução
Bonner à frente, as consignas reacionárias são repetidas ad nauseam nos jornais, rádios e televisão. “As manifestações não podem ter partido”. Na verdade, disputam desesperadamente a direção das manifestações. Na falência dos partidos convencionais, tomam para si, com o beneplácito da burguesia, o papel de verdadeiro partido da ordem. “As manifestações não podem ter bandeiras”. Na verdade, enaltecem, exaltam e estetizam as bandeiras da paz (social) e da ordem e progresso (do nacionalismo chauvinista). Na falência das políticas convencionais, apelam para o moralismo e buscam desesperadamente resolver a quadratura do círculo, encontrando uma saída dentro da ordem. A manobra mal esconde o pânico com o despertar do povo para a política. Tentam desesperadamente conter a energia vulcânica que clama por mudanças radicais, transformando as manifestações em uma grande catarse nacional.
O levante popular coloca em xeque um dos nós fundamentais do padrão histórico de dominação da burguesia brasileira: a intolerância em relação à utilização do conflito social como forma legítima de conquista de direitos coletivos. Daí o esforço para estigmatizar os manifestantes que enfrentam violenta repressão. Sem distinção, todos que enfrentam a tropa de choque – manifestantes, provocadores infiltrados e simples marginais - são tachados de “vândalos” – uma minoria violenta que perturba a ordem e que se contrapõe à maioria que se manifesta pacificamente. Mal disfarçam a intenção de instigar a polícia e atiçar a classe média remediada contra a vanguarda das manifestações. Os jornais atuam de maneira orquestrada para saturar a opinião pública com imagens de destruição patrimonial – repetidas cansativamente para provocar a rejeição da população. O objetivo é criar um clima de histeria coletiva que venha, mais adiante, a justificar o massacre da revolta. Suspeitamente, não se escuta um pio sobre a ação escancarada de provocadores infiltrados, liderados por agentes dos órgãos de repressão do Estado e por grupos de extrema direita. Os pescadores de águas turvas apostam na única solução que a classe dominante brasileira conhece para tratar o conflito social: o pelourinho. Precisam ser contidos.
O partido da revolução democrática
A avassaladora mobilização da juventude contra as péssimas condições de vida da população polarizou a luta de classes entre mudança e conservação – revolução e contra-revolução. Se a esquerda não conseguir dar uma resposta ao contra-ataque das forças da reação, as mobilizações sociais podem simplesmente se exaurir sem condensar a energia política necessária para abrir novos horizontes. O desafio exige que as organizações de esquerda se unifiquem, lutem ao lado da juventude nas trincheiras avançadas do levante popular e portem a bandeira da revolução democrática – a essência do que está sendo exigido pelos manifestantes - como única alternativa à barbárie.
Leia também:
A hora e a vez da rua
Plínio de Arruda Sampaio Jr. é professor do Instituto de Economia da UNICAMP e membro do Conselho Editorial do Correio da Cidadania – www.correiocidadania.com.br
Recomendar
Última atualização em Qui, 27 de Junho de 2013
Para ajudar o Correio da Cidadania e a construção da mídia independente
Escrito por Plínio de Arruda Sampaio Jr.
Assustada com as mobilizações populares que romperam duas décadas de marasmo político e letargia social, após um momento de perplexidade e desorientação, a ordem estabelecida deu uma primeira resposta à revolta social que toma conta do Brasil. Seu ponto de vista aparece na estética e no discurso da grande mídia falada e escrita. Não por acaso, as grandes redes de televisão tornaram-se um dos alvos preferenciais da fúria popular, ao lado de outros símbolos do poder burguês e da modernidade fútil - os prédios públicos, os bancos, as concessionárias de automóveis.
Por representar o que há de mais comprometido com o capitalismo selvagem, a perspectiva da Rede Globo é emblemática de como a plutocracia enxerga as mobilizações populares que ameaçam seus privilégios seculares. As imagens da Rede Globo são quase que invariavelmente feitas a partir de duas perspectivas: do alto das coberturas dos prédios e dos helicópteros ou atrás da tropa de choque. É uma metáfora de como a burguesia lida com o conflito social: distante dos problemas da população e em oposição frontal a quem luta por direitos coletivos.
Preocupados com a possibilidade de que a revolta popular se transforme numa revolução política, a grande mídia martela dia e noite palavras de ordens que têm como objetivo neutralizar o potencial subversivo das ruas. No “fim da história”, as rebeliões não podem ter causa. Daí a insistência em instrumentalizar a ira contra os partidos da ordem – PT, PSDB, PMDB, PSB, etc. – para estigmatizar todo e qualquer partido e para banir toda e qualquer bandeira política que possa dar um horizonte revolucionário à energia humana que brota de baixo para cima.
Consignas e bandeiras da contra-revolução
Bonner à frente, as consignas reacionárias são repetidas ad nauseam nos jornais, rádios e televisão. “As manifestações não podem ter partido”. Na verdade, disputam desesperadamente a direção das manifestações. Na falência dos partidos convencionais, tomam para si, com o beneplácito da burguesia, o papel de verdadeiro partido da ordem. “As manifestações não podem ter bandeiras”. Na verdade, enaltecem, exaltam e estetizam as bandeiras da paz (social) e da ordem e progresso (do nacionalismo chauvinista). Na falência das políticas convencionais, apelam para o moralismo e buscam desesperadamente resolver a quadratura do círculo, encontrando uma saída dentro da ordem. A manobra mal esconde o pânico com o despertar do povo para a política. Tentam desesperadamente conter a energia vulcânica que clama por mudanças radicais, transformando as manifestações em uma grande catarse nacional.
O levante popular coloca em xeque um dos nós fundamentais do padrão histórico de dominação da burguesia brasileira: a intolerância em relação à utilização do conflito social como forma legítima de conquista de direitos coletivos. Daí o esforço para estigmatizar os manifestantes que enfrentam violenta repressão. Sem distinção, todos que enfrentam a tropa de choque – manifestantes, provocadores infiltrados e simples marginais - são tachados de “vândalos” – uma minoria violenta que perturba a ordem e que se contrapõe à maioria que se manifesta pacificamente. Mal disfarçam a intenção de instigar a polícia e atiçar a classe média remediada contra a vanguarda das manifestações. Os jornais atuam de maneira orquestrada para saturar a opinião pública com imagens de destruição patrimonial – repetidas cansativamente para provocar a rejeição da população. O objetivo é criar um clima de histeria coletiva que venha, mais adiante, a justificar o massacre da revolta. Suspeitamente, não se escuta um pio sobre a ação escancarada de provocadores infiltrados, liderados por agentes dos órgãos de repressão do Estado e por grupos de extrema direita. Os pescadores de águas turvas apostam na única solução que a classe dominante brasileira conhece para tratar o conflito social: o pelourinho. Precisam ser contidos.
O partido da revolução democrática
A avassaladora mobilização da juventude contra as péssimas condições de vida da população polarizou a luta de classes entre mudança e conservação – revolução e contra-revolução. Se a esquerda não conseguir dar uma resposta ao contra-ataque das forças da reação, as mobilizações sociais podem simplesmente se exaurir sem condensar a energia política necessária para abrir novos horizontes. O desafio exige que as organizações de esquerda se unifiquem, lutem ao lado da juventude nas trincheiras avançadas do levante popular e portem a bandeira da revolução democrática – a essência do que está sendo exigido pelos manifestantes - como única alternativa à barbárie.
Leia também:
A hora e a vez da rua
Plínio de Arruda Sampaio Jr. é professor do Instituto de Economia da UNICAMP e membro do Conselho Editorial do Correio da Cidadania – www.correiocidadania.com.br
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Pensamentando
Para onde vai o mundo? Para onde queremos ir?
Escrito por José Carlos de Assis
O canto do Uirapuru
De como Simplício resolveu
entender tudo de economia
para poder mudar o mundo
Simplício era o cara mais distraído do mundo. Só se deu conta de que estava no meio da grande manifestação política em São Paulo quando uma multidão, na Avenida Paulista, começou a empurrá-lo de um lado para o outro, levantando cartazes contra aumento de ônibus e a corrupção, a favor de investimentos em saúde e educação, contra os investimentos da Copa e outras coisas mais. Simplício achou tudo muito confuso. “Política e economia é uma coisa para poucos”, pensou. “Como poderei entender disso?”.
É claro que, partindo do zero, Simplício reconheceu modestamente que deveria procurar alguma ajuda. Ouvira falar que os economistas se dividiam em duas grandes seitas, uma delas chefiada pelos neoliberais ortodoxos, que ensinavam sua doutrina como sendo o décimo primeiro mandamento, e a dos heterodoxos, mais divertidos por não se subordinarem a dogmas. Então procurou na universidade o professor Galileu, conhecido por sua infinita paciência, para que ele o ajudasse a listar algumas entrevistas esclarecedoras.
De saída, Simplício tinha um problema: ele queria aprender o máximo de economia antes das eleições para poder fazer uma boa escolha no voto. Isso significava que não haveria tempo para aprender teoria. Tinha que ser um entendimento prático. O professor Galileu, pacientemente, o tranquilizou: “boa parte da teoria econômica, e em especial aquela que se baseia em modelos matemáticos, é puro lixo. Servem apenas para justificar comportamentos ideológicos que mascaram o interesse financeiro dos poderosos. Portanto, vá em frente”.
Com a ajuda do professor Galileu, Simplício pôs na agenda vermelha alguns nomes: uma dona de casa, um capitalista produtivo, um banqueiro, um capitalista selvagem, um tecnocrata, uma artista, um trabalhador de fábrica, uma recepcionista de hotel, um especulador, um agricultor, um dono de agronegócio, um construtor; e juntou quatro conceitos: oferta, demanda, política monetária e política fiscal. “Ouvindo essas pessoas, aprendendo os quatro conceitos e fazendo uma interação entre eles, você compreenderá tudo o que é útil na economia. E isso o ajudará na escolha política”, disse Galileu.
E foi assim que Simplício começou a percorrer o Brasil em busca dos segredos da economia política mediante entrevistas com os que a fazem, ou que pensam fazê-la, ou que a fazem sem pensar.
José Carlos de Assis é economista, engenheiro e professor da Universidade Federal da Paraíba.
Para ajudar o Correio da Cidadania e a construção da mídia independente
Escrito por José Carlos de Assis
O canto do Uirapuru
De como Simplício resolveu
entender tudo de economia
para poder mudar o mundo
Simplício era o cara mais distraído do mundo. Só se deu conta de que estava no meio da grande manifestação política em São Paulo quando uma multidão, na Avenida Paulista, começou a empurrá-lo de um lado para o outro, levantando cartazes contra aumento de ônibus e a corrupção, a favor de investimentos em saúde e educação, contra os investimentos da Copa e outras coisas mais. Simplício achou tudo muito confuso. “Política e economia é uma coisa para poucos”, pensou. “Como poderei entender disso?”.
É claro que, partindo do zero, Simplício reconheceu modestamente que deveria procurar alguma ajuda. Ouvira falar que os economistas se dividiam em duas grandes seitas, uma delas chefiada pelos neoliberais ortodoxos, que ensinavam sua doutrina como sendo o décimo primeiro mandamento, e a dos heterodoxos, mais divertidos por não se subordinarem a dogmas. Então procurou na universidade o professor Galileu, conhecido por sua infinita paciência, para que ele o ajudasse a listar algumas entrevistas esclarecedoras.
De saída, Simplício tinha um problema: ele queria aprender o máximo de economia antes das eleições para poder fazer uma boa escolha no voto. Isso significava que não haveria tempo para aprender teoria. Tinha que ser um entendimento prático. O professor Galileu, pacientemente, o tranquilizou: “boa parte da teoria econômica, e em especial aquela que se baseia em modelos matemáticos, é puro lixo. Servem apenas para justificar comportamentos ideológicos que mascaram o interesse financeiro dos poderosos. Portanto, vá em frente”.
Com a ajuda do professor Galileu, Simplício pôs na agenda vermelha alguns nomes: uma dona de casa, um capitalista produtivo, um banqueiro, um capitalista selvagem, um tecnocrata, uma artista, um trabalhador de fábrica, uma recepcionista de hotel, um especulador, um agricultor, um dono de agronegócio, um construtor; e juntou quatro conceitos: oferta, demanda, política monetária e política fiscal. “Ouvindo essas pessoas, aprendendo os quatro conceitos e fazendo uma interação entre eles, você compreenderá tudo o que é útil na economia. E isso o ajudará na escolha política”, disse Galileu.
E foi assim que Simplício começou a percorrer o Brasil em busca dos segredos da economia política mediante entrevistas com os que a fazem, ou que pensam fazê-la, ou que a fazem sem pensar.
José Carlos de Assis é economista, engenheiro e professor da Universidade Federal da Paraíba.
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A pedagogia do medo
A pedagogia do medo na formação dos padres
José Lisboa Moreira de Oliveira
Adital
O que vou narrar inicialmente não aconteceu na Idade Média e nem na primeira metade do século passado, antes da realização do Concílio Vaticano II. Aconteceu há poucas semanas atrás, em pleno século XXI, no ano da graça do Senhor de 2013.
Um seminarista, meu conhecido, pediu-me para ser seu amigo no Facebook. Como eu o conhecia, não tive problemas para adicioná-lo. Desde então comecei a receber mensagens dele. Logo notei a pobreza de tais mensagens ou, pior dizendo, o monte de baboseiras que era postado porele, que dizia estar cursando o segundo ano de teologia. Comecei, então, a fazer alguns comentários ao que ele postava. Na última postagem o seminarista colocou uma charge com a qual justificava a necessidade(notem bem o vocábulo!) do uso da batina. Na charge um padre, estando num lugar, sem batina, vestido como o comum dos mortais, recebia uma bela cantada de uma mulher.
Percebendo o absurdo, fiz um comentário no qual chamava a atenção para algumas coisas. Antes de tudo a presença da pedagogia do medo da mulher. Dizia para o seminarista que esse medo denotava insegurança vocacional e de identidade. Em segundo lugar, mostrava que tal posição estava carregada de preconceito contra a mulher, vista como a sedutora, aquela que induz ao "pecado da carne”. Além disso, mostrei-lhe que, pela minha experiência de mais de quarenta anos de convivência direta com os eclesiásticos, nem sempre é a mulher que seduz o padre. Na maioria absoluta dos casos são padres, afetivamente carentes e psicologicamente despreparados, os sedutores das mulheres. São constantes, ainda hoje, os casos de padres que engravidam mulheres e que, inclusive, as forçam a praticar o aborto. Na Itália existe uma ONG que cuida de filhos abandonados de padres. Por fim, lembrava ao ilustre seminarista queencontrei em vários seminários casos escabrosos que aconteciam na calada da noite, apesar do uso frequente da batina. Casos de pedofilia, de casais "estáveis” de seminaristas homossexuais, os quais eram defensores ferrenhos do celibato e do uso da batina até para dormir. Concluía, então, meu comentário dizendo que a batina, por si só, não funciona, se faltar ao seminarista e ao padre aquela maturidade psico-afetiva-sexual da qual tanto falam os documentos da Igreja sobre a formação dos presbíteros. O resultado do meu comentário você já deve ter deduzido: o seminarista me excluiu da sua lista de amigos no Facebook.
O caso me fez refletir sobre o que estaria acontecendo com a formação dos padres. O que leva um seminarista do segundo ano de teologia a ter uma visão tão desequilibrada e tão medrosa do celibato? E não tive alternativa a não ser me convencer, mais uma vez, de que a maioria absoluta dos seminaristas não está sendo preparada para encarar o celibato com naturalidade. E isso por uma simples razão: a maioria absoluta deles não é portadora desse dom do Espírito. Fingem tê-lo e os formadores e bispos, mais preocupados com a quantidade do que com a qualidade, continuam fazendo de conta que não estão vendo nada. Insistem em manter a lei obrigatória do celibato, mas se recusam a afastar do ministério presbiteral todos aqueles que não são portadores desse carisma. Toda opção tem consequências sérias. E a principal consequência séria da opção da hierarquia pelo celibato obrigatório é, sem dúvida alguma, a exclusão (esta é a palavra exata), através de um bom discernimento, de todos aqueles que não possuem este dom. E tal exclusão precisa ser realizada antes de tudo para o bem dos próprios seminaristas e depois para o bem da Igreja.
E ao dizer que estou convencido de que a maioria dos seminaristas não possui o dom do celibato, estou falando a partir de experiências concretas. Várias vezes, em diversos momentos e lugares, numa simples conversa, aberta e franca, aquela do tipo "olho no olho”, isso ficou muito claro para mim. Eles não conseguem esconder seus disfarces. É claro que os seminaristas não são culpados disso. A responsabilidade é da hierarquia da Igreja que insiste em fazer de conta que tudo vai muito bem; uma hierarquia que não é capaz de ler os sinais dos tempos e repensar a questão do celibato obrigatório.
De tudo isso, podemos deduzir duas consequências. A primeira é de termos padres distantes das pessoas; padres que colocam barreiras, como a batina, para não se aproximarem do povo e para que o povo não se aproxime deles. Padres que, diferentemente de Jesus, não se misturam com as pessoas, não assumem "em tudo a condição humana” (Hb 4,15). Padres incapazes de compaixão e de misericórdia porque não vivem como vive o povo, especialmente como vivem aquelas pessoas prostradas e abatidas, sem consolação, sem esperança, sem vida e para as quais eles deveriam ter um carinho especial (Mt 9,36). Por mais que se esforcem, estarão sempre distantes, uma vez que não há como ser próximo quando se usa de artimanhas para "passar adiante, pelo outro lado” (Lc 10,31-32), longe de quem está caído. Enquanto o Concílio Vaticano II pedia aos padres para mergulharem profundamente na vida do povo, convivendo com todas as pessoas (PO,6), a formação dada nos seminários, verdadeiros "redomas de vidro”, distancia o pastor das ovelhas.
A outra consequência grave é a constatação de uma profunda fragilidade desses futuros padres. A necessidade de usar escudos de proteção, como a batina, revela uma personalidade doente, imatura, carente e psicologicamente enfraquecida. Não se trata de pensar nos padres como super-heróis, mas de ajudá-los a serem, o quanto possível, pessoas normais, sem grandes amarras e humanamente acessíveis. Como podem padres assim ser sinais sacramentais do Cristo Pastor se são incapazes de "dar a vida” (Jo 10,11) pelas pessoas? Porque o dar a vida não se reduz ao martírio, mas implica um gastar-se, um consumir-se pela humanidade (Mc 6,31). E só é possível doar-se totalmente quando não se possui nenhum tipo de "reserva”, nenhum tipo de amarra, nenhum tipo de medo da outra pessoa (Mc 2,15-17).
Estudos sérios afirmam que o homem sempre teve medo da mulher inclusive do ponto de vista sexual. Giacomo Dacquino em sua obra Viver o prazer (Paulinas, 1992) chama a atenção para este aspecto, lembrando que esse medo se exasperou nas últimas décadas em razão da progressiva emancipação da mulher. Dacquino lembra que medos cultivados em relação à mulher podem revelar que o homem não superou o complexo de Édipo, mantendo certo vínculo edípico com a mãe e rejeitando a heterossexualidade, ou seja, qualquer relação ou aproximação afetiva com as outras mulheres (pp. 147-150).
