O que Obama devia ter feito no Chile
Em 1965, durante uma viagem notável ao Chile, Bobby Kennedy quebrou seu rígido protocolo e se encontrou com mineiros explorados e estudantes universitários hostis. Ele mergulhou nos problemas do país para conhecê-los, para perguntar como chegar a uma solução. E se Obama decidisse seguir o exemplo de Kennedy – seu ídolo, Bobby Kennedy – e mudasse o roteiro para fazer algo sem precedentes como uma visita ao túmulo de Allende? Não seria preciso pedir perdão ou expressar remorso pela intervenção dos EUA nos assuntos internos do Chile, nem por ter sustentado Pinochet durante tanto tempo. Bastaria esse gesto singelo. O artigo é de Ariel Dorfman.
Ariel Dorfman - Página/12
Quando Barack Obama desembarcar no Chile para uma visita de 24 horas, algo crucial faltará em sua agenda. Haverá mariscos suculentos, discursos elogiosos à prosperidade do Chile, acordos bilaterais e encontros com poderosos e celebridades, mas não há planos, sem dúvida, de que o presidente dos Estados Unidos tome contato com o que foi a experiência fundamental da recente história chilena, o trauma que o povo de meu país sofreu durante os quase dezessete anos do regime do general Augusto Pinochet.
E, no entanto, não seria impossível para Obama ter conhecimento de uma pequena amostra do que foi a aflição do Chile. A poucas quadras do Palácio Presidencial de La Moneda, onde será recebido por Sebastian Piñera, 120 pesquisadores se dedicam assiduamente a construir uma lista definitiva das vítimas de Pinochet para que possa ser feita alguma forma de reparação. Esta é a terceira tentativa desde que terminou a ditadura, em 1990, para enfrentar as perdas massivas que ocasionou. Duas comissões estabelecidas oficialmente investigaram uma imensa quantidade de casos de tortura, execuções e prisão política, mas foi ficando claro, na medida em que passavam os anos, que inumeráveis abusos de direitos humanos seguiam sem identificação. E, de fato, a pesquisa recente recebeu 33 mil solicitações adicionais, horrores que ainda não tinham sido registrados.
Ainda que Obama não tenha direito a ler nenhum dos informes confidenciais acerca daqueles casos, alguns minutos roubados de seu estrito calendário para falar com alguns dos homens e mulheres que realizam essas pesquisas, o informariam mais sobre a escondida agonia do Chile do que mil livros e reportagens.
Poderia, por exemplo, conversar com a pesquisadora chamada Tamara. No dia 11 de setembro de 1973, dia em que Salvador Allende foi derrubado, o pai de Tamara, um dos guarda-costas de Allende, foi detido, sem que jamais se soubesse seu paradeiro posterior. Eu trabalhava em La Moneda na época do golpe militar e salvei minha vida em função de uma cadeia de coincidências milagrosas, mas o pai de Tamara não teve tanta sorte, assim como não tiveram vários bons amigos meus, cujos corpos ainda estão sem sepultura.
Ou Obama poderia auscultar os olhos de um advogado que conheço, que foi sequestrado uma tarde e torturado durante semanas antes de ser deixado uma noite em uma rua desconhecida, tão longe de seu lar que imediatamente preso de novo por romper o toque de recolher. Ou Obama poderia conversar com uma antropóloga que teve que ir para o exílio por 14 anos, perdendo seu país, sua profissão, seu idioma, e cujo retorno ao Chile foi tão angustiante como seu desterro original, posto que seus filhos, em virtude da prolongada ausência do país onde nasceram, decidiram permanecer no estrangeiro, o que significa que essa família estará separada para sempre.
Caso o presidente Obama sinta-se mais cômodo conhecendo lugares em vez de seres humanos de carne e osso, poderia familiarizar-se com Villa Grimaldo, uma casa de tormentos onde agora se ergue um centro para a paz, ou reservar dez minutos para visitar o Museu da Memória, onde há exibições que denunciam o terrível passado do Chile.
Uma razão pela qual faz sentido que Obama vislumbre, ainda que através de um vidro obscuro, nossa vasta e devastadora dor, é que os norteamericanos foram, em grande parte, responsáveis por aquela tragédia. Washington ajudou, estimulou e financiou a queda do governo democraticamente eleito de Allende e a trajetória ditatorial de Pinochet. No momento em que a revolta no Egito, como em tantos outros países que se levantam contra o autoritarismo, lembra ao mundo as consequências de sustentar regimes brutais, seria instrutivo para um presidente tão inteligente e humanitário como Obama ver, de perto e pessoalmente, alguns dos homens e mulheres que foram destruídos por essa política.
O Chile também oferece um exemplo do quão difícil é confrontar os crimes contra a humanidade, difícil e necessário. Em meu país aprendemos que se nossa comunidade, nosso povo inteiro, não olha de frente para o passado aterrador e arrasta seu pesar para a luz, se os responsáveis não recebem castigo, corremos o risco de que nossa própria alma se corrompa.
É uma lição que Obama e seus compatriotas deveriam impor a si mesmos. Dois anos depois de sua posse, Guantánamo segue aberta e não há sinal de que vá ocorrer um julgamento das violações dos direitos humanos sob a administração Bush nem tampouco uma insinuação de que será pedido perdão às vítimas. Uma comissão norteamericana que tome como modelo esta que foi criada em Santiago poderia dar um primeiro passo na direção de um ajuste de contas que, como bem sabemos nós os chilenos, não deveria ser adiada de forma indefinida.
Por mais importante que essa experiência fosse para Obama, há outra que seria ainda mais significativa. À noite, ele vai jantar no mesmo Palácio Presidencial onde Salvador Allende morreu muitos anos atrás, em defesa do direito de seu povo escolher seu próprio destino. Allende está enterrado em um cemitério não muito longe de onde a elite do país estará brindando pela amizade eterna entre Chile e os Estados Unidos. Em 1965, durante uma viagem notável ao Chile, Bobby Kennedy quebrou seu escrupuloso protocolo e se encontrou com mineiros explorados e estudantes universitários hostis. Ele mergulhou nos problemas do país para conhecê-los, para perguntar como chegar a uma solução. E se Obama decidisse seguir o exemplo de Kennedy – seu ídolo, Bobby Kennedy – e mudasse o roteiro para fazer algo sem precedentes como uma visita ao túmulo de Allende? Se ele simplesmente parasse neste lugar, ficasse de pé diante dos restos de quem foi, como ele, um presidente eleito por seu povo, e dedicasse um par de minutos solitários?
Não seria imprescindível que pedisse perdão ou expressasse remorso pela intervenção dos Estados Unidos nos assuntos internos do Chile, nem por ter sustentado Pinochet durante tanto tempo. Bastaria esse gesto singelo. Essa homenagem a um presidente que entregou sua vida lutando pela democracia e a justiça social mandaria uma mensagem a América Latina e a todo o planeta que seria mais eloquente que cinquenta discursos retóricos. Seria um sinal de que talvez seja mesmo possível uma nova era das relações entre os Estados Unidos e seus vizinhos, ao sul do rio Bravo, que o passado tão amargo e injusto nunca mais há de voltar, nunca, nunca mais.
(*) Ariel Dorfman é escritor. Seu último livro é “Americanos: Los passos de Murieta”.
Tradução: Katarina Peixoto
(Carta Maior)
sábado, 30 de abril de 2011
Poesia
poema de uma criança africana
Poema eleito pela ONU como o melhor poema de 2006.
Escrito por uma criança africana
Quando eu nasço, sou preto
Quando eu cresço, sou preto
Quando eu fico no sol, sou preto
Quando eu tenho medo, sou preto
Quando eu estou doente, sou preto
E quando eu morro, continuo sendo preto
E você, cara branco,
Quando você nasce, você é rosa
Quando você cresce, você é branco
Quando você fica no sol, você é vermelho
Quando você fica no frio, você é azul
Quando você tem medo, você é amarelo
Quando você fica doente, você é verde
Quando você morre, você é cinza
E você ainda vem me chamar "de cor"???
Firas Chadli
Poema eleito pela ONU como o melhor poema de 2006.
Escrito por uma criança africana
Quando eu nasço, sou preto
Quando eu cresço, sou preto
Quando eu fico no sol, sou preto
Quando eu tenho medo, sou preto
Quando eu estou doente, sou preto
E quando eu morro, continuo sendo preto
E você, cara branco,
Quando você nasce, você é rosa
Quando você cresce, você é branco
Quando você fica no sol, você é vermelho
Quando você fica no frio, você é azul
Quando você tem medo, você é amarelo
Quando você fica doente, você é verde
Quando você morre, você é cinza
E você ainda vem me chamar "de cor"???
Firas Chadli
Juliano Mer-Khamis
O exemplo de Juliano Mer-Khamis
Com sua vida e com seu corpo, o ator e diretor Juliano Mer-Khamis encarnou a possibilidade de um movimento de resistência binacional no conflito Israel-Palestina. Filho de uma mãe judia e um pai palestino, nasceu em duas culturas, e escolheu viver nas duas. Foi baleado e morto em Jenin, segunda-feira. Juliano era um artista e um palestino, um militante de esquerda e um judeu. O artigo é de Amira Hass.
Amira Hass
Aqueles que conheceram Juliano Mer-Khamis, o ator e diretor nascido em Nazaré que foi baleado e morto em Jenin, na segunda-feira, serão os que escreverão a respeito dele. Tudo o que nós outros podemos fazer é escrever a respeito das marcas de sua vida.
Juliano teve sorte. Nasceu numa família palestina e judia, judia e palestina. Este homem irado foi cercado por identidades conflitantes e complementares. Ele foi a sombra estendida de uma comunidade binacional imaginada nos idos dos anos 50. Como um Peter Pan que se recusava a crescer, Juliano encarnou o potencial de uma vida compartilhada (ta’ayush, em árabe) enquanto lutava por igualdade. Filho de uma mãe judia e um pai palestino, nasceu em duas culturas, e escolheu viver nas duas. Ele não via necessidade de explicar isso.
Eu acho que Juliano não alimentava ilusões; levando golpes de todos os lados, o potencial de uma ta’ayush diminuía. Ta’ayush é uma visão sadia das coisas, mas a sua chance de realização é cada vez mais ínfima. Há aqueles que fantasiam com os dias do Messias para se evadirem de pensar nos dias que antecedem ao próximo desastre. Juliano era um filho da fantasia da ta’ayaush. Seu nascimento foi a realização da fantasia da ta’ayush e sua morte é um desastre.
Juliano tinha raiva. Sua raiva era do tipo que só um judeu como ele, nascido na esquerda e militante pela igualdade até o fim, pode se permitir expressar como um modo de vida. Os palestinos devem conquistar sua raiva, amadurecê-la; devem domesticá-la, reprimi-la, sublimá-la. Essa é a única maneira de permanecer vivo e são (sem ser preso, ferido ou morto) sob as condições de violência física e não física ditadas por Israel.
É isto: violência áspera, que fede a racionalismo e a supremacia e se pretende esclarecida. É o que se encontra diariamente, a cada momento, do nascimento à morte. A violência encontrada da expropriação comandada e acompanhada por um mapa ao disparo num alvo a partir de uma torre de observação; do Ministro do Interior expulsando palestinos de Jerusalém, sua cidade de origem, ao bloqueio do retorno à vila de Bir’im, na Galiléia; das respostas racistas da juventude judia nas pesquisas de opinião ao barulho dos disparos sobre os telhados onde crianças brincam em Gaza. A violência está sempre lá, das taxas municipais de Jerusalém sobre ruas arruinadas e lixo sem coleta às câmeras de segurança na vizinhança do bairro/cruzado shtetl judaico em Silwan; de um assentamento esverdeado luxuoso às cisternas palestinas destruídas por um tanque israelense; das concessões para o estabelecimento de fazendas no Negev à incriminação dos beduínos como fossem “infiltrados”. Numa palavra, do judaico ao democrático.
Essa violência tem tantos ângulos diversos que pode levar à loucura. Juliano teve a sorte de ser um artista, e a loucura era um de seus pincéis. Através do teatro que ele fundou em Jenin, Juliano se permitiu a crítica a aspectos repressivos da sociedade palestina. Poderia se pensar que ele fez isso enquanto militante de esquerda, como um ator compromissado com o dever artístico de ser honesto, e como um palestino. Torçamos para que seu assassino seja encontrado, e então saberemos se um artista palestino foi morto por causa de sua coragem de viver de uma maneira que rompe com a ordem, ou se um artista judeu foi morto porque se permitiu a criticar abertamente uma sociedade que não é a sua, de acordo com alguns, ou se um homem de esquerda foi morto porque rompeu com a ordem. Ou talvez as três coisas juntas. Mesmo que tenha sido morto por qualquer outra razão, Juliano era ainda um artista e um palestino, um militante de esquerda e um judeu.
Agora que a possibilidade de uma visão sadia de uma ta’ayush é pequena, o que resta? O caminho. Esta é a opção de um movimento binacional de resistência, que quer derrubar coisas como Kadafi, Mubarak, Assad, que oprimem um povo sobre o outro.
Há quem insista na fantasia de que um movimento binacional é uma necessidade histórica, como uma antítese lógica à ideologia da separação demográfica que se tornou a bíblia do processo de Oslo. A verdade deve ser dita: ao longo do tempo a maioria dos que lutaram por essa fantasia são judeus. Então, abrandamos a contradição entre o amor pelo povo e pelo lugar, por um lado, e o ódio da violência esclarecida, por outro?
Com sua vida e com seu corpo, Juliano Mer-Khamis encarnou a possibilidade de um movimento binacional de resistência. O assassino, qualquer que tenha sido seu motivo, queria o seu corpo. Na sua morte, Juliano nos deixou o possível.
Tradução: Katarina Peixoto
(Carta Maior)
Com sua vida e com seu corpo, o ator e diretor Juliano Mer-Khamis encarnou a possibilidade de um movimento de resistência binacional no conflito Israel-Palestina. Filho de uma mãe judia e um pai palestino, nasceu em duas culturas, e escolheu viver nas duas. Foi baleado e morto em Jenin, segunda-feira. Juliano era um artista e um palestino, um militante de esquerda e um judeu. O artigo é de Amira Hass.
Amira Hass
Aqueles que conheceram Juliano Mer-Khamis, o ator e diretor nascido em Nazaré que foi baleado e morto em Jenin, na segunda-feira, serão os que escreverão a respeito dele. Tudo o que nós outros podemos fazer é escrever a respeito das marcas de sua vida.
Juliano teve sorte. Nasceu numa família palestina e judia, judia e palestina. Este homem irado foi cercado por identidades conflitantes e complementares. Ele foi a sombra estendida de uma comunidade binacional imaginada nos idos dos anos 50. Como um Peter Pan que se recusava a crescer, Juliano encarnou o potencial de uma vida compartilhada (ta’ayush, em árabe) enquanto lutava por igualdade. Filho de uma mãe judia e um pai palestino, nasceu em duas culturas, e escolheu viver nas duas. Ele não via necessidade de explicar isso.
Eu acho que Juliano não alimentava ilusões; levando golpes de todos os lados, o potencial de uma ta’ayush diminuía. Ta’ayush é uma visão sadia das coisas, mas a sua chance de realização é cada vez mais ínfima. Há aqueles que fantasiam com os dias do Messias para se evadirem de pensar nos dias que antecedem ao próximo desastre. Juliano era um filho da fantasia da ta’ayaush. Seu nascimento foi a realização da fantasia da ta’ayush e sua morte é um desastre.
Juliano tinha raiva. Sua raiva era do tipo que só um judeu como ele, nascido na esquerda e militante pela igualdade até o fim, pode se permitir expressar como um modo de vida. Os palestinos devem conquistar sua raiva, amadurecê-la; devem domesticá-la, reprimi-la, sublimá-la. Essa é a única maneira de permanecer vivo e são (sem ser preso, ferido ou morto) sob as condições de violência física e não física ditadas por Israel.
É isto: violência áspera, que fede a racionalismo e a supremacia e se pretende esclarecida. É o que se encontra diariamente, a cada momento, do nascimento à morte. A violência encontrada da expropriação comandada e acompanhada por um mapa ao disparo num alvo a partir de uma torre de observação; do Ministro do Interior expulsando palestinos de Jerusalém, sua cidade de origem, ao bloqueio do retorno à vila de Bir’im, na Galiléia; das respostas racistas da juventude judia nas pesquisas de opinião ao barulho dos disparos sobre os telhados onde crianças brincam em Gaza. A violência está sempre lá, das taxas municipais de Jerusalém sobre ruas arruinadas e lixo sem coleta às câmeras de segurança na vizinhança do bairro/cruzado shtetl judaico em Silwan; de um assentamento esverdeado luxuoso às cisternas palestinas destruídas por um tanque israelense; das concessões para o estabelecimento de fazendas no Negev à incriminação dos beduínos como fossem “infiltrados”. Numa palavra, do judaico ao democrático.
Essa violência tem tantos ângulos diversos que pode levar à loucura. Juliano teve a sorte de ser um artista, e a loucura era um de seus pincéis. Através do teatro que ele fundou em Jenin, Juliano se permitiu a crítica a aspectos repressivos da sociedade palestina. Poderia se pensar que ele fez isso enquanto militante de esquerda, como um ator compromissado com o dever artístico de ser honesto, e como um palestino. Torçamos para que seu assassino seja encontrado, e então saberemos se um artista palestino foi morto por causa de sua coragem de viver de uma maneira que rompe com a ordem, ou se um artista judeu foi morto porque se permitiu a criticar abertamente uma sociedade que não é a sua, de acordo com alguns, ou se um homem de esquerda foi morto porque rompeu com a ordem. Ou talvez as três coisas juntas. Mesmo que tenha sido morto por qualquer outra razão, Juliano era ainda um artista e um palestino, um militante de esquerda e um judeu.
Agora que a possibilidade de uma visão sadia de uma ta’ayush é pequena, o que resta? O caminho. Esta é a opção de um movimento binacional de resistência, que quer derrubar coisas como Kadafi, Mubarak, Assad, que oprimem um povo sobre o outro.
Há quem insista na fantasia de que um movimento binacional é uma necessidade histórica, como uma antítese lógica à ideologia da separação demográfica que se tornou a bíblia do processo de Oslo. A verdade deve ser dita: ao longo do tempo a maioria dos que lutaram por essa fantasia são judeus. Então, abrandamos a contradição entre o amor pelo povo e pelo lugar, por um lado, e o ódio da violência esclarecida, por outro?
Com sua vida e com seu corpo, Juliano Mer-Khamis encarnou a possibilidade de um movimento binacional de resistência. O assassino, qualquer que tenha sido seu motivo, queria o seu corpo. Na sua morte, Juliano nos deixou o possível.
Tradução: Katarina Peixoto
(Carta Maior)
Poesia
"O menino dorme.
Para que o menino
Durma sossegado,
Sentada ao seu lado
A mãezinha canta:
- "Dodói, vai-te embora!
"Deixa o meu filhinho,
"Dorme . . . dorme . . . meu . . ."
Morta de fadiga,
Ela adormeceu.
Então, no ombro dela,
Um vulto de santa,
Na mesma cantiga,
Na mesma voz dela,
Se debruça e canta:
- "Dorme, meu amor.
"Dorme, meu benzinho . . ."
E o menino dorme".
(Autor?)
Para que o menino
Durma sossegado,
Sentada ao seu lado
A mãezinha canta:
- "Dodói, vai-te embora!
"Deixa o meu filhinho,
"Dorme . . . dorme . . . meu . . ."
Morta de fadiga,
Ela adormeceu.
Então, no ombro dela,
Um vulto de santa,
Na mesma cantiga,
Na mesma voz dela,
Se debruça e canta:
- "Dorme, meu amor.
"Dorme, meu benzinho . . ."
E o menino dorme".
(Autor?)
István Mészáros
István Mészáros e a imperiosa necessidade do pluralismo socialista
Escrito por Demetrio Cherobini
07-Abr-2011
Resisto a tudo menos minha própria diversidade,
Sou vasto... contenho multidões.
Walt Whitman
A afinidade eletiva existente entre o Partido dos Trabalhadores e o capital é visível desde já um bom tempo. Em 2004, por exemplo, num gesto de autoritarismo extremo acompanhado de um discurso cínico e oportunista, o partido expulsou quatro de seus parlamentares que não concordavam com as determinações da cúpula acerca da famigerada reforma da previdência, então em curso (1).
Esta atitude - a imposição dos interesses de uma parte do partido sobre o todo de que é composto -, muito aquém de afirmar uma virtude política indispensável para os tempos atuais, configurou apenas a ilustração exemplar do imperativo prático que tem orientado as ações do PT ao longo dos últimos anos: a busca fetichista da unidade, realizada com vistas a neutralizar as energias críticas dos trabalhadores e a promover a ampla e irrestrita conciliação das classes estruturalmente antagônicas da presente sociedade (2). Demonstrou, acima de tudo, como o referido partido expressa, em sua forma de ser e de se comportar, a maneira de se estruturar do próprio capital, com seus respectivos interesses e contradições.
Ora, o capital, explica-nos István Mészáros (2002), é justamente esse modo totalizante de controle sobre a atividade produtiva humana, que se configura de maneira hierárquica e autoritária, visando eliminar toda e qualquer postura que seja diferente do propósito de levar a efeito a mais elevada extração praticável do trabalho excedente, num movimento perene, sempre acumulativo e auto-expansivo. Nesse contexto, diz o filósofo, a única alternativa viável é a crítica radical, feita pelo trabalho, de tal conjunto de relações sociais, uma crítica que promova a negação das determinações materiais do sistema e a conseqüente afirmação de novas maneiras de mediar o metabolismo social humano - a negação, portanto, do modo de ser hierárquico e excludente do capital e a afirmação de uma forma de relacionamento genuinamente associativa e horizontal entre os "produtores livremente combinados" (3). Tal alternativa se encontra delineada em torno daquilo que Mészáros denomina de pluralismo socialista, um princípio de organização que visa superar as contradições inerentes à imposição da unidade e as infelizes mistificações de que essa proposta vem acompanhada.
Nesse sentido, argumenta o autor de Para além do capital, é possível observar que já Marx e Engels em sua época estavam atentos para o fato de que a unidade não é pré-requisito para o êxito do projeto revolucionário dos trabalhadores. Duas breves passagens dos referidos autores, listadas por Mészáros, servem para demonstrar o posicionamento de ambos sobre o assunto. A primeira é de uma carta de Engels a August Bebel, datada de 1º-2 de maio de 1891, condenando a influência de Wilhelm Liebknecht sobre a redação do Programa de Gotha: "Da democracia burguesa ele (Liebknecht) trouxe e manteve uma verdadeira mania de unificação" (ENGELS, apud Mészáros, 2002, 811). A segunda é de uma carta de Marx a Wilhelm Bracke, escrita em 5 de maio de 1875, onde se lê que "é um engano acreditar que este sucesso momentâneo (isto é, a unidade em redor de um movimento político) não será comprado a um preço muito alto" (MARX, apud Mészáros, ibid., 811).
Para Marx e Engels, a suspeita em relação à exigência da unidade se devia ao fato de que tal proposta costumava levar os partidos e as organizações de esquerda a conseqüências prejudiciais, entre elas a supressão da autocrítica e a barganha sobre princípios. Isto era, evidentemente, um preço alto demais a ser pago pelas forças que lutavam pela realização de uma comunidade humana livre do jugo do capital, onde homens e mulheres pudessem desenvolver ao máximo as suas potencialidades. Ciente desse dilema, Mészáros estabelece uma reflexão que pretende apontar uma saída para o labirinto no qual se perdem muitos dos movimentos socialistas da atualidade.
A unidade política, explica o filósofo, não pode ser um objetivo porque a classe trabalhadora não é, por sua própria condição, unificada. Na verdade, ela constitui um complexo de setores variados - muitas vezes antagonicamente estruturado - em contraposição à pluralidade de capitais em torno da qual se baseia o sistema vigente (4). Por isso, o que é desejável no movimento revolucionário é a articulação pluralista – e não a unidade, que pressupõe camuflar diferenças artificialmente - dos diversos grupos que combatem pela causa dos trabalhadores.
