segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Pensamentando

o limiar da lucidez Devaneio em Contos por Rodrigo Della Santina em 25 de ago de 2012 às 01:55 "Passou dias, meses, fazendo sombra à própria existência. Temia o silêncio do asfalto, a libertinagem do vento, o pesar das árvores, a vivacidade da escuridão". Quando a religião, a ciência e a moral (esta última pela mão rude de Nietzsche) são abaladas, e quando os apoios exteriores ameaçam ruir, o homem desvia seu olhar das contingências exteriores e dirige-o para si mesmo. (Wassily Kandinsky) Fazia frio, um frio gostoso, se assim se pode dizer, numa tarde de agosto. Adriano punha o casaco e se preparava para sair. Só tinha de pegar a carteira, pentear o cabelo, isto é, ajeitá-lo com as mãos, escovar os dentes e estaria pronto. Morava numa casa pequena, com sala e cozinha no mesmo espaço, divididas por um balcão onde fazia suas refeições, com dois pequenos quartos, além do banheiro. Tinha pouca iluminação a casa (a luz entrava ou pela porta da sala ou pelas janelas dos quartos); fugia quase toda aos raios solares; mas Adriano gostava assim. Preferia o frio ao calor. Estava, a casa, situada num antigo tapete esverdeado, onde os bois iam pastar e onde agora o progresso pastava. Pegou as chaves do carro e abriu a porta. Ao fechá-la atrás de si, deparou com uma cena cinematográfica: como se um corpo alienígena gigantesco houvesse coberto o céu, a cidade estava escurecida; havia carros abandonados nas ruas, como se não existisse ninguém no mundo; as casas pareciam velar a inexistência; umas tinham as portas abertas, como bocas de defuntos instantes após a morte; outras, as janelas quebradas, como que feridas pela indiferença. O silêncio, às vezes tão santificado, externava sua verdadeira voz ao mundo e parecia ditar, sorrateiro, a nova ordem natural da vida. Adriano levou tremendo choque. Ficou por alguns minutos paralisado, como os defuntos..., enfim. Cheio de horror, enfiou-se para dentro da casa e foi sentar-se em sua poltrona, a olhar para o nada. Passou dias, meses, fazendo sombra à própria existência. Temia o silêncio do asfalto, a libertinagem do vento, o pesar das árvores, a vivacidade da escuridão. Inicialmente, morou em sua cama, com céleres escapadelas para o banheiro. Depois, como quem aprende a andar, passou para os outros cômodos da casa, reconhecendo-os à medida que os adentrava, tornando-se menos angustiado, mais sereno, como se não tivesse mais de carregar uma maçã nas costas. Aos poucos foi retornando à sua rotina. Seu coração suavizou-se. O pesadelo externo não mais lhe infligia terror: era apenas um restolho, um pedaço do mundo retido num baú largado no porão. Nunca mais saiu de casa, porém. Como trabalhasse via internet, não sentia tal necessidade. Para colorir sua vida, construía passatempos (labirínticos, às vezes) com que regozijar-se. De quando em quando tomava uma garrafa de vinho consigo mesmo. rodrigosantina Artigo da autoria de Rodrigo Della Santina. Poeta, cronista e contista formado em Letras pela UNIMESP. Tem dois livros de poesia publicados sob os títulos “Intertrigem” e “O Limiar do Surto”.. Saiba como fazer parte da obvious.

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