O Concílio Vaticano II, no documento sobre a vida e o ministério dos presbíteros, afirmou que a missão do padre é ajudar as pessoas a conseguirem a maturidade cristã. Diz, sem meios-termos, que de nada adiantam cerimônias bonitas, "rebanhões”, procissões, curas, movimentos eclesiais florescentes se os cristãos e as cristãs não atingem a maturidade na fé. E para realizar essa tarefa os padres devem acolher todas as pessoas: jovens, casais, famílias etc. (PO, 6). O documento conciliar sobre a formação dos padres chega a dizer que para cumprirem fielmente essa missão os seminaristas devem ser educados sobre o valor e a dignidade do casamento e sobre o que significa realmente a renúncia ao matrimônio, a qual não é renúncia ao amor (OT, 10).
Causa, pois, enorme espanto que, cinquenta anos depois, ainda se dê uma formação que estimula o medo e o cultivo de barreiras na relação dos padres com as pessoas. Nico Dal Molin, em seu belíssimo livro sobre o amadurecimento psicoafetivo, intitulado Itinerário para o Amor (Paulinas, 1996), afirma que o amor maduro tem a coragem de derrubar barreiras, uma vez que as barreiras impedem a transparência e distorcem o modo de viver o amor (pp. 144-162). O amor, como sabemos, é o distintivo por excelência do discípulo e da discípula de Jesus (Jo 13,34-35). E "no amor não existe medo; pelo contrário o amor perfeito lança fora o medo, porque o medo supõe castigo. Por conseguinte, quem sente medo ainda não está realizado no amor” (1Jo 4,18). Tenho pena das comunidades que irão receber esses futuros padres, modelados na "fôrma”da lei do temor e não educados na pedagogia do amor.
José Lisboa Moreira de Oliveira
Adital
O que vou narrar inicialmente não aconteceu na Idade Média e nem na primeira metade do século passado, antes da realização do Concílio Vaticano II. Aconteceu há poucas semanas atrás, em pleno século XXI, no ano da graça do Senhor de 2013.
Um seminarista, meu conhecido, pediu-me para ser seu amigo no Facebook. Como eu o conhecia, não tive problemas para adicioná-lo. Desde então comecei a receber mensagens dele. Logo notei a pobreza de tais mensagens ou, pior dizendo, o monte de baboseiras que era postado porele, que dizia estar cursando o segundo ano de teologia. Comecei, então, a fazer alguns comentários ao que ele postava. Na última postagem o seminarista colocou uma charge com a qual justificava a necessidade(notem bem o vocábulo!) do uso da batina. Na charge um padre, estando num lugar, sem batina, vestido como o comum dos mortais, recebia uma bela cantada de uma mulher.
Percebendo o absurdo, fiz um comentário no qual chamava a atenção para algumas coisas. Antes de tudo a presença da pedagogia do medo da mulher. Dizia para o seminarista que esse medo denotava insegurança vocacional e de identidade. Em segundo lugar, mostrava que tal posição estava carregada de preconceito contra a mulher, vista como a sedutora, aquela que induz ao "pecado da carne”. Além disso, mostrei-lhe que, pela minha experiência de mais de quarenta anos de convivência direta com os eclesiásticos, nem sempre é a mulher que seduz o padre. Na maioria absoluta dos casos são padres, afetivamente carentes e psicologicamente despreparados, os sedutores das mulheres. São constantes, ainda hoje, os casos de padres que engravidam mulheres e que, inclusive, as forçam a praticar o aborto. Na Itália existe uma ONG que cuida de filhos abandonados de padres. Por fim, lembrava ao ilustre seminarista queencontrei em vários seminários casos escabrosos que aconteciam na calada da noite, apesar do uso frequente da batina. Casos de pedofilia, de casais "estáveis” de seminaristas homossexuais, os quais eram defensores ferrenhos do celibato e do uso da batina até para dormir. Concluía, então, meu comentário dizendo que a batina, por si só, não funciona, se faltar ao seminarista e ao padre aquela maturidade psico-afetiva-sexual da qual tanto falam os documentos da Igreja sobre a formação dos presbíteros. O resultado do meu comentário você já deve ter deduzido: o seminarista me excluiu da sua lista de amigos no Facebook.
O caso me fez refletir sobre o que estaria acontecendo com a formação dos padres. O que leva um seminarista do segundo ano de teologia a ter uma visão tão desequilibrada e tão medrosa do celibato? E não tive alternativa a não ser me convencer, mais uma vez, de que a maioria absoluta dos seminaristas não está sendo preparada para encarar o celibato com naturalidade. E isso por uma simples razão: a maioria absoluta deles não é portadora desse dom do Espírito. Fingem tê-lo e os formadores e bispos, mais preocupados com a quantidade do que com a qualidade, continuam fazendo de conta que não estão vendo nada. Insistem em manter a lei obrigatória do celibato, mas se recusam a afastar do ministério presbiteral todos aqueles que não são portadores desse carisma. Toda opção tem consequências sérias. E a principal consequência séria da opção da hierarquia pelo celibato obrigatório é, sem dúvida alguma, a exclusão (esta é a palavra exata), através de um bom discernimento, de todos aqueles que não possuem este dom. E tal exclusão precisa ser realizada antes de tudo para o bem dos próprios seminaristas e depois para o bem da Igreja.
E ao dizer que estou convencido de que a maioria dos seminaristas não possui o dom do celibato, estou falando a partir de experiências concretas. Várias vezes, em diversos momentos e lugares, numa simples conversa, aberta e franca, aquela do tipo "olho no olho”, isso ficou muito claro para mim. Eles não conseguem esconder seus disfarces. É claro que os seminaristas não são culpados disso. A responsabilidade é da hierarquia da Igreja que insiste em fazer de conta que tudo vai muito bem; uma hierarquia que não é capaz de ler os sinais dos tempos e repensar a questão do celibato obrigatório.
De tudo isso, podemos deduzir duas consequências. A primeira é de termos padres distantes das pessoas; padres que colocam barreiras, como a batina, para não se aproximarem do povo e para que o povo não se aproxime deles. Padres que, diferentemente de Jesus, não se misturam com as pessoas, não assumem "em tudo a condição humana” (Hb 4,15). Padres incapazes de compaixão e de misericórdia porque não vivem como vive o povo, especialmente como vivem aquelas pessoas prostradas e abatidas, sem consolação, sem esperança, sem vida e para as quais eles deveriam ter um carinho especial (Mt 9,36). Por mais que se esforcem, estarão sempre distantes, uma vez que não há como ser próximo quando se usa de artimanhas para "passar adiante, pelo outro lado” (Lc 10,31-32), longe de quem está caído. Enquanto o Concílio Vaticano II pedia aos padres para mergulharem profundamente na vida do povo, convivendo com todas as pessoas (PO,6), a formação dada nos seminários, verdadeiros "redomas de vidro”, distancia o pastor das ovelhas.
A outra consequência grave é a constatação de uma profunda fragilidade desses futuros padres. A necessidade de usar escudos de proteção, como a batina, revela uma personalidade doente, imatura, carente e psicologicamente enfraquecida. Não se trata de pensar nos padres como super-heróis, mas de ajudá-los a serem, o quanto possível, pessoas normais, sem grandes amarras e humanamente acessíveis. Como podem padres assim ser sinais sacramentais do Cristo Pastor se são incapazes de "dar a vida” (Jo 10,11) pelas pessoas? Porque o dar a vida não se reduz ao martírio, mas implica um gastar-se, um consumir-se pela humanidade (Mc 6,31). E só é possível doar-se totalmente quando não se possui nenhum tipo de "reserva”, nenhum tipo de amarra, nenhum tipo de medo da outra pessoa (Mc 2,15-17).
Estudos sérios afirmam que o homem sempre teve medo da mulher inclusive do ponto de vista sexual. Giacomo Dacquino em sua obra Viver o prazer (Paulinas, 1992) chama a atenção para este aspecto, lembrando que esse medo se exasperou nas últimas décadas em razão da progressiva emancipação da mulher. Dacquino lembra que medos cultivados em relação à mulher podem revelar que o homem não superou o complexo de Édipo, mantendo certo vínculo edípico com a mãe e rejeitando a heterossexualidade, ou seja, qualquer relação ou aproximação afetiva com as outras mulheres (pp. 147-150).
O Concílio Vaticano II, no documento sobre a vida e o ministério dos presbíteros, afirmou que a missão do padre é ajudar as pessoas a conseguirem a maturidade cristã. Diz, sem meios-termos, que de nada adiantam cerimônias bonitas, "rebanhões”, procissões, curas, movimentos eclesiais florescentes se os cristãos e as cristãs não atingem a maturidade na fé. E para realizar essa tarefa os padres devem acolher todas as pessoas: jovens, casais, famílias etc. (PO, 6). O documento conciliar sobre a formação dos padres chega a dizer que para cumprirem fielmente essa missão os seminaristas devem ser educados sobre o valor e a dignidade do casamento e sobre o que significa realmente a renúncia ao matrimônio, a qual não é renúncia ao amor (OT, 10).
Causa, pois, enorme espanto que, cinquenta anos depois, ainda se dê uma formação que estimula o medo e o cultivo de barreiras na relação dos padres com as pessoas. Nico Dal Molin, em seu belíssimo livro sobre o amadurecimento psicoafetivo, intitulado Itinerário para o Amor (Paulinas, 1996), afirma que o amor maduro tem a coragem de derrubar barreiras, uma vez que as barreiras impedem a transparência e distorcem o modo de viver o amor (pp. 144-162). O amor, como sabemos, é o distintivo por excelência do discípulo e da discípula de Jesus (Jo 13,34-35). E "no amor não existe medo; pelo contrário o amor perfeito lança fora o medo, porque o medo supõe castigo. Por conseguinte, quem sente medo ainda não está realizado no amor” (1Jo 4,18). Tenho pena das comunidades que irão receber esses futuros padres, modelados na "fôrma”da lei do temor e não educados na pedagogia do amor.
Loiras
De loiras, mulatas e negras
.
Por Jorge Pinheiro, de São Paulo
A marcha das mulheres explodiu estereótipos, mitos sexuais, definiu novos comportamentos e construiu cosmovisões. Essa é a mulher deste século XXI. Dilma Rousseff faz parte dessa história.
Colagem de Luiz Rosemberg Filho
A eleição da presidenta Dilma Roussef me levou ao passado. Ao início da alta-modernidade, expressão que prefiro ao invés de pós-modernidade, porque apesar das revoluções vividas ainda não fomos além da modernidade. E por causa da eleição da presidenta, resolvi fazer uma viagem às três últimas décadas do século XX, tempo do movimento da contracultura feminina, definidor de comportamentos e cosmovisões. E parto daí, porque foi em 1975 que a ONU instituiu o Ano Internacional da Mulher, dando força a grupos e publicações feministas, que discutiam o papel secundário que era atribuído à mulher na sociedade.
Foi a acumulação, expressão daquilo que despontava no campo de gênero, que nos deu o novo. Foi época do fazer e pensar o movimento de mulheres, agregando a participação de diferentes setores sociais, trabalhadoras da cidade, e depois do campo, intelectuais, negras, ecologistas, portadoras de deficiência, lésbicas, lideranças comunitárias e donas de casa.
E eu lembrei das loiras, mulatas e negras, que durante a ditadura militar estavam reunidas em torno da luta pela volta da democracia, por melhores condições de vida e pela alteração da condição desigual das mulheres.
Teresinha de Jesus/ Deu a queda foi ao chão/ Acudiram três cavaleiros/ Todos três, chapéu na mão.
Uma das maneiras de se conhecer as representações que a sociedade tem da mulher, disse Rose Marie Muraro, é a análise de seus mitos sexuais. E, se quisermos compreender os mitos sexuais brasileiros, vale a pena compará-los com os de outras sociedades, como a estadunidense. Afirmava Muraro: “Quando falamos de mitos sexuais brasileiros, dois nomes nos vêm à memória: Xuxa e Vera Fischer. Xuxa, mais do que qualquer outro símbolo sexual no Brasil é a megastar no sentido americano do termo. Construiu uma imensa fortuna em cima de um império baseado no consumo de sua imagem pelas crianças brasileiras.”
E analisava tal imagem, elaborada pela TV Globo, a da boneca loura, infantil e erótica. Uma imagem que para as meninas era o modelo de feminilidade disponível e que não deixava lugar para outra alternativa, pois ocupou por anos, o espaço matinal de entretenimento nas casas brasileiras.
E como essa imagem da Xuxa (Santa Rosa, 27/03/1963) não foi construída para agradar somente às crianças, mas para ser modelo de sexualidade feminina, o fenômeno criou vetores. Os meninos ao desejá-la procuravam parecer homens maduros, absorvendo a mensagem de que a sexualidade precoce é o caminho para a masculinidade.
Se juntarmos essa imagem à de Vera Fischer (Blumenau, 27/11/1951), também loura, mas de apelo sexual adulto, podemos ver como definições começaram a ser construídas.
Ambas eram louras e, no Brasil, isso lembrava as atrizes do cinema estadunidense. E as consequências para a mulher brasileira passaram a ser muito ruins. Quase nenhuma brasileira da época tinha condições para se identificar com essas modelos e isso rebaixou a autoestima, diminuindo no imaginário seu valor no mercado sexual. Aliás, segundo Muraro, os símbolos sexuais são feitos para isso mesmo, para diminuir o valor das mulheres como mercadoria e manter intacta a dominação masculina.
Outro ponto importante na construção desse imaginário feminino era a obsessão pela juventude. Xuxa tinha pavor de envelhecer e Vera Fischer também. Esta última procurou formas perigosas de escape, quando acreditou que a juventude ia declinando. Aliás, depois dos quarenta as mulheres começavam a se sentir inseguras, porque o símbolo sexual é sempre um objeto descartável, sem vida e sem identidade.
O primeiro foi seu pai/ O segundo seu irmão/ O terceiro foi aquele que a/ Teresa deu a mão
Por isso, Xuxa, em entrevista a Regina Rito, disse que “nenhum fã perdoa quando um ídolo envelhece”. Ela tinha começado sua carreira na televisão em 1983, quando foi convidada por Maurício Sherman para apresentar o Clube da Criança, na Rede Manchete. Nessa época, trabalhava como modelo em Nova York e gravava o Clube nos finais de semana. Em 1986 estreou o primeiro programa diário com seu nome: O Xou da Xuxa, na Rede Globo.
É bom lembrar que as mulheres que se tornaram símbolos sexuais, pin-ups, dificilmente aceitavam retornar ao status de ser humano. Jean Harlow (Kansas City, 03/03/1911), Judy Garland (Grand Rapids, Minnesota, 10/06/1922), Marilyn Monroe (Los Angeles, 01/06/1926), por exemplo, acabaram morrendo nessa busca tresloucada de meios de escape à depressão causada pelo envelhecimento.
Assim, o culto da adolescência e da juventude teve papel relevante na manutenção do status quo, ou seja, do controle da experiência e do conhecimento acumulados pelas mulheres mais maduras.
E esse movimento contrarrevolucionário à emancipação feminina foi tão forte e racista que, nesses anos, quase não encontramos mulheres mulatas e negras que tivessem conquistado status de símbolo sexual. As mulatas das escolas de samba, ou mesmo Taís Araújo (Rio de Janeiro, 25/11/1978), a Xica da Silva, eram símbolos de menor força para o marketing padronizado pela mídia.
Diferente desse panorama era o que começava a acontecer nos Estados Unidos. Lá, Madonna (Bay City, 16/08/1958) criou a imagem de transgressora dos valores puritanos e de independência em relação aos desejos masculinos, que ela manipulou publicamente sem inibição. E num ritmo acelerado, tão famosas quanto Madonna despontaram duas jovens negras: a cantora e atriz Whitney Houston (Newark, 09/08/1963) e a modelo Naomi Campbell (Londres, 22/05/1970), que fez par com a loura Cláudia Schiffer (Rheinberg, Nordrhein-Westfalen, 25/08/1970) .
Quanta laranja madura/ Quanto limão pelo chão/ Quanto sangue derramado/ Dentro do meu coração.
Assim, nos Estados Unidos foram sendo criadas alternativas de identificação feminina, com identidade própria, que rompiam os padrões patriarcais de beleza e moralidade. Esse fenômeno, em relação à mulher negra, era previsível, pois os negros emergiam como nova classe média, apesar de, na época, 25% dos homens negros acabarem presos ou assassinados, vítimas do racismo. Ainda assim, o povo negro começava a impor valores por meio da luta por direitos civis, mas também por sua potencialidade de consumo.
E as mulheres norte-americanas exerceram pressão sobre as estruturas. Em poucos anos abraçaram a causa da liberdade feminina, como forma de enfrentar a competição do mercado de trabalho. Nas universidades surgiram centenas de centros de estudos da mulher, que fizeram das questões de gênero categorias do debate teórico acadêmico. Ocuparam espaços políticos, foram eleitas para governadoras de Estado, prefeitas, e escolhidas como secretárias de Fazenda e, inclusive, secretária de Estado.
E no Brasil, derrubada a ditadura, a pressão por espaço político também cresceu. Surgiram os conselhos estaduais e municipais da condição feminina e, em 1985, o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres, que elaborou ações de governo em relação às mulheres.
Nas eleições de 1986, 26 mulheres foram eleitas para a Assembléia Nacional Constituinte. E, independentes de seus partidos, encaminharam propostas vindas das mulheres de todo o país para inclusão ou alteração do texto constitucional. Dessa maneira, 85% das reivindicações apresentadas pelo movimento de mulheres entraram na Constituição de 1988, ampliando como nunca antes se vira a cidadania feminina.
E, em 1996, realizou-se no Brasil uma eleição que incluiu o princípio de quotas, a fim de neutralizar a discriminação sofrida pelas mulheres nos partidos. Dessa forma, foi definido o mínimo de 20% das vagas de cada partido para candidatas mulheres.
Essa marcha explodiu estereótipos e mitos sexuais. A mulher definiu comportamentos e construiu cosmovisões. Essa é a mulher deste século XXI. Dilma Rousseff faz parte dessa história.
Dá laranja quero um gomo/ Do limão quero um pedaço/ Da menina mais bonita/ Quero um beijo e um abraço.
Fonte: ViaPolítica/O autor
Fontes
José Agripino de Paula, Lugar Público, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965.
Sérgio Sant’Anna, A Utopia de José Agripino, Folha de S. Paulo, 23/02/1997, caderno Mais.
Terra em Transe, direção de Glauber Rocha, com Jardel Filho, Paulo Autran e José Lewgoy no elenco. O filme recebeu dois prêmios no Festival de Cannes, o da Crítica Internacional e o Buñuel.
Rose Marie Muraro, A Mulher Combate Seus Mitos, Folha de S. Paulo, 6/04/1997, caderno Mais.