Como explica Mészáros, "Assim como naqueles dias (isto é, nos tempos de Marx e Engels), mais uma vez este assunto é de suprema importância. Pois hoje – talvez mais que nunca, em vista das experiências amargas do passado recente e do não tão recente – não é mais possível conceber as formas imprescindíveis de ação comum sem uma articulação consciente de um pluralismo socialista, que não só reconhece as diferenças existentes, mas também a necessidade de uma adequada 'divisão do trabalho' na estrutura geral de uma ofensiva socialista. Em oposição à falsa identificação da 'unidade' como o único meio de patrocinar princípios socialistas (enquanto, na realidade, a perseguição irreal e a imposição de unidade trouxeram com elas as necessárias concessões sobre princípios), permanece válida a regra de Marx: não pode haver barganha sobre princípios" (2002, 812).
De acordo com Mészáros, somente o pluralismo socialista pode impedir que, dentro de um movimento de luta social e política complexo e multifacetado, ocorra a imposição do interesse de uma das suas partes sobre as demais – imposição esta que, justamente, como o citado caso do PT o demonstra, origina a supressão da autocrítica e a barganha sobre princípios, que tanto beneficiam a ordem de reprodução sócio-metabólica vigente (5).
A práxis pluralista, no sentido que o filósofo atribui ao termo, é aquela que reconhece e combina as diferenças e as particularidades concretas inerentes aos variados setores do proletariado (6) em função do seu objetivo maior. Ao assim proceder, cria uma forma de ação conjunta que possibilita o combate do próprio fundamento de hoje haver os particularismos antagônicos de classe, a saber: a dinâmica – sempre acumulativa e auto-expansiva - da exploração do trabalho excedente que configura o sistema do capital.
As implicações políticas de tal proposta são claras: o agente social da transformação revolucionária não pode ser definido como sendo composto unicamente por este ou por aquele ramo específico dos trabalhadores. Ao contrário: precisa ser buscado no trabalho como um todo, que, reconhecendo sua constituição múltipla e heterogênea, age no sentido de realizar o – também reconhecido - interesse que permeia a classe em sua totalidade.
Lemos, assim, em O poder da ideologia, que o sujeito social da emancipação "só estará apto para criar as condições do sucesso se abranger a totalidade dos grupos sociológicos capazes de se aglutinarem em uma força transformadora efetiva no âmbito de um quadro de orientação estratégica adequado. O denominador comum ou o núcleo estratégico de todos esses grupos não pode ser o 'trabalho industrial', tenha ele colarinho branco ou azul, mas o trabalho como antagonista estrutural do capital. Isto é o que combina objetivamente os interesses variados e historicamente produzidos da grande multiplicidade de grupos sociais que estão do lado emancipador da linha divisória das classes no interesse comum da alternativa hegemônica do trabalho à ordem social do capital. Pois todos esses grupos devem desempenhar seu importante papel ativo na garantia da transição para uma ordem qualitativamente diferente" (2004, 51).
Ou seja, mesmo a classe trabalhadora sendo composta de uma miríade de setores, cada qual com interesses correspondentes às suas posições particulares, há, por trás disso, pela própria situação atual do trabalho enquanto atividade subordinada ao capital, uma condição e um interesse compartilhado por todos: isto é, respectivamente, a exploração fetichista do trabalho excedente e a necessidade de superá-la em direção a uma sociedade emancipada.
No processo revolucionário, portanto, todos os grupos terão papel fundamental, mas é preciso que estejam alertas para o fato de que, para uma emancipação realmente digna deste nome, a luta não pode se realizar com um dos segmentos afirmando o seu interesse sobre os demais. O pluralismo exige horizontalidade entre os movimentos de trabalhadores. Somente dessa maneira os socialistas poderão aspirar à radical e efetiva superação do sistema do capital.
O novo modo de operação dos revolucionários não deverá, então, espelhar a maneira de se estruturar do próprio capital – isto é, como o PT o faz: hierarquicamente e afirmando o interesse da parte sobre o todo, com vistas a eliminar as energias combativas dos trabalhadores. A emergente força social emancipadora conseguirá ter êxito em seus propósitos apenas se se articular a partir de princípios radicalmente diferentes de ação e de organização. A reconstrução das mediações sociais e políticas em torno das quais estarão reunidos os socialistas já necessitará, pois, estar baseada naquilo que Mészáros chama de igualdade substantiva, (7) em contraposição à igualdade meramente formal da atual ordem vigente.
Isto quer dizer, em outras palavras, que a estruturação interna do movimento terá que apresentar, em seu próprio processo constitutivo, "prenúncios de uma nova forma – genuinamente associativa – de cumprir as tarefas que possam se apresentar" (8) - 2004, 52. E para que tudo isso possa, enfim, se realizar, é imprescindível, diz Mészáros, a formação de uma "consciência de massa socialista", a ser desenvolvida no processo mesmo de confrontação prática com a ordem do capital (9).
A proposta mészáriana do pluralismo socialista é, portanto, de fundamental importância para a esquerda brasileira nos dias atuais. Depois do tsunami de pelegos que assolou o país com o governo do PT, as novas forças socialistas a se constituírem precisarão se reformular sem repetir as mesmas contradições. PSOL, PCB, PSTU e todos os demais grupos políticos imbuídos do objetivo da superação do capital necessitarão se articular de forma crítica e pluralista daqui por diante, ou estarão condenados ao fracasso e à impotência.
Mais do que a falsa unidade – calcada, como vimos, na imposição da parte sobre o todo e na barganha sobre princípios –, é imperioso coadunar grupos diversificados, com as suas respectivas particularidades, em redor do objetivo comum: derrotar o capital e instaurar a comunidade dos homens e mulheres verdadeiramente emancipados - ou a "associação livre dos produtores", como a chamou Marx.
Em tempos históricos de profunda crise, torna-se imprescindível que construamos essa capacidade de atuar em conjunto de forma horizontal. Se continuarmos mergulhados na inépcia no que diz respeito a travarmos esse tipo de ação coletiva, estaremos com toda certeza perdidos. Se, ao contrário, conseguirmos envidar esforços articulados, mesmo que tenhamos entre nós algumas eventuais diferenças, teremos, quem sabe, alguma chance.
Notas:
1) Os parlamentares em questão eram a senadora Heloísa Helena e os deputados federais Luciana Genro, João Fontes e Babá. Eles alegavam que a reforma tinha viés privatizante e retirava dos trabalhadores direitos conquistados historicamente, indo assim em direção contrária ao ideário mantido pelo PT ao longo da sua trajetória passada. Para um maior entendimento sobre o caráter conservador da referida reforma, ver Oliveira (2006).
2) Por meio, entre outras coisas, da administração de políticas assistencialistas e da cooptação de centrais sindicais, o imperativo da conciliação de classes foi tão intenso no período das duas primeiras gestões petistas que o sociólogo Francisco de Oliveira (2010) não hesitou em afirmar que "se FHC destruiu os músculos do Estado para implementar o projeto privatista, Lula destrói os músculos da sociedade, que já não se opõe às medidas de desregulamentação". O mesmo, ao que tudo indica, está a se reproduzir no governo Dilma.
3) Este conceito de crítica – articulação material de negação e afirmação no sentido de promover a "transcendência positiva da auto-alienação do trabalho" – é desenvolvido pelo filósofo húngaro em praticamente todas as suas obras. Ver, por exemplo, a esse respeito: Mészáros (2008).
4) Conforme as palavras de Mészáros: "Na realidade, temos uma multiplicidade de divisões e contradições e o 'capital social total' é a categoria abrangente que incorpora a pluralidade de capitais, com todas as suas contradições. Ora, se olharmos para o outro lado, também a 'totalidade do trabalho' jamais poderá ser considerada uma entidade homogênea enquanto o sistema do capital sobreviver. Há, necessariamente, inúmeras contradições encontradas sob as condições históricas dadas entre as parcelas do trabalho, que se opõem e lutam umas contra as outras, que concorrem umas com as outras, e não simplesmente parcelas particulares do capital em confronto. Essa é uma das tragédias da nossa atual situação de apuro. (...) Essas divisões e contradições restam conosco e, em última instância, devem-se explicar pela natureza e funcionamento do próprio sistema do capital" (2007, 66).
5) A expressão, na forma de atuação prática do Partido dos Trabalhadores, das exigências materiais do capital deve ser entendida, evidentemente, a partir dos múltiplos complexos de mediação que permeiam a relação entre essas duas estruturas, especialmente a crise estrutural do capital e a crise estrutural da política, que acometem o sistema sócio-metabólico vigente. Em razão das limitações do presente artigo, não poderemos nos aprofundar acerca desses temas. Para uma maior compreensão das crises estruturais do capital e da política, ver Mészáros (2002). Para uma boa visão das transformações do PT ao longo dos últimos anos, ver Oliveira (2006, 2010 e 2010b).
6) Segundo Mészáros (2007), proletário não pode ser definido meramente como o operário de fábrica ou o trabalhador manual. Proletariado, enquanto categoria social, diz respeito a todos os grupos sociais que, sofrendo a ação usurpadora do capital em relação aos meios de produção, se encontram alijados da possibilidade de controle consciente sobre o sócio-metabolismo humano. Proletarizar-se, nesse sentido, é perder esse controle.
7) A igualdade substantiva é definida por Mészáros qualitativamente, com base nas teses de Babeuf que foram endossadas por Marx: "A igualdade deve ser medida pela capacidade do trabalhador e pela carência do consumidor, não pela intensidade do trabalho nem pela quantidade de coisas consumidas (grifo nosso). Um homem dotado de certo grau de força, quando levanta um peso de dez libras, trabalha tanto quanto outro homem com cinco vezes a sua força que levanta cinqüenta libras. Aquele que, para saciar uma sede abrasadora, bebe um caneco de água, não desfruta mais do que seu camarada que, menos sedento, bebe apenas um copo. O objetivo do comunismo em questão é igualdade de trabalhos e prazeres, não de coisas consumíveis e tarefas dos trabalhadores" (BABEUF, apud Mészáros, ibid., 42). Tais são os princípios de organização da produção e da distribuição a serem implementados na fase superior da sociedade socialista: não a igualdade de coisas consumidas, nem de tarefas ou horas de trabalho realizadas, mas a igualdade medida pelas capacidades e carências não alienadas dos indivíduos sociais.
8) Nessa forma de organização política - horizontal e radicalmente pluralista -, é fundamental, afirma Mészáros, que os trabalhadores saibam articular as suas demandas parciais com as exigências gerais de superação do sistema. Vale a pena, mais uma vez, ler o que escreve o autor de Para além do capital acerca de sua proposta: "as demandas mais urgentes de nossa época, que correspondem diretamente às necessidades vitais de uma grande variedade de grupos sociais – empregos, educação, assistência médica, serviços sociais decentes, assim como as demandas inerentes à luta pela libertação das mulheres e contra a discriminação racial -, podem, sem uma única exceção, ser abraçadas sem restrições por qualquer liberal genuíno. Entretanto, é absolutamente diferente quando não são consideradas como questões singulares, isoladamente, mas em conjunto, como partes do complexo global que constantemente as reproduz como demandas não realizadas e sistematicamente irrealizáveis. Desse modo, o que decide a questão é a sua condição de realização (quando definidas em sua pluralidade como demandas socialistas conjuntas), e não o seu caráter considerado separadamente. Por conseguinte, o que está em jogo não é a enganosa 'politização' destas questões isoladas, pela qual poderiam cumprir uma função política direta numa estratégia socialista, mas a efetividade de afirmar e sustentar tais demandas 'não-socialistas', tão largamente auto-motivadoras no front mais amplo possível" (2002, 818). Ou seja, as "demandas urgentes de nossa época" – empregos, educação, saúde etc. – são todas importantes e não devem deixar de ser reivindicadas. Mas o essencial, diz Mészáros, não é a "politização destas questões isoladas" e sim a integração de tais demandas dentro de um quadro reivindicatório mais amplo, que combata o fundamento real de a sociedade se ver hoje majoritariamente privada dessas condições básicas: o sistema de controle sócio-metabólico do capital.
9) Daí a importância atribuída pelo filósofo húngaro (2008b) à educação revolucionária, que necessita se realizar em meios formais e não formais, a fim de proporcionar o desenvolvimento contínuo da consciência e dos valores socialistas exigidos para a efetivação da nova forma histórica.
Referências:
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002.
MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.
MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007.
MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social. São Paulo: Boitempo, 2008.
MÉSZÁROS, István, A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008b.
OLIVEIRA, Francisco de. O momento Lenin, 2006.
OLIVEIRA, Francisco de. O avesso do avesso. in OLIVEIRA, Francisco de, BRAGA, Ruy e RIZEK, Cibele (orgs.). Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010.
OLIVEIRA, Francisco de. Consenso conservador cria falsa divergência entre Serra e Dilma (entrevista a Valéria Nader e Gabriel Brito). 2010b. Disponível em http://www.correiocidadania.com.br/content/view/5102/9/. Acesso em 03/01/11.
Demetrio Cherobini é cientista social (UFSM) e mestre em Educação (UFSC).
(Correio da Cidadania)
Escrito por Demetrio Cherobini
07-Abr-2011
Resisto a tudo menos minha própria diversidade,
Sou vasto... contenho multidões.
Walt Whitman
A afinidade eletiva existente entre o Partido dos Trabalhadores e o capital é visível desde já um bom tempo. Em 2004, por exemplo, num gesto de autoritarismo extremo acompanhado de um discurso cínico e oportunista, o partido expulsou quatro de seus parlamentares que não concordavam com as determinações da cúpula acerca da famigerada reforma da previdência, então em curso (1).
Esta atitude - a imposição dos interesses de uma parte do partido sobre o todo de que é composto -, muito aquém de afirmar uma virtude política indispensável para os tempos atuais, configurou apenas a ilustração exemplar do imperativo prático que tem orientado as ações do PT ao longo dos últimos anos: a busca fetichista da unidade, realizada com vistas a neutralizar as energias críticas dos trabalhadores e a promover a ampla e irrestrita conciliação das classes estruturalmente antagônicas da presente sociedade (2). Demonstrou, acima de tudo, como o referido partido expressa, em sua forma de ser e de se comportar, a maneira de se estruturar do próprio capital, com seus respectivos interesses e contradições.
Ora, o capital, explica-nos István Mészáros (2002), é justamente esse modo totalizante de controle sobre a atividade produtiva humana, que se configura de maneira hierárquica e autoritária, visando eliminar toda e qualquer postura que seja diferente do propósito de levar a efeito a mais elevada extração praticável do trabalho excedente, num movimento perene, sempre acumulativo e auto-expansivo. Nesse contexto, diz o filósofo, a única alternativa viável é a crítica radical, feita pelo trabalho, de tal conjunto de relações sociais, uma crítica que promova a negação das determinações materiais do sistema e a conseqüente afirmação de novas maneiras de mediar o metabolismo social humano - a negação, portanto, do modo de ser hierárquico e excludente do capital e a afirmação de uma forma de relacionamento genuinamente associativa e horizontal entre os "produtores livremente combinados" (3). Tal alternativa se encontra delineada em torno daquilo que Mészáros denomina de pluralismo socialista, um princípio de organização que visa superar as contradições inerentes à imposição da unidade e as infelizes mistificações de que essa proposta vem acompanhada.
Nesse sentido, argumenta o autor de Para além do capital, é possível observar que já Marx e Engels em sua época estavam atentos para o fato de que a unidade não é pré-requisito para o êxito do projeto revolucionário dos trabalhadores. Duas breves passagens dos referidos autores, listadas por Mészáros, servem para demonstrar o posicionamento de ambos sobre o assunto. A primeira é de uma carta de Engels a August Bebel, datada de 1º-2 de maio de 1891, condenando a influência de Wilhelm Liebknecht sobre a redação do Programa de Gotha: "Da democracia burguesa ele (Liebknecht) trouxe e manteve uma verdadeira mania de unificação" (ENGELS, apud Mészáros, 2002, 811). A segunda é de uma carta de Marx a Wilhelm Bracke, escrita em 5 de maio de 1875, onde se lê que "é um engano acreditar que este sucesso momentâneo (isto é, a unidade em redor de um movimento político) não será comprado a um preço muito alto" (MARX, apud Mészáros, ibid., 811).
Para Marx e Engels, a suspeita em relação à exigência da unidade se devia ao fato de que tal proposta costumava levar os partidos e as organizações de esquerda a conseqüências prejudiciais, entre elas a supressão da autocrítica e a barganha sobre princípios. Isto era, evidentemente, um preço alto demais a ser pago pelas forças que lutavam pela realização de uma comunidade humana livre do jugo do capital, onde homens e mulheres pudessem desenvolver ao máximo as suas potencialidades. Ciente desse dilema, Mészáros estabelece uma reflexão que pretende apontar uma saída para o labirinto no qual se perdem muitos dos movimentos socialistas da atualidade.
A unidade política, explica o filósofo, não pode ser um objetivo porque a classe trabalhadora não é, por sua própria condição, unificada. Na verdade, ela constitui um complexo de setores variados - muitas vezes antagonicamente estruturado - em contraposição à pluralidade de capitais em torno da qual se baseia o sistema vigente (4). Por isso, o que é desejável no movimento revolucionário é a articulação pluralista – e não a unidade, que pressupõe camuflar diferenças artificialmente - dos diversos grupos que combatem pela causa dos trabalhadores.
Como explica Mészáros, "Assim como naqueles dias (isto é, nos tempos de Marx e Engels), mais uma vez este assunto é de suprema importância. Pois hoje – talvez mais que nunca, em vista das experiências amargas do passado recente e do não tão recente – não é mais possível conceber as formas imprescindíveis de ação comum sem uma articulação consciente de um pluralismo socialista, que não só reconhece as diferenças existentes, mas também a necessidade de uma adequada 'divisão do trabalho' na estrutura geral de uma ofensiva socialista. Em oposição à falsa identificação da 'unidade' como o único meio de patrocinar princípios socialistas (enquanto, na realidade, a perseguição irreal e a imposição de unidade trouxeram com elas as necessárias concessões sobre princípios), permanece válida a regra de Marx: não pode haver barganha sobre princípios" (2002, 812).
De acordo com Mészáros, somente o pluralismo socialista pode impedir que, dentro de um movimento de luta social e política complexo e multifacetado, ocorra a imposição do interesse de uma das suas partes sobre as demais – imposição esta que, justamente, como o citado caso do PT o demonstra, origina a supressão da autocrítica e a barganha sobre princípios, que tanto beneficiam a ordem de reprodução sócio-metabólica vigente (5).
A práxis pluralista, no sentido que o filósofo atribui ao termo, é aquela que reconhece e combina as diferenças e as particularidades concretas inerentes aos variados setores do proletariado (6) em função do seu objetivo maior. Ao assim proceder, cria uma forma de ação conjunta que possibilita o combate do próprio fundamento de hoje haver os particularismos antagônicos de classe, a saber: a dinâmica – sempre acumulativa e auto-expansiva - da exploração do trabalho excedente que configura o sistema do capital.
As implicações políticas de tal proposta são claras: o agente social da transformação revolucionária não pode ser definido como sendo composto unicamente por este ou por aquele ramo específico dos trabalhadores. Ao contrário: precisa ser buscado no trabalho como um todo, que, reconhecendo sua constituição múltipla e heterogênea, age no sentido de realizar o – também reconhecido - interesse que permeia a classe em sua totalidade.
Lemos, assim, em O poder da ideologia, que o sujeito social da emancipação "só estará apto para criar as condições do sucesso se abranger a totalidade dos grupos sociológicos capazes de se aglutinarem em uma força transformadora efetiva no âmbito de um quadro de orientação estratégica adequado. O denominador comum ou o núcleo estratégico de todos esses grupos não pode ser o 'trabalho industrial', tenha ele colarinho branco ou azul, mas o trabalho como antagonista estrutural do capital. Isto é o que combina objetivamente os interesses variados e historicamente produzidos da grande multiplicidade de grupos sociais que estão do lado emancipador da linha divisória das classes no interesse comum da alternativa hegemônica do trabalho à ordem social do capital. Pois todos esses grupos devem desempenhar seu importante papel ativo na garantia da transição para uma ordem qualitativamente diferente" (2004, 51).
Ou seja, mesmo a classe trabalhadora sendo composta de uma miríade de setores, cada qual com interesses correspondentes às suas posições particulares, há, por trás disso, pela própria situação atual do trabalho enquanto atividade subordinada ao capital, uma condição e um interesse compartilhado por todos: isto é, respectivamente, a exploração fetichista do trabalho excedente e a necessidade de superá-la em direção a uma sociedade emancipada.
No processo revolucionário, portanto, todos os grupos terão papel fundamental, mas é preciso que estejam alertas para o fato de que, para uma emancipação realmente digna deste nome, a luta não pode se realizar com um dos segmentos afirmando o seu interesse sobre os demais. O pluralismo exige horizontalidade entre os movimentos de trabalhadores. Somente dessa maneira os socialistas poderão aspirar à radical e efetiva superação do sistema do capital.
O novo modo de operação dos revolucionários não deverá, então, espelhar a maneira de se estruturar do próprio capital – isto é, como o PT o faz: hierarquicamente e afirmando o interesse da parte sobre o todo, com vistas a eliminar as energias combativas dos trabalhadores. A emergente força social emancipadora conseguirá ter êxito em seus propósitos apenas se se articular a partir de princípios radicalmente diferentes de ação e de organização. A reconstrução das mediações sociais e políticas em torno das quais estarão reunidos os socialistas já necessitará, pois, estar baseada naquilo que Mészáros chama de igualdade substantiva, (7) em contraposição à igualdade meramente formal da atual ordem vigente.
Isto quer dizer, em outras palavras, que a estruturação interna do movimento terá que apresentar, em seu próprio processo constitutivo, "prenúncios de uma nova forma – genuinamente associativa – de cumprir as tarefas que possam se apresentar" (8) - 2004, 52. E para que tudo isso possa, enfim, se realizar, é imprescindível, diz Mészáros, a formação de uma "consciência de massa socialista", a ser desenvolvida no processo mesmo de confrontação prática com a ordem do capital (9).
A proposta mészáriana do pluralismo socialista é, portanto, de fundamental importância para a esquerda brasileira nos dias atuais. Depois do tsunami de pelegos que assolou o país com o governo do PT, as novas forças socialistas a se constituírem precisarão se reformular sem repetir as mesmas contradições. PSOL, PCB, PSTU e todos os demais grupos políticos imbuídos do objetivo da superação do capital necessitarão se articular de forma crítica e pluralista daqui por diante, ou estarão condenados ao fracasso e à impotência.
Mais do que a falsa unidade – calcada, como vimos, na imposição da parte sobre o todo e na barganha sobre princípios –, é imperioso coadunar grupos diversificados, com as suas respectivas particularidades, em redor do objetivo comum: derrotar o capital e instaurar a comunidade dos homens e mulheres verdadeiramente emancipados - ou a "associação livre dos produtores", como a chamou Marx.
Em tempos históricos de profunda crise, torna-se imprescindível que construamos essa capacidade de atuar em conjunto de forma horizontal. Se continuarmos mergulhados na inépcia no que diz respeito a travarmos esse tipo de ação coletiva, estaremos com toda certeza perdidos. Se, ao contrário, conseguirmos envidar esforços articulados, mesmo que tenhamos entre nós algumas eventuais diferenças, teremos, quem sabe, alguma chance.
Notas:
1) Os parlamentares em questão eram a senadora Heloísa Helena e os deputados federais Luciana Genro, João Fontes e Babá. Eles alegavam que a reforma tinha viés privatizante e retirava dos trabalhadores direitos conquistados historicamente, indo assim em direção contrária ao ideário mantido pelo PT ao longo da sua trajetória passada. Para um maior entendimento sobre o caráter conservador da referida reforma, ver Oliveira (2006).
2) Por meio, entre outras coisas, da administração de políticas assistencialistas e da cooptação de centrais sindicais, o imperativo da conciliação de classes foi tão intenso no período das duas primeiras gestões petistas que o sociólogo Francisco de Oliveira (2010) não hesitou em afirmar que "se FHC destruiu os músculos do Estado para implementar o projeto privatista, Lula destrói os músculos da sociedade, que já não se opõe às medidas de desregulamentação". O mesmo, ao que tudo indica, está a se reproduzir no governo Dilma.
3) Este conceito de crítica – articulação material de negação e afirmação no sentido de promover a "transcendência positiva da auto-alienação do trabalho" – é desenvolvido pelo filósofo húngaro em praticamente todas as suas obras. Ver, por exemplo, a esse respeito: Mészáros (2008).