Jorge Pinheiro é cientista da religião e teólogo. É doutor e mestre pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Metodista de São Paulo. Pastor adjunto na Igreja Batista em Perdizes (SP). Nasceu no Rio de Janeiro, em 1945, foi dirigente estudantil secundarista e universitário. Ligou-se ao Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), de inspiração brizolista. Exilou-se no Chile, onde foi preso após a queda do governo de Salvador Allende. Ligou-se às correntes trotskistas internacionais, viveu em Portugal e, clandestinamente, no Brasil, sob a ditadura. Foi processado pelo regime militar e, em 1979, beneficiado pela Lei da Anistia. Exerceu o jornalismo na revista Manchete e no jornal Folha de S. Paulo, e foi um dos editores do jornal alternativo Versus, em sua última etapa, em São Paulo.
E-mail: jorgepinheiro.sanctus@gmail.com
Blog: http://jorgepinheirosanctus.blogspot.com/
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Por Jorge Pinheiro, de São Paulo
A marcha das mulheres explodiu estereótipos, mitos sexuais, definiu novos comportamentos e construiu cosmovisões. Essa é a mulher deste século XXI. Dilma Rousseff faz parte dessa história.
Colagem de Luiz Rosemberg Filho
A eleição da presidenta Dilma Roussef me levou ao passado. Ao início da alta-modernidade, expressão que prefiro ao invés de pós-modernidade, porque apesar das revoluções vividas ainda não fomos além da modernidade. E por causa da eleição da presidenta, resolvi fazer uma viagem às três últimas décadas do século XX, tempo do movimento da contracultura feminina, definidor de comportamentos e cosmovisões. E parto daí, porque foi em 1975 que a ONU instituiu o Ano Internacional da Mulher, dando força a grupos e publicações feministas, que discutiam o papel secundário que era atribuído à mulher na sociedade.
Foi a acumulação, expressão daquilo que despontava no campo de gênero, que nos deu o novo. Foi época do fazer e pensar o movimento de mulheres, agregando a participação de diferentes setores sociais, trabalhadoras da cidade, e depois do campo, intelectuais, negras, ecologistas, portadoras de deficiência, lésbicas, lideranças comunitárias e donas de casa.
E eu lembrei das loiras, mulatas e negras, que durante a ditadura militar estavam reunidas em torno da luta pela volta da democracia, por melhores condições de vida e pela alteração da condição desigual das mulheres.
Teresinha de Jesus/ Deu a queda foi ao chão/ Acudiram três cavaleiros/ Todos três, chapéu na mão.
Uma das maneiras de se conhecer as representações que a sociedade tem da mulher, disse Rose Marie Muraro, é a análise de seus mitos sexuais. E, se quisermos compreender os mitos sexuais brasileiros, vale a pena compará-los com os de outras sociedades, como a estadunidense. Afirmava Muraro: “Quando falamos de mitos sexuais brasileiros, dois nomes nos vêm à memória: Xuxa e Vera Fischer. Xuxa, mais do que qualquer outro símbolo sexual no Brasil é a megastar no sentido americano do termo. Construiu uma imensa fortuna em cima de um império baseado no consumo de sua imagem pelas crianças brasileiras.”
E analisava tal imagem, elaborada pela TV Globo, a da boneca loura, infantil e erótica. Uma imagem que para as meninas era o modelo de feminilidade disponível e que não deixava lugar para outra alternativa, pois ocupou por anos, o espaço matinal de entretenimento nas casas brasileiras.
E como essa imagem da Xuxa (Santa Rosa, 27/03/1963) não foi construída para agradar somente às crianças, mas para ser modelo de sexualidade feminina, o fenômeno criou vetores. Os meninos ao desejá-la procuravam parecer homens maduros, absorvendo a mensagem de que a sexualidade precoce é o caminho para a masculinidade.
Se juntarmos essa imagem à de Vera Fischer (Blumenau, 27/11/1951), também loura, mas de apelo sexual adulto, podemos ver como definições começaram a ser construídas.
Ambas eram louras e, no Brasil, isso lembrava as atrizes do cinema estadunidense. E as consequências para a mulher brasileira passaram a ser muito ruins. Quase nenhuma brasileira da época tinha condições para se identificar com essas modelos e isso rebaixou a autoestima, diminuindo no imaginário seu valor no mercado sexual. Aliás, segundo Muraro, os símbolos sexuais são feitos para isso mesmo, para diminuir o valor das mulheres como mercadoria e manter intacta a dominação masculina.
Outro ponto importante na construção desse imaginário feminino era a obsessão pela juventude. Xuxa tinha pavor de envelhecer e Vera Fischer também. Esta última procurou formas perigosas de escape, quando acreditou que a juventude ia declinando. Aliás, depois dos quarenta as mulheres começavam a se sentir inseguras, porque o símbolo sexual é sempre um objeto descartável, sem vida e sem identidade.
O primeiro foi seu pai/ O segundo seu irmão/ O terceiro foi aquele que a/ Teresa deu a mão
Por isso, Xuxa, em entrevista a Regina Rito, disse que “nenhum fã perdoa quando um ídolo envelhece”. Ela tinha começado sua carreira na televisão em 1983, quando foi convidada por Maurício Sherman para apresentar o Clube da Criança, na Rede Manchete. Nessa época, trabalhava como modelo em Nova York e gravava o Clube nos finais de semana. Em 1986 estreou o primeiro programa diário com seu nome: O Xou da Xuxa, na Rede Globo.
É bom lembrar que as mulheres que se tornaram símbolos sexuais, pin-ups, dificilmente aceitavam retornar ao status de ser humano. Jean Harlow (Kansas City, 03/03/1911), Judy Garland (Grand Rapids, Minnesota, 10/06/1922), Marilyn Monroe (Los Angeles, 01/06/1926), por exemplo, acabaram morrendo nessa busca tresloucada de meios de escape à depressão causada pelo envelhecimento.
Assim, o culto da adolescência e da juventude teve papel relevante na manutenção do status quo, ou seja, do controle da experiência e do conhecimento acumulados pelas mulheres mais maduras.
E esse movimento contrarrevolucionário à emancipação feminina foi tão forte e racista que, nesses anos, quase não encontramos mulheres mulatas e negras que tivessem conquistado status de símbolo sexual. As mulatas das escolas de samba, ou mesmo Taís Araújo (Rio de Janeiro, 25/11/1978), a Xica da Silva, eram símbolos de menor força para o marketing padronizado pela mídia.
Diferente desse panorama era o que começava a acontecer nos Estados Unidos. Lá, Madonna (Bay City, 16/08/1958) criou a imagem de transgressora dos valores puritanos e de independência em relação aos desejos masculinos, que ela manipulou publicamente sem inibição. E num ritmo acelerado, tão famosas quanto Madonna despontaram duas jovens negras: a cantora e atriz Whitney Houston (Newark, 09/08/1963) e a modelo Naomi Campbell (Londres, 22/05/1970), que fez par com a loura Cláudia Schiffer (Rheinberg, Nordrhein-Westfalen, 25/08/1970) .
Quanta laranja madura/ Quanto limão pelo chão/ Quanto sangue derramado/ Dentro do meu coração.
Assim, nos Estados Unidos foram sendo criadas alternativas de identificação feminina, com identidade própria, que rompiam os padrões patriarcais de beleza e moralidade. Esse fenômeno, em relação à mulher negra, era previsível, pois os negros emergiam como nova classe média, apesar de, na época, 25% dos homens negros acabarem presos ou assassinados, vítimas do racismo. Ainda assim, o povo negro começava a impor valores por meio da luta por direitos civis, mas também por sua potencialidade de consumo.
E as mulheres norte-americanas exerceram pressão sobre as estruturas. Em poucos anos abraçaram a causa da liberdade feminina, como forma de enfrentar a competição do mercado de trabalho. Nas universidades surgiram centenas de centros de estudos da mulher, que fizeram das questões de gênero categorias do debate teórico acadêmico. Ocuparam espaços políticos, foram eleitas para governadoras de Estado, prefeitas, e escolhidas como secretárias de Fazenda e, inclusive, secretária de Estado.
E no Brasil, derrubada a ditadura, a pressão por espaço político também cresceu. Surgiram os conselhos estaduais e municipais da condição feminina e, em 1985, o Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres, que elaborou ações de governo em relação às mulheres.
Nas eleições de 1986, 26 mulheres foram eleitas para a Assembléia Nacional Constituinte. E, independentes de seus partidos, encaminharam propostas vindas das mulheres de todo o país para inclusão ou alteração do texto constitucional. Dessa maneira, 85% das reivindicações apresentadas pelo movimento de mulheres entraram na Constituição de 1988, ampliando como nunca antes se vira a cidadania feminina.
E, em 1996, realizou-se no Brasil uma eleição que incluiu o princípio de quotas, a fim de neutralizar a discriminação sofrida pelas mulheres nos partidos. Dessa forma, foi definido o mínimo de 20% das vagas de cada partido para candidatas mulheres.
Essa marcha explodiu estereótipos e mitos sexuais. A mulher definiu comportamentos e construiu cosmovisões. Essa é a mulher deste século XXI. Dilma Rousseff faz parte dessa história.
Dá laranja quero um gomo/ Do limão quero um pedaço/ Da menina mais bonita/ Quero um beijo e um abraço.
Fonte: ViaPolítica/O autor
Fontes
José Agripino de Paula, Lugar Público, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1965.
Sérgio Sant’Anna, A Utopia de José Agripino, Folha de S. Paulo, 23/02/1997, caderno Mais.
Terra em Transe, direção de Glauber Rocha, com Jardel Filho, Paulo Autran e José Lewgoy no elenco. O filme recebeu dois prêmios no Festival de Cannes, o da Crítica Internacional e o Buñuel.
Rose Marie Muraro, A Mulher Combate Seus Mitos, Folha de S. Paulo, 6/04/1997, caderno Mais.
Jorge Pinheiro é cientista da religião e teólogo. É doutor e mestre pelo Programa de Pós-graduação da Universidade Metodista de São Paulo. Pastor adjunto na Igreja Batista em Perdizes (SP). Nasceu no Rio de Janeiro, em 1945, foi dirigente estudantil secundarista e universitário. Ligou-se ao Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR), de inspiração brizolista. Exilou-se no Chile, onde foi preso após a queda do governo de Salvador Allende. Ligou-se às correntes trotskistas internacionais, viveu em Portugal e, clandestinamente, no Brasil, sob a ditadura. Foi processado pelo regime militar e, em 1979, beneficiado pela Lei da Anistia. Exerceu o jornalismo na revista Manchete e no jornal Folha de S. Paulo, e foi um dos editores do jornal alternativo Versus, em sua última etapa, em São Paulo.
E-mail: jorgepinheiro.sanctus@gmail.com
Blog: http://jorgepinheirosanctus.blogspot.com/
sexta-feira, 28 de junho de 2013
Manifestações
O dia 17 de junho de 2013 marca uma inflexão na conjuntura do país. Os protestos que tomam conta de vários estados constituem um dos mais ricos fenômenos da recente história brasileira. Desde as mobilizações das Diretas Já, não se via movimentação tão forte e significativa no Brasil.
Os milhões de jovens que têm dado, em maioria, o tom das movimentações começaram a atual jornada em torno à defesa da redução das tarifas de transporte e de um transporte público de qualidade. Não é, no entanto, mais novidade que tamanha explosão de descontentamento não gire em torno somente do aumento de 20 centavos na tarifa do transporte, como no caso de São Paulo. Saúde, Educação, Corrupção e Repressão são temas que, em menos de duas semanas, entraram cabalmente no campo de enfrentamentos e discussões.
Palavras de ordem como ‘Da copa abrimos mão, queremos saúde e educação’, ‘Era um país muito engraçado, não tinha escola, só tinha estádio`, dentre tantas outras, surgem como um dos elementos simbólicos que apontam para uma visão ampla da conjuntura e para o enriquecimento da pauta política. O que indica um profundo golpe nos projetos dominantes de poder de governos e partidos, aí incluídos indistintamente PSDB e PT.
O modo espontâneo com que surgiram as manifestações, com forte teor crítico quanto às esferas tradicionais de representação política, movendo-se em meio à deslegitimação da institucionalidade política, revelam, por sua vez, um profundo corte geracional das manifestações – sem vínculo com o velho, ainda que sem saber como se erigirá o novo. Aspecto que, no entanto, não deve reiterar a retórica da qual a grande mídia comercial já está se impregnando, reforçando a ideia dos movimentos ‘sem partido’, ‘sem organização’, 'contra tudo’.
Afinal, a juventude que hoje está nas ruas lutando pelos seus direitos é, antes de mais nada, fruto de um acúmulo de lutas, discussões, ideias e ideais, oriundas de gerações passadas, que se reverberam para as novas. Registre-se, ademais, que, desde o começo da gestão Dilma, vem se acumulando considerável número de greves de variadas categorias de servidores públicos. Um baixo crescimento econômico, associado a serviços públicos sofríveis e a um repique inflacionário que sacrifica especialmente as classes de baixa renda, acirram agora finalmente os ânimos, de modo a se contraporem ao descenso das lutas sociais desde o começo deste século.
O que estamos assistindo ainda está para ser entendido e merecerá reflexões. Mas é sinal de um novo tempo que se pode abrir para o povo brasileiro. É preciso agora que o conjunto de movimentos consiga unir forças para, de forma coordenada, prosseguir na conquista de vitórias imediatas. Sete metrópoles brasileiras já tiveram sucesso na redução de tarifas, o que abre caminho rumo à gratuidade do transporte coletivo, que seria a grande solução, e à consolidação de um forte e novo movimento de massas, que recoloque no horizonte a esperança de uma sociedade igualitária.
Última atualização em Quarta, 19 de Junho de 2013
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Índios
A cosmologia guarani: um discurso próprio e intransferível
Há mais de quatro décadas trabalhando com os guarani, o jesuíta Bartomeu Melià salientou que sua existência pessoal está imbricada até seus meandros pelas vivências e aprendizados com esse povo. “Fui evangelizado pelos índios”, disse à plateia que assistiu à sua conferência A cosmologia indígena e a religião cristã: encontros e desencontros, na noite de 26-10-2010, dentro da programação do XII Simpósio Internacional IHU: a experiência missioneira: território, cultura e identidade.
Melià contou que nesses 400 anos de missões, os jesuítas sempre procuraram aprender a língua do povo, do lugar para onde eram enviados. Tal aprendizado se tornava uma verdadeira paixão e, às vezes, uma obsessão. Alguns missionários chegaram mesmo a enlouquecer, tamanha a dedicação e exaustão em aprender o idioma no qual estavam inseridos. Além disso, observou, um idioma precisa ser aprendido “apalpando-o”, “cheirando-o”. A língua é a “pele do povo”, e para o missionário deve ser a pele onde irá habitar desde então. A situação torna-se problemática quando se quer aprender o idioma sem viver a sua realidade. Por isso, disse Melià, não bastava traduzir o Evangelho para o guarani, mas era fundamental aprender as particularidades desse povo. No contexto da experiência missioneira a língua serviu como ponte entre missionários e indígenas.
A cosmologia em seu sentido estrito não se efetivou no contato entre padres e índios. Os missionários daquela época não estavam em condições de compreender a palavra dos índios sobre a sua cosmologia. Ademais, praticar uma religião indígena era considerado um grave equívoco pela igreja, basta lembrar da Controvérsia dos Ritos ocorrida na China, cujo protagonista foi o missionário italiano Matteo Ricci.
Padres “xamãs”?
De acordo com Melià, os índios não temem a morte, e sim as almas saídas dos corpos. “Eles não tem medo de morrer, mas medo dos mortos”. A Terra Sem Males já era um horizonte desejado pelos guarani, e a inspiração xamânica de sua religião era evidente. Nesse momento, Melià recordou a experiência do Padre Montoya, que em 1728 fala sobre aspectos da religião indígena como a existência do Curupira e da cerimônia de nascimento, na qual o pai da criança é quem fica de resguardo após o parto, deitado na rede, e recebe os cumprimentos. Outra particularidade é a inexistência de ídolos ou sacrifícios, além da saudação lacrimosa, caracterizada por lágrimas copiosas derramadas pelos guarani quando se cumprimentavam.
Melià recordou, ainda, que entre esse povo ele foi tido como uma espécie de xamã, já que tinha “profetizado” que suas matas seriam destruídas, que era preciso cuidar delas e preservá-las. Com o passar o tempo, o homem branco tornou esse alerta uma triste verdade. O próprio padre Montoya era tido como a reencarnação de um xamã guarani, e seu nome sagrado significava Sol Resplandecente. Essa estreita imbricação entre padres e índios demonstra o quanto suas culturas e crenças se enriqueceram mutuamente. A antropofagia foi outro dos temas trazidos pelo jesuíta à conferência. “Graças a essa prática os adultos trocavam de nome e as crianças podiam receber um”.
Religião, palavra inspirada
Entretanto, o aspecto mais importante destacado por Melià foi a estreita imbricação entre religião e palavra para os guarani. A religião é inspirada na palavra, e na palavra inspirada. Considerados “finos ateístas”, os guarani não acreditavam em ídolos e compreendiam a religião como palavra inspirada, sacramentada pelo canto e pela dança. Dentro do contexto de importância da palavra, o jesuíta recordou que entre os guarani uma das saudações matinais mais comuns é perguntar “o que você viu em seus sonhos?” Segundo Melià, é através dos sonhos que vem a palavra. É através dos sonhos que essa palavra se “deposita” no ventre de uma mulher e traz a vida. Para que uma criança nasça, é preciso que ela venha em forma de palavra aos sonhos de seu pai e de sua mãe. Só aí é que acontecerá a entrada da pessoa em forma de palavra no corpo da mãe. “O guarani sabe sonhar. Sonhar é dizer palavras, e as palavras são a história do povo guarani”. Essa é uma das razões por que a escola do homem branco não ressoa positivamente entre os índios: “não pode haver um professor de palavras. As palavras se recebem”.
Finalizando sua conferência, Melià mencionou a verdadeira amizade que se formou entre inúmeros missionários jesuítas e índios. Caciques, pajés e xamãs criaram estreitos laços de afeto com os padres vindos da Europa. Nesse sentido é fundamental a escuta do Outro, o respeito por sua palavra, apontou. Uma homenagem nominal a inúmeros índios selou o agradecimento do pesquisador a tudo que aprendeu com os guarani, “autores de um discurso cosmológico próprio e instransferível”.
Melià é pesquisador do Centro de Estudos Paraguaios Antonio Guasch e do Instituto de Estudos Humanísticos e Filosóficos. Sempre se dedicou ao estudo da língua guarani e à cultura paraguaia. Doutor em Ciências Religiosas pela Universidade de Estrasburgo, conviveu com os indígenas Guarani, Kaigangue e Enawené-nawé, no Paraguai e no Brasil. É membro da Comissão Nacional de Bilinguismo, da Academia Paraguaia da Língua Espanhola e da Academia Paraguaia de História. Entre suas publicações, citamos El don, la venganza y otras formas de economía (Assunção: Cepag, 2004). Ele esteve na Unisinos em 2006, por ocasião do Seminário Internacional A globalização e os jesuítas.
Reportagem: Márcia Junges
(I.H.U.)
Há mais de quatro décadas trabalhando com os guarani, o jesuíta Bartomeu Melià salientou que sua existência pessoal está imbricada até seus meandros pelas vivências e aprendizados com esse povo. “Fui evangelizado pelos índios”, disse à plateia que assistiu à sua conferência A cosmologia indígena e a religião cristã: encontros e desencontros, na noite de 26-10-2010, dentro da programação do XII Simpósio Internacional IHU: a experiência missioneira: território, cultura e identidade.
Melià contou que nesses 400 anos de missões, os jesuítas sempre procuraram aprender a língua do povo, do lugar para onde eram enviados. Tal aprendizado se tornava uma verdadeira paixão e, às vezes, uma obsessão. Alguns missionários chegaram mesmo a enlouquecer, tamanha a dedicação e exaustão em aprender o idioma no qual estavam inseridos. Além disso, observou, um idioma precisa ser aprendido “apalpando-o”, “cheirando-o”. A língua é a “pele do povo”, e para o missionário deve ser a pele onde irá habitar desde então. A situação torna-se problemática quando se quer aprender o idioma sem viver a sua realidade. Por isso, disse Melià, não bastava traduzir o Evangelho para o guarani, mas era fundamental aprender as particularidades desse povo. No contexto da experiência missioneira a língua serviu como ponte entre missionários e indígenas.
A cosmologia em seu sentido estrito não se efetivou no contato entre padres e índios. Os missionários daquela época não estavam em condições de compreender a palavra dos índios sobre a sua cosmologia. Ademais, praticar uma religião indígena era considerado um grave equívoco pela igreja, basta lembrar da Controvérsia dos Ritos ocorrida na China, cujo protagonista foi o missionário italiano Matteo Ricci.
Padres “xamãs”?
De acordo com Melià, os índios não temem a morte, e sim as almas saídas dos corpos. “Eles não tem medo de morrer, mas medo dos mortos”. A Terra Sem Males já era um horizonte desejado pelos guarani, e a inspiração xamânica de sua religião era evidente. Nesse momento, Melià recordou a experiência do Padre Montoya, que em 1728 fala sobre aspectos da religião indígena como a existência do Curupira e da cerimônia de nascimento, na qual o pai da criança é quem fica de resguardo após o parto, deitado na rede, e recebe os cumprimentos. Outra particularidade é a inexistência de ídolos ou sacrifícios, além da saudação lacrimosa, caracterizada por lágrimas copiosas derramadas pelos guarani quando se cumprimentavam.
Melià recordou, ainda, que entre esse povo ele foi tido como uma espécie de xamã, já que tinha “profetizado” que suas matas seriam destruídas, que era preciso cuidar delas e preservá-las. Com o passar o tempo, o homem branco tornou esse alerta uma triste verdade. O próprio padre Montoya era tido como a reencarnação de um xamã guarani, e seu nome sagrado significava Sol Resplandecente. Essa estreita imbricação entre padres e índios demonstra o quanto suas culturas e crenças se enriqueceram mutuamente. A antropofagia foi outro dos temas trazidos pelo jesuíta à conferência. “Graças a essa prática os adultos trocavam de nome e as crianças podiam receber um”.
Religião, palavra inspirada
Entretanto, o aspecto mais importante destacado por Melià foi a estreita imbricação entre religião e palavra para os guarani. A religião é inspirada na palavra, e na palavra inspirada. Considerados “finos ateístas”, os guarani não acreditavam em ídolos e compreendiam a religião como palavra inspirada, sacramentada pelo canto e pela dança. Dentro do contexto de importância da palavra, o jesuíta recordou que entre os guarani uma das saudações matinais mais comuns é perguntar “o que você viu em seus sonhos?” Segundo Melià, é através dos sonhos que vem a palavra. É através dos sonhos que essa palavra se “deposita” no ventre de uma mulher e traz a vida. Para que uma criança nasça, é preciso que ela venha em forma de palavra aos sonhos de seu pai e de sua mãe. Só aí é que acontecerá a entrada da pessoa em forma de palavra no corpo da mãe. “O guarani sabe sonhar. Sonhar é dizer palavras, e as palavras são a história do povo guarani”. Essa é uma das razões por que a escola do homem branco não ressoa positivamente entre os índios: “não pode haver um professor de palavras. As palavras se recebem”.
Finalizando sua conferência, Melià mencionou a verdadeira amizade que se formou entre inúmeros missionários jesuítas e índios. Caciques, pajés e xamãs criaram estreitos laços de afeto com os padres vindos da Europa. Nesse sentido é fundamental a escuta do Outro, o respeito por sua palavra, apontou. Uma homenagem nominal a inúmeros índios selou o agradecimento do pesquisador a tudo que aprendeu com os guarani, “autores de um discurso cosmológico próprio e instransferível”.
Melià é pesquisador do Centro de Estudos Paraguaios Antonio Guasch e do Instituto de Estudos Humanísticos e Filosóficos. Sempre se dedicou ao estudo da língua guarani e à cultura paraguaia. Doutor em Ciências Religiosas pela Universidade de Estrasburgo, conviveu com os indígenas Guarani, Kaigangue e Enawené-nawé, no Paraguai e no Brasil. É membro da Comissão Nacional de Bilinguismo, da Academia Paraguaia da Língua Espanhola e da Academia Paraguaia de História. Entre suas publicações, citamos El don, la venganza y otras formas de economía (Assunção: Cepag, 2004). Ele esteve na Unisinos em 2006, por ocasião do Seminário Internacional A globalização e os jesuítas.
Reportagem: Márcia Junges
(I.H.U.)
Maioridade penal
[Maioridade penal] Como evitar bandidos precoces
Frei Betto
Adital
Já que o assunto é redução da maioridade penal, tenho uma sugestão que, com certeza, facilitará, e muito, a prevenção à criminalidade.
Supondo que reduzir de 18 para 16 anos é mero paliativo juridicês, tendo em vista que há assassinos com menos de 16 anos, deve-se encontrar uma solução para que, em breve, não haja nova campanha para criminalizar pivetes de 14, 12 ou 10 anos de idade. Sei inclusive de casos em que o criminoso tinha 6 e 5 anos. O que fazer?
Não sendo eu jurista, mas apenas opinista, meto a colher nesse caldeirão para sugerir que se instale uma delegacia de polícia em cada maternidade. Assim, como somos todos tratados como potenciais terroristas em aeroportos, o que obriga a nos submeter a controles eletrônicos e revistas pessoais (talvez o leitor nem desconfie que uma fivela de cinto ou um adorno de metal no sapato é capaz de derrubar um avião!), todo bebê passa a ser considerado, pela legislação vigente, um bandido em potencial.
Até os filhos de ricos?, pergunta minha tia Maroca. Até eles, tia. Não sabe a senhora que entre filhos de famílias abastadas há viciados em drogas que, fora de si, são capazes de hediondas atrocidades?
A senhora não lê jornais? (Não lê, bem sei, só se informa pela TV, que, em geral, omite crimes de gente rica). Não sabe que, infelizmente, os pobres são mantidos presos sem culpa formada e sentença decretada, enquanto os ricos criminosos contratam bons advogados que os mantêm em liberdade?
Até os bebês nascidos em berço esplêndido deveriam ser preventivamente fichados na delegacia maternal. Todo exame pré-natal seria remetido ao Instituto Médico Legal, onde se faria também, via gota de sangue, o exame genético.
Como todos sabemos, alguns fetos trazem de berço, ou melhor, de barriga, o gene da compulsividade assassina. Você, leitor, e eu, por exemplo, graças a Deus nascemos livres desse maldito gene. Nunca matamos ninguém além de baratas e aulas.
Aqueles, entretanto, que a perícia identificar dotados do referido gene (que, curiosamente, predomina entre bebês das classes desfavorecidas) seriam sumariamente abortados.
Calma, tia Maroca, calma! Nenhum problema com a Santa Madre Igreja. Ela não apregoa o pecado original, versão bíblica do gene maldito? Não defende que é preciso cortar o mal pela raiz?
Os bebês que, por acaso, lograrem nascer antes de emitido o laudo pericial, não seriam registrados em cartório, mas fichados na polícia. Não receberiam certidão de nascimento, e sim prontuário. Não iriam ao berçário, mas ao crechário, a creche do sistema penitenciário. Não teriam direito a carrinhos, e sim a gaiolas.
Tia Maroca, ao ter o privilégio de ser a primeira a conhecer minha magistral ideia, objetou se a criminalidade não seria decorrente da falta de educação, tanto na família quanto na escola, e das precárias condições sociais nas quais muitos nascem e são criados.
Nada disso, querida tia! A senhora se refere a pais desempregados ou submetidos a subempregos, que mal podem criar seus filhos? E a mão invisível do Mercado, cometeríamos o grave erro de amputá-la?
A tia argumenta que pais alcoólatras espancam suas crianças que, revoltadas, se tornam violentas. Ora, tia, como prejudicar a promissora indústria de bebidas alcoólicas, que tantos tributos pagam ao governo? Com esse moralismo inócuo?
Sim, sei que a senhora vive propalando que a maioria de nossas escolas não oferece educação de qualidade, a matricula é cara, não há aulas em tempo integral, os índices de reprovação e evasão escolares são altos.
O que espera a senhora? Que o governo gaste seu rico dinheirinho com educação? Cada família que se vire! O que seria de nossos nobres deputados, senadores, juízes, ministros, andando por aí mal vestidos, parados no ponto de ônibus à espera de condução ou espremidos no metrô, viajando por via terrestre em nossas estradas esburacadas, morando em cortiços e desprovidos de gabinetes bem equipados?
Seria uma vergonha para a nação! A falência do poder público! Imagina a cara de um político vendo a sua piscina vazia! Não combina com a beleza de uma mansão. Água em banheiro e cozinha de escola pública não faz tanta falta. É até educativa essa estiagem. Obriga a garotada a economizar água e limpar as partes pudendas com jornal velho.
Ora, não quero fugir ao tema nem aborrecer o leitor. Proponho, em resumo, que toda criança vadia seja recolhida por viaturas semelhantes às antigas carrocinhas de cachorro e tratada pelo método Lombroso. E para evitar arrastões, que haja nos restaurantes equipamentos de controle eletrônico iguais aos de aeroportos, o que impediria a entrada de armas ilegais. Os frequentadores, desde que portadores de armas legais, seriam admitidos.
(Só falta tia Maroca gritar em favor do desarmamento geral, prejudicando os robustos negócios da indústria e do comércio de armas).
Tenho dito. O feito fica por conta do poder público.
[Frei Betto é escritor, autor de "O que a vida me ensinou” (Saraiva), entre outros livros. http://www.freibetto.org- twitter:@freibetto.
Copyright 2013 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Se desejar, faça uma assinatura de todos os artigos do escritor. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)].
(Adital)
Frei Betto
Adital
Já que o assunto é redução da maioridade penal, tenho uma sugestão que, com certeza, facilitará, e muito, a prevenção à criminalidade.
Supondo que reduzir de 18 para 16 anos é mero paliativo juridicês, tendo em vista que há assassinos com menos de 16 anos, deve-se encontrar uma solução para que, em breve, não haja nova campanha para criminalizar pivetes de 14, 12 ou 10 anos de idade. Sei inclusive de casos em que o criminoso tinha 6 e 5 anos. O que fazer?
Não sendo eu jurista, mas apenas opinista, meto a colher nesse caldeirão para sugerir que se instale uma delegacia de polícia em cada maternidade. Assim, como somos todos tratados como potenciais terroristas em aeroportos, o que obriga a nos submeter a controles eletrônicos e revistas pessoais (talvez o leitor nem desconfie que uma fivela de cinto ou um adorno de metal no sapato é capaz de derrubar um avião!), todo bebê passa a ser considerado, pela legislação vigente, um bandido em potencial.
Até os filhos de ricos?, pergunta minha tia Maroca. Até eles, tia. Não sabe a senhora que entre filhos de famílias abastadas há viciados em drogas que, fora de si, são capazes de hediondas atrocidades?
A senhora não lê jornais? (Não lê, bem sei, só se informa pela TV, que, em geral, omite crimes de gente rica). Não sabe que, infelizmente, os pobres são mantidos presos sem culpa formada e sentença decretada, enquanto os ricos criminosos contratam bons advogados que os mantêm em liberdade?
Até os bebês nascidos em berço esplêndido deveriam ser preventivamente fichados na delegacia maternal. Todo exame pré-natal seria remetido ao Instituto Médico Legal, onde se faria também, via gota de sangue, o exame genético.
Como todos sabemos, alguns fetos trazem de berço, ou melhor, de barriga, o gene da compulsividade assassina. Você, leitor, e eu, por exemplo, graças a Deus nascemos livres desse maldito gene. Nunca matamos ninguém além de baratas e aulas.
Aqueles, entretanto, que a perícia identificar dotados do referido gene (que, curiosamente, predomina entre bebês das classes desfavorecidas) seriam sumariamente abortados.
Calma, tia Maroca, calma! Nenhum problema com a Santa Madre Igreja. Ela não apregoa o pecado original, versão bíblica do gene maldito? Não defende que é preciso cortar o mal pela raiz?
Os bebês que, por acaso, lograrem nascer antes de emitido o laudo pericial, não seriam registrados em cartório, mas fichados na polícia. Não receberiam certidão de nascimento, e sim prontuário. Não iriam ao berçário, mas ao crechário, a creche do sistema penitenciário. Não teriam direito a carrinhos, e sim a gaiolas.
Tia Maroca, ao ter o privilégio de ser a primeira a conhecer minha magistral ideia, objetou se a criminalidade não seria decorrente da falta de educação, tanto na família quanto na escola, e das precárias condições sociais nas quais muitos nascem e são criados.
Nada disso, querida tia! A senhora se refere a pais desempregados ou submetidos a subempregos, que mal podem criar seus filhos? E a mão invisível do Mercado, cometeríamos o grave erro de amputá-la?
A tia argumenta que pais alcoólatras espancam suas crianças que, revoltadas, se tornam violentas. Ora, tia, como prejudicar a promissora indústria de bebidas alcoólicas, que tantos tributos pagam ao governo? Com esse moralismo inócuo?
Sim, sei que a senhora vive propalando que a maioria de nossas escolas não oferece educação de qualidade, a matricula é cara, não há aulas em tempo integral, os índices de reprovação e evasão escolares são altos.
O que espera a senhora? Que o governo gaste seu rico dinheirinho com educação? Cada família que se vire! O que seria de nossos nobres deputados, senadores, juízes, ministros, andando por aí mal vestidos, parados no ponto de ônibus à espera de condução ou espremidos no metrô, viajando por via terrestre em nossas estradas esburacadas, morando em cortiços e desprovidos de gabinetes bem equipados?
Seria uma vergonha para a nação! A falência do poder público! Imagina a cara de um político vendo a sua piscina vazia! Não combina com a beleza de uma mansão. Água em banheiro e cozinha de escola pública não faz tanta falta. É até educativa essa estiagem. Obriga a garotada a economizar água e limpar as partes pudendas com jornal velho.
Ora, não quero fugir ao tema nem aborrecer o leitor. Proponho, em resumo, que toda criança vadia seja recolhida por viaturas semelhantes às antigas carrocinhas de cachorro e tratada pelo método Lombroso. E para evitar arrastões, que haja nos restaurantes equipamentos de controle eletrônico iguais aos de aeroportos, o que impediria a entrada de armas ilegais. Os frequentadores, desde que portadores de armas legais, seriam admitidos.
(Só falta tia Maroca gritar em favor do desarmamento geral, prejudicando os robustos negócios da indústria e do comércio de armas).
Tenho dito. O feito fica por conta do poder público.
[Frei Betto é escritor, autor de "O que a vida me ensinou” (Saraiva), entre outros livros. http://www.freibetto.org- twitter:@freibetto.
Copyright 2013 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor. Se desejar, faça uma assinatura de todos os artigos do escritor. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)].
(Adital)
EDWARD SNOWDEN
EDWARD SNOWDEN
O novo tipo de vazador da era digital
Por David Carr
Tradução: Jô Amado, edição de Leticia Nunes. Informações de David Carr [“A New Kind of Leaker for an Internet Age”, The New York Times, 11/6/13]
Com que se parece um vazador? Às vezes, as pessoas que revelam segredos ficam na sombra e deixam seus motivos, suas agendas e seus estados de espírito por conta do público.
Edward Snowden, o homem de 29 anos por trás das recentes revelações sobre vigilância de telefones e dados de computador pela Agência de Segurança Nacional, desmentiu essa história. Ele é um novo tipo de vazador da era digital: visível de imediato, tem voz e os meios de se dirigir diretamente ao público. Numa era da internet sem atritos, ele desprezou a sombra e subiu ao palco com um vídeo de uma longa entrevistaque concedeu ao jornal britânico The Guardian – que deu o furo com a matéria baseada nas informações dele. Abordou claramente seus motivos, dizendo: “O público tem que decidir se esses programas e políticas são certos ou errados.”
Ao se identificar como o vazador, Snowden ajuda a garantir que o debate se dê num contexto público e vá além de uma investigação governamental fechada, à qual talvez se seguisse um processo. O vídeo, que pode ser visto por todo mundo, significa que ele será julgado por todos, em tempo real.
O vídeo apresenta o perfil de um homem que não era um perdedor marginal escapando de agruras em sua vida pessoal: ele largou seu emprego, bem pago, e sua vida no Havaí com a namorada, e agora está escondido num hotel em Hong Kong. À primeira vista, parece razoável e cuidadoso, o que o tornaria um alvo difícil para aqueles que procuram marginalizá-lo ou sugerem que suas preocupações são exageradas.
Acesso ao autor do vazamento
É claro que, com a visibilidade, vem o exame minucioso. Por enquanto, o vídeo e a entrevista que deu ao Guardian são o que define Edward Snowden, mas nos próximos dias, semanas e meses aprenderemos muito mais sobre sua vida pessoal e profissional e talvez surja uma narrativa mais complicada sobre seus motivos. De momento, só sabemos que ele era a fonte dos vazamentos e conhecemos sua explicação sobre por que fez o que fez. Várias pessoas interessadas passarão a trabalhar tentando fazer dele um herói ou um vilão, conforme suas agendas. E, como Snowden sabe melhor do que ninguém, quaisquer segredos que ele tenha não ficarão assim por muito tempo.
É importante ressaltar que Snowden não se limitou a despejar um monte de documentos não editados na internet, voltando em seguida para seu trabalho. Aparentemente, ele pensou bastante sobre a origem das informações e entrou em contato com Barton Gellman, dono de uma respeitável carreira como repórter de segurança nacional no Washington Post. Segundo um artigo de Gellmanpublicado na segunda-feira no Post, Snowden pediu garantias sobre o que e quando o Post iria publicar. Depois que o Post disse que não tinha como dar garantias, segundo Gellman, Snowden procurou Glenn Greenwald, do Guardian, que já cobriu questões de segurança nacional e assuntos confidenciais de maneira crônica e feroz. (Greenwald questiona essa cronologia dizendo que vem tendo contato com Snowden desde fevereiro.)