4) Conforme as palavras de Mészáros: "Na realidade, temos uma multiplicidade de divisões e contradições e o 'capital social total' é a categoria abrangente que incorpora a pluralidade de capitais, com todas as suas contradições. Ora, se olharmos para o outro lado, também a 'totalidade do trabalho' jamais poderá ser considerada uma entidade homogênea enquanto o sistema do capital sobreviver. Há, necessariamente, inúmeras contradições encontradas sob as condições históricas dadas entre as parcelas do trabalho, que se opõem e lutam umas contra as outras, que concorrem umas com as outras, e não simplesmente parcelas particulares do capital em confronto. Essa é uma das tragédias da nossa atual situação de apuro. (...) Essas divisões e contradições restam conosco e, em última instância, devem-se explicar pela natureza e funcionamento do próprio sistema do capital" (2007, 66).
5) A expressão, na forma de atuação prática do Partido dos Trabalhadores, das exigências materiais do capital deve ser entendida, evidentemente, a partir dos múltiplos complexos de mediação que permeiam a relação entre essas duas estruturas, especialmente a crise estrutural do capital e a crise estrutural da política, que acometem o sistema sócio-metabólico vigente. Em razão das limitações do presente artigo, não poderemos nos aprofundar acerca desses temas. Para uma maior compreensão das crises estruturais do capital e da política, ver Mészáros (2002). Para uma boa visão das transformações do PT ao longo dos últimos anos, ver Oliveira (2006, 2010 e 2010b).
6) Segundo Mészáros (2007), proletário não pode ser definido meramente como o operário de fábrica ou o trabalhador manual. Proletariado, enquanto categoria social, diz respeito a todos os grupos sociais que, sofrendo a ação usurpadora do capital em relação aos meios de produção, se encontram alijados da possibilidade de controle consciente sobre o sócio-metabolismo humano. Proletarizar-se, nesse sentido, é perder esse controle.
7) A igualdade substantiva é definida por Mészáros qualitativamente, com base nas teses de Babeuf que foram endossadas por Marx: "A igualdade deve ser medida pela capacidade do trabalhador e pela carência do consumidor, não pela intensidade do trabalho nem pela quantidade de coisas consumidas (grifo nosso). Um homem dotado de certo grau de força, quando levanta um peso de dez libras, trabalha tanto quanto outro homem com cinco vezes a sua força que levanta cinqüenta libras. Aquele que, para saciar uma sede abrasadora, bebe um caneco de água, não desfruta mais do que seu camarada que, menos sedento, bebe apenas um copo. O objetivo do comunismo em questão é igualdade de trabalhos e prazeres, não de coisas consumíveis e tarefas dos trabalhadores" (BABEUF, apud Mészáros, ibid., 42). Tais são os princípios de organização da produção e da distribuição a serem implementados na fase superior da sociedade socialista: não a igualdade de coisas consumidas, nem de tarefas ou horas de trabalho realizadas, mas a igualdade medida pelas capacidades e carências não alienadas dos indivíduos sociais.
8) Nessa forma de organização política - horizontal e radicalmente pluralista -, é fundamental, afirma Mészáros, que os trabalhadores saibam articular as suas demandas parciais com as exigências gerais de superação do sistema. Vale a pena, mais uma vez, ler o que escreve o autor de Para além do capital acerca de sua proposta: "as demandas mais urgentes de nossa época, que correspondem diretamente às necessidades vitais de uma grande variedade de grupos sociais – empregos, educação, assistência médica, serviços sociais decentes, assim como as demandas inerentes à luta pela libertação das mulheres e contra a discriminação racial -, podem, sem uma única exceção, ser abraçadas sem restrições por qualquer liberal genuíno. Entretanto, é absolutamente diferente quando não são consideradas como questões singulares, isoladamente, mas em conjunto, como partes do complexo global que constantemente as reproduz como demandas não realizadas e sistematicamente irrealizáveis. Desse modo, o que decide a questão é a sua condição de realização (quando definidas em sua pluralidade como demandas socialistas conjuntas), e não o seu caráter considerado separadamente. Por conseguinte, o que está em jogo não é a enganosa 'politização' destas questões isoladas, pela qual poderiam cumprir uma função política direta numa estratégia socialista, mas a efetividade de afirmar e sustentar tais demandas 'não-socialistas', tão largamente auto-motivadoras no front mais amplo possível" (2002, 818). Ou seja, as "demandas urgentes de nossa época" – empregos, educação, saúde etc. – são todas importantes e não devem deixar de ser reivindicadas. Mas o essencial, diz Mészáros, não é a "politização destas questões isoladas" e sim a integração de tais demandas dentro de um quadro reivindicatório mais amplo, que combata o fundamento real de a sociedade se ver hoje majoritariamente privada dessas condições básicas: o sistema de controle sócio-metabólico do capital.
9) Daí a importância atribuída pelo filósofo húngaro (2008b) à educação revolucionária, que necessita se realizar em meios formais e não formais, a fim de proporcionar o desenvolvimento contínuo da consciência e dos valores socialistas exigidos para a efetivação da nova forma histórica.
Referências:
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002.
MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.
MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007.
MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social. São Paulo: Boitempo, 2008.
MÉSZÁROS, István, A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008b.
OLIVEIRA, Francisco de. O momento Lenin, 2006.
OLIVEIRA, Francisco de. O avesso do avesso. in OLIVEIRA, Francisco de, BRAGA, Ruy e RIZEK, Cibele (orgs.). Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010.
OLIVEIRA, Francisco de. Consenso conservador cria falsa divergência entre Serra e Dilma (entrevista a Valéria Nader e Gabriel Brito). 2010b. Disponível em http://www.correiocidadania.com.br/content/view/5102/9/. Acesso em 03/01/11.
Demetrio Cherobini é cientista social (UFSM) e mestre em Educação (UFSC).
(Correio da Cidadania)
sexta-feira, 29 de abril de 2011
István Mészáros
István Mészáros e a imperiosa necessidade do pluralismo socialista
Escrito por Demetrio Cherobini
07-Abr-2011
Resisto a tudo menos minha própria diversidade,
Sou vasto... contenho multidões.
Walt Whitman
A afinidade eletiva existente entre o Partido dos Trabalhadores e o capital é visível desde já um bom tempo. Em 2004, por exemplo, num gesto de autoritarismo extremo acompanhado de um discurso cínico e oportunista, o partido expulsou quatro de seus parlamentares que não concordavam com as determinações da cúpula acerca da famigerada reforma da previdência, então em curso (1).
Esta atitude - a imposição dos interesses de uma parte do partido sobre o todo de que é composto -, muito aquém de afirmar uma virtude política indispensável para os tempos atuais, configurou apenas a ilustração exemplar do imperativo prático que tem orientado as ações do PT ao longo dos últimos anos: a busca fetichista da unidade, realizada com vistas a neutralizar as energias críticas dos trabalhadores e a promover a ampla e irrestrita conciliação das classes estruturalmente antagônicas da presente sociedade (2). Demonstrou, acima de tudo, como o referido partido expressa, em sua forma de ser e de se comportar, a maneira de se estruturar do próprio capital, com seus respectivos interesses e contradições.
Ora, o capital, explica-nos István Mészáros (2002), é justamente esse modo totalizante de controle sobre a atividade produtiva humana, que se configura de maneira hierárquica e autoritária, visando eliminar toda e qualquer postura que seja diferente do propósito de levar a efeito a mais elevada extração praticável do trabalho excedente, num movimento perene, sempre acumulativo e auto-expansivo. Nesse contexto, diz o filósofo, a única alternativa viável é a crítica radical, feita pelo trabalho, de tal conjunto de relações sociais, uma crítica que promova a negação das determinações materiais do sistema e a conseqüente afirmação de novas maneiras de mediar o metabolismo social humano - a negação, portanto, do modo de ser hierárquico e excludente do capital e a afirmação de uma forma de relacionamento genuinamente associativa e horizontal entre os "produtores livremente combinados" (3). Tal alternativa se encontra delineada em torno daquilo que Mészáros denomina de pluralismo socialista, um princípio de organização que visa superar as contradições inerentes à imposição da unidade e as infelizes mistificações de que essa proposta vem acompanhada.
Nesse sentido, argumenta o autor de Para além do capital, é possível observar que já Marx e Engels em sua época estavam atentos para o fato de que a unidade não é pré-requisito para o êxito do projeto revolucionário dos trabalhadores. Duas breves passagens dos referidos autores, listadas por Mészáros, servem para demonstrar o posicionamento de ambos sobre o assunto. A primeira é de uma carta de Engels a August Bebel, datada de 1º-2 de maio de 1891, condenando a influência de Wilhelm Liebknecht sobre a redação do Programa de Gotha: "Da democracia burguesa ele (Liebknecht) trouxe e manteve uma verdadeira mania de unificação" (ENGELS, apud Mészáros, 2002, 811). A segunda é de uma carta de Marx a Wilhelm Bracke, escrita em 5 de maio de 1875, onde se lê que "é um engano acreditar que este sucesso momentâneo (isto é, a unidade em redor de um movimento político) não será comprado a um preço muito alto" (MARX, apud Mészáros, ibid., 811).
Para Marx e Engels, a suspeita em relação à exigência da unidade se devia ao fato de que tal proposta costumava levar os partidos e as organizações de esquerda a conseqüências prejudiciais, entre elas a supressão da autocrítica e a barganha sobre princípios. Isto era, evidentemente, um preço alto demais a ser pago pelas forças que lutavam pela realização de uma comunidade humana livre do jugo do capital, onde homens e mulheres pudessem desenvolver ao máximo as suas potencialidades. Ciente desse dilema, Mészáros estabelece uma reflexão que pretende apontar uma saída para o labirinto no qual se perdem muitos dos movimentos socialistas da atualidade.
A unidade política, explica o filósofo, não pode ser um objetivo porque a classe trabalhadora não é, por sua própria condição, unificada. Na verdade, ela constitui um complexo de setores variados - muitas vezes antagonicamente estruturado - em contraposição à pluralidade de capitais em torno da qual se baseia o sistema vigente (4). Por isso, o que é desejável no movimento revolucionário é a articulação pluralista – e não a unidade, que pressupõe camuflar diferenças artificialmente - dos diversos grupos que combatem pela causa dos trabalhadores.
Como explica Mészáros, "Assim como naqueles dias (isto é, nos tempos de Marx e Engels), mais uma vez este assunto é de suprema importância. Pois hoje – talvez mais que nunca, em vista das experiências amargas do passado recente e do não tão recente – não é mais possível conceber as formas imprescindíveis de ação comum sem uma articulação consciente de um pluralismo socialista, que não só reconhece as diferenças existentes, mas também a necessidade de uma adequada 'divisão do trabalho' na estrutura geral de uma ofensiva socialista. Em oposição à falsa identificação da 'unidade' como o único meio de patrocinar princípios socialistas (enquanto, na realidade, a perseguição irreal e a imposição de unidade trouxeram com elas as necessárias concessões sobre princípios), permanece válida a regra de Marx: não pode haver barganha sobre princípios" (2002, 812).
De acordo com Mészáros, somente o pluralismo socialista pode impedir que, dentro de um movimento de luta social e política complexo e multifacetado, ocorra a imposição do interesse de uma das suas partes sobre as demais – imposição esta que, justamente, como o citado caso do PT o demonstra, origina a supressão da autocrítica e a barganha sobre princípios, que tanto beneficiam a ordem de reprodução sócio-metabólica vigente (5).
A práxis pluralista, no sentido que o filósofo atribui ao termo, é aquela que reconhece e combina as diferenças e as particularidades concretas inerentes aos variados setores do proletariado (6) em função do seu objetivo maior. Ao assim proceder, cria uma forma de ação conjunta que possibilita o combate do próprio fundamento de hoje haver os particularismos antagônicos de classe, a saber: a dinâmica – sempre acumulativa e auto-expansiva - da exploração do trabalho excedente que configura o sistema do capital.
As implicações políticas de tal proposta são claras: o agente social da transformação revolucionária não pode ser definido como sendo composto unicamente por este ou por aquele ramo específico dos trabalhadores. Ao contrário: precisa ser buscado no trabalho como um todo, que, reconhecendo sua constituição múltipla e heterogênea, age no sentido de realizar o – também reconhecido - interesse que permeia a classe em sua totalidade.
Lemos, assim, em O poder da ideologia, que o sujeito social da emancipação "só estará apto para criar as condições do sucesso se abranger a totalidade dos grupos sociológicos capazes de se aglutinarem em uma força transformadora efetiva no âmbito de um quadro de orientação estratégica adequado. O denominador comum ou o núcleo estratégico de todos esses grupos não pode ser o 'trabalho industrial', tenha ele colarinho branco ou azul, mas o trabalho como antagonista estrutural do capital. Isto é o que combina objetivamente os interesses variados e historicamente produzidos da grande multiplicidade de grupos sociais que estão do lado emancipador da linha divisória das classes no interesse comum da alternativa hegemônica do trabalho à ordem social do capital. Pois todos esses grupos devem desempenhar seu importante papel ativo na garantia da transição para uma ordem qualitativamente diferente" (2004, 51).
Ou seja, mesmo a classe trabalhadora sendo composta de uma miríade de setores, cada qual com interesses correspondentes às suas posições particulares, há, por trás disso, pela própria situação atual do trabalho enquanto atividade subordinada ao capital, uma condição e um interesse compartilhado por todos: isto é, respectivamente, a exploração fetichista do trabalho excedente e a necessidade de superá-la em direção a uma sociedade emancipada.
No processo revolucionário, portanto, todos os grupos terão papel fundamental, mas é preciso que estejam alertas para o fato de que, para uma emancipação realmente digna deste nome, a luta não pode se realizar com um dos segmentos afirmando o seu interesse sobre os demais. O pluralismo exige horizontalidade entre os movimentos de trabalhadores. Somente dessa maneira os socialistas poderão aspirar à radical e efetiva superação do sistema do capital.
O novo modo de operação dos revolucionários não deverá, então, espelhar a maneira de se estruturar do próprio capital – isto é, como o PT o faz: hierarquicamente e afirmando o interesse da parte sobre o todo, com vistas a eliminar as energias combativas dos trabalhadores. A emergente força social emancipadora conseguirá ter êxito em seus propósitos apenas se se articular a partir de princípios radicalmente diferentes de ação e de organização. A reconstrução das mediações sociais e políticas em torno das quais estarão reunidos os socialistas já necessitará, pois, estar baseada naquilo que Mészáros chama de igualdade substantiva, (7) em contraposição à igualdade meramente formal da atual ordem vigente.
Isto quer dizer, em outras palavras, que a estruturação interna do movimento terá que apresentar, em seu próprio processo constitutivo, "prenúncios de uma nova forma – genuinamente associativa – de cumprir as tarefas que possam se apresentar" (8) - 2004, 52. E para que tudo isso possa, enfim, se realizar, é imprescindível, diz Mészáros, a formação de uma "consciência de massa socialista", a ser desenvolvida no processo mesmo de confrontação prática com a ordem do capital (9).
A proposta mészáriana do pluralismo socialista é, portanto, de fundamental importância para a esquerda brasileira nos dias atuais. Depois do tsunami de pelegos que assolou o país com o governo do PT, as novas forças socialistas a se constituírem precisarão se reformular sem repetir as mesmas contradições. PSOL, PCB, PSTU e todos os demais grupos políticos imbuídos do objetivo da superação do capital necessitarão se articular de forma crítica e pluralista daqui por diante, ou estarão condenados ao fracasso e à impotência.
Mais do que a falsa unidade – calcada, como vimos, na imposição da parte sobre o todo e na barganha sobre princípios –, é imperioso coadunar grupos diversificados, com as suas respectivas particularidades, em redor do objetivo comum: derrotar o capital e instaurar a comunidade dos homens e mulheres verdadeiramente emancipados - ou a "associação livre dos produtores", como a chamou Marx.
Em tempos históricos de profunda crise, torna-se imprescindível que construamos essa capacidade de atuar em conjunto de forma horizontal. Se continuarmos mergulhados na inépcia no que diz respeito a travarmos esse tipo de ação coletiva, estaremos com toda certeza perdidos. Se, ao contrário, conseguirmos envidar esforços articulados, mesmo que tenhamos entre nós algumas eventuais diferenças, teremos, quem sabe, alguma chance.
Notas:
1) Os parlamentares em questão eram a senadora Heloísa Helena e os deputados federais Luciana Genro, João Fontes e Babá. Eles alegavam que a reforma tinha viés privatizante e retirava dos trabalhadores direitos conquistados historicamente, indo assim em direção contrária ao ideário mantido pelo PT ao longo da sua trajetória passada. Para um maior entendimento sobre o caráter conservador da referida reforma, ver Oliveira (2006).
2) Por meio, entre outras coisas, da administração de políticas assistencialistas e da cooptação de centrais sindicais, o imperativo da conciliação de classes foi tão intenso no período das duas primeiras gestões petistas que o sociólogo Francisco de Oliveira (2010) não hesitou em afirmar que "se FHC destruiu os músculos do Estado para implementar o projeto privatista, Lula destrói os músculos da sociedade, que já não se opõe às medidas de desregulamentação". O mesmo, ao que tudo indica, está a se reproduzir no governo Dilma.
3) Este conceito de crítica – articulação material de negação e afirmação no sentido de promover a "transcendência positiva da auto-alienação do trabalho" – é desenvolvido pelo filósofo húngaro em praticamente todas as suas obras. Ver, por exemplo, a esse respeito: Mészáros (2008).
4) Conforme as palavras de Mészáros: "Na realidade, temos uma multiplicidade de divisões e contradições e o 'capital social total' é a categoria abrangente que incorpora a pluralidade de capitais, com todas as suas contradições. Ora, se olharmos para o outro lado, também a 'totalidade do trabalho' jamais poderá ser considerada uma entidade homogênea enquanto o sistema do capital sobreviver. Há, necessariamente, inúmeras contradições encontradas sob as condições históricas dadas entre as parcelas do trabalho, que se opõem e lutam umas contra as outras, que concorrem umas com as outras, e não simplesmente parcelas particulares do capital em confronto. Essa é uma das tragédias da nossa atual situação de apuro. (...) Essas divisões e contradições restam conosco e, em última instância, devem-se explicar pela natureza e funcionamento do próprio sistema do capital" (2007, 66).
5) A expressão, na forma de atuação prática do Partido dos Trabalhadores, das exigências materiais do capital deve ser entendida, evidentemente, a partir dos múltiplos complexos de mediação que permeiam a relação entre essas duas estruturas, especialmente a crise estrutural do capital e a crise estrutural da política, que acometem o sistema sócio-metabólico vigente. Em razão das limitações do presente artigo, não poderemos nos aprofundar acerca desses temas. Para uma maior compreensão das crises estruturais do capital e da política, ver Mészáros (2002). Para uma boa visão das transformações do PT ao longo dos últimos anos, ver Oliveira (2006, 2010 e 2010b).
6) Segundo Mészáros (2007), proletário não pode ser definido meramente como o operário de fábrica ou o trabalhador manual. Proletariado, enquanto categoria social, diz respeito a todos os grupos sociais que, sofrendo a ação usurpadora do capital em relação aos meios de produção, se encontram alijados da possibilidade de controle consciente sobre o sócio-metabolismo humano. Proletarizar-se, nesse sentido, é perder esse controle.
7) A igualdade substantiva é definida por Mészáros qualitativamente, com base nas teses de Babeuf que foram endossadas por Marx: "A igualdade deve ser medida pela capacidade do trabalhador e pela carência do consumidor, não pela intensidade do trabalho nem pela quantidade de coisas consumidas (grifo nosso). Um homem dotado de certo grau de força, quando levanta um peso de dez libras, trabalha tanto quanto outro homem com cinco vezes a sua força que levanta cinqüenta libras. Aquele que, para saciar uma sede abrasadora, bebe um caneco de água, não desfruta mais do que seu camarada que, menos sedento, bebe apenas um copo. O objetivo do comunismo em questão é igualdade de trabalhos e prazeres, não de coisas consumíveis e tarefas dos trabalhadores" (BABEUF, apud Mészáros, ibid., 42). Tais são os princípios de organização da produção e da distribuição a serem implementados na fase superior da sociedade socialista: não a igualdade de coisas consumidas, nem de tarefas ou horas de trabalho realizadas, mas a igualdade medida pelas capacidades e carências não alienadas dos indivíduos sociais.
8) Nessa forma de organização política - horizontal e radicalmente pluralista -, é fundamental, afirma Mészáros, que os trabalhadores saibam articular as suas demandas parciais com as exigências gerais de superação do sistema. Vale a pena, mais uma vez, ler o que escreve o autor de Para além do capital acerca de sua proposta: "as demandas mais urgentes de nossa época, que correspondem diretamente às necessidades vitais de uma grande variedade de grupos sociais – empregos, educação, assistência médica, serviços sociais decentes, assim como as demandas inerentes à luta pela libertação das mulheres e contra a discriminação racial -, podem, sem uma única exceção, ser abraçadas sem restrições por qualquer liberal genuíno. Entretanto, é absolutamente diferente quando não são consideradas como questões singulares, isoladamente, mas em conjunto, como partes do complexo global que constantemente as reproduz como demandas não realizadas e sistematicamente irrealizáveis. Desse modo, o que decide a questão é a sua condição de realização (quando definidas em sua pluralidade como demandas socialistas conjuntas), e não o seu caráter considerado separadamente. Por conseguinte, o que está em jogo não é a enganosa 'politização' destas questões isoladas, pela qual poderiam cumprir uma função política direta numa estratégia socialista, mas a efetividade de afirmar e sustentar tais demandas 'não-socialistas', tão largamente auto-motivadoras no front mais amplo possível" (2002, 818). Ou seja, as "demandas urgentes de nossa época" – empregos, educação, saúde etc. – são todas importantes e não devem deixar de ser reivindicadas. Mas o essencial, diz Mészáros, não é a "politização destas questões isoladas" e sim a integração de tais demandas dentro de um quadro reivindicatório mais amplo, que combata o fundamento real de a sociedade se ver hoje majoritariamente privada dessas condições básicas: o sistema de controle sócio-metabólico do capital.
9) Daí a importância atribuída pelo filósofo húngaro (2008b) à educação revolucionária, que necessita se realizar em meios formais e não formais, a fim de proporcionar o desenvolvimento contínuo da consciência e dos valores socialistas exigidos para a efetivação da nova forma histórica.
Referências:
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002.
MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.
MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007.
MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social. São Paulo: Boitempo, 2008.
MÉSZÁROS, István, A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008b.
OLIVEIRA, Francisco de. O momento Lenin, 2006.
OLIVEIRA, Francisco de. O avesso do avesso. in OLIVEIRA, Francisco de, BRAGA, Ruy e RIZEK, Cibele (orgs.). Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010.
OLIVEIRA, Francisco de. Consenso conservador cria falsa divergência entre Serra e Dilma (entrevista a Valéria Nader e Gabriel Brito). 2010b. Disponível em http://www.correiocidadania.com.br/content/view/5102/9/. Acesso em 03/01/11.
Demetrio Cherobini é cientista social (UFSM) e mestre em Educação (UFSC).
(Correio da Cidadania)
Escrito por Demetrio Cherobini
07-Abr-2011
Resisto a tudo menos minha própria diversidade,
Sou vasto... contenho multidões.
Walt Whitman
A afinidade eletiva existente entre o Partido dos Trabalhadores e o capital é visível desde já um bom tempo. Em 2004, por exemplo, num gesto de autoritarismo extremo acompanhado de um discurso cínico e oportunista, o partido expulsou quatro de seus parlamentares que não concordavam com as determinações da cúpula acerca da famigerada reforma da previdência, então em curso (1).
Esta atitude - a imposição dos interesses de uma parte do partido sobre o todo de que é composto -, muito aquém de afirmar uma virtude política indispensável para os tempos atuais, configurou apenas a ilustração exemplar do imperativo prático que tem orientado as ações do PT ao longo dos últimos anos: a busca fetichista da unidade, realizada com vistas a neutralizar as energias críticas dos trabalhadores e a promover a ampla e irrestrita conciliação das classes estruturalmente antagônicas da presente sociedade (2). Demonstrou, acima de tudo, como o referido partido expressa, em sua forma de ser e de se comportar, a maneira de se estruturar do próprio capital, com seus respectivos interesses e contradições.