Apesar de toda a gritaria em torno do WikiLeaks e a nova era de armazenamento eletrônico de informações, nunca houve falta de material para denúncias; o que faltou foram pessoas para fazê-las. Neste caso, a internet não é apenas um repositório para material que foi vazado, mas uma maneira de mudar a dinâmica do debate para uma questão de dois sentidos na qual o público tem acesso ao autor do vazamento. O governo, tanto em suas declarações públicas quanto em suas investigações sobre os vazamentos, tentou divulgar os autores dos vazamentos como marginais com motivos infames. Ao usar a internet e falar em seu próprio nome, Snowden não permite que seja o governo a fazer sua descrição.
Visibilidade imediata e onipresente
Como denunciante que vem em sua própria defesa, Edward Snowden envolveu o público como participante no debate. As redes sociais, especialmente o Twitter, estão fervendo de comentários sobre quem ele é e o que fez. Aquilo que normalmente é um vácuo – no qual o governo caracteriza o autor do vazamento e aqueles que o ajudaram –, agora é um diálogo. O debate sobre segredos tornou-se viral e, consequentemente, é muito menos sigiloso. No passado, foram poucos os autores de vazamento que conseguiram divulgar suas mensagens ao mundo antes que o governo e o público tivessem tempo de absorver as implicações daquilo que fizeram.
Edward Snowden não é o primeiro denunciante a chamar a atenção para si. Daniel Ellsberg, a figura central dos “papéis do Pentágono” e uma das figuras históricas que Snowden apontou como precedentes, nunca escondeu quem era. Ellsberg avaliou – corretamente, como se veria depois – que seria visto como uma pessoa que agiu nos interesses mais amplos do país, mesmo denunciando seus segredos mais preciosos.
Mas a visibilidade de Snowden na era da internet é mais imediata e mais onipresente. Agora ele é a cara da oposição à coleta de informação patrocinada pelo Estado. Mesmo estando em Hong Kong, ele está por toda parte.
A era do vazador chegou
Para aqueles que simpatizam com a opinião de Snowden, a informação que ele divulgou parece ainda mais preocupante porque ele fica calmo e contido. Ele é uma pessoa de verdade, não é uma sombra, e seus argumentos, embora muito abertos ao debate, baseiam-se numa retórica cuidadosa.
A liberdade, o direito à privacidade e o debate aberto são das poucas questões que superam a ideologia numa nação muito dividida. Depois que foi divulgado que a Agência de Segurança Nacional estava apreendendo registros telefônicos, Josh Earnest, subsecretário de Imprensa da Casa Branca, disse: “O presidente considera bem-vinda uma discussão do intercâmbio entre segurança e liberdades civis.”
O debate chegou graças a Edward Snowden e começará seriamente – talvez não nos termos ou na agenda que imagina o presidente. A era do vazador como figura pública habilitada pela internet chegou.
(Observ. da Imprensa)
O novo tipo de vazador da era digital
Por David Carr
Tradução: Jô Amado, edição de Leticia Nunes. Informações de David Carr [“A New Kind of Leaker for an Internet Age”, The New York Times, 11/6/13]
Com que se parece um vazador? Às vezes, as pessoas que revelam segredos ficam na sombra e deixam seus motivos, suas agendas e seus estados de espírito por conta do público.
Edward Snowden, o homem de 29 anos por trás das recentes revelações sobre vigilância de telefones e dados de computador pela Agência de Segurança Nacional, desmentiu essa história. Ele é um novo tipo de vazador da era digital: visível de imediato, tem voz e os meios de se dirigir diretamente ao público. Numa era da internet sem atritos, ele desprezou a sombra e subiu ao palco com um vídeo de uma longa entrevistaque concedeu ao jornal britânico The Guardian – que deu o furo com a matéria baseada nas informações dele. Abordou claramente seus motivos, dizendo: “O público tem que decidir se esses programas e políticas são certos ou errados.”
Ao se identificar como o vazador, Snowden ajuda a garantir que o debate se dê num contexto público e vá além de uma investigação governamental fechada, à qual talvez se seguisse um processo. O vídeo, que pode ser visto por todo mundo, significa que ele será julgado por todos, em tempo real.
O vídeo apresenta o perfil de um homem que não era um perdedor marginal escapando de agruras em sua vida pessoal: ele largou seu emprego, bem pago, e sua vida no Havaí com a namorada, e agora está escondido num hotel em Hong Kong. À primeira vista, parece razoável e cuidadoso, o que o tornaria um alvo difícil para aqueles que procuram marginalizá-lo ou sugerem que suas preocupações são exageradas.
Acesso ao autor do vazamento
É claro que, com a visibilidade, vem o exame minucioso. Por enquanto, o vídeo e a entrevista que deu ao Guardian são o que define Edward Snowden, mas nos próximos dias, semanas e meses aprenderemos muito mais sobre sua vida pessoal e profissional e talvez surja uma narrativa mais complicada sobre seus motivos. De momento, só sabemos que ele era a fonte dos vazamentos e conhecemos sua explicação sobre por que fez o que fez. Várias pessoas interessadas passarão a trabalhar tentando fazer dele um herói ou um vilão, conforme suas agendas. E, como Snowden sabe melhor do que ninguém, quaisquer segredos que ele tenha não ficarão assim por muito tempo.
É importante ressaltar que Snowden não se limitou a despejar um monte de documentos não editados na internet, voltando em seguida para seu trabalho. Aparentemente, ele pensou bastante sobre a origem das informações e entrou em contato com Barton Gellman, dono de uma respeitável carreira como repórter de segurança nacional no Washington Post. Segundo um artigo de Gellmanpublicado na segunda-feira no Post, Snowden pediu garantias sobre o que e quando o Post iria publicar. Depois que o Post disse que não tinha como dar garantias, segundo Gellman, Snowden procurou Glenn Greenwald, do Guardian, que já cobriu questões de segurança nacional e assuntos confidenciais de maneira crônica e feroz. (Greenwald questiona essa cronologia dizendo que vem tendo contato com Snowden desde fevereiro.)
Apesar de toda a gritaria em torno do WikiLeaks e a nova era de armazenamento eletrônico de informações, nunca houve falta de material para denúncias; o que faltou foram pessoas para fazê-las. Neste caso, a internet não é apenas um repositório para material que foi vazado, mas uma maneira de mudar a dinâmica do debate para uma questão de dois sentidos na qual o público tem acesso ao autor do vazamento. O governo, tanto em suas declarações públicas quanto em suas investigações sobre os vazamentos, tentou divulgar os autores dos vazamentos como marginais com motivos infames. Ao usar a internet e falar em seu próprio nome, Snowden não permite que seja o governo a fazer sua descrição.
Visibilidade imediata e onipresente
Como denunciante que vem em sua própria defesa, Edward Snowden envolveu o público como participante no debate. As redes sociais, especialmente o Twitter, estão fervendo de comentários sobre quem ele é e o que fez. Aquilo que normalmente é um vácuo – no qual o governo caracteriza o autor do vazamento e aqueles que o ajudaram –, agora é um diálogo. O debate sobre segredos tornou-se viral e, consequentemente, é muito menos sigiloso. No passado, foram poucos os autores de vazamento que conseguiram divulgar suas mensagens ao mundo antes que o governo e o público tivessem tempo de absorver as implicações daquilo que fizeram.
Edward Snowden não é o primeiro denunciante a chamar a atenção para si. Daniel Ellsberg, a figura central dos “papéis do Pentágono” e uma das figuras históricas que Snowden apontou como precedentes, nunca escondeu quem era. Ellsberg avaliou – corretamente, como se veria depois – que seria visto como uma pessoa que agiu nos interesses mais amplos do país, mesmo denunciando seus segredos mais preciosos.
Mas a visibilidade de Snowden na era da internet é mais imediata e mais onipresente. Agora ele é a cara da oposição à coleta de informação patrocinada pelo Estado. Mesmo estando em Hong Kong, ele está por toda parte.
A era do vazador chegou
Para aqueles que simpatizam com a opinião de Snowden, a informação que ele divulgou parece ainda mais preocupante porque ele fica calmo e contido. Ele é uma pessoa de verdade, não é uma sombra, e seus argumentos, embora muito abertos ao debate, baseiam-se numa retórica cuidadosa.
A liberdade, o direito à privacidade e o debate aberto são das poucas questões que superam a ideologia numa nação muito dividida. Depois que foi divulgado que a Agência de Segurança Nacional estava apreendendo registros telefônicos, Josh Earnest, subsecretário de Imprensa da Casa Branca, disse: “O presidente considera bem-vinda uma discussão do intercâmbio entre segurança e liberdades civis.”
O debate chegou graças a Edward Snowden e começará seriamente – talvez não nos termos ou na agenda que imagina o presidente. A era do vazador como figura pública habilitada pela internet chegou.
(Observ. da Imprensa)
Lispector
Entre os cômodos mentais de Clarice Lispector
em Teatro por Márwio Câmara
“Se eu fosse eu”, dirigido por Delson Antunes, adapta o universo clariciano para o teatro com ótimas atuações e diversidade de cenários.
Eis que me veio à informação de que uma peça inspirada nas crônicas da escritora Clarice Lispector encontrava-se em cartaz num lugar chamado Casa de Leitura da Fundação Biblioteca Nacional, localizada no bairro de Laranjeiras, zona sul do Rio de Janeiro; e como um profundo admirador da escritora de A paixão segundo G.H., é claro que eu tive que conferir de perto, com curiosidade entusiasmada, a adaptação feita pelo diretor e dramaturgo Delson Antunes. Só não esperava me deparar com uma peça intimista de “altíssimo nível”, levando em consideração que a mesma tem entrada franca. Ou seja, não paguei um centavo para ir conferi-la.
Sim, Se eu fosse eu é uma peça mais do que contemplativa, porém diferente, intensa e elegante, que se passa por todos os cômodos do casarão onde a peça foi instalada. Começando pela varanda da casa, com a recepção de um mestre de cerimônias (Furi Saraiva), seguindo para o corredor, onde nos deparamos como uma senhora (Andrea Couto), prosseguindo, respectivamente, para o hall do aposento. Os cenários e figurinos nos elevam a uma atmosfera retrô em que pairam personagens vibrantes e pungentes extremados pela introspecção característica dos textos da escritora então homenageada.
O mesmo ator que introduz a peça é o mesmo que nos conduz aos demais cômodos do aposento, que me parece representar cada cômodo da mente e da alma da escritora, onde nos é apresentado personagens entregues ao drama íntimo da existência, do universo clariciano.
Logo somos levados para o segundo andar da casa, o que poderia se intitular perto do coração selvagem de Clarice. De primeira, nos deparamos com um telão onde são exibidas fotografias e fragmentos de textos assinados pela escritora, assim como um sinestésico vídeo de um mar de fundo, e ainda trechos da emblemática entrevista de Clarice Lispector, concedida para a TV Cultura, em 1977, dez meses antes de falecer.
O público é dividido em grupos, e cada qual é levado para um cômodo do segundo andar do casarão: um banheiro, um escritório e uma espécie de sala (não vou contar o que acontece em cada um dos cômodos, faz parte da surpresa). E em seguida, o público novamente é reunido e levado para um ambiente obscuro, onde a atriz Joana Medeiros entrega-se totalmente à loucura da personagem, sendo a mesma, possivelmente, a própria Clarice, dialogando sobre o mistério do Ovo e a galinha, título de uma de suas crônicas.
Em seguida, somos levados para uma sala mais iluminada, espelhada por vidros, onde a atriz Miriam Virna interpreta uma alma feminina que sente o desejo de acarinhar o todo poderoso Deus, com carinho diferente, maternal, porém, de súbito, a personagem é estilhaçada pelo alarde do horror ao se deparar com um rato morto na rua; e o sentimento maternal para com Deus, sobre esta mulher, acaba se transformando em afronta, ódio e desejo de vingança. Uma quase fiel adaptação à primorosa crônica intitulada Perdoando Deus.
“Se eu fosse eu” não economiza na produção, ao projetar na Casa de Leitura de Laranjeiras uma perturbadora e contundente experiência visual ao adaptar um conjunto de textos da escritora para a cena teatral. A peça não é apenas uma edificante homenagem a um de nossos maiores nomes da Literatura Brasileira, mas um presente para o público carioca, que tem a possibilidade de conferir algo de extrema beleza e qualidade sem pagar nada por isso.
Dirigida por Delson Antunes, a peça traz um elenco afiado de nove atores: Miriam Virna, Mariana Arôxa, Andrea Couto, Thiago Chagas, Iuri Saraiva, Adriana Bonfatti, Mariana Cortines, Joana Medeiros e Brigida Megnegatti, e uma ficha técnica extensa, resultado de um trabalho comovente e de altíssima qualidade, que está em cartaz de sexta a sábado, às 20h, na Casa de Leitura de Laranjeiras, até o dia 3 de julho.
É bom que chegue com uma ou duas horas de antecedência, já que o número de senhas é limitado (um pouco mais de trinta).
escrevo logo existo
Artigo da autoria de Márwio Câmara.
Escritor, jornalista e um apaixonado pelas artes. Escreve porque sua voz está na escrita..
Saiba como fazer parte da obvious.
em Teatro por Márwio Câmara
“Se eu fosse eu”, dirigido por Delson Antunes, adapta o universo clariciano para o teatro com ótimas atuações e diversidade de cenários.
Eis que me veio à informação de que uma peça inspirada nas crônicas da escritora Clarice Lispector encontrava-se em cartaz num lugar chamado Casa de Leitura da Fundação Biblioteca Nacional, localizada no bairro de Laranjeiras, zona sul do Rio de Janeiro; e como um profundo admirador da escritora de A paixão segundo G.H., é claro que eu tive que conferir de perto, com curiosidade entusiasmada, a adaptação feita pelo diretor e dramaturgo Delson Antunes. Só não esperava me deparar com uma peça intimista de “altíssimo nível”, levando em consideração que a mesma tem entrada franca. Ou seja, não paguei um centavo para ir conferi-la.
Sim, Se eu fosse eu é uma peça mais do que contemplativa, porém diferente, intensa e elegante, que se passa por todos os cômodos do casarão onde a peça foi instalada. Começando pela varanda da casa, com a recepção de um mestre de cerimônias (Furi Saraiva), seguindo para o corredor, onde nos deparamos como uma senhora (Andrea Couto), prosseguindo, respectivamente, para o hall do aposento. Os cenários e figurinos nos elevam a uma atmosfera retrô em que pairam personagens vibrantes e pungentes extremados pela introspecção característica dos textos da escritora então homenageada.
O mesmo ator que introduz a peça é o mesmo que nos conduz aos demais cômodos do aposento, que me parece representar cada cômodo da mente e da alma da escritora, onde nos é apresentado personagens entregues ao drama íntimo da existência, do universo clariciano.
Logo somos levados para o segundo andar da casa, o que poderia se intitular perto do coração selvagem de Clarice. De primeira, nos deparamos com um telão onde são exibidas fotografias e fragmentos de textos assinados pela escritora, assim como um sinestésico vídeo de um mar de fundo, e ainda trechos da emblemática entrevista de Clarice Lispector, concedida para a TV Cultura, em 1977, dez meses antes de falecer.
O público é dividido em grupos, e cada qual é levado para um cômodo do segundo andar do casarão: um banheiro, um escritório e uma espécie de sala (não vou contar o que acontece em cada um dos cômodos, faz parte da surpresa). E em seguida, o público novamente é reunido e levado para um ambiente obscuro, onde a atriz Joana Medeiros entrega-se totalmente à loucura da personagem, sendo a mesma, possivelmente, a própria Clarice, dialogando sobre o mistério do Ovo e a galinha, título de uma de suas crônicas.
Em seguida, somos levados para uma sala mais iluminada, espelhada por vidros, onde a atriz Miriam Virna interpreta uma alma feminina que sente o desejo de acarinhar o todo poderoso Deus, com carinho diferente, maternal, porém, de súbito, a personagem é estilhaçada pelo alarde do horror ao se deparar com um rato morto na rua; e o sentimento maternal para com Deus, sobre esta mulher, acaba se transformando em afronta, ódio e desejo de vingança. Uma quase fiel adaptação à primorosa crônica intitulada Perdoando Deus.
“Se eu fosse eu” não economiza na produção, ao projetar na Casa de Leitura de Laranjeiras uma perturbadora e contundente experiência visual ao adaptar um conjunto de textos da escritora para a cena teatral. A peça não é apenas uma edificante homenagem a um de nossos maiores nomes da Literatura Brasileira, mas um presente para o público carioca, que tem a possibilidade de conferir algo de extrema beleza e qualidade sem pagar nada por isso.
Dirigida por Delson Antunes, a peça traz um elenco afiado de nove atores: Miriam Virna, Mariana Arôxa, Andrea Couto, Thiago Chagas, Iuri Saraiva, Adriana Bonfatti, Mariana Cortines, Joana Medeiros e Brigida Megnegatti, e uma ficha técnica extensa, resultado de um trabalho comovente e de altíssima qualidade, que está em cartaz de sexta a sábado, às 20h, na Casa de Leitura de Laranjeiras, até o dia 3 de julho.
É bom que chegue com uma ou duas horas de antecedência, já que o número de senhas é limitado (um pouco mais de trinta).
escrevo logo existo
Artigo da autoria de Márwio Câmara.
Escritor, jornalista e um apaixonado pelas artes. Escreve porque sua voz está na escrita..
Saiba como fazer parte da obvious.
quinta-feira, 27 de junho de 2013
Manifestações
Geração sem medo está nascendo para o mundo
Escrito por Fabio Nassif
Desta vez deveriam ter de 15 a 20 mil pessoas na rua. Um ato que caminhava de maneira organizada até a polícia interromper e iniciar a guerra. Toda tentativa de intimidação foi simplesmente ignorada pela manifestação. Quando se tem certeza de uma luta, não se recua diante de palavras que estamos acostumados a ouvir.
Chamou a atenção a quantidade enorme de policiais infiltrados. Eram eles que jogavam fogos e sinalizadores enquanto a absoluta maioria do ato gritava “sem violência!”. Este método estatal é antigo, muito antigo, mas o Brasil permanecia fingindo que deixou de existir. Assim como o desejo de realização de uma manifestação vitoriosa acabou novamente sendo verbalizada espontaneamente pelos manifestantes, estimulados por uma preocupação coletiva em torno da nossa pauta.
Obviamente, a repressão estava decretada. Não só pela ânsia de soldados mal pagos, treinados para reprimir a qualquer custo, mas respaldado pelos governos municipal, estadual e federal. Haddad declara que não vai abaixar a tarifa e que considera as manifestações violentas. Alckmin vomita as mesmas palavras de sempre, pela punição, repressão e criminalização. E José Eduardo Cardozo, o “professor” de direito que, além de encabeçar o anúncio oficial do genocídio indígena com as mudanças no método de demarcação de terras, afirma que o governo federal está à disposição para ajudar na repressão.
A repressão foi tremenda. Aliás, por curiosidade, quanto se gasta para reprimir uma manifestação? Helicópteros, 700 soldados, balas de borracha, bombas, cavalos, combustível... Gasta-se o quanto os governantes acharem necessário para proteger o Estado. Gasta-se cotidianamente contra os pretos, pobres e periféricos. A manifestação se dispersou e se juntou mais de uma vez. Está certo, nem a polícia sabia para onde dispersar. Talvez a intenção nem fosse esta. Mas também os manifestantes não viam sentido em fazê-lo voluntariamente. Afinal, estamos certos. Agora, é hora novamente de lutarmos sem trégua pela libertação dos nossos.