Ora, o capital, explica-nos István Mészáros (2002), é justamente esse modo totalizante de controle sobre a atividade produtiva humana, que se configura de maneira hierárquica e autoritária, visando eliminar toda e qualquer postura que seja diferente do propósito de levar a efeito a mais elevada extração praticável do trabalho excedente, num movimento perene, sempre acumulativo e auto-expansivo. Nesse contexto, diz o filósofo, a única alternativa viável é a crítica radical, feita pelo trabalho, de tal conjunto de relações sociais, uma crítica que promova a negação das determinações materiais do sistema e a conseqüente afirmação de novas maneiras de mediar o metabolismo social humano - a negação, portanto, do modo de ser hierárquico e excludente do capital e a afirmação de uma forma de relacionamento genuinamente associativa e horizontal entre os "produtores livremente combinados" (3). Tal alternativa se encontra delineada em torno daquilo que Mészáros denomina de pluralismo socialista, um princípio de organização que visa superar as contradições inerentes à imposição da unidade e as infelizes mistificações de que essa proposta vem acompanhada.
Nesse sentido, argumenta o autor de Para além do capital, é possível observar que já Marx e Engels em sua época estavam atentos para o fato de que a unidade não é pré-requisito para o êxito do projeto revolucionário dos trabalhadores. Duas breves passagens dos referidos autores, listadas por Mészáros, servem para demonstrar o posicionamento de ambos sobre o assunto. A primeira é de uma carta de Engels a August Bebel, datada de 1º-2 de maio de 1891, condenando a influência de Wilhelm Liebknecht sobre a redação do Programa de Gotha: "Da democracia burguesa ele (Liebknecht) trouxe e manteve uma verdadeira mania de unificação" (ENGELS, apud Mészáros, 2002, 811). A segunda é de uma carta de Marx a Wilhelm Bracke, escrita em 5 de maio de 1875, onde se lê que "é um engano acreditar que este sucesso momentâneo (isto é, a unidade em redor de um movimento político) não será comprado a um preço muito alto" (MARX, apud Mészáros, ibid., 811).
Para Marx e Engels, a suspeita em relação à exigência da unidade se devia ao fato de que tal proposta costumava levar os partidos e as organizações de esquerda a conseqüências prejudiciais, entre elas a supressão da autocrítica e a barganha sobre princípios. Isto era, evidentemente, um preço alto demais a ser pago pelas forças que lutavam pela realização de uma comunidade humana livre do jugo do capital, onde homens e mulheres pudessem desenvolver ao máximo as suas potencialidades. Ciente desse dilema, Mészáros estabelece uma reflexão que pretende apontar uma saída para o labirinto no qual se perdem muitos dos movimentos socialistas da atualidade.
A unidade política, explica o filósofo, não pode ser um objetivo porque a classe trabalhadora não é, por sua própria condição, unificada. Na verdade, ela constitui um complexo de setores variados - muitas vezes antagonicamente estruturado - em contraposição à pluralidade de capitais em torno da qual se baseia o sistema vigente (4). Por isso, o que é desejável no movimento revolucionário é a articulação pluralista – e não a unidade, que pressupõe camuflar diferenças artificialmente - dos diversos grupos que combatem pela causa dos trabalhadores.
Como explica Mészáros, "Assim como naqueles dias (isto é, nos tempos de Marx e Engels), mais uma vez este assunto é de suprema importância. Pois hoje – talvez mais que nunca, em vista das experiências amargas do passado recente e do não tão recente – não é mais possível conceber as formas imprescindíveis de ação comum sem uma articulação consciente de um pluralismo socialista, que não só reconhece as diferenças existentes, mas também a necessidade de uma adequada 'divisão do trabalho' na estrutura geral de uma ofensiva socialista. Em oposição à falsa identificação da 'unidade' como o único meio de patrocinar princípios socialistas (enquanto, na realidade, a perseguição irreal e a imposição de unidade trouxeram com elas as necessárias concessões sobre princípios), permanece válida a regra de Marx: não pode haver barganha sobre princípios" (2002, 812).
De acordo com Mészáros, somente o pluralismo socialista pode impedir que, dentro de um movimento de luta social e política complexo e multifacetado, ocorra a imposição do interesse de uma das suas partes sobre as demais – imposição esta que, justamente, como o citado caso do PT o demonstra, origina a supressão da autocrítica e a barganha sobre princípios, que tanto beneficiam a ordem de reprodução sócio-metabólica vigente (5).
A práxis pluralista, no sentido que o filósofo atribui ao termo, é aquela que reconhece e combina as diferenças e as particularidades concretas inerentes aos variados setores do proletariado (6) em função do seu objetivo maior. Ao assim proceder, cria uma forma de ação conjunta que possibilita o combate do próprio fundamento de hoje haver os particularismos antagônicos de classe, a saber: a dinâmica – sempre acumulativa e auto-expansiva - da exploração do trabalho excedente que configura o sistema do capital.
As implicações políticas de tal proposta são claras: o agente social da transformação revolucionária não pode ser definido como sendo composto unicamente por este ou por aquele ramo específico dos trabalhadores. Ao contrário: precisa ser buscado no trabalho como um todo, que, reconhecendo sua constituição múltipla e heterogênea, age no sentido de realizar o – também reconhecido - interesse que permeia a classe em sua totalidade.
Lemos, assim, em O poder da ideologia, que o sujeito social da emancipação "só estará apto para criar as condições do sucesso se abranger a totalidade dos grupos sociológicos capazes de se aglutinarem em uma força transformadora efetiva no âmbito de um quadro de orientação estratégica adequado. O denominador comum ou o núcleo estratégico de todos esses grupos não pode ser o 'trabalho industrial', tenha ele colarinho branco ou azul, mas o trabalho como antagonista estrutural do capital. Isto é o que combina objetivamente os interesses variados e historicamente produzidos da grande multiplicidade de grupos sociais que estão do lado emancipador da linha divisória das classes no interesse comum da alternativa hegemônica do trabalho à ordem social do capital. Pois todos esses grupos devem desempenhar seu importante papel ativo na garantia da transição para uma ordem qualitativamente diferente" (2004, 51).
Ou seja, mesmo a classe trabalhadora sendo composta de uma miríade de setores, cada qual com interesses correspondentes às suas posições particulares, há, por trás disso, pela própria situação atual do trabalho enquanto atividade subordinada ao capital, uma condição e um interesse compartilhado por todos: isto é, respectivamente, a exploração fetichista do trabalho excedente e a necessidade de superá-la em direção a uma sociedade emancipada.
No processo revolucionário, portanto, todos os grupos terão papel fundamental, mas é preciso que estejam alertas para o fato de que, para uma emancipação realmente digna deste nome, a luta não pode se realizar com um dos segmentos afirmando o seu interesse sobre os demais. O pluralismo exige horizontalidade entre os movimentos de trabalhadores. Somente dessa maneira os socialistas poderão aspirar à radical e efetiva superação do sistema do capital.
O novo modo de operação dos revolucionários não deverá, então, espelhar a maneira de se estruturar do próprio capital – isto é, como o PT o faz: hierarquicamente e afirmando o interesse da parte sobre o todo, com vistas a eliminar as energias combativas dos trabalhadores. A emergente força social emancipadora conseguirá ter êxito em seus propósitos apenas se se articular a partir de princípios radicalmente diferentes de ação e de organização. A reconstrução das mediações sociais e políticas em torno das quais estarão reunidos os socialistas já necessitará, pois, estar baseada naquilo que Mészáros chama de igualdade substantiva, (7) em contraposição à igualdade meramente formal da atual ordem vigente.
Isto quer dizer, em outras palavras, que a estruturação interna do movimento terá que apresentar, em seu próprio processo constitutivo, "prenúncios de uma nova forma – genuinamente associativa – de cumprir as tarefas que possam se apresentar" (8) - 2004, 52. E para que tudo isso possa, enfim, se realizar, é imprescindível, diz Mészáros, a formação de uma "consciência de massa socialista", a ser desenvolvida no processo mesmo de confrontação prática com a ordem do capital (9).
A proposta mészáriana do pluralismo socialista é, portanto, de fundamental importância para a esquerda brasileira nos dias atuais. Depois do tsunami de pelegos que assolou o país com o governo do PT, as novas forças socialistas a se constituírem precisarão se reformular sem repetir as mesmas contradições. PSOL, PCB, PSTU e todos os demais grupos políticos imbuídos do objetivo da superação do capital necessitarão se articular de forma crítica e pluralista daqui por diante, ou estarão condenados ao fracasso e à impotência.
Mais do que a falsa unidade – calcada, como vimos, na imposição da parte sobre o todo e na barganha sobre princípios –, é imperioso coadunar grupos diversificados, com as suas respectivas particularidades, em redor do objetivo comum: derrotar o capital e instaurar a comunidade dos homens e mulheres verdadeiramente emancipados - ou a "associação livre dos produtores", como a chamou Marx.
Em tempos históricos de profunda crise, torna-se imprescindível que construamos essa capacidade de atuar em conjunto de forma horizontal. Se continuarmos mergulhados na inépcia no que diz respeito a travarmos esse tipo de ação coletiva, estaremos com toda certeza perdidos. Se, ao contrário, conseguirmos envidar esforços articulados, mesmo que tenhamos entre nós algumas eventuais diferenças, teremos, quem sabe, alguma chance.
Notas:
1) Os parlamentares em questão eram a senadora Heloísa Helena e os deputados federais Luciana Genro, João Fontes e Babá. Eles alegavam que a reforma tinha viés privatizante e retirava dos trabalhadores direitos conquistados historicamente, indo assim em direção contrária ao ideário mantido pelo PT ao longo da sua trajetória passada. Para um maior entendimento sobre o caráter conservador da referida reforma, ver Oliveira (2006).
2) Por meio, entre outras coisas, da administração de políticas assistencialistas e da cooptação de centrais sindicais, o imperativo da conciliação de classes foi tão intenso no período das duas primeiras gestões petistas que o sociólogo Francisco de Oliveira (2010) não hesitou em afirmar que "se FHC destruiu os músculos do Estado para implementar o projeto privatista, Lula destrói os músculos da sociedade, que já não se opõe às medidas de desregulamentação". O mesmo, ao que tudo indica, está a se reproduzir no governo Dilma.
3) Este conceito de crítica – articulação material de negação e afirmação no sentido de promover a "transcendência positiva da auto-alienação do trabalho" – é desenvolvido pelo filósofo húngaro em praticamente todas as suas obras. Ver, por exemplo, a esse respeito: Mészáros (2008).
4) Conforme as palavras de Mészáros: "Na realidade, temos uma multiplicidade de divisões e contradições e o 'capital social total' é a categoria abrangente que incorpora a pluralidade de capitais, com todas as suas contradições. Ora, se olharmos para o outro lado, também a 'totalidade do trabalho' jamais poderá ser considerada uma entidade homogênea enquanto o sistema do capital sobreviver. Há, necessariamente, inúmeras contradições encontradas sob as condições históricas dadas entre as parcelas do trabalho, que se opõem e lutam umas contra as outras, que concorrem umas com as outras, e não simplesmente parcelas particulares do capital em confronto. Essa é uma das tragédias da nossa atual situação de apuro. (...) Essas divisões e contradições restam conosco e, em última instância, devem-se explicar pela natureza e funcionamento do próprio sistema do capital" (2007, 66).
5) A expressão, na forma de atuação prática do Partido dos Trabalhadores, das exigências materiais do capital deve ser entendida, evidentemente, a partir dos múltiplos complexos de mediação que permeiam a relação entre essas duas estruturas, especialmente a crise estrutural do capital e a crise estrutural da política, que acometem o sistema sócio-metabólico vigente. Em razão das limitações do presente artigo, não poderemos nos aprofundar acerca desses temas. Para uma maior compreensão das crises estruturais do capital e da política, ver Mészáros (2002). Para uma boa visão das transformações do PT ao longo dos últimos anos, ver Oliveira (2006, 2010 e 2010b).
6) Segundo Mészáros (2007), proletário não pode ser definido meramente como o operário de fábrica ou o trabalhador manual. Proletariado, enquanto categoria social, diz respeito a todos os grupos sociais que, sofrendo a ação usurpadora do capital em relação aos meios de produção, se encontram alijados da possibilidade de controle consciente sobre o sócio-metabolismo humano. Proletarizar-se, nesse sentido, é perder esse controle.
7) A igualdade substantiva é definida por Mészáros qualitativamente, com base nas teses de Babeuf que foram endossadas por Marx: "A igualdade deve ser medida pela capacidade do trabalhador e pela carência do consumidor, não pela intensidade do trabalho nem pela quantidade de coisas consumidas (grifo nosso). Um homem dotado de certo grau de força, quando levanta um peso de dez libras, trabalha tanto quanto outro homem com cinco vezes a sua força que levanta cinqüenta libras. Aquele que, para saciar uma sede abrasadora, bebe um caneco de água, não desfruta mais do que seu camarada que, menos sedento, bebe apenas um copo. O objetivo do comunismo em questão é igualdade de trabalhos e prazeres, não de coisas consumíveis e tarefas dos trabalhadores" (BABEUF, apud Mészáros, ibid., 42). Tais são os princípios de organização da produção e da distribuição a serem implementados na fase superior da sociedade socialista: não a igualdade de coisas consumidas, nem de tarefas ou horas de trabalho realizadas, mas a igualdade medida pelas capacidades e carências não alienadas dos indivíduos sociais.
8) Nessa forma de organização política - horizontal e radicalmente pluralista -, é fundamental, afirma Mészáros, que os trabalhadores saibam articular as suas demandas parciais com as exigências gerais de superação do sistema. Vale a pena, mais uma vez, ler o que escreve o autor de Para além do capital acerca de sua proposta: "as demandas mais urgentes de nossa época, que correspondem diretamente às necessidades vitais de uma grande variedade de grupos sociais – empregos, educação, assistência médica, serviços sociais decentes, assim como as demandas inerentes à luta pela libertação das mulheres e contra a discriminação racial -, podem, sem uma única exceção, ser abraçadas sem restrições por qualquer liberal genuíno. Entretanto, é absolutamente diferente quando não são consideradas como questões singulares, isoladamente, mas em conjunto, como partes do complexo global que constantemente as reproduz como demandas não realizadas e sistematicamente irrealizáveis. Desse modo, o que decide a questão é a sua condição de realização (quando definidas em sua pluralidade como demandas socialistas conjuntas), e não o seu caráter considerado separadamente. Por conseguinte, o que está em jogo não é a enganosa 'politização' destas questões isoladas, pela qual poderiam cumprir uma função política direta numa estratégia socialista, mas a efetividade de afirmar e sustentar tais demandas 'não-socialistas', tão largamente auto-motivadoras no front mais amplo possível" (2002, 818). Ou seja, as "demandas urgentes de nossa época" – empregos, educação, saúde etc. – são todas importantes e não devem deixar de ser reivindicadas. Mas o essencial, diz Mészáros, não é a "politização destas questões isoladas" e sim a integração de tais demandas dentro de um quadro reivindicatório mais amplo, que combata o fundamento real de a sociedade se ver hoje majoritariamente privada dessas condições básicas: o sistema de controle sócio-metabólico do capital.
9) Daí a importância atribuída pelo filósofo húngaro (2008b) à educação revolucionária, que necessita se realizar em meios formais e não formais, a fim de proporcionar o desenvolvimento contínuo da consciência e dos valores socialistas exigidos para a efetivação da nova forma histórica.
Referências:
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002.
MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.
MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007.
MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social. São Paulo: Boitempo, 2008.
MÉSZÁROS, István, A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008b.
OLIVEIRA, Francisco de. O momento Lenin, 2006.
OLIVEIRA, Francisco de. O avesso do avesso. in OLIVEIRA, Francisco de, BRAGA, Ruy e RIZEK, Cibele (orgs.). Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010.
OLIVEIRA, Francisco de. Consenso conservador cria falsa divergência entre Serra e Dilma (entrevista a Valéria Nader e Gabriel Brito). 2010b. Disponível em http://www.correiocidadania.com.br/content/view/5102/9/. Acesso em 03/01/11.
Demetrio Cherobini é cientista social (UFSM) e mestre em Educação (UFSC).
(Correio da Cidadania)
Pensamentando
Trem Doido: O andarilho
Mouzar Benedito conta
“causos” de todo o Brasil
.
Da Redação de ViaPolítica
Como todo bom mineiro, Mouzar mostra, em seu novo livro, que gosta mesmo é de trem, cachaça, piada e mulher.
Mouzar Benedito é o moderno andarilho, apaixonado por viagens, em especial de trem. A trabalho, turismo ou por simples bandalheira, ele tratou de conhecer o Brasil, os brasileiros e suas histórias. E conseguiu. Durante essas andanças, reuniu “causos”, crônicas, encontrou com pessoas de todos os tipos. Muitas dessas histórias já foram publicadas por ViaPolítica, na coluna Brasil Adentro, criada por ele. Em suas jornadas, o observador de saci Mouzar Benedito já foi confundido com extraterrestre, deu carão em governador, bebeu de graça até quase cair (é difícil derrubá-lo), pagou tragos para desconhecidos, andou com os loucos de Nova Resende, namorou demais, entrou em frias, enfim, tudo aquilo que forma a garapa que chamamos vida.
Em Trem Doido, Mouzar Benedito relembra sua infância mineira, entrega histórias do curso de Geografia da USP, narra seu encontro com a poetisa Cora Coralina e com pessoas que cruzaram com ele na pele de jornalista. São 125 rápidos “causos”, espalhados por 224 páginas, que contemplam aventuras vividas por Mouzar Benedito em todos os estados do país. Reunidos, formam um original e bem humorado mural da diversidade cultural brasileira, exposta na obra com a radicalidade dos que nunca deixaram de acreditar na revolução e na força transformadora de uma boa pinga mineira, cujos sinônimos, segundo ele, chegam a mil.
Selecionada pelo autor, aqui vai uma das histórias de Trem Doido
Uma professora muito tarada
O meu amigo Alípio tinha acabado de se separar da mulher e queria viajar, espairecer. Mas não queria ir sozinho. Eu havia quebrado a perna e estava de licença médica, andando de muletas. Fomos pra Minas Gerais. A primeira parada foi na cidade de Cabo Verde, num dia 7 de setembro. Bebemos bastante, comemos mortadela e fomos pra casa dos meus tios, Franquinho e Iolanda. A casa era térrea na frente, mas como ficava numa esquina com declive forte, o quarto em que fui dar uma cochilada ficava bem acima do nível da rua lateral. Mal deitei, veio uma baita vontade de vomitar. Pulei com uma perna só até a janela e mandei ver. Embaixo, passava o desfile de estudantes, em comemoração do aniversário da Independência. Foi gozado ver o pessoal marchando fazer uma curva pra desviar do meu vômito.
Mouzar Benedito
Pegamos o João Nicolau, meu primo, e fomos para Bom Jesus da Penha, onde tinha mais parentes. Depois de beber bastante, fomos a um baile. Eu de muletas. Uma moça também bebaça de tudo beijava todos os homens que entravam. O único a parar foi o Alípio, que continuou sendo beijado taradamente. Saiu com ela e foram de carro pra estrada. A moça era completamente tarada, lanhou as costas dele inteiras com as unhas e quebrou o banco da frente do carro.
No dia seguinte, lá pelas onze da manhã, fomos beber uma pinga. João Nicolau, Alípio, Jorge (um outro primo) e eu. Fiquei discutindo com o Alípio os sinônimos de cachaça, que são mais de mil. Insisti com ele que, além dos sinônimos já existentes, você podia inventar qualquer um na hora, em Minas, que o vendeiro entenderia. Pra provar, entramos no primeiro boteco e eu pedi:
— Põe quatro bostas aí pra gente...
O cara nem vacilou. Pôs quatro copos no balcão e tascou cachaça neles. O Alípio não se convenceu. Achou que bosta lá era sinônimo de cachaça. Combinamos que no boteco seguinte ele inventaria. Paramos numa venda e ele pediu:
— Dá quatro martelos aí pra gente — inventou na hora.
O vendeiro serviu quatro cachaças. Ele ficou admirado. Aí o homem parou com a garrafa na mão e perguntou:
— Não foi um de vocês que saiu com a professora ontem?
Professora. Pelo jeito era a mulher que beijava todo mundo. Sem graça, o Aírton respondeu:
— Fui eu.
O vendeiro olhou bem na cara dele e...
— Rá-rá-rá... — soltou a maior gargalhada. Era famosa a professora.
5/2/2011
Fonte: ViaPolítica/O autor
Trem Doido, de Mouzar Benedito
Ilustrações: Ohi
224 páginas
Preço: R$ 30,00
Editora Limiar
Lançamento: 8 de fevereiro de 2011
Restaurante Consulado Mineiro
Praça Benedito Calixto, 74, Pinheiros, São Paulo
A partir das 19h30min
O jornalista Mouzar Benedito nasceu em Nova Resende, Minas Gerais, em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros, em Minas, e Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de O anuário do Saci (2009, Publisher Brasil), Ousar Lutar (2000, Boitempo), em co-autoria com José Roberto Rezende, e Pequena enciclopédia sanitária (1996, Boitempo). Recentemente, Mouzar Benedito lançou o livro Meneghetti, o gato dos telhados.
E-mail: mouzarbenedito@yahoo.com.br
Mais sobre Mouzar Benedito
A caricatura de Mouzar Benedito é de Carriero, em Humor da Terra
Mouzar Benedito conta
“causos” de todo o Brasil
.
Da Redação de ViaPolítica
Como todo bom mineiro, Mouzar mostra, em seu novo livro, que gosta mesmo é de trem, cachaça, piada e mulher.
Mouzar Benedito é o moderno andarilho, apaixonado por viagens, em especial de trem. A trabalho, turismo ou por simples bandalheira, ele tratou de conhecer o Brasil, os brasileiros e suas histórias. E conseguiu. Durante essas andanças, reuniu “causos”, crônicas, encontrou com pessoas de todos os tipos. Muitas dessas histórias já foram publicadas por ViaPolítica, na coluna Brasil Adentro, criada por ele. Em suas jornadas, o observador de saci Mouzar Benedito já foi confundido com extraterrestre, deu carão em governador, bebeu de graça até quase cair (é difícil derrubá-lo), pagou tragos para desconhecidos, andou com os loucos de Nova Resende, namorou demais, entrou em frias, enfim, tudo aquilo que forma a garapa que chamamos vida.
Em Trem Doido, Mouzar Benedito relembra sua infância mineira, entrega histórias do curso de Geografia da USP, narra seu encontro com a poetisa Cora Coralina e com pessoas que cruzaram com ele na pele de jornalista. São 125 rápidos “causos”, espalhados por 224 páginas, que contemplam aventuras vividas por Mouzar Benedito em todos os estados do país. Reunidos, formam um original e bem humorado mural da diversidade cultural brasileira, exposta na obra com a radicalidade dos que nunca deixaram de acreditar na revolução e na força transformadora de uma boa pinga mineira, cujos sinônimos, segundo ele, chegam a mil.
Selecionada pelo autor, aqui vai uma das histórias de Trem Doido
Uma professora muito tarada
O meu amigo Alípio tinha acabado de se separar da mulher e queria viajar, espairecer. Mas não queria ir sozinho. Eu havia quebrado a perna e estava de licença médica, andando de muletas. Fomos pra Minas Gerais. A primeira parada foi na cidade de Cabo Verde, num dia 7 de setembro. Bebemos bastante, comemos mortadela e fomos pra casa dos meus tios, Franquinho e Iolanda. A casa era térrea na frente, mas como ficava numa esquina com declive forte, o quarto em que fui dar uma cochilada ficava bem acima do nível da rua lateral. Mal deitei, veio uma baita vontade de vomitar. Pulei com uma perna só até a janela e mandei ver. Embaixo, passava o desfile de estudantes, em comemoração do aniversário da Independência. Foi gozado ver o pessoal marchando fazer uma curva pra desviar do meu vômito.
Mouzar Benedito
Pegamos o João Nicolau, meu primo, e fomos para Bom Jesus da Penha, onde tinha mais parentes. Depois de beber bastante, fomos a um baile. Eu de muletas. Uma moça também bebaça de tudo beijava todos os homens que entravam. O único a parar foi o Alípio, que continuou sendo beijado taradamente. Saiu com ela e foram de carro pra estrada. A moça era completamente tarada, lanhou as costas dele inteiras com as unhas e quebrou o banco da frente do carro.
No dia seguinte, lá pelas onze da manhã, fomos beber uma pinga. João Nicolau, Alípio, Jorge (um outro primo) e eu. Fiquei discutindo com o Alípio os sinônimos de cachaça, que são mais de mil. Insisti com ele que, além dos sinônimos já existentes, você podia inventar qualquer um na hora, em Minas, que o vendeiro entenderia. Pra provar, entramos no primeiro boteco e eu pedi:
— Põe quatro bostas aí pra gente...
O cara nem vacilou. Pôs quatro copos no balcão e tascou cachaça neles. O Alípio não se convenceu. Achou que bosta lá era sinônimo de cachaça. Combinamos que no boteco seguinte ele inventaria. Paramos numa venda e ele pediu:
— Dá quatro martelos aí pra gente — inventou na hora.
O vendeiro serviu quatro cachaças. Ele ficou admirado. Aí o homem parou com a garrafa na mão e perguntou:
— Não foi um de vocês que saiu com a professora ontem?
Professora. Pelo jeito era a mulher que beijava todo mundo. Sem graça, o Aírton respondeu:
— Fui eu.
O vendeiro olhou bem na cara dele e...
— Rá-rá-rá... — soltou a maior gargalhada. Era famosa a professora.
5/2/2011
Fonte: ViaPolítica/O autor
Trem Doido, de Mouzar Benedito
Ilustrações: Ohi
224 páginas
Preço: R$ 30,00
Editora Limiar
Lançamento: 8 de fevereiro de 2011
Restaurante Consulado Mineiro
Praça Benedito Calixto, 74, Pinheiros, São Paulo
A partir das 19h30min
O jornalista Mouzar Benedito nasceu em Nova Resende, Minas Gerais, em 1946, o quinto entre dez filhos de um barbeiro. Trabalhou em vários jornais alternativos (Versus, Pasquim, Em Tempo, Movimento, Jornal dos Bairros, em Minas, e Brasil Mulher). Estudou Geografia na USP e Jornalismo na Cásper Líbero, em São Paulo. É autor de O anuário do Saci (2009, Publisher Brasil), Ousar Lutar (2000, Boitempo), em co-autoria com José Roberto Rezende, e Pequena enciclopédia sanitária (1996, Boitempo). Recentemente, Mouzar Benedito lançou o livro Meneghetti, o gato dos telhados.
E-mail: mouzarbenedito@yahoo.com.br
Mais sobre Mouzar Benedito
A caricatura de Mouzar Benedito é de Carriero, em Humor da Terra
Cinema
O cinema brasileiro e sua fase menos competitiva
.
Por Luiz Rosemberg Filho e Sindoval Aguiar, do Rio de Janeiro
Para prefeito carioca, o cinema 3D do Complexo do Alemão, do projeto “Praças do Conhecimento”, tem “cara de luxo” e nada de “programação cabeça”. Filme dos Estúdios Disney inaugurou a programação da sala que custou R$ 3 milhões.
Colagem de Luiz Rosemberg Filho
Para o grande jornalismo do Wikileaks e Julian Assange
De fato o mundo anda para frente marchando para trás. Fica absolutamente claro o baixo uso intimidatório do espetáculo no psiquismo do povo sempre desinformado. Comércio, bancos, religiões e meios de comunicação tomam todos os espaços vendendo segurança, alegria e a prostituição em 3D. A grosso modo, o que interessa na verdade é vigiar e punir. Mas já mostrando aos patetas da organização da Copa do Mundo e das Olimpíadas que não somos desprovidos da indivisibilidade de uma ordem plena e respeitada. Pretende-se vender ao mundo da fantasia nossa representação de Democracia com festas na favela e um cinema em 3D. E se nos permitem uma pergunta: Arte para que, né? Nesse sentido o enredo está completo.
Fazemo-nos a maior dor possível, ainda que vendendo conquista e felicidade. O enraizamento no horror faz parte do espetáculo bufão das nossas elites. Vejam uma pérola do nosso prefeito Eduardo Paes, referindo-se ao cinema 3D, que entrou em cartaz no Complexo do Alemão: “Será um cinema com cara de cinema de luxo, com 3D, cadeiras confortáveis. E nada só de programação ‘cabeça’”. Já disse tudo a uma população que vai ver Disney, “Tron”, “Avatar” e outras bostas colloridas de Hollywood. Mas é como a elite quer o povo: de braços abertos, ainda que desiludidos com essa herança maldita do nosso eterno fascismo-espetáculo.
O objetivo é intensificar ao máximo o conceito de alienação. Dar ao povo o que os dirigentes políticos e bonecos religiosos acham ser do povo: sucata, discursos vazios, violência, pornografia, restos, miséria, prostituição e bosta. Tudo codificado alucinogicamente no espetáculo empacotado que serve ao autoritarismo das imagens sem ideias. É o cinema cor-de-rosa de devoção ao ocupante. Fascistão, mas disfarçado de democrático e respeitoso. Mas é também o que as autoridades entendem como assimilação do real: um modelo de infinitos vazios. Vazios como alimento e formação.
Um tempo consumido pela ilusão: da TV ao cinema anti-cabeça da Globo. Com a alienação dominando o presente em substituição a uma verdadeira história das nossas muitas contradições. Mas... segundo o modelo dominante, consumir cocô dá mais barato. Corresponde em ponto e vírgula ao que nossas elites usam para desinformar e formar o espetáculo da insignificância em 3D. Aliança e solidariedade ao ocupante. Só uma elite muito porca é capaz de usar a degenerescência de dominação cultural, econômica e militar de Hollywood, num espaço tão abandonado e sofrido. Mas... vendeu-se, no dia de Natal último, a rapidez da ocupação como mais um espetáculo midiático, com a presença de autoridades e o povo aplaudindo a substituição da droga pelo cinema-espetáculo. Agora, mais uma perguntinha: Alguma diferença? Na verdade, não se quer mudar nada.
Acham que o povo artificializado pelo espetáculo do consumismo não precisa do saber. Convenientemente pobre e empobrecido, é levado à cegueira como refúgio. Fechado na sua alienação, contenta-se com o esporte, a religião e a prostituição chic na TV. Quem sabe um dia não acaba idiotizado como personagem da novelinha ou do cinemão? Na pobreza banalizada tudo é possível, nessa inversão de valores onde o correto é permanecer pobre fazendo da pobreza a egotrip do espertalhão que se vende como sensível na desmaterialização política do saber. Ênfase às imagens de fachada da felicidade sem potencialização alguma. Registra-se apenas a velha chanchada social brasileira encenando a vida depois da morte como solução mágica de uma permanência duvidosa.
Ora, não seria mais respeitoso para com o país e a comunidade inaugurar um cinema na favela com “Macunaíma”, “Azyllo Muito Louco”, “Tudo Bem”, “Estômago” ou qualquer outro bom filme brasileiro? O idiotismo do termo “filme cabeça” é digno tanto da commedia dell’arte como da nossa chanchada, mostrando bem o despreparo cultural instaurado no país desde a sua descoberta. O governador chorou lágrimas de crocodilo, o prefeito bostejou verbalmente insights preconceituosos, o povo aplaudiu e Hollywood faturou! O circo estava montado. Todos com óculos iguais se burrificando no festival de besteira que assola o país, onde o objetivo principal é o de identificar o povo com um cinema Coca-Cola. Se colar, colou. Caso contrário, é chumbo grosso ou cassetada e planeta. Não chamaram de merda o cinema de Glauber? Não foram lá no morro formalizar suas macacadas sem graça? Mas em 1963 o general Golbery já produzia filmes através do IPES, para levar às favelas, dizendo que nós estávamos ameaçados pelo “perigo vermelho”. Na verdade o passado e o presente lá foram para ocultar a miséria e a fome, artificializando o real e suas contradições. É a TV, mas é também a percepção possível das nossas elites.
O nosso cinema já teve fase mais competitiva e menos entreguista. Justamente quando nossa produção, distribuição e exibição eram mais independentes e autônomas. Tínhamos público e mercado independentes, da reserva que nos foi usurpada com a conivência e o silêncio de muitos! A fase hoje é definida claramente pelo monopólio. Uma transnacionalização, fingindo um avanço em nosso capitalismo selvagem muito próximo da barbárie. Mesmo com a presença, o assédio e uma burocracia que fingia uma ordem de defesa nacional. E os artifícios e artimanhas conhecidos desde a CAIC, o Geicine, o Concine, passando pelo INC e chegando à Embrafilme destruída como parte do processo que confirmamos hoje. A criticávamos para que melhorasse, e não para que acabasse. Pelos resíduos e os aspectos benéficos e positivos que deveriam e poderiam estar nos servindo sempre; o órgão estava pronto e equipado como uma necessidade do cinema e que, em virtude disso, não poderia sobreviver!
Com o advento da televisão e a modernidade do audiovisual, nosso cinema foi sendo sistematicamente invadido pelas facilidades que o inimigo interno favoreceu em inúmeras contrapartidas, claro, econômicas e de assentos nos postos de vigília e de compensações. Negando sempre atender à ideologia dos meios de produção, esse paradigma inviolável e intocável sob pena, em certos casos, de extermínio. Tornando-se um mundinho em que não se pode tocar! O mundo das diferenças não existe mais. Existe, sim, o mundo das fronteiras. Agrícolas, das metrópoles, sociais, econômicas e culturais; sem rupturas! E com a burguesia assumindo e nos impondo toda forma de ajustes a uma falsa concepção. A de que qualquer aceleração de desenvolvimento industrial e, no nosso caso cinematográfico, pode nos livrar da dependência e da submissão das companhias estrangeiras. A que está associada aos projetos e outras ações e intenções. No caso, a burguesia se arma, se serve e se instrumentaliza deste expediente como modo contínuo de sua dominação. Com forma, dinamismo e estrutura; todas pseudamente modernizantes. Como a do fim da Embrafilme.
Seria ficar livre de um espectro da ditadura? Ou apenas um trampolim para a Globo? Que, com sua super estrutura mais do que capitalizada, e com um público de adesão psicológica já adestrado, vai dominando os nossos recursos públicos como os incentivos, sob os inumeráveis artifícios, os espaços nas grandes telas, e servindo de cabeça-de-ponte ao domínio estrangeiro. Com a ótica sendo sempre a mesma: uma exigência econômica: a das grandes produções e as de ideia nenhuma! Fazendo do nosso cinema o processo de uma empresa única, particular e indevassável. Uma trincheira de concessões públicas dentro do país. Desprotegendo-nos do principal: de mercado e de ideias. E de sentimentos, os de uma sociedade ainda empírica e em formação. Daí a fundamental defesa do cinema, como sempre o fizemos: de banimento da burocracia e do domínio de uma classe, a burguesia colonial. Com o cinema se tornando uma sociedade de espetáculo, numa sociedade que a própria realidade não consegue definir porque, historicamente, é negadora de nosso próprio processo, esse que sempre nos negou.
No Brasil, em toda a sua história, podemos verificar e confirmar que nunca houve rupturas de valor. Se as crises se intensificam, os valores as acompanham e ganham com elas para que nada mude ou ameace. Situação em que cineastas chegam a aliar-se a projetos policiais e militares tornando os guetos sociais campos de provas e de experimentos econômicos para uma parceria que nunca descartaram. Fazendo do público o privado. Como os cinemas 3D em favelas para o inconsciente econômico, político e social se extasiar com Disney. Ame-o ou deixe-o, continua valendo a sentença desde a ditadura. E eles dizem que hoje não somente é assim, tem que ser assim, porque eles são os “meios e a mensagem”! A representação dos donos. Aqui e no mundo! Tornando numa reinversão aquilo que se pensava e se projetava há pouco mais de uma geração, no sentido da crença, da liberdade e da autonomia. Na economia, no cinema e na vida do país, onde se pudesse comer com autonomia social.
Queremos só mais uma lembrança, para os milhões que fomos esquecendo ao longo dos trancos e avanços desse capitalismo vitorioso em forma de limpa-trilhos humanos e de qualquer sentir e, com as traições internacionalizadas e mais transparentes, no espetáculo. Mas muito dura na limpeza dos trilhos de seus interesses e intenções. Onde a palavra tem sido pouca, para tão poucos ouvidos. Continuamos, porém, a crença do mito, de uma extensão cosmológica como a do cinema. Uma extensão das ideias e do humano.
5/2/2011
Fonte: ViaPolítica/Os autores
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rosemba1@gmail.com
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.
Por Luiz Rosemberg Filho e Sindoval Aguiar, do Rio de Janeiro
Para prefeito carioca, o cinema 3D do Complexo do Alemão, do projeto “Praças do Conhecimento”, tem “cara de luxo” e nada de “programação cabeça”. Filme dos Estúdios Disney inaugurou a programação da sala que custou R$ 3 milhões.
Colagem de Luiz Rosemberg Filho
Para o grande jornalismo do Wikileaks e Julian Assange
De fato o mundo anda para frente marchando para trás. Fica absolutamente claro o baixo uso intimidatório do espetáculo no psiquismo do povo sempre desinformado. Comércio, bancos, religiões e meios de comunicação tomam todos os espaços vendendo segurança, alegria e a prostituição em 3D. A grosso modo, o que interessa na verdade é vigiar e punir. Mas já mostrando aos patetas da organização da Copa do Mundo e das Olimpíadas que não somos desprovidos da indivisibilidade de uma ordem plena e respeitada. Pretende-se vender ao mundo da fantasia nossa representação de Democracia com festas na favela e um cinema em 3D. E se nos permitem uma pergunta: Arte para que, né? Nesse sentido o enredo está completo.
Fazemo-nos a maior dor possível, ainda que vendendo conquista e felicidade. O enraizamento no horror faz parte do espetáculo bufão das nossas elites. Vejam uma pérola do nosso prefeito Eduardo Paes, referindo-se ao cinema 3D, que entrou em cartaz no Complexo do Alemão: “Será um cinema com cara de cinema de luxo, com 3D, cadeiras confortáveis. E nada só de programação ‘cabeça’”. Já disse tudo a uma população que vai ver Disney, “Tron”, “Avatar” e outras bostas colloridas de Hollywood. Mas é como a elite quer o povo: de braços abertos, ainda que desiludidos com essa herança maldita do nosso eterno fascismo-espetáculo.
O objetivo é intensificar ao máximo o conceito de alienação. Dar ao povo o que os dirigentes políticos e bonecos religiosos acham ser do povo: sucata, discursos vazios, violência, pornografia, restos, miséria, prostituição e bosta. Tudo codificado alucinogicamente no espetáculo empacotado que serve ao autoritarismo das imagens sem ideias. É o cinema cor-de-rosa de devoção ao ocupante. Fascistão, mas disfarçado de democrático e respeitoso. Mas é também o que as autoridades entendem como assimilação do real: um modelo de infinitos vazios. Vazios como alimento e formação.
Um tempo consumido pela ilusão: da TV ao cinema anti-cabeça da Globo. Com a alienação dominando o presente em substituição a uma verdadeira história das nossas muitas contradições. Mas... segundo o modelo dominante, consumir cocô dá mais barato. Corresponde em ponto e vírgula ao que nossas elites usam para desinformar e formar o espetáculo da insignificância em 3D. Aliança e solidariedade ao ocupante. Só uma elite muito porca é capaz de usar a degenerescência de dominação cultural, econômica e militar de Hollywood, num espaço tão abandonado e sofrido. Mas... vendeu-se, no dia de Natal último, a rapidez da ocupação como mais um espetáculo midiático, com a presença de autoridades e o povo aplaudindo a substituição da droga pelo cinema-espetáculo. Agora, mais uma perguntinha: Alguma diferença? Na verdade, não se quer mudar nada.
Acham que o povo artificializado pelo espetáculo do consumismo não precisa do saber. Convenientemente pobre e empobrecido, é levado à cegueira como refúgio. Fechado na sua alienação, contenta-se com o esporte, a religião e a prostituição chic na TV. Quem sabe um dia não acaba idiotizado como personagem da novelinha ou do cinemão? Na pobreza banalizada tudo é possível, nessa inversão de valores onde o correto é permanecer pobre fazendo da pobreza a egotrip do espertalhão que se vende como sensível na desmaterialização política do saber. Ênfase às imagens de fachada da felicidade sem potencialização alguma. Registra-se apenas a velha chanchada social brasileira encenando a vida depois da morte como solução mágica de uma permanência duvidosa.
Ora, não seria mais respeitoso para com o país e a comunidade inaugurar um cinema na favela com “Macunaíma”, “Azyllo Muito Louco”, “Tudo Bem”, “Estômago” ou qualquer outro bom filme brasileiro? O idiotismo do termo “filme cabeça” é digno tanto da commedia dell’arte como da nossa chanchada, mostrando bem o despreparo cultural instaurado no país desde a sua descoberta. O governador chorou lágrimas de crocodilo, o prefeito bostejou verbalmente insights preconceituosos, o povo aplaudiu e Hollywood faturou! O circo estava montado. Todos com óculos iguais se burrificando no festival de besteira que assola o país, onde o objetivo principal é o de identificar o povo com um cinema Coca-Cola. Se colar, colou. Caso contrário, é chumbo grosso ou cassetada e planeta. Não chamaram de merda o cinema de Glauber? Não foram lá no morro formalizar suas macacadas sem graça? Mas em 1963 o general Golbery já produzia filmes através do IPES, para levar às favelas, dizendo que nós estávamos ameaçados pelo “perigo vermelho”. Na verdade o passado e o presente lá foram para ocultar a miséria e a fome, artificializando o real e suas contradições. É a TV, mas é também a percepção possível das nossas elites.
O nosso cinema já teve fase mais competitiva e menos entreguista. Justamente quando nossa produção, distribuição e exibição eram mais independentes e autônomas. Tínhamos público e mercado independentes, da reserva que nos foi usurpada com a conivência e o silêncio de muitos! A fase hoje é definida claramente pelo monopólio. Uma transnacionalização, fingindo um avanço em nosso capitalismo selvagem muito próximo da barbárie. Mesmo com a presença, o assédio e uma burocracia que fingia uma ordem de defesa nacional. E os artifícios e artimanhas conhecidos desde a CAIC, o Geicine, o Concine, passando pelo INC e chegando à Embrafilme destruída como parte do processo que confirmamos hoje. A criticávamos para que melhorasse, e não para que acabasse. Pelos resíduos e os aspectos benéficos e positivos que deveriam e poderiam estar nos servindo sempre; o órgão estava pronto e equipado como uma necessidade do cinema e que, em virtude disso, não poderia sobreviver!
Com o advento da televisão e a modernidade do audiovisual, nosso cinema foi sendo sistematicamente invadido pelas facilidades que o inimigo interno favoreceu em inúmeras contrapartidas, claro, econômicas e de assentos nos postos de vigília e de compensações. Negando sempre atender à ideologia dos meios de produção, esse paradigma inviolável e intocável sob pena, em certos casos, de extermínio. Tornando-se um mundinho em que não se pode tocar! O mundo das diferenças não existe mais. Existe, sim, o mundo das fronteiras. Agrícolas, das metrópoles, sociais, econômicas e culturais; sem rupturas! E com a burguesia assumindo e nos impondo toda forma de ajustes a uma falsa concepção. A de que qualquer aceleração de desenvolvimento industrial e, no nosso caso cinematográfico, pode nos livrar da dependência e da submissão das companhias estrangeiras. A que está associada aos projetos e outras ações e intenções. No caso, a burguesia se arma, se serve e se instrumentaliza deste expediente como modo contínuo de sua dominação. Com forma, dinamismo e estrutura; todas pseudamente modernizantes. Como a do fim da Embrafilme.
Seria ficar livre de um espectro da ditadura? Ou apenas um trampolim para a Globo? Que, com sua super estrutura mais do que capitalizada, e com um público de adesão psicológica já adestrado, vai dominando os nossos recursos públicos como os incentivos, sob os inumeráveis artifícios, os espaços nas grandes telas, e servindo de cabeça-de-ponte ao domínio estrangeiro. Com a ótica sendo sempre a mesma: uma exigência econômica: a das grandes produções e as de ideia nenhuma! Fazendo do nosso cinema o processo de uma empresa única, particular e indevassável. Uma trincheira de concessões públicas dentro do país. Desprotegendo-nos do principal: de mercado e de ideias. E de sentimentos, os de uma sociedade ainda empírica e em formação. Daí a fundamental defesa do cinema, como sempre o fizemos: de banimento da burocracia e do domínio de uma classe, a burguesia colonial. Com o cinema se tornando uma sociedade de espetáculo, numa sociedade que a própria realidade não consegue definir porque, historicamente, é negadora de nosso próprio processo, esse que sempre nos negou.
No Brasil, em toda a sua história, podemos verificar e confirmar que nunca houve rupturas de valor. Se as crises se intensificam, os valores as acompanham e ganham com elas para que nada mude ou ameace. Situação em que cineastas chegam a aliar-se a projetos policiais e militares tornando os guetos sociais campos de provas e de experimentos econômicos para uma parceria que nunca descartaram. Fazendo do público o privado. Como os cinemas 3D em favelas para o inconsciente econômico, político e social se extasiar com Disney. Ame-o ou deixe-o, continua valendo a sentença desde a ditadura. E eles dizem que hoje não somente é assim, tem que ser assim, porque eles são os “meios e a mensagem”! A representação dos donos. Aqui e no mundo! Tornando numa reinversão aquilo que se pensava e se projetava há pouco mais de uma geração, no sentido da crença, da liberdade e da autonomia. Na economia, no cinema e na vida do país, onde se pudesse comer com autonomia social.
Queremos só mais uma lembrança, para os milhões que fomos esquecendo ao longo dos trancos e avanços desse capitalismo vitorioso em forma de limpa-trilhos humanos e de qualquer sentir e, com as traições internacionalizadas e mais transparentes, no espetáculo. Mas muito dura na limpeza dos trilhos de seus interesses e intenções. Onde a palavra tem sido pouca, para tão poucos ouvidos. Continuamos, porém, a crença do mito, de uma extensão cosmológica como a do cinema. Uma extensão das ideias e do humano.
5/2/2011
Fonte: ViaPolítica/Os autores
Mais sobre Luiz Rosemberg Filho
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Bandeira
O Bicho
(Manuel Bandeira)
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
(Manuel Bandeira)
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
quinta-feira, 28 de abril de 2011
Londrices
Londrices
.
Eu tinha eu
.
Por Rogério Nitschke, de Londres
.
Anteriores
Pra quem se tornou analfabeto, depois de apenas 20 horas de viagem, até que me saí bem. Caminhava muito, olhava tudo com muita vontade de saber o que era, e não sabia como, pra quem perguntar, ou onde seria a biblioteca brasileira mais próxima. Num daqueles primeiros dias, passei por uma banca de frutas, vi ameixas vermelhas, que eu adoro, e comprei umas. Sentei num dos bancos que pareciam com os dos "bondes da Carris", da velha Porto Alegre, e comecei a apreciar meu lanche. Olhava pra água marrom do Tâmisa querendo enxergar o "verde límpido" das águas do rio, lagoa, estuário, lago Guaíba, via quase nada de semelhante. Eram meus olhos cheios de saudades, e minha vidinha que estava pra recomeçar. Cheguei até a procurar alguns "pires voadores no céu", mas tinha nada com o exílio político do autor da frase pirada. Eu mesmo tinha decidido vir, teria que descascar o abacaxi, e sozinho.
Boteco antigo
Entrar num pub (bar) inaugurado em 1585, que sempre funcionou no mesmo lugar, mesmas paredes, mesmas algumas coisas, deu um nó na minha cabeça. O segundo piso, como dizem, ainda está intocado. Me senti dentro de um filme medieval, o ambiente era, mas as pessoas que estavam inocentemente almoçando destoaram da minha viajada no tempo. Histórias existem várias, umas difíceis de serem levadas a sério: vários enforcamentos nas árvores dos jardins, Byron escrevia as coisas dele, tomando umas cervejas numa das mesas, e Abraham Stoker teria visto alguns fantasmas, dos enforcados, que o inspirariam na construção da personalidade do Drácula. Vi nada disso, apenas um casarão bem velhinho, muito interessante, e que eu gostaria de ter conhecido quando cheguei a Londres, já faz muito tempo.