Pois então. Do outro lado, até a mídia, atingida pelas balas de borracha, passa a questionar os motivos de tanta intransigência dos governos. Ora, a pauta voltou ao seu lugar! Já não é lunático pedir a revogação dos aumentos. E mais, já não é aceitável tamanha violência estatal.
Mas o emocionante nesta jornada toda, para além da gostosa e distante sensação de nos juntarmos a jovens e trabalhadores de todo o mundo que estão em luta, é saber que o Estado e a mídia burguesa estão formando uma geração de ativistas. Saber que as lutas contra o aumento ocorreram em diversas outras cidades como Porto Alegre, Natal, Maceió e Rio de Janeiro nos dá força. Saber ainda que uma manifestação foi realizada em Curitiba, simplesmente em solidariedade às demais, é arrepiante.
É muito possível revertermos o aumento. Porém, mesmo sob uma derrota triunfal, uma geração está sendo forjada pela experiência prática sobre o que é nossa democradura, a necessidade da organização coletiva e da disputa de uma sociedade inteira que, mesmo não entendendo essas cabeças juvenis, sabem que elas têm razão. Ah, e uma geração com um repúdio gigante à mídia da ordem.
No Chile, diante das massivas manifestações estudantis, diz-se que esta é uma geração sem medo, pois não viveu os tempos sombrios da ditadura oficial e tampouco está adaptada à ordem. E é a própria geração esmagada pela ditadura e depois pelo discurso neoliberal quem chega a esta conclusão, contribuindo assim para repassar o bastão da história. E isto se transforma em solidariedade, inclusive dos familiares e conhecidos dos manifestantes.
É cedo pra dizer isso do Brasil. Muito cedo. Ainda viveremos muita barbárie fruto da desigualdade social, adormecida enjoativamente pelo discurso da pátria de chuteiras e por uma sensação de estabilidade. Mas não é exagero afirmar que não somos a geração amorzinho, da conciliação de classes e da organização orquestrada pelo capital. E de repente, nos vácuos da calmaria e do senso comum, nasceremos para o mundo.
Fábio Nassif é jornalista.
Para ajudar o Correio da Cidadania e a construção da mídia independente
Escrito por Fabio Nassif
Desta vez deveriam ter de 15 a 20 mil pessoas na rua. Um ato que caminhava de maneira organizada até a polícia interromper e iniciar a guerra. Toda tentativa de intimidação foi simplesmente ignorada pela manifestação. Quando se tem certeza de uma luta, não se recua diante de palavras que estamos acostumados a ouvir.
Chamou a atenção a quantidade enorme de policiais infiltrados. Eram eles que jogavam fogos e sinalizadores enquanto a absoluta maioria do ato gritava “sem violência!”. Este método estatal é antigo, muito antigo, mas o Brasil permanecia fingindo que deixou de existir. Assim como o desejo de realização de uma manifestação vitoriosa acabou novamente sendo verbalizada espontaneamente pelos manifestantes, estimulados por uma preocupação coletiva em torno da nossa pauta.
Obviamente, a repressão estava decretada. Não só pela ânsia de soldados mal pagos, treinados para reprimir a qualquer custo, mas respaldado pelos governos municipal, estadual e federal. Haddad declara que não vai abaixar a tarifa e que considera as manifestações violentas. Alckmin vomita as mesmas palavras de sempre, pela punição, repressão e criminalização. E José Eduardo Cardozo, o “professor” de direito que, além de encabeçar o anúncio oficial do genocídio indígena com as mudanças no método de demarcação de terras, afirma que o governo federal está à disposição para ajudar na repressão.
A repressão foi tremenda. Aliás, por curiosidade, quanto se gasta para reprimir uma manifestação? Helicópteros, 700 soldados, balas de borracha, bombas, cavalos, combustível... Gasta-se o quanto os governantes acharem necessário para proteger o Estado. Gasta-se cotidianamente contra os pretos, pobres e periféricos. A manifestação se dispersou e se juntou mais de uma vez. Está certo, nem a polícia sabia para onde dispersar. Talvez a intenção nem fosse esta. Mas também os manifestantes não viam sentido em fazê-lo voluntariamente. Afinal, estamos certos. Agora, é hora novamente de lutarmos sem trégua pela libertação dos nossos.
Pois então. Do outro lado, até a mídia, atingida pelas balas de borracha, passa a questionar os motivos de tanta intransigência dos governos. Ora, a pauta voltou ao seu lugar! Já não é lunático pedir a revogação dos aumentos. E mais, já não é aceitável tamanha violência estatal.
Mas o emocionante nesta jornada toda, para além da gostosa e distante sensação de nos juntarmos a jovens e trabalhadores de todo o mundo que estão em luta, é saber que o Estado e a mídia burguesa estão formando uma geração de ativistas. Saber que as lutas contra o aumento ocorreram em diversas outras cidades como Porto Alegre, Natal, Maceió e Rio de Janeiro nos dá força. Saber ainda que uma manifestação foi realizada em Curitiba, simplesmente em solidariedade às demais, é arrepiante.
É muito possível revertermos o aumento. Porém, mesmo sob uma derrota triunfal, uma geração está sendo forjada pela experiência prática sobre o que é nossa democradura, a necessidade da organização coletiva e da disputa de uma sociedade inteira que, mesmo não entendendo essas cabeças juvenis, sabem que elas têm razão. Ah, e uma geração com um repúdio gigante à mídia da ordem.
No Chile, diante das massivas manifestações estudantis, diz-se que esta é uma geração sem medo, pois não viveu os tempos sombrios da ditadura oficial e tampouco está adaptada à ordem. E é a própria geração esmagada pela ditadura e depois pelo discurso neoliberal quem chega a esta conclusão, contribuindo assim para repassar o bastão da história. E isto se transforma em solidariedade, inclusive dos familiares e conhecidos dos manifestantes.
É cedo pra dizer isso do Brasil. Muito cedo. Ainda viveremos muita barbárie fruto da desigualdade social, adormecida enjoativamente pelo discurso da pátria de chuteiras e por uma sensação de estabilidade. Mas não é exagero afirmar que não somos a geração amorzinho, da conciliação de classes e da organização orquestrada pelo capital. E de repente, nos vácuos da calmaria e do senso comum, nasceremos para o mundo.
Fábio Nassif é jornalista.
Para ajudar o Correio da Cidadania e a construção da mídia independente
Gás Lacrimogêneo
O negócio de fazer derramar lágrimas
A desocupação do Parque Gezi, em Istambul, e a repressão no Rio de Janeiro possuem em comum a mesma coisa que a maioria das manifestações de 2013, seja pelo estupro de uma pessoa na Índia, por reivindicações estudantis, no Chile, ou trabalhistas, no México, e contra a austeridade na Europa: o gás lacrimogêneo. No orçamento da Espanha, uma das poucas exceções no corte realizado foi em relação ao material antidistúrbio.
Ao mesmo tempo em que baixou o gasto em saúde, educação e segurança social, o gasto com materiais antidistúrbios disparou de 173 mil euros para mais de 3 milhões em 2013. No Oriente Médio, a Primavera Árabe resultou num remédio para a indústria da segurança. No ano passado, o mercado da segurança interna atingiu os 6 bilhões de euros, um aumento de 18%.
É um mercado de contradições e de duplos discursos. Em um momento em que os Estados Unidos aprovaram o fornecimento de armas aos rebeldes na Síria, por terem sido atacados com armas químicas, ninguém se lembra que o gás lacrimogêneo é considerado uma arma química pela ONU e que as companhias estadunidenses são dominantes no mercado, com a crescente concorrência de empresas chinesas e da brasileira Condor Non-Lethal Technologies. O próprio Departamento de Estado defende o seu uso abertamente, dizendo que é uma arma “não letal”, que “salva vidas e protege a propriedade”. O jornal Página/12 conversou sobre o assunto com Anna Feigenbaum, que pesquisa a história política do gás lacrimogêneo, na Universidade de Bournemouth, no Reino Unido.
A entrevista é de Marcelo Justo, publicada no jornal Página/12, 19-06-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
A história do gás lacrimogêneo parece ter sido reescrita nas últimas décadas. É uma arma química ou não é? É uma arma letal ou não?
Nos protocolos de guerra da ONU, é uma arma química. O que ocorre é que ao final da Primeira Guerra Mundial vários países, em especial os Estados Unidos, embarcaram-se numa ofensiva para manter sua produção em tempos de paz. Os Estados Unidos lançaram uma estratégia específica de “marketing” com a polícia, guarda nacional e até realizando exibições especiais na Casa Branca para demonstrar sua utilidade. Assim, criaram a demanda pelo produto. Do lado da oferta, ou seja, da produção, a indústria do gás lacrimogêneo modernizou o complexo industrial-militar, que tinha começado a desenvolver em inícios do século, aceitando a cooperação entre químicos da universidade, militares, a burocracia estatal e as corporações privadas.
Porém, hoje, rebatizou-se o produto. Não se fala em “arma química” como na Primeira Guerra Mundial. Isso causaria horror. O que temos é uma arma “não letal”.
Este jogo com a linguagem aconteceu no início. Por um lado, oferecia-se o gás lacrimogêneo como uma arma multiuso, para atacar e se defender, que inicialmente teve como principal função a ruptura de greves. Ao mesmo tempo, enfatizava-se que não era “tóxica” e que não produzia nenhum dano duradouro. Foi um grande movimento de relações públicas, evidenciado por uma pesquisa em 1939.
Em que momento se “universaliza” o uso do gás lacrimogêneo, para aquilo que se chama controle das multidões?
Nos anos 1930, começa-se a exportá-lo para as colônias e países periféricos. Os Estados Unidos o utiliza nas Filipinas e no Panamá, o governo britânico na Índia. Na época, também no Oriente Médio, embora exista discordância, a esse respeito, entre os historiadores.
Nos anos 1960, era parte comum na paisagem das manifestações latino-americanas.
É uma das coisas mais perigosas que aconteceu, porque o uso de gás lacrimogêneo foi naturalizado, quando na realidade se trata de um veneno que ocasiona uma série de danos comprovados, muito mais sérios do que é admitido em nível oficial, principalmente perigoso para as pessoas que possuem problemas respiratórios, problemas epiléticos ou pessoas mais velhas. E em nível político é também muito perigoso, porque está se naturalizando um tipo de resposta repressiva sobre o direito de livre expressão e reunião.
O argumento da indústria e dos governos é o que de que este é melhor do que as armas para o controle de manifestações e distúrbios. Chamam-nas não letais e o Departamento de Estado disse que “salvam vidas”.
Na Turquia, no Egito, em Bahrein, o gás lacrimogêneo está sendo utilizado como se fosse uma arma, ou seja, é usado em lugares fechados e, às vezes, como munição que se dispara contra alguém. A ideia de que é melhor do que outras armas, como as armas de fogo, tem dois problemas básicos. Primeiro é que, do ponto de vista dos direitos civis, concebe-se que a alternativa está na arma de fogo ou no gás lacrimogêneo, ao invés de se concentrar na possibilidade da mediação, do diálogo e da solução dos problemas que motivaram o protesto. Então, a opção passa a ser: nós os metralhamos ou envenenamos com gás lacrimogêneo. O segundo problema é que o gás lacrimogêneo, normalmente, é usado junto com outras formas de controle de massas, como os carros hidrantes ou as balas de borracha. Isto faz parte de sua origem militar. Na Primeira Guerra Mundial, o gás lacrimogêneo foi pensado como um precursor para outras formas de ataque, já que obrigava os soldados a saírem de suas trincheiras e deixavam-lhes expostos a outras armas mais letais. Algo semelhante acontece nas manifestações. O gás lacrimogêneo cria caos, impede que as pessoas possam se proteger, expondo-as a outras formas de ataque.
Você tem um mapa do uso, em nível mundial, do gás lacrimogêneo, em 2013. É notável que na Europa da austeridade há vários países que o usaram, desde Alemanha e Bélgica até Espanha e Grécia.
Houve um aumento dos protestos, a partir do estouro financeiro de 2008, e outro desde que começaram as medidas de austeridade. Paralelo a isto, vimos uma resposta cada vez mais violenta ao protesto. Viu-se, neste protesto, um maior uso de gás lacrimogêneo, balas de borracha e do restante de material antidistúrbios. Também estamos vendo um novo deslizamento semântico, a partir da crescente importância da indústria antiterrorista e dos métodos para lidar com os protestos. Recentemente, uma especialista israelense em políticas policiais me disse que a tecnologia estava sendo usada contra os militantes israelenses, o mesmo tipo de treinamento e de forças utilizadas para casos de terrorismo. Trata-se do uso de táticas militares para o treinamento da polícia. Isto também faz parte da naturalização dos métodos de repressão.
(I.H.U.)
Boaventura
Com a eleição da presidente Dilma Rousseff, o Brasil queria acelerar os esforços para se tornar uma potência global. Muitas das iniciativas nessa direção vieram de trás, mas receberam um novo impulso: Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente, a Rio +20 de 2012, Copa do Mundo em 2014, Jogos Olímpicos de 2016, a luta por um assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, papel ativo no crescente protagonismo das "economias emergentes", os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), a nomeação de José Graziano da Silva como presidente da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), em 2012, e Roberto Azevedo como diretor geral da Organização Mundial do Comércio em 2013, uma política agressiva de exploração de recursos naturais, tanto no Brasil como na África, especialmente em Moçambique, a construção da grande agricultura industrial, especialmente para produção de soja, biocombustíveis e pecuária.
Beneficiado por uma boa imagem pública internacionalmente granjeada pelo presidente Lula e por suas políticas de inclusão social, este Brasil desenvolvimentista se impõe ao mundo como uma potência de novo tipo, benevolente e inclusivo.
Não poderia, portanto, ser maior a surpresa internacional ante as manifestações que na última semana levaram às ruas centenas de milhares de pessoas nas principais cidades do país.
Se, antes, nas recentes manifestações na Turquia a leitura de "duas Turquias" foi imediata, no caso do Brasil era mais difícil reconhecer a existência de "dois Brasis". Mas ele está aí, aos olhos de todos.
A dificuldade para reconhecê-lo reside na própria natureza do "outro Brasil", furtiva a análises simplistas. Esse Brasil é feito de três narrativas e temporalidades.
A primeira é a narrativa da exclusão social (um dos países mais desiguais do mundo), das oligarquias latifundiárias, do caciquismo violento, das elites políticas restritas e racistas, uma narrativa que se remonta à colônia e que se reproduziu de formas mutantes até os dias de hoje.
A segunda narrativa é a da reivindicação da democracia participativa, que se remonta aos últimos 25 anos e teve seu ponto culminante no processo Constituinte que levou à Constituição de 1988, nos pressupostos participativos sobre políticas urbanas em centenas de municípios e no impeachment do presidente Collor de Mello em 1992, na criação dos conselhos de cidadãos nas principais áreas de políticas públicas, especialmente na saúde e na educação, a diferentes níveis de ação estatal (municipal, estadual, federal).
A terceira narrativa tem apenas 10 anos de idade e trata das vastas políticas de inclusão social adotadas pelo presidente Lula da Silva, a partir de 2003, que conduziram a uma significativa redução da pobreza, à criação de uma classe média com elevada vocação consumista, ao reconhecimento da descriminação racial contra a população afrodescendente e indígena e às políticas de ação afirmativa, e ao reconhecimento de territórios e quilombolas (descendentes de escravos) e indígenas.
O que aconteceu desde que a presidenta Dilma assumiu o cargo foi a desaceleração, até mesmo a estagnação das duas últimas narrativas. E como em política não existe vazio, esse terreno baldio que deixaram foi aproveitado pela primeira e mais antiga narrativa, fortalecida sob as novas roupagens do desenvolvimento capitalista e as novas (e velhas) formas de corrupção.
As formas de democracia participativa foram cooptadas, neutralizadas no domínio das grandes infraestruturas e megaprojetos, e deixam de motivar às gerações mais jovens, órfãs de vida familiar e comunitária integradora, deslumbradas por um novo consumismo ou obcecadas por esse desejo.
As políticas de inclusão social se esgotaram e deixaram de responder às expectativas de quem se sentia merecedor de mais e melhor. A qualidade de vida urbana piorou, em nome dos eventos de prestígio internacional, que absorveram os investimentos que deviam melhorar os transportes, a educação e os serviços públicos em geral. O racismo mostrou sua persistência no tecido social e nas forças policiais. Aumentou o assassinato de líderes indígenas e camponeses, demonizados pelo poder político como "obstáculos ao crescimento", simplesmente por lutar por suas terras e formas de vida, contra o agronegócio e os megaprojetos de mineração e hidrelétricos (como Belo Monte, destinada a abastecer de energia barata a indústria extrativa).
A presidenta Dilma foi o termômetro dessa mudança insidiosa. Assumiu uma atitude de hostilidade indissimulável ante os movimentos sociais e os povos indígenas, uma mudança drástica em relação a seu antecessor. Lutou contra a corrupção, mas deixou para os aliados políticos mais conservadores as agendas que considerou menos importantes. Assim, a Comissão de Direitos Humanos, historicamente comprometida com os direitos das minorias, foi entregue a um pastor evangélico homofóbico. [Observação do Mello: essas são posições equivocadas do grande sociólogo. Em minha opinião, a comunicação errada do governo [ou a falta de comunicação, aliada à injeção de dinheiro e de incentivos à mídia corporativa que pôs o governo Dilma sob ataque, com o dinheiro do governo] não levou à população os feitos positivos e deixou correr sem resposta os ataques, nem sempre verdadeiros, que lhe foram feitos. E quanto à escolha de Marco Feliciano, foi uma decisão da Câmara dos Deputados, não da presidenta].
As atuais manifestações revelam que, longe de ter sido o país que despertou, foi a presidenta que o fez. Com os olhos postos na experiência internacional e também nas eleições presidenciais de 2014, a presidenta Dilma deixou claro que as respostas repressivas só agudizam os conflitos e isolam os governos. Nesse sentido, os prefeitos de nove capitais já decidiram baixar os preços dos transportes. É apenas um começo.
Para que seja consistente, é necessário que as duas narrativas (democracia participativa e inclusão social intercultural) retomem o dinamismo que já tiveram.
Se for assim, o Brasil mostrará ao mundo que só vale a pena pagar o preço do progresso aprofundando a democracia, redistribuindo a riqueza gerada e reconhecendo a diferença cultural e política daqueles que consideram que o progresso sem dignidade é retrocesso.
Boaventura Sousa Santos
(Blog do Mello)
Beneficiado por uma boa imagem pública internacionalmente granjeada pelo presidente Lula e por suas políticas de inclusão social, este Brasil desenvolvimentista se impõe ao mundo como uma potência de novo tipo, benevolente e inclusivo.
Não poderia, portanto, ser maior a surpresa internacional ante as manifestações que na última semana levaram às ruas centenas de milhares de pessoas nas principais cidades do país.