Culturas
Quando tento dizer em inglês: generalizar, generalizado ou generalização ainda fico com alguma vergonha, minha língua normalmente me trai, tranca. A língua mãe, o português, me puxa para os significados das palavras como eles estão nos dicionários que conheci, e então, depois da trancada, tenho uma leve tendência a generalizar sobre a linguagem e o povo inglês. Já pedi e já ouvi pedidos de desculpas em português. Já disse com licença e já ouvi com licença. Já pedi perdão e já me pediram perdão. "I'm sorry", que é usado como uma das palavras para os pedidos de desculpas, licenças ou apologias em inglês, também pode significar: sai da frente, cala a boca, é meu, não entendi, não me enche o saco, eu vi primeiro, vai à merda, este lugar é meu, fala mais alto, tu és burro? deixa de ser grosseiro e etc... O que realmente eu gostaria de ouvir, em vez de um refrigerado I'm sorry, seria alguém desse povo poder olhar no olho de outra pessoa e dizer: Cara, eu tava errado, me desculpa? Nunca vi, e acho que nunca acontecerá. Se generalizei, I'm very sorry.
5/2/2011
Fonte: ViaPolítica/O autor
O publicitário Rogério Nitschke é colunista e correspondente de ViaPolítica em Londres.
E-mail: rogerioni@googlemail.com
.
Eu tinha eu
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Por Rogério Nitschke, de Londres
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Pra quem se tornou analfabeto, depois de apenas 20 horas de viagem, até que me saí bem. Caminhava muito, olhava tudo com muita vontade de saber o que era, e não sabia como, pra quem perguntar, ou onde seria a biblioteca brasileira mais próxima. Num daqueles primeiros dias, passei por uma banca de frutas, vi ameixas vermelhas, que eu adoro, e comprei umas. Sentei num dos bancos que pareciam com os dos "bondes da Carris", da velha Porto Alegre, e comecei a apreciar meu lanche. Olhava pra água marrom do Tâmisa querendo enxergar o "verde límpido" das águas do rio, lagoa, estuário, lago Guaíba, via quase nada de semelhante. Eram meus olhos cheios de saudades, e minha vidinha que estava pra recomeçar. Cheguei até a procurar alguns "pires voadores no céu", mas tinha nada com o exílio político do autor da frase pirada. Eu mesmo tinha decidido vir, teria que descascar o abacaxi, e sozinho.
Boteco antigo
Entrar num pub (bar) inaugurado em 1585, que sempre funcionou no mesmo lugar, mesmas paredes, mesmas algumas coisas, deu um nó na minha cabeça. O segundo piso, como dizem, ainda está intocado. Me senti dentro de um filme medieval, o ambiente era, mas as pessoas que estavam inocentemente almoçando destoaram da minha viajada no tempo. Histórias existem várias, umas difíceis de serem levadas a sério: vários enforcamentos nas árvores dos jardins, Byron escrevia as coisas dele, tomando umas cervejas numa das mesas, e Abraham Stoker teria visto alguns fantasmas, dos enforcados, que o inspirariam na construção da personalidade do Drácula. Vi nada disso, apenas um casarão bem velhinho, muito interessante, e que eu gostaria de ter conhecido quando cheguei a Londres, já faz muito tempo.
Culturas
Quando tento dizer em inglês: generalizar, generalizado ou generalização ainda fico com alguma vergonha, minha língua normalmente me trai, tranca. A língua mãe, o português, me puxa para os significados das palavras como eles estão nos dicionários que conheci, e então, depois da trancada, tenho uma leve tendência a generalizar sobre a linguagem e o povo inglês. Já pedi e já ouvi pedidos de desculpas em português. Já disse com licença e já ouvi com licença. Já pedi perdão e já me pediram perdão. "I'm sorry", que é usado como uma das palavras para os pedidos de desculpas, licenças ou apologias em inglês, também pode significar: sai da frente, cala a boca, é meu, não entendi, não me enche o saco, eu vi primeiro, vai à merda, este lugar é meu, fala mais alto, tu és burro? deixa de ser grosseiro e etc... O que realmente eu gostaria de ouvir, em vez de um refrigerado I'm sorry, seria alguém desse povo poder olhar no olho de outra pessoa e dizer: Cara, eu tava errado, me desculpa? Nunca vi, e acho que nunca acontecerá. Se generalizei, I'm very sorry.
5/2/2011
Fonte: ViaPolítica/O autor
O publicitário Rogério Nitschke é colunista e correspondente de ViaPolítica em Londres.
E-mail: rogerioni@googlemail.com
Reagan
Alzheimer ainda esconde
os crimes de Reagan
.
Por Argemiro Ferreira
Ronald Reagan no cinema
Há cinco anos acompanhei por dever de ofício (em meio à campanha presidencial que reelegeria George W. Bush) as homenagens a Ronald Reagan, que morrera depois daquilo que ele próprio, já paciente de Alzheimer, chamara de seu “longo adeus”. Foram sete dias de eventos solenes, menos relevantes pelo que se disse do personagem do que pelo que revelaram sobre os EUA e sua sociedade.
Na foto do alto, Reagan aparece – no papel de um ainda jovem George Armstrong Custer, o general celebrizado como matador de índios na ânsia de chegar à Casa Branca – no filme Santa Fe Trail, de 1940, ao lado do galã Errol Flynn como Jeb Stuart, companheiro de Custer em West Point e rival do amigo na disputa pelo coração de Olivia de Havilland. Os dois são mandados ao território do Kansas para derrotar o abolicionista John Brown, retratado como vilão sedento de sangue (saiba mais sobre o filme aqui).
No crepúsculo da vida, ao longo de sua última década, Reagan perdera gradativamente a memória e até a consciência da própria identidade – numa redoma, imune a críticas. Bem antes disso já havia suspeita de que confundia a realidade com seus filmes e a ficção de Hollywood. Os excessos derramados na semana de despedida me levaram na ocasião a recordá-lo não como a figura heróica e íntegra, mas como o Reagan real, diferente daquilo que ele próprio achava e, claro, do que seus adeptos ideológicos diziam dele.
Agora, como naqueles dias, talvez só concordemos todos num ponto: de fato, ele era um bom comunicador. Admito que estava certo ao dar esta resposta aos que uma vez acharam absurda a pretensão de um ator de tornar-se presidente: “Absurdo é alguém ser presidente sem ser ator”. Ironicamente, Reagan chegou à Casa Branca sem ter de matar índios: bastou-lhe viver na tela o papel de quem o fazia na esperança de chegar lá (saiba mais sobre o verdadeiro Custer aqui).
Aquele galãzinho de segunda?
Ao contrário do que disseram dele há cinco anos e vão dizer de novo sexta-feira, data do aniversário da morte, não foi herói. Nem íntegro. Foi ator e sempre teve um script. Em Hollywood era galã do segundo time – abaixo de Errol Flynn, mocinho de Santa Fe Trail, que no final fica com Olivia de Havilland; ou de Robert Cummings, galã de Kings Row. Foi coadjuvante nesses dois filmes, como ainda no marcante Knute Rockne, All American.
Esses foram três filmes importantes na carreira dele. Num era o Custer jovem, antes da guerra civil e das matanças de índios. No segundo tinha a perna amputada por um médico sádico; e ao acordar da anestesia, fazia a pergunta que se tornaria o título de sua autobiografia: “Onde está o resto de mim?” No terceiro, como o astro de futebol americano George Gipp (The Gipper), da equipe de Notre Dame, disse na cama, segundos antes da morte, a frase repetida à exaustão, anos depois, nas campanhas dele: “Ganhe uma para o Gipper”.
Num dos discursos eleitorais das homenagens de 2004, George W. Bush o elogiou por só interpretar good guys, bons sujeitos. Com isso Bush arriscou-se a perder os votos de atores de talento mais versátil, que também adoram viver bad boys na tela. Reagan de fato preferia ser bonzinho e galã, mas em seu último papel no cinema - The Killers, de 1964, foi bandido e mau caráter. Segundo Kirk Douglas contou em sua autobiografia The Ragman’s Son, Reagan nunca se conformou em ter de esbofetear Angie Dickinson numa cena. Mas depois desse filme, estava pronto para a carreira política.
O caráter e o desmemoriado
No dia-a-dia Reagan podia ser alegre e bem humorado. Uma ex-funcionária da Casa Branca contou na ocasião que sempre se sabia quando ele chegava – pelas risadas das pessoas nos corredores por onde caminhava. Mas é difícil acreditar na sacrossanta integridade dele, de que fala com ênfase sua ex-redatora de discursos Peggy Noolan no livro When Character Was King.
Em Caça às Bruxas – macartismo, uma tragédia americana, tentei resumir a história contada por Dan E. Moldea no livro Dark Victory – Ronald Reagan, MCA and the Mob. Usando seu cargo de presidente do Screen Actors Guild, o sindicato dos atores de cinema, ele abriu uma exceção para permitir à MCA, então apenas agência de artistas, entrar no negócio da produção de filmes, claro conflito de interesses. Tal negociata marca o início da fortuna de Reagan, pois graças ao privilégio a firma acabaria tornando-se dona da Universal e um dos quatro grandes impérios de Hollywood (saiba mais aqui).
Chegaram a ficar depois sob controle da MCA (que ao nascer era ligada à Máfia) 60% de toda a indústria de entretenimento. O escândalo do favorzinho especial de Reagan, traindo a confiança dos filiados do sindicato, foi largamente recompensado nos anos seguintes. As relações promíscuas de Reagan com a MCA chegaram a ser investigadas depois, mas já então era muito tarde. E no Grande Júri que conduziu o inquérito ele se safou jurando que já não se lembrava de nada.
Foi também a falta de memória que o salvou na investigação do escândalo Irã-Contras. Ao depor, depois de deixar a presidência, a resposta de Reagan a quase 200 perguntas foi simplesmente a mesma: “Não me lembro”. Em Firewall, seu livro sobre a investigação do caso (capa ao lado), o promotor especial Lawrence Walsh disse que acreditou nele, pois Reagan de fato parecia esforçava-se para lembrar. Mas era impossível pois já estava com Alzheimer (saiba mais aqui sobre o escândalo).
O dedo-duro T-10 no FBI
Também Colin Powell, que tinha trabalhado no Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca e há cinco anos ainda era secretário de Estado, sugeriu que Reagan já tinha a doença. “Começava a contar suas famosas histórias, que todos conhecíamos bem. De repente, não se lembrava do final. A gente ajudava e dava os detalhes que ele tinha esquecido”, disse Powell. Esse o presidente celebrado durante sete dias em 2004.
Mas outras coisas Reagan pode ter tentado convenientemente esquecer durante quatro décadas. Por exemplo, o detalhe de ter sido “dedo duro” do FBI, sob o codinome T-10 (Olivia de Havilland, a amiga que aparece com ele num fotograma de Santa Fe Trail, fazia a mesma coisa: era a T-9). Entregava nomes de atores que suspeitava de esquerdismo, numa época em que os delatados perdiam o emprego. Em certos casos isso podia gerar tragédias familiares e até suicídios. Só em 1988, numa entrevista à BBC, Reagan finalmente reconheceu ter tido esse papel indecente.
Como escondeu o fato durante tanto tempo (mais de 40 anos), supõe-se que não se orgulhava do que fez, ao delatar colegas de profissão. Mas se afinal admitiu a verdade também pode ter sido simplesmente porque já tinham sido revelados alguns documentos secretos do FBI, em processos com base na Lei de Liberdade de Informação, sugerindo que de fato ele fora alcaguete. Esse era o verdadeiro Reagan.
Nas homenagens de cinco anos atrás, outros fatos esquecidos foram o apoio dele às ditaduras militares da América Latina, os banhos de sangue na América Central e a omissão ante o apartheid sul-africano. Faltou lembrar ainda o envio de fuzileiros em 1983 ao Líbano (241 foram mortos em atentado), a invasão dois dias depois da minúscula ilha de Granada (100 mil habitantes) no Caribe pela máquina de guerra do Pentágono, o ataque aéreo que matou a filha de cinco anos de Kadafi na Líbia, etc.
(Clique abaixo para ouvi-lo pedir, na cena dramática da sua morte no filme Knute Rockne, “mais uma vitória para o Gipper” – e depois, clicando em outras imagens, uma seleção de discursos e outros momentos de Reagan).
http://www.youtube.com/watch?v=NIHNUt1gw7A
6/6/2009
Fonte: ViaPolítica/O autor
http://argemiroferreira.wordpress.com/
URL: http://argemiroferreira.wordpress.com/2009/06/04/alzheimer-ainda-esconde-os-crimes-de-reagan/
Argemiro Ferreira, jornalista, escreveu regularmente para o diário Tribuna da Imprensa, do Rio de Janeiro, desde a década de 1980. Como autor, publicou os livros Informação e Dominação (edição do Sindicato de Jornalistas do Rio de Janeiro, 1982 - esgotado); Caça às Bruxas - Macartismo: Uma Tragédia Americana (L&PM, Porto Alegre, 1989); O Império Contra-Ataca - As guerras de George W. Bush antes e depois do 11 de setembro (Paz e Terra, São Paulo, 2004), e foi colaborador de Rede Imaginária - TV e Democracia (org. de Adauto Novaes, Companhia das Letras, São Paulo, 1991); e Mídia & Violência Urbana (Faperj, Rio de Janeiro, 1994). Na década de 1970, dirigiu Opinião, importante semanário alternativo e democrático.
os crimes de Reagan
.
Por Argemiro Ferreira
Ronald Reagan no cinema
Há cinco anos acompanhei por dever de ofício (em meio à campanha presidencial que reelegeria George W. Bush) as homenagens a Ronald Reagan, que morrera depois daquilo que ele próprio, já paciente de Alzheimer, chamara de seu “longo adeus”. Foram sete dias de eventos solenes, menos relevantes pelo que se disse do personagem do que pelo que revelaram sobre os EUA e sua sociedade.
Na foto do alto, Reagan aparece – no papel de um ainda jovem George Armstrong Custer, o general celebrizado como matador de índios na ânsia de chegar à Casa Branca – no filme Santa Fe Trail, de 1940, ao lado do galã Errol Flynn como Jeb Stuart, companheiro de Custer em West Point e rival do amigo na disputa pelo coração de Olivia de Havilland. Os dois são mandados ao território do Kansas para derrotar o abolicionista John Brown, retratado como vilão sedento de sangue (saiba mais sobre o filme aqui).
No crepúsculo da vida, ao longo de sua última década, Reagan perdera gradativamente a memória e até a consciência da própria identidade – numa redoma, imune a críticas. Bem antes disso já havia suspeita de que confundia a realidade com seus filmes e a ficção de Hollywood. Os excessos derramados na semana de despedida me levaram na ocasião a recordá-lo não como a figura heróica e íntegra, mas como o Reagan real, diferente daquilo que ele próprio achava e, claro, do que seus adeptos ideológicos diziam dele.
Agora, como naqueles dias, talvez só concordemos todos num ponto: de fato, ele era um bom comunicador. Admito que estava certo ao dar esta resposta aos que uma vez acharam absurda a pretensão de um ator de tornar-se presidente: “Absurdo é alguém ser presidente sem ser ator”. Ironicamente, Reagan chegou à Casa Branca sem ter de matar índios: bastou-lhe viver na tela o papel de quem o fazia na esperança de chegar lá (saiba mais sobre o verdadeiro Custer aqui).
Aquele galãzinho de segunda?
Ao contrário do que disseram dele há cinco anos e vão dizer de novo sexta-feira, data do aniversário da morte, não foi herói. Nem íntegro. Foi ator e sempre teve um script. Em Hollywood era galã do segundo time – abaixo de Errol Flynn, mocinho de Santa Fe Trail, que no final fica com Olivia de Havilland; ou de Robert Cummings, galã de Kings Row. Foi coadjuvante nesses dois filmes, como ainda no marcante Knute Rockne, All American.
Esses foram três filmes importantes na carreira dele. Num era o Custer jovem, antes da guerra civil e das matanças de índios. No segundo tinha a perna amputada por um médico sádico; e ao acordar da anestesia, fazia a pergunta que se tornaria o título de sua autobiografia: “Onde está o resto de mim?” No terceiro, como o astro de futebol americano George Gipp (The Gipper), da equipe de Notre Dame, disse na cama, segundos antes da morte, a frase repetida à exaustão, anos depois, nas campanhas dele: “Ganhe uma para o Gipper”.
Num dos discursos eleitorais das homenagens de 2004, George W. Bush o elogiou por só interpretar good guys, bons sujeitos. Com isso Bush arriscou-se a perder os votos de atores de talento mais versátil, que também adoram viver bad boys na tela. Reagan de fato preferia ser bonzinho e galã, mas em seu último papel no cinema - The Killers, de 1964, foi bandido e mau caráter. Segundo Kirk Douglas contou em sua autobiografia The Ragman’s Son, Reagan nunca se conformou em ter de esbofetear Angie Dickinson numa cena. Mas depois desse filme, estava pronto para a carreira política.
O caráter e o desmemoriado
No dia-a-dia Reagan podia ser alegre e bem humorado. Uma ex-funcionária da Casa Branca contou na ocasião que sempre se sabia quando ele chegava – pelas risadas das pessoas nos corredores por onde caminhava. Mas é difícil acreditar na sacrossanta integridade dele, de que fala com ênfase sua ex-redatora de discursos Peggy Noolan no livro When Character Was King.
Em Caça às Bruxas – macartismo, uma tragédia americana, tentei resumir a história contada por Dan E. Moldea no livro Dark Victory – Ronald Reagan, MCA and the Mob. Usando seu cargo de presidente do Screen Actors Guild, o sindicato dos atores de cinema, ele abriu uma exceção para permitir à MCA, então apenas agência de artistas, entrar no negócio da produção de filmes, claro conflito de interesses. Tal negociata marca o início da fortuna de Reagan, pois graças ao privilégio a firma acabaria tornando-se dona da Universal e um dos quatro grandes impérios de Hollywood (saiba mais aqui).
Chegaram a ficar depois sob controle da MCA (que ao nascer era ligada à Máfia) 60% de toda a indústria de entretenimento. O escândalo do favorzinho especial de Reagan, traindo a confiança dos filiados do sindicato, foi largamente recompensado nos anos seguintes. As relações promíscuas de Reagan com a MCA chegaram a ser investigadas depois, mas já então era muito tarde. E no Grande Júri que conduziu o inquérito ele se safou jurando que já não se lembrava de nada.
Foi também a falta de memória que o salvou na investigação do escândalo Irã-Contras. Ao depor, depois de deixar a presidência, a resposta de Reagan a quase 200 perguntas foi simplesmente a mesma: “Não me lembro”. Em Firewall, seu livro sobre a investigação do caso (capa ao lado), o promotor especial Lawrence Walsh disse que acreditou nele, pois Reagan de fato parecia esforçava-se para lembrar. Mas era impossível pois já estava com Alzheimer (saiba mais aqui sobre o escândalo).
O dedo-duro T-10 no FBI
Também Colin Powell, que tinha trabalhado no Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca e há cinco anos ainda era secretário de Estado, sugeriu que Reagan já tinha a doença. “Começava a contar suas famosas histórias, que todos conhecíamos bem. De repente, não se lembrava do final. A gente ajudava e dava os detalhes que ele tinha esquecido”, disse Powell. Esse o presidente celebrado durante sete dias em 2004.
Mas outras coisas Reagan pode ter tentado convenientemente esquecer durante quatro décadas. Por exemplo, o detalhe de ter sido “dedo duro” do FBI, sob o codinome T-10 (Olivia de Havilland, a amiga que aparece com ele num fotograma de Santa Fe Trail, fazia a mesma coisa: era a T-9). Entregava nomes de atores que suspeitava de esquerdismo, numa época em que os delatados perdiam o emprego. Em certos casos isso podia gerar tragédias familiares e até suicídios. Só em 1988, numa entrevista à BBC, Reagan finalmente reconheceu ter tido esse papel indecente.
Como escondeu o fato durante tanto tempo (mais de 40 anos), supõe-se que não se orgulhava do que fez, ao delatar colegas de profissão. Mas se afinal admitiu a verdade também pode ter sido simplesmente porque já tinham sido revelados alguns documentos secretos do FBI, em processos com base na Lei de Liberdade de Informação, sugerindo que de fato ele fora alcaguete. Esse era o verdadeiro Reagan.
Nas homenagens de cinco anos atrás, outros fatos esquecidos foram o apoio dele às ditaduras militares da América Latina, os banhos de sangue na América Central e a omissão ante o apartheid sul-africano. Faltou lembrar ainda o envio de fuzileiros em 1983 ao Líbano (241 foram mortos em atentado), a invasão dois dias depois da minúscula ilha de Granada (100 mil habitantes) no Caribe pela máquina de guerra do Pentágono, o ataque aéreo que matou a filha de cinco anos de Kadafi na Líbia, etc.
(Clique abaixo para ouvi-lo pedir, na cena dramática da sua morte no filme Knute Rockne, “mais uma vitória para o Gipper” – e depois, clicando em outras imagens, uma seleção de discursos e outros momentos de Reagan).
http://www.youtube.com/watch?v=NIHNUt1gw7A
6/6/2009
Fonte: ViaPolítica/O autor
http://argemiroferreira.wordpress.com/
URL: http://argemiroferreira.wordpress.com/2009/06/04/alzheimer-ainda-esconde-os-crimes-de-reagan/
Argemiro Ferreira, jornalista, escreveu regularmente para o diário Tribuna da Imprensa, do Rio de Janeiro, desde a década de 1980. Como autor, publicou os livros Informação e Dominação (edição do Sindicato de Jornalistas do Rio de Janeiro, 1982 - esgotado); Caça às Bruxas - Macartismo: Uma Tragédia Americana (L&PM, Porto Alegre, 1989); O Império Contra-Ataca - As guerras de George W. Bush antes e depois do 11 de setembro (Paz e Terra, São Paulo, 2004), e foi colaborador de Rede Imaginária - TV e Democracia (org. de Adauto Novaes, Companhia das Letras, São Paulo, 1991); e Mídia & Violência Urbana (Faperj, Rio de Janeiro, 1994). Na década de 1970, dirigiu Opinião, importante semanário alternativo e democrático.
Ecosocialismo?
A ideia em torno
do socialismo ecológico
.
Por Marcus Eduardo de Oliveira, de São Paulo
Os termos ecossocialismo e socialismo ecológico estão longe de serem apenas modismos ou meras retóricas românticas. São conceitos que ganham relevância na mais grave crise ambiental da história.
Visão do futuro, por Ricky Bols
Mudar radicalmente a racionalidade econômica; aproximar as preocupações da ciência econômica para a necessidade de libertar o homem; criar um novo ambiente propício para a vida de todos os seres humanos, sem a divisão costumeira que privilegia alguns em detrimento de muitos, e reconhecer, definitivamente, a existência de limites ao crescimento. São esses alguns pontos centrais da discussão em torno do que se convenciona chamar socialismo ecológico, ou como alguns preferem de eco-socialismo.
Socialismo, sim, no sentido de enaltecer os laços sociais e políticos que respeitam, primeiramente, a Mãe Terra. Socialismo no sentido de fazer a crítica verdadeira ao “deus-capitalismo”, que se afirma consoante a ideia básica de que o mercado, altar sagrado do dinheiro, pode tudo. Esse socialismo, aqui defendido, se põe em posição contrária a essa premissa, pois entende que o mercado é incapaz de resolver tudo e que o mundo não pode viver apenas de consumo e mais consumo, como o “deus-capitalismo” sempre quis que assim fosse e quer que assim seja.
Quem tem olhos para ver sabe que a contradição entre capital e natureza aí está posta e deve ser repensada à luz de uma nova perspectiva que inclua, essencial e preferencialmente, o ser humano dentro do objeto de análise dos modelos econômicos, partindo da premissa que o mundo não é, como dissemos, um objeto, uma simples e qualquer mercadoria pronta para ser digerida por bocas ávidas.
Se o consumo consome o consumidor, o socialismo ecológico, o eco-socialismo, vem para refutar o deus-mercado e estabelecer novas regras no jogo, defendendo as bases de sustentação da vida, condenando, primeiramente, o consumo artificialmente induzido pela publicidade que faz a sobrevivência daquele “deus” que ora mencionamos.
Esse socialismo ecológico, defendido pelo economista mexicano Enrique Leff, pelo sociólogo Michael Lowy, por Victor Wallis, John Bellamy Foster, Jean-Marie Harribey, Raymond Willians, David Pepper e tantos outros nomes de destaque na academia, aponta para a necessidade de incutir no imaginário coletivo a verdade de que toda vez que o capital se constrói sob as ruínas da natureza é a vida de todos nós que entra em perigo. Talvez seja por isso que Enrique Leff acertadamente pontua que “a economia está gerando a morte entrópica do mundo”.
Essa “morte”, em nosso entendimento, é cada vez mais explícita quando se percebe que a única preocupação dos “Senhores da Economia Mundial” está em salvar o grande capital, não em salvar o planeta e a vida. Por sinal, melhor seria dizer em salvar a vida, pois o planeta saberá viver sem nós uma vez que não depende de nossa presença para sobreviver.
Pelo lado da economia voraz e consumista, base do deus-mercado, que a tudo destrói em nome de atender aos ditames mercadológicos, somos sabedores de que a ordem da macroeconomia comandada por esses “Senhores” é uma só: fazer crescer e crescer e crescer cada vez mais a economia mundial. Do outro lado, para o bem da sobrevivência e do respeito às leis da vida, a ordem da ecologia também é una: lutar pela possibilidade de assegurar a sobrevivência de nossa espécie.
Conquanto, o fato é que já não é mais possível aceitar a prédica mercadológica que faz com que uma minoria prospera enquanto uma maioria conheça de perto o drama da exclusão numa sociedade que parece não ser de outra natureza além daquela consumista, insuflada pela propaganda, financiada pelo capital, destruidora da natureza.
Os que defendem o modelo de fazer a economia crescer sem limites para assim promover a “felicidade geral”, como se isso fosse exequível, e como se não houvesse nenhum tipo de diferença sócio-econômica, se equivocam ao ignorar que esse “crescimento” é dependente das leis da natureza e a natureza, em toda sua amplitude, não é (e nunca será) capaz de dar conta dessa política de crescimento.
Nesse sentido, a economia parece ser completamente míope em relação à necessidade de se regular a produção. Para o bem daqueles que se encontram ao lado do ambiente, contra a economia destruidora, cabe atentar aos preceitos desse novo pensamento que ganha, cada vez mais, contorno de paradigma que veio para ficar. Consoante a isso, analisemos a seguir o que tem dito Lowy e Bellamy Foster que trabalham a idéia de “eco-socialismo”.
O ecossocialismo
Afinal, o que é o ecossocialismo? Para Lowy, “Trata-se de uma corrente de pensamento e de ação ecológica que toma para si as conquistas fundamentais do socialismo – ao mesmo tempo livrando-se de suas escórias produtivistas”.
Já o sociólogo John Bellamy Foster definiu o ecossocialismo como sendo “a regulação racional da produção, respeitando a relação metabólica entre os sistemas sociais e os sistemas naturais, de forma a garantir a satisfação das necessidades comuns das gerações presentes e futuras”.
Portanto, a definição dada por Foster não está muito distante da recomendação feita pelo Relatório Brundtland.
Para melhor ilustrar-se essa questão, três aspectos realçam o posicionamento de Foster. São eles:
* O reconhecimento dos limites ao crescimento e a ruptura com a lógica produtivista que associa o aumento do bem-estar a um aumento da produção. Colocar o prefixo eco na palavra socialismo implica conciliar a igualdade intrageracional com a igualdade intergeracional;
* A reformulação do sistema produtivo de forma a torná-lo dependente unicamente do uso de recursos renováveis, articulando com o princípio anterior. Cumpre ressaltar que a sustentabilidade exige um uso dos recursos renováveis a um ritmo que garanta a sua renovação;
* O uso social da natureza, privilegiando a gestão comunitária de recursos comuns.
Como visto, os termos ecossocialismo e socialismo ecológico estão longe de serem apenas modismos ou meras retóricas românticas. São, ademais, conceitos que ganham contornos relevantes num mundo que vive intensamente a mais grave crise ecológica de toda a história. Para o bem de todos nós, o pensamento em defesa da sustentabilidade se fortalece no dia a dia. A natureza e a vida agradecem.
15/11/2011
Fonte: ViaPolítica/O autor
Marcus Eduardo de Oliveira é economista e professor de economia da FAC-FITO e do UNIFIEO, em São Paulo. Membro do GECEU – Grupo de Estudos de Comércio Exterior (UNIFIEO) e articulista do Portal EcoDebate, do site “O Economista” e da Agência Zwela de Notícias (Angola).
E-mail - prof.marcuseduardo@bol.com.br
Twitter - http://twitter.com/marcuseduoliv
17.01.2011
do socialismo ecológico
.
Por Marcus Eduardo de Oliveira, de São Paulo
Os termos ecossocialismo e socialismo ecológico estão longe de serem apenas modismos ou meras retóricas românticas. São conceitos que ganham relevância na mais grave crise ambiental da história.
Visão do futuro, por Ricky Bols
Mudar radicalmente a racionalidade econômica; aproximar as preocupações da ciência econômica para a necessidade de libertar o homem; criar um novo ambiente propício para a vida de todos os seres humanos, sem a divisão costumeira que privilegia alguns em detrimento de muitos, e reconhecer, definitivamente, a existência de limites ao crescimento. São esses alguns pontos centrais da discussão em torno do que se convenciona chamar socialismo ecológico, ou como alguns preferem de eco-socialismo.
Socialismo, sim, no sentido de enaltecer os laços sociais e políticos que respeitam, primeiramente, a Mãe Terra. Socialismo no sentido de fazer a crítica verdadeira ao “deus-capitalismo”, que se afirma consoante a ideia básica de que o mercado, altar sagrado do dinheiro, pode tudo. Esse socialismo, aqui defendido, se põe em posição contrária a essa premissa, pois entende que o mercado é incapaz de resolver tudo e que o mundo não pode viver apenas de consumo e mais consumo, como o “deus-capitalismo” sempre quis que assim fosse e quer que assim seja.
Quem tem olhos para ver sabe que a contradição entre capital e natureza aí está posta e deve ser repensada à luz de uma nova perspectiva que inclua, essencial e preferencialmente, o ser humano dentro do objeto de análise dos modelos econômicos, partindo da premissa que o mundo não é, como dissemos, um objeto, uma simples e qualquer mercadoria pronta para ser digerida por bocas ávidas.
Se o consumo consome o consumidor, o socialismo ecológico, o eco-socialismo, vem para refutar o deus-mercado e estabelecer novas regras no jogo, defendendo as bases de sustentação da vida, condenando, primeiramente, o consumo artificialmente induzido pela publicidade que faz a sobrevivência daquele “deus” que ora mencionamos.
Esse socialismo ecológico, defendido pelo economista mexicano Enrique Leff, pelo sociólogo Michael Lowy, por Victor Wallis, John Bellamy Foster, Jean-Marie Harribey, Raymond Willians, David Pepper e tantos outros nomes de destaque na academia, aponta para a necessidade de incutir no imaginário coletivo a verdade de que toda vez que o capital se constrói sob as ruínas da natureza é a vida de todos nós que entra em perigo. Talvez seja por isso que Enrique Leff acertadamente pontua que “a economia está gerando a morte entrópica do mundo”.
Essa “morte”, em nosso entendimento, é cada vez mais explícita quando se percebe que a única preocupação dos “Senhores da Economia Mundial” está em salvar o grande capital, não em salvar o planeta e a vida. Por sinal, melhor seria dizer em salvar a vida, pois o planeta saberá viver sem nós uma vez que não depende de nossa presença para sobreviver.
Pelo lado da economia voraz e consumista, base do deus-mercado, que a tudo destrói em nome de atender aos ditames mercadológicos, somos sabedores de que a ordem da macroeconomia comandada por esses “Senhores” é uma só: fazer crescer e crescer e crescer cada vez mais a economia mundial. Do outro lado, para o bem da sobrevivência e do respeito às leis da vida, a ordem da ecologia também é una: lutar pela possibilidade de assegurar a sobrevivência de nossa espécie.
Conquanto, o fato é que já não é mais possível aceitar a prédica mercadológica que faz com que uma minoria prospera enquanto uma maioria conheça de perto o drama da exclusão numa sociedade que parece não ser de outra natureza além daquela consumista, insuflada pela propaganda, financiada pelo capital, destruidora da natureza.
Os que defendem o modelo de fazer a economia crescer sem limites para assim promover a “felicidade geral”, como se isso fosse exequível, e como se não houvesse nenhum tipo de diferença sócio-econômica, se equivocam ao ignorar que esse “crescimento” é dependente das leis da natureza e a natureza, em toda sua amplitude, não é (e nunca será) capaz de dar conta dessa política de crescimento.
Nesse sentido, a economia parece ser completamente míope em relação à necessidade de se regular a produção. Para o bem daqueles que se encontram ao lado do ambiente, contra a economia destruidora, cabe atentar aos preceitos desse novo pensamento que ganha, cada vez mais, contorno de paradigma que veio para ficar. Consoante a isso, analisemos a seguir o que tem dito Lowy e Bellamy Foster que trabalham a idéia de “eco-socialismo”.
O ecossocialismo
Afinal, o que é o ecossocialismo? Para Lowy, “Trata-se de uma corrente de pensamento e de ação ecológica que toma para si as conquistas fundamentais do socialismo – ao mesmo tempo livrando-se de suas escórias produtivistas”.
Já o sociólogo John Bellamy Foster definiu o ecossocialismo como sendo “a regulação racional da produção, respeitando a relação metabólica entre os sistemas sociais e os sistemas naturais, de forma a garantir a satisfação das necessidades comuns das gerações presentes e futuras”.
Portanto, a definição dada por Foster não está muito distante da recomendação feita pelo Relatório Brundtland.
Para melhor ilustrar-se essa questão, três aspectos realçam o posicionamento de Foster. São eles:
* O reconhecimento dos limites ao crescimento e a ruptura com a lógica produtivista que associa o aumento do bem-estar a um aumento da produção. Colocar o prefixo eco na palavra socialismo implica conciliar a igualdade intrageracional com a igualdade intergeracional;
* A reformulação do sistema produtivo de forma a torná-lo dependente unicamente do uso de recursos renováveis, articulando com o princípio anterior. Cumpre ressaltar que a sustentabilidade exige um uso dos recursos renováveis a um ritmo que garanta a sua renovação;
* O uso social da natureza, privilegiando a gestão comunitária de recursos comuns.
Como visto, os termos ecossocialismo e socialismo ecológico estão longe de serem apenas modismos ou meras retóricas românticas. São, ademais, conceitos que ganham contornos relevantes num mundo que vive intensamente a mais grave crise ecológica de toda a história. Para o bem de todos nós, o pensamento em defesa da sustentabilidade se fortalece no dia a dia. A natureza e a vida agradecem.
15/11/2011
Fonte: ViaPolítica/O autor
Marcus Eduardo de Oliveira é economista e professor de economia da FAC-FITO e do UNIFIEO, em São Paulo. Membro do GECEU – Grupo de Estudos de Comércio Exterior (UNIFIEO) e articulista do Portal EcoDebate, do site “O Economista” e da Agência Zwela de Notícias (Angola).
E-mail - prof.marcuseduardo@bol.com.br
Twitter - http://twitter.com/marcuseduoliv
17.01.2011
Pícaros
A gênese do pícaro moderno
.
Por Adelto Gonçalves, de Santos, São Paulo
Nos dias que correm, esse pícaro pode constituir também o vírus da liberdade, pois debilita os regimes de força – que são sempre regimes corruptos – por sua ação demolidora através da Internet, das redes sociais.
Lazarillo de Tormes
I
Quem quiser entender a literatura espanhola de hoje, marcada por Enrique Vila-Matas, Javier Marías e Eduardo Mendoza, precisa primeiro conhecer a literatura espanhola dos séculos XVI e XVII, não só aquela praticada por Miguel de Cervantes (1547-1616), autor de Dom Quixote, mas por poetas maneiristas como Luis de Góngora y Argote (1561-1627), que abriram caminho para as experimentações que redundaram no romance espanhol moderno. Mas esse caminho nunca será completo se o leitor não (re)descobrir Lazarillo de Tormes (1554), romance de autor anônimo, que, de fato, lançou as bases desse gênero.
Antes, porém, de se aventurar a ler esses autores, o estudante fará bom caminho – que, como diria Antonio Machado (1875-1939), faz-se ao andar – se começar por Leituras de Literatura Espanhola (da Idade Média ao século XVII), do professor Mario Miguel González (São Paulo, Letraviva, 2010), que reúne 21 textos que analisam como se comportaram esses antecessores da vanguarda literária hispânica, abarcando desde a poesia lírica medieval, a prosa medieval, o Amadis de Gaula e as novelas de cavalaria, a poesia de frei Juan de la Cruz (1542-1591), Lope de Vega (1562-1635) e o teatro nacional espanhol, Tirso de Molina (1571?-1648) e a criação de Don Juan, o barroco espanhol, até o romance picaresco que não se esgota no Lazarillo de Tormes, mas prossegue em Guzmán de Alfarache, de Mateo Aleman (1547-1615?), e El Buscón, de Francisco de Quevedo (1580-1645).
Sem entender basicamente o ciclo do romance picaresco, não se poderá entender nunca o romance espanhol de hoje, que, embora os críticos espanhóis prefiram não admitir, estava, por volta dos anos 60 do século passado, se não morto, ao menos numa fase de transição. Foi quando chegaram a Barcelona os escritores latino-americanos que haviam sido escorraçados de seus países pelos militares que à época funcionavam como títeres dos governos que se sucediam em Washington.
A esse tempo, havia um vácuo entre as gerações de escritores: até porque a maioria, em razão da Guerra Civil (1936-1939), teve de seguir para o exílio. E, assim, a literatura espanhola perdeu continuidade. Latino-americanos como Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), José Donoso (1924-1996) e Julio Cortázar (1914-1984) – que morava em Paris, mas viajava com frequência para Barcelona -- vieram a ocupar esse vácuo, mostrando-se melhores do que os escritores espanhóis daquela época. Exibiam um castelhano mais vivo, enquanto o idioma dos autóctones parecia moribundo. Houve, então, uma reação, pois os espanhóis, achando-se os donos da língua, não podiam admitir aquilo pacificamente.
II
Para fazer essa “ponte” entre o antigo e o moderno, esses escritores espanhóis “descobriram” um personagem que caía à medida: o pícaro, que estabelecia essa ligação com a modernidade, pois, de fato, o Lazarillo de Tormes, gênese desse tipo de romance, é o primeiro a transgredir certas regras, como a de colocar o pobre como personagem principal de uma aventura, indo ainda mais além do Dom Quixote, de Cervantes, considerado o primeiro romance verdadeiramente transgressor.
É verdade que Dom Quixote, se ridiculariza as novelas de cavalaria, mostrando-as como um gênero que chegara a um estágio de exaustão e degradação, tal a repetição da fórmula que as fundamentava, o Lazarillo de Tormes seria um cavaleiro tão desprestigiado que já havia até perdido o seu cavalo e todo o idealismo, integrando-se no dia a dia das cidades espanholas que mal saíam do feudalismo. Por esse lado, o pícaro, esse cavaleiro que perdera seu cavalo, para sobreviver, aceitaria passar por uma série de circunstâncias pouco dignas, como até mesmo a de posar como marido da amante de seu amo.
Com um pouco de influência da literatura inglesa, da literatura francesa e do romance policial norte-americano, a chamada “novela negra”, a moderna literatura espanhola incorporou um tanto da atitude ácrata que marca a maioria dos personagens desse gênero literário, ou seja, um personagem que está sempre fora da sociedade, assim como Candide, de Voltaire (1694-1778), ou Estragon, de Esperando Godot, de Samuel Beckett (1906-1989). Esse é o pícaro, um “vírus” que percorre um organismo – no caso, a sociedade – sem a ele pertencer, um marginalizado a quem ninguém dá ouvidos, mas que conhece a verdade porque está de fora e a vê – até porque quem vê de fora vê melhor.
Os pícaros são homens que se movem numa sociedade perfeitamente organizada e que não são absolutamente nada, não representam nada, não estão vinculados a nenhuma facção política nem têm ideologia ou ideais, movem-se apenas por seus mais mesquinhos interesses. Na sociedade espanhola dos séculos XVI e XVII, perfeitamente organizada, com a igreja, o exército, a nobreza, os comerciantes, os banqueiros e a escumalha, todos em seus devidos lugares, esse “micróbio”, o pícaro, às vezes é rico, às vezes é pobre, às vezes é o lacaio de um ricaço, que tem entrada em todas as casas, mas não tem identidade própria. Astuto, sabe como se mover, como um perro callejero (um cão vira-latas), sabe onde buscar comida e sobrevivência.
Nas sociedades autoritárias de hoje, que funcionam à perfeição até que se desmoronam – vejam o recente fim do regime de Mubarak, no Egito –, o pícaro pode ser até um jornalista que, ainda que mal remunerado, tem entrada na casa do senador, do barão da indústria, do banqueiro. Ou comparece ao escritório ou à mansão do governante, do parlamentar, do grande narcotraficante – que, nos dias de hoje, podem ser a mesma pessoa –, acompanhado pelo dono ou pelo diretor do grande jornal, como Lazarillo fazia quando acompanhava seu amo ao visitar algum mandão da época.
Nos dias que correm, esse pícaro pode constituir também o vírus da liberdade, pois debilita os regimes de força – que são sempre regimes corruptos – por sua ação demolidora através da Internet, das redes sociais. Não esqueçamos que um regime de força também pode ter congresso aberto e promover eleições periodicamente. A diferença é que a oposição, geralmente, é controlada na base da corrupção e as eleições manipuladas pelo grande capital que a tudo e a todos corrompe.
III
Para conhecer esse personagem do século XVI que ainda pode ser flagrado na sociedade do século XXI, a leitura do ensaio “Lazarillo de Tormes”, de Mario Miguel González, é fundamental, pois mostra que os romances picarescos têm sempre um forte sentido de sátira social. “No caso dos romances picarescos espanhóis clássicos, a sátira aponta para os mecanismos de ascensão social válidos numa sociedade que rejeitava por princípio os valores básicos da burguesia e na qual o parecer prevalecia nitidamente sobre o ser”, diz o professor.
Lembra González que a sociedade, para Lázaro de Tormes, se divide em dois grupos: “los que heredaron nobles estados” e “los que, siéndoles (la Fortuna) contraria, com fuerza y maña remando salieron a buen puerto”. A princípio, supõe-se que Lazarillo quer condenar e desmascarar os nobres, ou seja, os ricos, em sua ociosidade, para exaltar a mentalidade burguesa, que daria valor àquele que ascenderia socialmente por seu próprio esforço e engenho. Mas, ao fim do romance, o incauto leitor haverá de descobrir que, para Lazarillo, “remar” não significa trabalhar nem especular astutamente – como aqueles modernos construtores que usam qualquer pretexto – até mesmo o petróleo que a Petrobras nem sabe se conseguirá extrair da camada pré-sal – para valorizar exageradamente seus imóveis.
Para Lázaro, remar significa “arrimarse a los buenos”, ou seja, aliar-se aos que estão por cima, como fizera sua própria mãe e como ele próprio faria depois. Em outras palavras: segundo Lázaro, para subir na vida, é preciso ter astúcia, uma boa lábia, para enganar a todos constantemente o tempo todo. E, assim, ascender na escala social, adquirir recursos, seja lá como for, para aparentar um “homem de bem”, colocar uma espada à cinta. Por isso, munido destas informações, o leitor que chegou até aqui que olhe agora para os lados. Com certeza, irá identificar em alguém próximo um pícaro moderno.
IV
Professor de Literatura Espanhola da Universidade de São Paulo (USP) desde 1968, Mario Miguel González nasceu em Alta Gracia, Córdoba, na Argentina, mas é brasileiro naturalizado. É autor de El conflicto dramático en Bodas de Sangre, tese de doutorado defendida na USP em 1973 e publicada em livro em 1989 pela Edusp, O romance picaresco (São Paulo, Ática, 1988) e A saga do anti-herói, sua tese de livre-docência publicada pela Nova Alexandria em 1994 em que estuda a influência do romance picaresco espanhol em obras de autores brasileiros, especialmente Ariano Suassuna. Foi responsável também pela edição de Lazarillo de Tormes (edição de Medina del Campo), em tradução de Heloísa Costa Milton e Antonio R. Esteves (São Paulo, Editora 34, 2005).
19/2/2011
Fonte: ViaPolítica/O autor
LEITURAS DE LITERATURA ESPANHOLA (DA IDADE MÉDIA AO SÉCULO XVII), de Mario M. González. São Paulo: Letraviva, 2010, 480 págs., R$ 59.
E-mail: letraviva@letraviva.com.br
Adelto Gonçalves é mestre em Língua e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).
E-mail: marilizadelto@uol.com.br
.
Por Adelto Gonçalves, de Santos, São Paulo
Nos dias que correm, esse pícaro pode constituir também o vírus da liberdade, pois debilita os regimes de força – que são sempre regimes corruptos – por sua ação demolidora através da Internet, das redes sociais.
Lazarillo de Tormes
I
Quem quiser entender a literatura espanhola de hoje, marcada por Enrique Vila-Matas, Javier Marías e Eduardo Mendoza, precisa primeiro conhecer a literatura espanhola dos séculos XVI e XVII, não só aquela praticada por Miguel de Cervantes (1547-1616), autor de Dom Quixote, mas por poetas maneiristas como Luis de Góngora y Argote (1561-1627), que abriram caminho para as experimentações que redundaram no romance espanhol moderno. Mas esse caminho nunca será completo se o leitor não (re)descobrir Lazarillo de Tormes (1554), romance de autor anônimo, que, de fato, lançou as bases desse gênero.
Antes, porém, de se aventurar a ler esses autores, o estudante fará bom caminho – que, como diria Antonio Machado (1875-1939), faz-se ao andar – se começar por Leituras de Literatura Espanhola (da Idade Média ao século XVII), do professor Mario Miguel González (São Paulo, Letraviva, 2010), que reúne 21 textos que analisam como se comportaram esses antecessores da vanguarda literária hispânica, abarcando desde a poesia lírica medieval, a prosa medieval, o Amadis de Gaula e as novelas de cavalaria, a poesia de frei Juan de la Cruz (1542-1591), Lope de Vega (1562-1635) e o teatro nacional espanhol, Tirso de Molina (1571?-1648) e a criação de Don Juan, o barroco espanhol, até o romance picaresco que não se esgota no Lazarillo de Tormes, mas prossegue em Guzmán de Alfarache, de Mateo Aleman (1547-1615?), e El Buscón, de Francisco de Quevedo (1580-1645).
Sem entender basicamente o ciclo do romance picaresco, não se poderá entender nunca o romance espanhol de hoje, que, embora os críticos espanhóis prefiram não admitir, estava, por volta dos anos 60 do século passado, se não morto, ao menos numa fase de transição. Foi quando chegaram a Barcelona os escritores latino-americanos que haviam sido escorraçados de seus países pelos militares que à época funcionavam como títeres dos governos que se sucediam em Washington.
A esse tempo, havia um vácuo entre as gerações de escritores: até porque a maioria, em razão da Guerra Civil (1936-1939), teve de seguir para o exílio. E, assim, a literatura espanhola perdeu continuidade. Latino-americanos como Gabriel García Márquez, Mario Vargas Llosa, Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), José Donoso (1924-1996) e Julio Cortázar (1914-1984) – que morava em Paris, mas viajava com frequência para Barcelona -- vieram a ocupar esse vácuo, mostrando-se melhores do que os escritores espanhóis daquela época. Exibiam um castelhano mais vivo, enquanto o idioma dos autóctones parecia moribundo. Houve, então, uma reação, pois os espanhóis, achando-se os donos da língua, não podiam admitir aquilo pacificamente.
II
Para fazer essa “ponte” entre o antigo e o moderno, esses escritores espanhóis “descobriram” um personagem que caía à medida: o pícaro, que estabelecia essa ligação com a modernidade, pois, de fato, o Lazarillo de Tormes, gênese desse tipo de romance, é o primeiro a transgredir certas regras, como a de colocar o pobre como personagem principal de uma aventura, indo ainda mais além do Dom Quixote, de Cervantes, considerado o primeiro romance verdadeiramente transgressor.
É verdade que Dom Quixote, se ridiculariza as novelas de cavalaria, mostrando-as como um gênero que chegara a um estágio de exaustão e degradação, tal a repetição da fórmula que as fundamentava, o Lazarillo de Tormes seria um cavaleiro tão desprestigiado que já havia até perdido o seu cavalo e todo o idealismo, integrando-se no dia a dia das cidades espanholas que mal saíam do feudalismo. Por esse lado, o pícaro, esse cavaleiro que perdera seu cavalo, para sobreviver, aceitaria passar por uma série de circunstâncias pouco dignas, como até mesmo a de posar como marido da amante de seu amo.