Se, antes, nas recentes manifestações na Turquia a leitura de "duas Turquias" foi imediata, no caso do Brasil era mais difícil reconhecer a existência de "dois Brasis". Mas ele está aí, aos olhos de todos.
A dificuldade para reconhecê-lo reside na própria natureza do "outro Brasil", furtiva a análises simplistas. Esse Brasil é feito de três narrativas e temporalidades.
A primeira é a narrativa da exclusão social (um dos países mais desiguais do mundo), das oligarquias latifundiárias, do caciquismo violento, das elites políticas restritas e racistas, uma narrativa que se remonta à colônia e que se reproduziu de formas mutantes até os dias de hoje.
A segunda narrativa é a da reivindicação da democracia participativa, que se remonta aos últimos 25 anos e teve seu ponto culminante no processo Constituinte que levou à Constituição de 1988, nos pressupostos participativos sobre políticas urbanas em centenas de municípios e no impeachment do presidente Collor de Mello em 1992, na criação dos conselhos de cidadãos nas principais áreas de políticas públicas, especialmente na saúde e na educação, a diferentes níveis de ação estatal (municipal, estadual, federal).
A terceira narrativa tem apenas 10 anos de idade e trata das vastas políticas de inclusão social adotadas pelo presidente Lula da Silva, a partir de 2003, que conduziram a uma significativa redução da pobreza, à criação de uma classe média com elevada vocação consumista, ao reconhecimento da descriminação racial contra a população afrodescendente e indígena e às políticas de ação afirmativa, e ao reconhecimento de territórios e quilombolas (descendentes de escravos) e indígenas.
O que aconteceu desde que a presidenta Dilma assumiu o cargo foi a desaceleração, até mesmo a estagnação das duas últimas narrativas. E como em política não existe vazio, esse terreno baldio que deixaram foi aproveitado pela primeira e mais antiga narrativa, fortalecida sob as novas roupagens do desenvolvimento capitalista e as novas (e velhas) formas de corrupção.
As formas de democracia participativa foram cooptadas, neutralizadas no domínio das grandes infraestruturas e megaprojetos, e deixam de motivar às gerações mais jovens, órfãs de vida familiar e comunitária integradora, deslumbradas por um novo consumismo ou obcecadas por esse desejo.
As políticas de inclusão social se esgotaram e deixaram de responder às expectativas de quem se sentia merecedor de mais e melhor. A qualidade de vida urbana piorou, em nome dos eventos de prestígio internacional, que absorveram os investimentos que deviam melhorar os transportes, a educação e os serviços públicos em geral. O racismo mostrou sua persistência no tecido social e nas forças policiais. Aumentou o assassinato de líderes indígenas e camponeses, demonizados pelo poder político como "obstáculos ao crescimento", simplesmente por lutar por suas terras e formas de vida, contra o agronegócio e os megaprojetos de mineração e hidrelétricos (como Belo Monte, destinada a abastecer de energia barata a indústria extrativa).
A presidenta Dilma foi o termômetro dessa mudança insidiosa. Assumiu uma atitude de hostilidade indissimulável ante os movimentos sociais e os povos indígenas, uma mudança drástica em relação a seu antecessor. Lutou contra a corrupção, mas deixou para os aliados políticos mais conservadores as agendas que considerou menos importantes. Assim, a Comissão de Direitos Humanos, historicamente comprometida com os direitos das minorias, foi entregue a um pastor evangélico homofóbico. [Observação do Mello: essas são posições equivocadas do grande sociólogo. Em minha opinião, a comunicação errada do governo [ou a falta de comunicação, aliada à injeção de dinheiro e de incentivos à mídia corporativa que pôs o governo Dilma sob ataque, com o dinheiro do governo] não levou à população os feitos positivos e deixou correr sem resposta os ataques, nem sempre verdadeiros, que lhe foram feitos. E quanto à escolha de Marco Feliciano, foi uma decisão da Câmara dos Deputados, não da presidenta].
As atuais manifestações revelam que, longe de ter sido o país que despertou, foi a presidenta que o fez. Com os olhos postos na experiência internacional e também nas eleições presidenciais de 2014, a presidenta Dilma deixou claro que as respostas repressivas só agudizam os conflitos e isolam os governos. Nesse sentido, os prefeitos de nove capitais já decidiram baixar os preços dos transportes. É apenas um começo.
Para que seja consistente, é necessário que as duas narrativas (democracia participativa e inclusão social intercultural) retomem o dinamismo que já tiveram.
Se for assim, o Brasil mostrará ao mundo que só vale a pena pagar o preço do progresso aprofundando a democracia, redistribuindo a riqueza gerada e reconhecendo a diferença cultural e política daqueles que consideram que o progresso sem dignidade é retrocesso.
Boaventura Sousa Santos
(Blog do Mello)
Documentos vazados
“Espero que as proezas de Snowden inspirem os quatro cantos do mundo”
Os documentos publicados pelo The Guardian e The Washington Post permitiram revelar que a NSA havia acionado um sistema de espionagem em escala mundial. Na origem deste vazamento está Edward Snowden, um novo tipo de “lançador de alerta”.
Os jornais anglo-saxões The Guardian e The Washington Post revelaram, no dia 07 de junho, que a NSA, a Agência de Segurança Nacional americana, acionou o programa PRISM, isto é, um sistema de escuta bem aperfeiçoado que permite espionar todos os intercâmbios digitais dos nove maiores atores na área da informática e da internet, entre eles o Google, Apple, Microsoft ou ainda o Facebook. Em síntese, um sistema de espionagem em escala mundial.
Essas revelações foram feitas por Edward Snowden, um americano de 29 anos, ex-funcionário da CIA. Mais próximo de Bradley Manning (soldado que está na origem da divulgação de 250.000 documentos sobre segurança nacional para o Wikileaks) e de Aaron Swartz (um cyberativista que teletransportou e disponibilizou on-line 4,8 milhões de artigos acadêmicos pagos) do que dos whistle-blowers clássicos, os “lançadores de alerta”, do que a América conheceu vários exemplos, de Daniel Ellsberg o Garganta Profunda, Edward Snowden poderia representar esse novo tipo de lançador de alerta, geek, aficionado da internet e adepto da “ética hacker”.
Jérémie Zimmermann responde às perguntas da revista La Vie. Ele é o porta-voz e co-fundador da Quadrature du Net, associação de defesa dos direitos e liberdades dos cidadãos na internet.
A entrevista é de Arnaud Aubry e publicada na revista francesa La Vie, 18-06-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Em que esses “vazadores” (Snowden e Manning) são diferentes de seus antecessores (Daniel Ellsberg ou Garganta Profunda, por exemplo)?
A diferença está no contexto. O ato técnico tornou-se mais simples. Daniel Ellsberg passou anos fotocopiando documentos que queria tornar público ao passo que aqui em um clic podemos revelar o que queremos. Além disso, [a principal diferença com os mais antigos provém da] inflação exponencial do culto do segredo nos Estados Unidos, onde partes inteiras da administração estão ocultas ao grande público. Mas, no fundo, a intenção é a mesma: cidadão, patriota, movido por um sentimento de justiça e a consciência de que eles têm nas mãos, por meio do seu acesso, o poder de fazer aparecer a verdade.
A revista americana Time decidiu fazer uma edição sobre Manning, Snowden e Swartz, os chamados “geeks que estão na origem dos vazamentos”. Seu andamento tem alguma relação com a “ética da internet”?
Estou convencido de que Julian Assange e o Wikileaks jogaram um papel importante pelo fato de chamar a atenção sobre o poder do lançador de alerta e a teoria sobre a qual se baseia o Wikileaks, a da “ética hacker”, isto é, a partilha do conhecimento, o fato de pensar fora da caixa, não reconhecer as formas de autoridade ilegítimas.
Podemos ler na imprensa que Snowden e Manning são libertários. O que pensa sobre isso?
Se defender as liberdades contra o segredo, as mentiras, os crimes de Estado e o comércio de armas é ser libertário, então todos devemos sê-lo.
Esses dois personagens são os primeiros de uma longa lista de lançadores de alerta que vão emergir nos próximos anos?
Ouso esperar que a “coragem é contagiosa” [em referência ao slogan de Wikileaks, “courage is contagious”] e que as proezas de Snowden e de todos esses lançadores de alerta inspirem os quatro cantos do mundo.
(I.H.U.)
Os documentos publicados pelo The Guardian e The Washington Post permitiram revelar que a NSA havia acionado um sistema de espionagem em escala mundial. Na origem deste vazamento está Edward Snowden, um novo tipo de “lançador de alerta”.
Os jornais anglo-saxões The Guardian e The Washington Post revelaram, no dia 07 de junho, que a NSA, a Agência de Segurança Nacional americana, acionou o programa PRISM, isto é, um sistema de escuta bem aperfeiçoado que permite espionar todos os intercâmbios digitais dos nove maiores atores na área da informática e da internet, entre eles o Google, Apple, Microsoft ou ainda o Facebook. Em síntese, um sistema de espionagem em escala mundial.
Essas revelações foram feitas por Edward Snowden, um americano de 29 anos, ex-funcionário da CIA. Mais próximo de Bradley Manning (soldado que está na origem da divulgação de 250.000 documentos sobre segurança nacional para o Wikileaks) e de Aaron Swartz (um cyberativista que teletransportou e disponibilizou on-line 4,8 milhões de artigos acadêmicos pagos) do que dos whistle-blowers clássicos, os “lançadores de alerta”, do que a América conheceu vários exemplos, de Daniel Ellsberg o Garganta Profunda, Edward Snowden poderia representar esse novo tipo de lançador de alerta, geek, aficionado da internet e adepto da “ética hacker”.
Jérémie Zimmermann responde às perguntas da revista La Vie. Ele é o porta-voz e co-fundador da Quadrature du Net, associação de defesa dos direitos e liberdades dos cidadãos na internet.
A entrevista é de Arnaud Aubry e publicada na revista francesa La Vie, 18-06-2013. A tradução é do Cepat.
Eis a entrevista.
Em que esses “vazadores” (Snowden e Manning) são diferentes de seus antecessores (Daniel Ellsberg ou Garganta Profunda, por exemplo)?
A diferença está no contexto. O ato técnico tornou-se mais simples. Daniel Ellsberg passou anos fotocopiando documentos que queria tornar público ao passo que aqui em um clic podemos revelar o que queremos. Além disso, [a principal diferença com os mais antigos provém da] inflação exponencial do culto do segredo nos Estados Unidos, onde partes inteiras da administração estão ocultas ao grande público. Mas, no fundo, a intenção é a mesma: cidadão, patriota, movido por um sentimento de justiça e a consciência de que eles têm nas mãos, por meio do seu acesso, o poder de fazer aparecer a verdade.
A revista americana Time decidiu fazer uma edição sobre Manning, Snowden e Swartz, os chamados “geeks que estão na origem dos vazamentos”. Seu andamento tem alguma relação com a “ética da internet”?
Estou convencido de que Julian Assange e o Wikileaks jogaram um papel importante pelo fato de chamar a atenção sobre o poder do lançador de alerta e a teoria sobre a qual se baseia o Wikileaks, a da “ética hacker”, isto é, a partilha do conhecimento, o fato de pensar fora da caixa, não reconhecer as formas de autoridade ilegítimas.
Podemos ler na imprensa que Snowden e Manning são libertários. O que pensa sobre isso?
Se defender as liberdades contra o segredo, as mentiras, os crimes de Estado e o comércio de armas é ser libertário, então todos devemos sê-lo.
Esses dois personagens são os primeiros de uma longa lista de lançadores de alerta que vão emergir nos próximos anos?
Ouso esperar que a “coragem é contagiosa” [em referência ao slogan de Wikileaks, “courage is contagious”] e que as proezas de Snowden e de todos esses lançadores de alerta inspirem os quatro cantos do mundo.
(I.H.U.)
Quintana
O Quintana que (quase) ninguém viu
em Poéticas por Fabiane Pianowski
A coletânea de ensaios de O Quintana que (quase) ninguém viu traz um novo olhar sobre os "quintanares", tornando-se uma publicação indispensável aos amantes e estudiosos da obra do poeta gaúcho Mario Quintana.
Mario de Miranda Quintana (1906-1994), conhecido como o “anjo poeta”, nasceu prematuramente em Alegrete (RS). Seus pais, Celso e Virgínia Quintana, responsabilizaram-se por sua alfabetização. Em 1919, foi estudar no Colégio Militar de Porto Alegre, publicando seus primeiros textos na revista Hyloea, da Sociedade Cívica e Literária dos alunos dessa escola. Obteve o primeiro lugar no concurso literário do Diário de notícias de Porto Alegre com o conto “A sétima personagem” (1926) e a publicação de um de seus poemas na revista carioca Para todos (1927).
A partir de 1929, passou a viver em Porto Alegre e a trabalhar no jornal O Estado do Rio Grande; em 1932, como tradutor para a Editora Globo; em 1935, na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, onde conheceria Cecília Meireles. Seu primeiro livro, A rua dos cataventos, foi publicado em 1940 e o último, Velório sem defunto, em 1990. Em 1960, Rubem Braga e Paulo Mendes Campos organizaram sua Antologia poética. 20 anos depois, receberia o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto de sua obra.
Apesar da extensão e qualidade de sua obra o reconhecimento da mesma ainda é parcial. Poucos conhecem a poesia de Quintana e restringem-se a alguns "versinhos" que hoje circulam pela rede, muitos dos quais nem pertencem à obra do autor mas são assim divulgados pela comum relação entre o equívoco e a ignorância.
"Há críticos que, em vez de me julgarem pelo que sou, julgam-se pelo que eu não sou. É como quem olhasse um pessegueiro e dissesse: ' Mas isso não é um trator'". (Mario Quintana, Caderno H)
No entanto, alguns pesquisadores fazem questão de resgatar, estudar e valorizar a poesia quintanesca a fim de mostrar àqueles que julgam mal a obra do poeta a qualidade que a caracteriza. Nesse sentido, a partir da década de 60 Mario Quintana passou a ser reconhecido tanto por seus pares como pela crítica como um dos poetas brasileiros de maior interesse. E, a partir dos anos 90, a crítica tem proliferado através da publicação de teses, dissertações e ensaios sobre a obra do poeta.
Como afirma Solange Yokozawa, "não muitos trabalhos trazem uma mirada original sobre os “quintanares”, optando por retomar e desenvolver proposições sobre o poeta; exercício crítico que também tem a sua importância.
Outra é, entretanto, a proposta do livro O Quintana que (quase) ninguém viu, organizado por André Luis Mitidieri, Denise Almeida Silva e Lizandro Carlos Calegari. [...] O corpus eleito é constituído por uma parcela bastante difundida da obra de Mario Quintana, salvo as quadras que não foram selecionadas pelo poeta para terem vida em livro, mas pouco considerada pela crítica. Nisso reside um dos grandes méritos desta publicação. Também o modo de ler esse corpus propõe-se inovador, como poderá comprovar o leitor ao percorrer os capítulos do livro".
O livro O Quintana que (quase) ninguém viu reúne, sem hierarquias, docentes universitários de diferentes procedências e alunos talentosos, mostrando a generosidade e o espírito judicioso dos organizadores.
"Os ensaístas retiram do trabalho metamórfico de reescrita do poeta interpretações inovadoras, refutando, ao mesmo tempo, posições arraigadas da crítica quintanesca, a saber, sua alegada despreocupação com o social, seu refúgio no individualismo, na infância, ou a pseudossimplicidade de sua poética" (Maria da Glória Bordini). É portato leitura mais que recomendada aos amantes e estudiosos dos "quintanares".
Para adquirir o livro O Quintana que (quase) ninguém viu escreva para almpereira@uesc.br ou acesse André Luis Mitidieri
Para saber mais sobre a vida e obra do poeta, acesse Mario Quintana – página web do Estado do Rio Grande do Sul e a página da Casa de Cultura Mario Quintana
fabianepianowski
Artigo da autoria de Fabiane Pianowski.
Curiosa e digitalmente hiperativa, acredita que toda informação deve ser compartilhada. Atraída pelo que não é canônico, busca arte e cultura nos interstícios do cotidiano.
Saiba como fazer parte da obvious.
em Poéticas por Fabiane Pianowski
A coletânea de ensaios de O Quintana que (quase) ninguém viu traz um novo olhar sobre os "quintanares", tornando-se uma publicação indispensável aos amantes e estudiosos da obra do poeta gaúcho Mario Quintana.
Mario de Miranda Quintana (1906-1994), conhecido como o “anjo poeta”, nasceu prematuramente em Alegrete (RS). Seus pais, Celso e Virgínia Quintana, responsabilizaram-se por sua alfabetização. Em 1919, foi estudar no Colégio Militar de Porto Alegre, publicando seus primeiros textos na revista Hyloea, da Sociedade Cívica e Literária dos alunos dessa escola. Obteve o primeiro lugar no concurso literário do Diário de notícias de Porto Alegre com o conto “A sétima personagem” (1926) e a publicação de um de seus poemas na revista carioca Para todos (1927).
A partir de 1929, passou a viver em Porto Alegre e a trabalhar no jornal O Estado do Rio Grande; em 1932, como tradutor para a Editora Globo; em 1935, na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, onde conheceria Cecília Meireles. Seu primeiro livro, A rua dos cataventos, foi publicado em 1940 e o último, Velório sem defunto, em 1990. Em 1960, Rubem Braga e Paulo Mendes Campos organizaram sua Antologia poética. 20 anos depois, receberia o Prêmio Machado de Assis pelo conjunto de sua obra.
Apesar da extensão e qualidade de sua obra o reconhecimento da mesma ainda é parcial. Poucos conhecem a poesia de Quintana e restringem-se a alguns "versinhos" que hoje circulam pela rede, muitos dos quais nem pertencem à obra do autor mas são assim divulgados pela comum relação entre o equívoco e a ignorância.
"Há críticos que, em vez de me julgarem pelo que sou, julgam-se pelo que eu não sou. É como quem olhasse um pessegueiro e dissesse: ' Mas isso não é um trator'". (Mario Quintana, Caderno H)
No entanto, alguns pesquisadores fazem questão de resgatar, estudar e valorizar a poesia quintanesca a fim de mostrar àqueles que julgam mal a obra do poeta a qualidade que a caracteriza. Nesse sentido, a partir da década de 60 Mario Quintana passou a ser reconhecido tanto por seus pares como pela crítica como um dos poetas brasileiros de maior interesse. E, a partir dos anos 90, a crítica tem proliferado através da publicação de teses, dissertações e ensaios sobre a obra do poeta.
Como afirma Solange Yokozawa, "não muitos trabalhos trazem uma mirada original sobre os “quintanares”, optando por retomar e desenvolver proposições sobre o poeta; exercício crítico que também tem a sua importância.
Outra é, entretanto, a proposta do livro O Quintana que (quase) ninguém viu, organizado por André Luis Mitidieri, Denise Almeida Silva e Lizandro Carlos Calegari. [...] O corpus eleito é constituído por uma parcela bastante difundida da obra de Mario Quintana, salvo as quadras que não foram selecionadas pelo poeta para terem vida em livro, mas pouco considerada pela crítica. Nisso reside um dos grandes méritos desta publicação. Também o modo de ler esse corpus propõe-se inovador, como poderá comprovar o leitor ao percorrer os capítulos do livro".
O livro O Quintana que (quase) ninguém viu reúne, sem hierarquias, docentes universitários de diferentes procedências e alunos talentosos, mostrando a generosidade e o espírito judicioso dos organizadores.
"Os ensaístas retiram do trabalho metamórfico de reescrita do poeta interpretações inovadoras, refutando, ao mesmo tempo, posições arraigadas da crítica quintanesca, a saber, sua alegada despreocupação com o social, seu refúgio no individualismo, na infância, ou a pseudossimplicidade de sua poética" (Maria da Glória Bordini). É portato leitura mais que recomendada aos amantes e estudiosos dos "quintanares".
Para adquirir o livro O Quintana que (quase) ninguém viu escreva para almpereira@uesc.br ou acesse André Luis Mitidieri
Para saber mais sobre a vida e obra do poeta, acesse Mario Quintana – página web do Estado do Rio Grande do Sul e a página da Casa de Cultura Mario Quintana
fabianepianowski
Artigo da autoria de Fabiane Pianowski.
Curiosa e digitalmente hiperativa, acredita que toda informação deve ser compartilhada. Atraída pelo que não é canônico, busca arte e cultura nos interstícios do cotidiano.
Saiba como fazer parte da obvious.
quarta-feira, 26 de junho de 2013
Manifestações
Rebeldes com causa?
Miami (EUA) - A tarifa do ônibus subiu 20 centavos em São Paulo. Este foi o mote para um grupo de protestantes sair pela cidade quebrando tudo e fazendo protestos nas principais artérias da maior cidade da América do Sul. Na teoria, isto seria um movimento em prol dos mais carentes, uma vez que mesmo um pequeno aumento pode causar um grande rombo nos orçamentos esquálidos da população menos favorecida.
E o movimento não está limitado a São Paulo. Ele vem sendo replicado no Rio de Janeiro, também com os mesmos argumentos. Isto vem causando problemas para as duas principais cidades do país, complicando o tráfego, obrigando os comerciantes a fecharem suas portas, causando prejuízos e amedrontando os demais trabalhadores.
Agora, com o início da Copa das Confederações, surgiu um grupo de manifestantes contra a realização deste evento esportivo e também da Copa do Mundo no ano que vem. E eles não se esquivaram dos enfrentamentos, sobretudo em Brasília, onde fizeram uma barragem de pneus, tocaram fogo e atiraram pedras nos policiais.
Logicamente, houve reação das forças policiais e eles baixaram o cacete nos manifestantes. Vale lembrar que a polícia de Brasília responde a Agnelo Queiroz governador de Brasília, comunista convicto, e filiado ao Partido dos Trabalhadores. Para ser justo, a polícia paulista do governador Geraldo Alckmin, do PSDB, também não economizou borrachadas (até mesmo em repórteres), assim como os agentes da ordem do Rio de Janeiro, do peemebista Sérgio Cabral.
Mas quem são esses manifestantes? Quem está no comando desses movimentos? Difícil identificar, até mesmo porque eles vão às manifestações com os rostos cobertos e agitam bandeiras de partidos de ultraesquerda. Ora, na cabeça desse pessoal, PSDB, PMDB e PT não passam de partidos burgueses que querem manter o statu quo e se curvam às exigências dos capitalistas. Não foi à toa que Dilma Rousseff tomou uma sonora vaia na abertura da Copa das Confederações em Brasília a ponto de o presidente da Fifa, Joseph Blatter, admoestar os torcedores pela falta de educação.
Pessoalmente, considero mesmo uma deselegância vaiar a presidente na abertura de um evento internacional. Os idiotas da objetividade dirão que os torcedores que vaiaram Dilma não passam de brancos riquinhos que podem pagar os preços salgados dos ingressos cobrados pela Fifa. Será mesmo? Esta é uma análise simplista. A verdade é que a população brasileira está cansada da falta de decisão dos governantes brasileiros, sobretudo na questão de segurança pública e do descontrole da inflação que tem inclusive afugentado investidores, mas a presidente teima em negar.
A verdade é que esses movimentos são inspirados nos movimentos ocorridos em outros países, como o quebra-quebra havido em Seattle (EUA) em novembro de 2011, quando houve a realização do encontro de banqueiros. Manifestações similares verificaram-se em outras cidades europeias, sobretudo na Suíça.
Com a ajuda internacional e com a cabeça revolucionária, formou-se um caldeirão difícil de se controlar. Hoje, por mais que os petistas discordem, PT é visto como um partido da burguesia, portanto, inimigo desta turma, que antes eram aliados.
A indignação pôde ser sentida até mesmo nas declarações de Fernando Haddad, prefeito petista de São Paulo: “Fizemos o máximo para que o reajuste das tarifas dos transportes urbanos causasse o menor impacto possível sobre os trabalhadores, com o reajuste abaixo da taxa da inflação e fomos surpreeendidos com esta reação sem sentido”.
Ele comparou até mesmo seus tempos de estudantes quando, juntamente com muitos manifestantes, saiu às ruas para lutar contra a ditadura e pelas eleições diretas para presidente da República. “Agora, estamos abertos ao diálogo, mas eles se recusam a conversar. Afinal o que querem estes manifestantes?”
Possivelmente, prefeito, eles querem instaurar no Brasil um clima de insegurança pessoal e prejudicar ainda mais a recuperação econômica do país para, quem sabe, chocar o ovo da serpente de uma revolução social.
Antonio Tozzi
(Direto da Redação)
Motins
As manifestações e o Riot Model de Granovetter
em artes e ideias por João Lopes
Populações do mundo inteiro têm ainda saído às ruas para reivindicar seus direitos. A democracia ganha força, e cada vez mais se busca impedir que ela seja o puro arbítrio da maioria, mas que se considere também a vontade e expressão das minorias. O comportamento humano em um somatório nas multidões em reivindicação pode se desencadear de várias formas, sendo um fator imprevisível, no entanto influenciável. Compreender como se dá o surgimento da violência em protestos inicialmente pacíficos pode nos ajudar a tornar um protesto mais efetivo e a sermos motivadores de manifestações lógicas voltadas para a segurança.
O comportamento das multidões é sempre um terreno cinzento e dificultoso, sobre o qual nosso olhar pode nos prender à parcialidade. Ou mesmo o comportamento humano em sua individualidade é um enigma que, quem sabe, seja o que não permite uma vida sem graça e repetitiva, somos imprevisíveis. É essa imprevisibilidade que garante a novidade nas relações que temos e coisas que fazemos. De uma coisa não podemos fugir, de agir, de nos portarmos em sociedades seja por meio coletivo ou nas ações individuais.
Na tentativa de entender o comportamento humano nas multidões, sejam em protestos pacíficos ou mesmo lutas armadas, ou ainda a junção das duas coisas, o sociólogo Mark Granovetter criou o seu Riot Model (modelo de motim). Esse modelo de estrutura matemática, de uma manifestação ideal criada por Granovetter, nos mostra como as manifestações podem ser pacíficas ou não pacíficas, e ainda a influência que algumas pessoas exercem nos convívios em grupo.
Esse modelo propõe o seguinte:
Centenas de estudantes estão presentes numa praça para protestar contra uma diminuição de verba para a educação que foi proposta pelo governo local. Todos estão nervosos e irritados com a falta de influência sobre as decisões do governo que decide sem levar em conta os anseios daquela população. Como em toda multidão, há uma grande possibilidade de que as coisas fujam de controle.
Esses estudantes, no Riot Model, estão divididos em dois grupos fundamentais: os que querem uma manifestação pacífica e aqueles que entendem ser a violência uma das formas de chamar a atenção da mídia e da sociedade como um todo, este últimos irão destruir e quebrar coisas, e aqueles primeiros manifestar pacificamente apenas. No entanto, essa escolha entre pacificidade e violência dá-se de forma espontânea, eles escolhem naturalmente e também baseados no que as outras pessoas estão fazendo.
A regra geral diz que, quanto mais pessoas estão envolvidas em um motim, mais chances há de outras se juntarem a ele. Desse modo, quanto mais pessoas se ajuntam numa manifestação, mais chances há da mídia prestar atenção nela, e menores serão as chances de alguém ser preso em caso do surgimento de algum motim.
Nessa multidão experimental, há que se considerar que cada um vive um momento diferente em relação à atual política praticada pelo governo, nela há aqueles que se sentem mais privilegiados em algumas coisas e menos em outras, por isso uns estarão mais dispostos à violência, isto é, arriscar a fazer algo para realmente chamar a atenção arriscando até mesmo sua liberdade. Outros têm questões pessoais contra o atual governo, ou mesmo contra a polícia, ou contra a própria sociedade, e sem dúvida, levarão isso em contra sob o calor dos protestos.
Guilherme Tosetto.jpgManifestação na cidade de São Paulo contra a Copa do Mundo que será realizada no Brasil.
Levando em conta que cada um possui um limiar próprio, isto é um ponto em que, se há pessoas suficientes participando do motim, ele irá participar também. De modo que os "baderneiros" possuem um limiar baixo, ou seja, onde tem um motim, eles irão participar também, ao arrepio de qual seja a causa sobre a qual se pleiteiam direitos, e há outras pessoas, como líderes partidários ou estudantis, que possuem limiares mais altos, sendo comprometidos com um tema de fundo a respeito daquela manifestação.
Granovetter ilustrando o que iria acontecer, criou uma tabela muito simples, em que cada pessoa possuía um número de limiar, assim, temos uma pessoa com limiar zero, o doidão que entrará no meio da multidão gritando e atirando alguma coisa para cima, mais alterado que os outros. Esse quando visto por outra pessoa de limiar número um servirá como exemplo, de modo que a pessoa de limiar um, passará a fazer uma manifestação menos pacífica também, depois a que precisa de duas pessoas, isto é a de limiar dois, se juntará a eles, que encontrarão a pessoa de limiar três... E, como num efeito em cascata, cada pessoa vai sendo atingida em seu limiar até estabelecer o caos.
Em contraponto a esse grupo, Mark Granovetter estabeleceu que outro grupo, exatamente igual ao descrito, está em outro lado da cidade, fazendo uma manifestação com o mesmo propósito, com apenas uma diferença: nessa multidão ninguém tem o limiar de três e duas têm o limiar de quatro. Um observador externo sequer perceberá essa diferença, no entanto, para entendermos a formação dos motins, em meio às manifestações, essas pessoas são as peças chaves que definem quanto à manifestação pacífica ou não, assim o potencial motim, termina antes mesmo de começar. Nesse sentido, compreendemos que se em um grupo de manifestação pacífica, mesmo que haja seres mais bem instruídos academicamente, o limiar delas é fundamental para saírem da calma à violência em instantes. E a presença de indivíduos motivadores de violência, quando não evitada, até mesmo pelo próprios manifestantes, pode desencadear ações não esperadas para um ajuntamento pacífico.
O Riot Model, quando analisado de maneira ampla, nos mostrará que, nas sociedades, existem pessoas chaves capazes de influenciar outras, para Granovetter quando o limiar 99 é atingido, a possível manifestação pode ganhar caráter incontrolável. Historicamente sabemos que manifestações ainda são o instrumento mais poderoso das sociedades, quando unidas por um propósito vão juntas às ruas, ou a algum destino específico reivindicar seus direitos, o uso ou não da violência, não é definido antes, por uma manifestação ser anunciada pacífica não significa que ela será pacífica.
Nas manifestações atuais, vemos algumas que logram demasiado êxito, com aceitações unânimes da população, outras com grupos específicos (minorias), e ainda manifestações que reúnem diversos grupos reivindicando, assim, diversos direitos. Certamente, a falta de compromisso das pessoas com a real causa de uma manifestação, já demonstra em sua participação potencial para gerar confusão. Há ainda que se lembrar de que o objetivo de qualquer manifestação não é o aparecimento nas mídias, mas a demonstração da força coletiva dos homens, não podendo, cada manifestação, sob pena de tornarem-se pouco efetivas, perderem-se em ideologias individuais, puramente pessoais e restritas, que não manifestem a verdade de um conjunto.
joaolopes
Artigo da autoria de João Lopes.
João Lopes é estudante de Direito, está tentando cultivar um canteiro, ainda não escolheu as flores, paulistano, gosta de ciências sociais e física quântica, não largou as poesias. .
Saiba como fazer parte da obvious.
em artes e ideias por João Lopes
Populações do mundo inteiro têm ainda saído às ruas para reivindicar seus direitos. A democracia ganha força, e cada vez mais se busca impedir que ela seja o puro arbítrio da maioria, mas que se considere também a vontade e expressão das minorias. O comportamento humano em um somatório nas multidões em reivindicação pode se desencadear de várias formas, sendo um fator imprevisível, no entanto influenciável. Compreender como se dá o surgimento da violência em protestos inicialmente pacíficos pode nos ajudar a tornar um protesto mais efetivo e a sermos motivadores de manifestações lógicas voltadas para a segurança.
O comportamento das multidões é sempre um terreno cinzento e dificultoso, sobre o qual nosso olhar pode nos prender à parcialidade. Ou mesmo o comportamento humano em sua individualidade é um enigma que, quem sabe, seja o que não permite uma vida sem graça e repetitiva, somos imprevisíveis. É essa imprevisibilidade que garante a novidade nas relações que temos e coisas que fazemos. De uma coisa não podemos fugir, de agir, de nos portarmos em sociedades seja por meio coletivo ou nas ações individuais.
Na tentativa de entender o comportamento humano nas multidões, sejam em protestos pacíficos ou mesmo lutas armadas, ou ainda a junção das duas coisas, o sociólogo Mark Granovetter criou o seu Riot Model (modelo de motim). Esse modelo de estrutura matemática, de uma manifestação ideal criada por Granovetter, nos mostra como as manifestações podem ser pacíficas ou não pacíficas, e ainda a influência que algumas pessoas exercem nos convívios em grupo.
Esse modelo propõe o seguinte:
Centenas de estudantes estão presentes numa praça para protestar contra uma diminuição de verba para a educação que foi proposta pelo governo local. Todos estão nervosos e irritados com a falta de influência sobre as decisões do governo que decide sem levar em conta os anseios daquela população. Como em toda multidão, há uma grande possibilidade de que as coisas fujam de controle.
Esses estudantes, no Riot Model, estão divididos em dois grupos fundamentais: os que querem uma manifestação pacífica e aqueles que entendem ser a violência uma das formas de chamar a atenção da mídia e da sociedade como um todo, este últimos irão destruir e quebrar coisas, e aqueles primeiros manifestar pacificamente apenas. No entanto, essa escolha entre pacificidade e violência dá-se de forma espontânea, eles escolhem naturalmente e também baseados no que as outras pessoas estão fazendo.
A regra geral diz que, quanto mais pessoas estão envolvidas em um motim, mais chances há de outras se juntarem a ele. Desse modo, quanto mais pessoas se ajuntam numa manifestação, mais chances há da mídia prestar atenção nela, e menores serão as chances de alguém ser preso em caso do surgimento de algum motim.
Nessa multidão experimental, há que se considerar que cada um vive um momento diferente em relação à atual política praticada pelo governo, nela há aqueles que se sentem mais privilegiados em algumas coisas e menos em outras, por isso uns estarão mais dispostos à violência, isto é, arriscar a fazer algo para realmente chamar a atenção arriscando até mesmo sua liberdade. Outros têm questões pessoais contra o atual governo, ou mesmo contra a polícia, ou contra a própria sociedade, e sem dúvida, levarão isso em contra sob o calor dos protestos.
Guilherme Tosetto.jpgManifestação na cidade de São Paulo contra a Copa do Mundo que será realizada no Brasil.
Levando em conta que cada um possui um limiar próprio, isto é um ponto em que, se há pessoas suficientes participando do motim, ele irá participar também. De modo que os "baderneiros" possuem um limiar baixo, ou seja, onde tem um motim, eles irão participar também, ao arrepio de qual seja a causa sobre a qual se pleiteiam direitos, e há outras pessoas, como líderes partidários ou estudantis, que possuem limiares mais altos, sendo comprometidos com um tema de fundo a respeito daquela manifestação.
Granovetter ilustrando o que iria acontecer, criou uma tabela muito simples, em que cada pessoa possuía um número de limiar, assim, temos uma pessoa com limiar zero, o doidão que entrará no meio da multidão gritando e atirando alguma coisa para cima, mais alterado que os outros. Esse quando visto por outra pessoa de limiar número um servirá como exemplo, de modo que a pessoa de limiar um, passará a fazer uma manifestação menos pacífica também, depois a que precisa de duas pessoas, isto é a de limiar dois, se juntará a eles, que encontrarão a pessoa de limiar três... E, como num efeito em cascata, cada pessoa vai sendo atingida em seu limiar até estabelecer o caos.
Em contraponto a esse grupo, Mark Granovetter estabeleceu que outro grupo, exatamente igual ao descrito, está em outro lado da cidade, fazendo uma manifestação com o mesmo propósito, com apenas uma diferença: nessa multidão ninguém tem o limiar de três e duas têm o limiar de quatro. Um observador externo sequer perceberá essa diferença, no entanto, para entendermos a formação dos motins, em meio às manifestações, essas pessoas são as peças chaves que definem quanto à manifestação pacífica ou não, assim o potencial motim, termina antes mesmo de começar. Nesse sentido, compreendemos que se em um grupo de manifestação pacífica, mesmo que haja seres mais bem instruídos academicamente, o limiar delas é fundamental para saírem da calma à violência em instantes. E a presença de indivíduos motivadores de violência, quando não evitada, até mesmo pelo próprios manifestantes, pode desencadear ações não esperadas para um ajuntamento pacífico.
O Riot Model, quando analisado de maneira ampla, nos mostrará que, nas sociedades, existem pessoas chaves capazes de influenciar outras, para Granovetter quando o limiar 99 é atingido, a possível manifestação pode ganhar caráter incontrolável. Historicamente sabemos que manifestações ainda são o instrumento mais poderoso das sociedades, quando unidas por um propósito vão juntas às ruas, ou a algum destino específico reivindicar seus direitos, o uso ou não da violência, não é definido antes, por uma manifestação ser anunciada pacífica não significa que ela será pacífica.
Nas manifestações atuais, vemos algumas que logram demasiado êxito, com aceitações unânimes da população, outras com grupos específicos (minorias), e ainda manifestações que reúnem diversos grupos reivindicando, assim, diversos direitos. Certamente, a falta de compromisso das pessoas com a real causa de uma manifestação, já demonstra em sua participação potencial para gerar confusão. Há ainda que se lembrar de que o objetivo de qualquer manifestação não é o aparecimento nas mídias, mas a demonstração da força coletiva dos homens, não podendo, cada manifestação, sob pena de tornarem-se pouco efetivas, perderem-se em ideologias individuais, puramente pessoais e restritas, que não manifestem a verdade de um conjunto.
joaolopes
Artigo da autoria de João Lopes.
João Lopes é estudante de Direito, está tentando cultivar um canteiro, ainda não escolheu as flores, paulistano, gosta de ciências sociais e física quântica, não largou as poesias. .
Saiba como fazer parte da obvious.
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