Com um pouco de influência da literatura inglesa, da literatura francesa e do romance policial norte-americano, a chamada “novela negra”, a moderna literatura espanhola incorporou um tanto da atitude ácrata que marca a maioria dos personagens desse gênero literário, ou seja, um personagem que está sempre fora da sociedade, assim como Candide, de Voltaire (1694-1778), ou Estragon, de Esperando Godot, de Samuel Beckett (1906-1989). Esse é o pícaro, um “vírus” que percorre um organismo – no caso, a sociedade – sem a ele pertencer, um marginalizado a quem ninguém dá ouvidos, mas que conhece a verdade porque está de fora e a vê – até porque quem vê de fora vê melhor.
Os pícaros são homens que se movem numa sociedade perfeitamente organizada e que não são absolutamente nada, não representam nada, não estão vinculados a nenhuma facção política nem têm ideologia ou ideais, movem-se apenas por seus mais mesquinhos interesses. Na sociedade espanhola dos séculos XVI e XVII, perfeitamente organizada, com a igreja, o exército, a nobreza, os comerciantes, os banqueiros e a escumalha, todos em seus devidos lugares, esse “micróbio”, o pícaro, às vezes é rico, às vezes é pobre, às vezes é o lacaio de um ricaço, que tem entrada em todas as casas, mas não tem identidade própria. Astuto, sabe como se mover, como um perro callejero (um cão vira-latas), sabe onde buscar comida e sobrevivência.
Nas sociedades autoritárias de hoje, que funcionam à perfeição até que se desmoronam – vejam o recente fim do regime de Mubarak, no Egito –, o pícaro pode ser até um jornalista que, ainda que mal remunerado, tem entrada na casa do senador, do barão da indústria, do banqueiro. Ou comparece ao escritório ou à mansão do governante, do parlamentar, do grande narcotraficante – que, nos dias de hoje, podem ser a mesma pessoa –, acompanhado pelo dono ou pelo diretor do grande jornal, como Lazarillo fazia quando acompanhava seu amo ao visitar algum mandão da época.
Nos dias que correm, esse pícaro pode constituir também o vírus da liberdade, pois debilita os regimes de força – que são sempre regimes corruptos – por sua ação demolidora através da Internet, das redes sociais. Não esqueçamos que um regime de força também pode ter congresso aberto e promover eleições periodicamente. A diferença é que a oposição, geralmente, é controlada na base da corrupção e as eleições manipuladas pelo grande capital que a tudo e a todos corrompe.
III
Para conhecer esse personagem do século XVI que ainda pode ser flagrado na sociedade do século XXI, a leitura do ensaio “Lazarillo de Tormes”, de Mario Miguel González, é fundamental, pois mostra que os romances picarescos têm sempre um forte sentido de sátira social. “No caso dos romances picarescos espanhóis clássicos, a sátira aponta para os mecanismos de ascensão social válidos numa sociedade que rejeitava por princípio os valores básicos da burguesia e na qual o parecer prevalecia nitidamente sobre o ser”, diz o professor.
Lembra González que a sociedade, para Lázaro de Tormes, se divide em dois grupos: “los que heredaron nobles estados” e “los que, siéndoles (la Fortuna) contraria, com fuerza y maña remando salieron a buen puerto”. A princípio, supõe-se que Lazarillo quer condenar e desmascarar os nobres, ou seja, os ricos, em sua ociosidade, para exaltar a mentalidade burguesa, que daria valor àquele que ascenderia socialmente por seu próprio esforço e engenho. Mas, ao fim do romance, o incauto leitor haverá de descobrir que, para Lazarillo, “remar” não significa trabalhar nem especular astutamente – como aqueles modernos construtores que usam qualquer pretexto – até mesmo o petróleo que a Petrobras nem sabe se conseguirá extrair da camada pré-sal – para valorizar exageradamente seus imóveis.
Para Lázaro, remar significa “arrimarse a los buenos”, ou seja, aliar-se aos que estão por cima, como fizera sua própria mãe e como ele próprio faria depois. Em outras palavras: segundo Lázaro, para subir na vida, é preciso ter astúcia, uma boa lábia, para enganar a todos constantemente o tempo todo. E, assim, ascender na escala social, adquirir recursos, seja lá como for, para aparentar um “homem de bem”, colocar uma espada à cinta. Por isso, munido destas informações, o leitor que chegou até aqui que olhe agora para os lados. Com certeza, irá identificar em alguém próximo um pícaro moderno.
IV
Professor de Literatura Espanhola da Universidade de São Paulo (USP) desde 1968, Mario Miguel González nasceu em Alta Gracia, Córdoba, na Argentina, mas é brasileiro naturalizado. É autor de El conflicto dramático en Bodas de Sangre, tese de doutorado defendida na USP em 1973 e publicada em livro em 1989 pela Edusp, O romance picaresco (São Paulo, Ática, 1988) e A saga do anti-herói, sua tese de livre-docência publicada pela Nova Alexandria em 1994 em que estuda a influência do romance picaresco espanhol em obras de autores brasileiros, especialmente Ariano Suassuna. Foi responsável também pela edição de Lazarillo de Tormes (edição de Medina del Campo), em tradução de Heloísa Costa Milton e Antonio R. Esteves (São Paulo, Editora 34, 2005).
19/2/2011
Fonte: ViaPolítica/O autor
LEITURAS DE LITERATURA ESPANHOLA (DA IDADE MÉDIA AO SÉCULO XVII), de Mario M. González. São Paulo: Letraviva, 2010, 480 págs., R$ 59.
E-mail: letraviva@letraviva.com.br
Adelto Gonçalves é mestre em Língua e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).
E-mail: marilizadelto@uol.com.br
quarta-feira, 27 de abril de 2011
Cinema
A linguagem abjeta do cinema
.
Por Luiz Rosemberg Filho & Sindoval Aguiar, do Rio de Janeiro
A opção ética no nosso cinema foi assassinada pelo narcisismo de alguns deslumbrados, e pelo capital que, ao satisfazer o desejo de enganar, comprar e mentir, transformou a traição numa exaltação a ser seguida.
Colagem de Luiz Rosemberg Filho
Ser um burocrata-palhaço é fácil pela similaridade com a nossa odiosa classe política. Falta-lhes, entretanto, conteúdo humano, mas isso pouco importa, pois são políticos modernos que lidam com a tragicômica tecnologia moderna. O que os faz avançar é um constante retrocesso à barbárie, cabendo ao burocrata-palhaço servir como instrumento policial a inventar papelotes, carimbinhos e firulas no seu eterno disfarce “cinzento” de caça à inteligência.
E como o nonsense é o que predomina no país, sempre errando, de vez em quando acertam. Mas o que vem a ser o burocrata-palhaço? Definiremos o palhaço e o resto fica por conta de cada um. Em 1988, em Os Meios de Comunicação Como Extensão do Homem, McLuhan afirmava com maestria: “O palhaço é um homem integral que arremeda o acrobata numa mímica elaborada da incompetência”. Heroificados por partidos medíocres coligados com o poder, chegam sempre a algum tipo de repartição pública, onde aperfeiçoam a mesmice para que nada seja alterado.
Falta-nos, hoje, plenitude a uma apropriação poética da desintegração do real. A opção ética no nosso cinema foi logo assassinada pelo narcisismo de alguns deslumbrados, e pelo capital que, ao satisfazer o desejo de enganar, comprar e mentir, transformou a traição numa exaltação a ser seguida. Ou seja, cobriu-se a falta de sensibilidade concreta e real com o dinheiro. E muitas foram as aberrações que vieram em nome do sucesso a qualquer preço.
Mas onde estão hoje esses virtuosos do capital? Resposta: bem acolhidos na TV, formatando clichês e inventando peruas que se dizem atrizes vindas do prostíbulo do BBB: o Big Bunda Brasil. O realismo forte de Os Fuzis deu lugar a uma zona de bonecas responsáveis pela irresponsabilidade de sons e imagens sem qualquer concepção dramática, a verbalizar o óbvio na dessubjetivação do espectador.
Queríamos pensar o Brasil, Poe, Baudelaire ou Fernando Pessoa. Queríamos desafiar contradições, risos, silêncios e os nossos muitos demônios. Queríamos avançar no saber para ultrapassar a nós mesmos. O suporte da solidão num confronto permanente nos tornou mais fortes frente à decrepitude agonizante dos nossos velhos e novos inimigos. Lamentamos não terem apreendido nada com os trágicos anos de chumbo. Mas o ameaçador não é o passado e sim o presente. Esse duplo de ontem e de hoje ameaçando o futuro.
Colagem de Luiz Rosemberg Filho
Mas... o eterno esperto se acha engenhoso, isento de responsabilidade a defender a mesmice que sempre os beneficiou na eterna sem-vergonhice da nossa trágica política cultural que, desde o regime militar, vive a enxugar gelo. O próprio Celso Furtado, citado como exemplo inquestionável de economista, como Ministro da Cultura foi um tremendo enxugador de gelo, quando justificou até a interdição de um delicado filme de Godard.
Ou seja, desde o regime militar vive-se por todos os lados golpes de humilhação e castração. E onde não existe gozo, o baixo e o sujo tornam-se referências. Lamentavelmente, a televisão virou o nosso único campo perceptivo de uma história de esquecimentos. Inseriu-se no cinema para nos fazer ainda mais idiotas como realizadores e espectadores. Basta que se veja os “filmes” de sucesso: um desacordo total com o cinema de Humberto Mauro, Mario Peixoto ou Glauber Rocha, para nos limitar ao trabalho com a linguagem e o saber.
E o que passa do bom cinema brasileiro na TV é pouco ou quase nada. E quando raramente acontece é madrugada. Claro que se aliaram às companhias estrangeiras e solidificaram a melancolia, a burocracia e a barbárie. Só os bem comportadinhos, adesistas, histéricos e idiotas filmam. Sensibilidade e investigação linguística estão fora da “grade” – terminologia imunda da TV.
Ora, não escolhemos o cinema para sofrer ou morrer. Não cultuamos a depressão ou a tristeza, e sim a vida satisfeita para todos. Fomos sempre críticos em relação à burocracia, mas sabemos reconhecer seus avanços (quando avançam) e conquistas. Também nunca subestimamos a força dos velhos inimigos, e sempre os confrontamos com argumentos cabíveis. Já até os defendemos quando achávamos que não eram tão baixos e oportunistas de plantão. Não temos uma visão infantil nem apaziguadora dos tantos mal-entendidos como propostas veladas em defesa para que nada mude. Fizemos e fazemos apesar desse fascismo também velado que nos domina da TV ao Cinema-Espetáculo. Mas... a quem serve a TV e o Cinema-Espetáculo?
Nossa triste história está repleta de tais situações ou malabarismos linguísticos e de posicionamentos de concepções. O que torna mais abjeta a história do cinema e a nossa própria história. Toda vez que se tenta alguma mudança ou que se projeta alguma possibilidade para muitos, alguns pensadores duvidosos, policiais e militares ganham as ruas, incentivadas ou metonimizadas para nada acontecer. Situações a que a imprensa única atendeu sempre. A voz do dono.
Particularmente, não somos personagens de bastidores e louvamos a imprensa quando alguma liberdade se expressa, não somente para o óbvio, mas para tematizações mais do que necessárias e que, no cinema, só aparecem depois, nos bastidores! Como agora, com as possíveis alterações nas leis de incentivo ao cinema, que têm sido ativadas por situações parcimoniosas, deixando o cinema mais vitimado do que compensado. No passado, ainda contávamos com o Sindicato Nacional da Indústria, ativo em suas responsabilidades, com as associações e outros movimentos. Hoje, contamos com os malabarismos dos peões da mídia e pouco mais. Que, na sofreguidão do sugar, se embaralham nas tetas, temendo secar.
Nosso cinema periférico, carente e dependente, não pode abrir mão de decisões menos óbvias do governo para o setor. Principalmente, como proteção e fomento. E nossa infraestrutura está pronta para uma independência que, no futuro, será um forte suporte do próprio governo e em nossa sustentabilidade. Como profissionais e como um mercado rentável econômico e cultural.
E se o Brasil em sua essência carece de reformas, estas leis de incentivo se tornam fundamentais, bastando, para atendê-las, reinverter os “argumentos” estampados e bem grafados em matéria de O Globo, indiscretamente escrita para os mesmos de sempre. O dono e a voz! E nem precisamos discutir ou repetir o já defendido ao longo dos anos em simpósios e escritos: a defesa do cinema, do mercado e da cultura, e de nossa autonomia e identidade. Com liberdade, independência e sem evasões econômicas e culturais.
Os sabujos, conhecedores de mitos e oferendas, conhecem também feudos, monarquias e burguesias. O que Marx define em 18 Brumário. Estes sabujos são os nossos Napoleões brasileiros, que varreram o país como Napoleão varreu a Europa. Conhecemos bem o “liberalismo” desses Napoleões. E em nossas lutas pelo cinema o que se conseguiu foi graças aos movimentos como este da Ancine, definindo as ações para uma autonomia de necessidades. Com o que possuímos de melhor: recursos, capacidade e mercado. Ações de um rigor temático, histórico e cultural.
Nenhum governo, portanto, pode ser insensível às intenções humanas e nobres da Ancine, as de avançar numa área digna e imprescindível como a do cinema e do audiovisual, quando as companhias estrangeiras decidem, diretamente, os seus interesses na administração do cinema brasileiro. Nossa infraestrutura é política, econômica e cultural. E é com ela que vamos lutar! E toda realidade só existe quando questionada e testada como existência, a do nosso cinema expropriado, que traduz mitos, poderes e as prepotências nas culturas das metrópoles, becos e guetos subproletarizados, hoje dominados por tropas de ocupação (onde efetivos armados limpam a área para o controle dos meios de produção, enquanto a exploração e a exclusão não chegam).
No Brasil, a defesa do nosso cinema precisa acompanhar discussões como as de Jean Claude Carrière na França. Que em reuniões do GATT acusou os Estados Unidos de estarem liquidando o cinema no mundo, que sangra como diversão, cultura, controle e remessa de lucros e deixa um rastro e uma identidade esfacelada. O cinema brasileiro ainda precisa de um olhar atento e sério sobre ele. Mais atento e substancial do que o cinema 3D. Um olhar humano de afeto, dimensão e significações. E sem negligenciar o mercado, um dos melhores do planeta, esquecido e controlado pelos meios de produção de teles e celulares. Cujo mercado tornou-se a sala de espera e de exibições para nada. A do mercado, a partir de entendimentos produzidos como lixo.
Os incentivos são sim recursos públicos originários de uma renúncia fiscal, mas estes recursos foram parar nas mãos de empresas estrangeiras. Um erro que precisa ser corrigido com a máxima urgência! O cinema guarda toda uma possibilidade de ação política, econômica e cultural em favor do povo e da Nação, e todos temos que cumprir essa tarefa. E despertar o pequeno e grande público para acompanhá-la.
15/1/2011
Fonte: ViaPolítica/Os autores
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Por Luiz Rosemberg Filho & Sindoval Aguiar, do Rio de Janeiro
A opção ética no nosso cinema foi assassinada pelo narcisismo de alguns deslumbrados, e pelo capital que, ao satisfazer o desejo de enganar, comprar e mentir, transformou a traição numa exaltação a ser seguida.
Colagem de Luiz Rosemberg Filho
Ser um burocrata-palhaço é fácil pela similaridade com a nossa odiosa classe política. Falta-lhes, entretanto, conteúdo humano, mas isso pouco importa, pois são políticos modernos que lidam com a tragicômica tecnologia moderna. O que os faz avançar é um constante retrocesso à barbárie, cabendo ao burocrata-palhaço servir como instrumento policial a inventar papelotes, carimbinhos e firulas no seu eterno disfarce “cinzento” de caça à inteligência.
E como o nonsense é o que predomina no país, sempre errando, de vez em quando acertam. Mas o que vem a ser o burocrata-palhaço? Definiremos o palhaço e o resto fica por conta de cada um. Em 1988, em Os Meios de Comunicação Como Extensão do Homem, McLuhan afirmava com maestria: “O palhaço é um homem integral que arremeda o acrobata numa mímica elaborada da incompetência”. Heroificados por partidos medíocres coligados com o poder, chegam sempre a algum tipo de repartição pública, onde aperfeiçoam a mesmice para que nada seja alterado.
Falta-nos, hoje, plenitude a uma apropriação poética da desintegração do real. A opção ética no nosso cinema foi logo assassinada pelo narcisismo de alguns deslumbrados, e pelo capital que, ao satisfazer o desejo de enganar, comprar e mentir, transformou a traição numa exaltação a ser seguida. Ou seja, cobriu-se a falta de sensibilidade concreta e real com o dinheiro. E muitas foram as aberrações que vieram em nome do sucesso a qualquer preço.
Mas onde estão hoje esses virtuosos do capital? Resposta: bem acolhidos na TV, formatando clichês e inventando peruas que se dizem atrizes vindas do prostíbulo do BBB: o Big Bunda Brasil. O realismo forte de Os Fuzis deu lugar a uma zona de bonecas responsáveis pela irresponsabilidade de sons e imagens sem qualquer concepção dramática, a verbalizar o óbvio na dessubjetivação do espectador.
Queríamos pensar o Brasil, Poe, Baudelaire ou Fernando Pessoa. Queríamos desafiar contradições, risos, silêncios e os nossos muitos demônios. Queríamos avançar no saber para ultrapassar a nós mesmos. O suporte da solidão num confronto permanente nos tornou mais fortes frente à decrepitude agonizante dos nossos velhos e novos inimigos. Lamentamos não terem apreendido nada com os trágicos anos de chumbo. Mas o ameaçador não é o passado e sim o presente. Esse duplo de ontem e de hoje ameaçando o futuro.
Colagem de Luiz Rosemberg Filho
Mas... o eterno esperto se acha engenhoso, isento de responsabilidade a defender a mesmice que sempre os beneficiou na eterna sem-vergonhice da nossa trágica política cultural que, desde o regime militar, vive a enxugar gelo. O próprio Celso Furtado, citado como exemplo inquestionável de economista, como Ministro da Cultura foi um tremendo enxugador de gelo, quando justificou até a interdição de um delicado filme de Godard.
Ou seja, desde o regime militar vive-se por todos os lados golpes de humilhação e castração. E onde não existe gozo, o baixo e o sujo tornam-se referências. Lamentavelmente, a televisão virou o nosso único campo perceptivo de uma história de esquecimentos. Inseriu-se no cinema para nos fazer ainda mais idiotas como realizadores e espectadores. Basta que se veja os “filmes” de sucesso: um desacordo total com o cinema de Humberto Mauro, Mario Peixoto ou Glauber Rocha, para nos limitar ao trabalho com a linguagem e o saber.
E o que passa do bom cinema brasileiro na TV é pouco ou quase nada. E quando raramente acontece é madrugada. Claro que se aliaram às companhias estrangeiras e solidificaram a melancolia, a burocracia e a barbárie. Só os bem comportadinhos, adesistas, histéricos e idiotas filmam. Sensibilidade e investigação linguística estão fora da “grade” – terminologia imunda da TV.
Ora, não escolhemos o cinema para sofrer ou morrer. Não cultuamos a depressão ou a tristeza, e sim a vida satisfeita para todos. Fomos sempre críticos em relação à burocracia, mas sabemos reconhecer seus avanços (quando avançam) e conquistas. Também nunca subestimamos a força dos velhos inimigos, e sempre os confrontamos com argumentos cabíveis. Já até os defendemos quando achávamos que não eram tão baixos e oportunistas de plantão. Não temos uma visão infantil nem apaziguadora dos tantos mal-entendidos como propostas veladas em defesa para que nada mude. Fizemos e fazemos apesar desse fascismo também velado que nos domina da TV ao Cinema-Espetáculo. Mas... a quem serve a TV e o Cinema-Espetáculo?
Nossa triste história está repleta de tais situações ou malabarismos linguísticos e de posicionamentos de concepções. O que torna mais abjeta a história do cinema e a nossa própria história. Toda vez que se tenta alguma mudança ou que se projeta alguma possibilidade para muitos, alguns pensadores duvidosos, policiais e militares ganham as ruas, incentivadas ou metonimizadas para nada acontecer. Situações a que a imprensa única atendeu sempre. A voz do dono.
Particularmente, não somos personagens de bastidores e louvamos a imprensa quando alguma liberdade se expressa, não somente para o óbvio, mas para tematizações mais do que necessárias e que, no cinema, só aparecem depois, nos bastidores! Como agora, com as possíveis alterações nas leis de incentivo ao cinema, que têm sido ativadas por situações parcimoniosas, deixando o cinema mais vitimado do que compensado. No passado, ainda contávamos com o Sindicato Nacional da Indústria, ativo em suas responsabilidades, com as associações e outros movimentos. Hoje, contamos com os malabarismos dos peões da mídia e pouco mais. Que, na sofreguidão do sugar, se embaralham nas tetas, temendo secar.
Nosso cinema periférico, carente e dependente, não pode abrir mão de decisões menos óbvias do governo para o setor. Principalmente, como proteção e fomento. E nossa infraestrutura está pronta para uma independência que, no futuro, será um forte suporte do próprio governo e em nossa sustentabilidade. Como profissionais e como um mercado rentável econômico e cultural.
E se o Brasil em sua essência carece de reformas, estas leis de incentivo se tornam fundamentais, bastando, para atendê-las, reinverter os “argumentos” estampados e bem grafados em matéria de O Globo, indiscretamente escrita para os mesmos de sempre. O dono e a voz! E nem precisamos discutir ou repetir o já defendido ao longo dos anos em simpósios e escritos: a defesa do cinema, do mercado e da cultura, e de nossa autonomia e identidade. Com liberdade, independência e sem evasões econômicas e culturais.
Os sabujos, conhecedores de mitos e oferendas, conhecem também feudos, monarquias e burguesias. O que Marx define em 18 Brumário. Estes sabujos são os nossos Napoleões brasileiros, que varreram o país como Napoleão varreu a Europa. Conhecemos bem o “liberalismo” desses Napoleões. E em nossas lutas pelo cinema o que se conseguiu foi graças aos movimentos como este da Ancine, definindo as ações para uma autonomia de necessidades. Com o que possuímos de melhor: recursos, capacidade e mercado. Ações de um rigor temático, histórico e cultural.
Nenhum governo, portanto, pode ser insensível às intenções humanas e nobres da Ancine, as de avançar numa área digna e imprescindível como a do cinema e do audiovisual, quando as companhias estrangeiras decidem, diretamente, os seus interesses na administração do cinema brasileiro. Nossa infraestrutura é política, econômica e cultural. E é com ela que vamos lutar! E toda realidade só existe quando questionada e testada como existência, a do nosso cinema expropriado, que traduz mitos, poderes e as prepotências nas culturas das metrópoles, becos e guetos subproletarizados, hoje dominados por tropas de ocupação (onde efetivos armados limpam a área para o controle dos meios de produção, enquanto a exploração e a exclusão não chegam).
No Brasil, a defesa do nosso cinema precisa acompanhar discussões como as de Jean Claude Carrière na França. Que em reuniões do GATT acusou os Estados Unidos de estarem liquidando o cinema no mundo, que sangra como diversão, cultura, controle e remessa de lucros e deixa um rastro e uma identidade esfacelada. O cinema brasileiro ainda precisa de um olhar atento e sério sobre ele. Mais atento e substancial do que o cinema 3D. Um olhar humano de afeto, dimensão e significações. E sem negligenciar o mercado, um dos melhores do planeta, esquecido e controlado pelos meios de produção de teles e celulares. Cujo mercado tornou-se a sala de espera e de exibições para nada. A do mercado, a partir de entendimentos produzidos como lixo.
Os incentivos são sim recursos públicos originários de uma renúncia fiscal, mas estes recursos foram parar nas mãos de empresas estrangeiras. Um erro que precisa ser corrigido com a máxima urgência! O cinema guarda toda uma possibilidade de ação política, econômica e cultural em favor do povo e da Nação, e todos temos que cumprir essa tarefa. E despertar o pequeno e grande público para acompanhá-la.
15/1/2011
Fonte: ViaPolítica/Os autores
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