Um vazio às 04:36h da manhã
em artes e ideias por Marcelo Vinicius
Ó madrugada, tardas tanto... Vem... Vem, inutilmente, trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta... Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste, porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança, segundo a velha literatura das sensações. [...] Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora. Paz em toda a Natureza. A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exatamente. A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras. Costuma dizer-se isto. A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece, mas mesmo acordada a Humanidade esquece. Exatamente. Mas não durmo — Álvaro de Campos
Será que existem pessoas felizes plenamente, ou o que existe são meros momentos de ilusão nesta vida? Felicidade é um truque? Um truque da natureza concebido ao longo de milhões de anos com uma só finalidade: enganar você? A lógica é a seguinte: quando fazemos algo que aumenta nossas chances de sobreviver ou de procriar, nos sentimos muito bem. Tão bem que vamos querer repetir a experiência muitas e muitas vezes.
“As leis que governam a felicidade não foram desenhadas para nosso bem-estar psicológico, mas para aumentar as chances de sobrevivência dos nossos genes a longo prazo”, escreveu o escritor e psicólogo americano Robert Wright, num artigo para a revista americana Time.
Ela nos convence de que cada conquista é a coisa mais importante do mundo e nos dá disposição para lutar por elas. Mas tudo isso é ilusão. A cada vitória surge uma nova necessidade. Felicidade é uma cenoura pendurada numa vara de pescar amarrada no nosso corpo. Às vezes, com muito esforço, conseguimos dar uma mordidinha. Mas a cenoura continua lá adiante, apetitosa, nos empurrando para frente. Felicidade é um truque.
E temos levado esse truque muito a sério. Vivemos uma época em que ser feliz é uma obrigação, as pessoas tristes são indesejadas, vistas como fracassadas completas. A doença do momento é a depressão. A depressão é o mal de uma sociedade que decidiu ser feliz a todo preço.
Certo, exceto os seres perfeitos ou os idiotas, aceito que por mais que tentamos, teremos sempre esse vazio, seremos sempre seres faltantes. E por isso a cada geração que passa somos mais sedentos em ter tudo, em ter o melhor, em querer ser o melhor, sempre queremos mais, mais e mais, seja subjetivamente ou objetivamente. É o vazio existencial. Pode ser a Falta que tanto Lacan disse... A Falta favorecer a função do desejo... “A Falta da Falta” também... Não sei...
Só sei do famoso vazio existencial, a sensação de que algo nos falta. É como se tudo que guardamos, o conhecimento e emoções que acumulamos, nos tivesse sido tirados.
O vazio também pode ser dito como a falta de sentido da vida que são aspectos difíceis de serem aceitos e vividos, como dizem alguns filósofos. Só espero que eles tenham ido além disso, senão estariam sendo otimistas demais ao conceber o vazio existencial ao homem, pois no vazio haveria ainda o espaço, isto é, a capacidade de caber algo, ainda que não houvesse nenhum objeto para preenchê-lo. Teríamos aí a possibilidade da criação de sentido definitivo ou seria válido ou plausível existir um objeto para preenchê-lo de fato e decisivo, a felicidade plena. Mas o vazio clama em vão por uma palavra que possa simbolizá-la. Percebeu? Clama em vão, ou seja, não se preenche o vazio, então não há o vazio, mas há sim o Nada.
Jamais um homem pode ser completamente feliz. Nenhum homem é feliz; luta sua vida toda em busca de uma felicidade, a qual raramente alcança, e, quando alcança, é apenas para sua desilusão. Então dá no mesmo se foi feliz ou infeliz, pois sua vida nunca foi mais que um presente sempre passageiro, que agora já acabou. Nenhum homem jamais se sentiu perfeitamente feliz; no máximo um torpor. Fui generalista? Também sou homem, respondo por mim. Ficou melhor?
O famoso Jean-Paul Sartre, após refletir por longo tempo sobre a vida, admitiu que se chega um tempo na vida em que nós, e até o mais feliz dos homens, pergunta a si mesmo: “Há algo mais?” ,"Isso é tudo o que há?” “Isso é tudo o que existe”?
Então se esse vazio não é preenchido de fato, se sempre há o faltante, se sempre queremos mais, assim não estamos falando do vazio, estamos falando do Nada. Vazio é passivo de ser preenchido, mas o Nada não é.
Eles foram muito otimistas, deveriam ter concebido o Nada e não o vazio existencial. O Nada vai mais longe do que o Vazio ou a Falta. No Nada não existe nem o espaço ou o vazio, isto é, não há coisa alguma, nem um lugar vazio para caber algo ou encaixar sentidos. Se Deus é o único Ilimitado capaz de suprir todos os vazios e necessidades humanas, Deus não pode mais fazer isso quando o homem submerge o Vazio e reconhece o Nada. Pois o Nada não pode ser suprido nem mesmo por Deus, senão, não seria o Nada.
O vazio, a falta clamam em vão por uma palavra que possa simbolizá-la. E o Nada? O Nada implica na impossibilidade de conter qualquer coisa, por isso o homem sempre está em busca de algo para se preencher e não consegue o tal feito. O homem então não tem um vazio, tem um Nada.
Não se pode estar no nada. O nada é, pois, um não-lugar. O homem é o não-lugar e não um ser faltante ou vazio. O homem é um Nada. O homem então está em meio às coisas, mas paira isolado, e em nenhuma parte se acha em casa. Então não falemos do Vazio da Existência, falemos do Nada da existência. A existência está intimamente ligada ao nada humano e não a falta ou ao vazio humano.
Não estou aqui querendo bancar o lado pessimista de Arthur Schopenhauer, mas é ser otimista demais considerar o Vazio Existencial, no sentido como se fosse uma Falta, uma busca de sentido, um busca para ser preenchida. Preenchida? Agora consideremos o Nada. O vazio clama em vão por uma palavra que possa simbolizá-la. Já o “conceito” do Nada não clama em vão por uma palavra ou sentido, o nada também é a inexistência das leis físicas ou quaisquer leis que alguma coisa existente obedeceria. Por isso que as ciências não estudam a verdadeira subjetividade humana. Como estudar o nada? O nada não é coisa alguma, logo não existe. O nada, no máximo, é um signo, uma representação lingüística do que se pensa ser a ausência de tudo. O homem não existe. O que existe são representações mentais do nada ou do homem.
Como uma definição ou um conceito é uma afirmação sobre o que é uma coisa, o Nada não é positivamente definido, mas apenas representado, fazendo-se a relação entre seu símbolo (a palavra "nada") e a idéia que se tem da não-existência de coisa alguma. O "nada" não existe, mas é concebido por operações de mente. O homem não existe, mas é concebido por operações de mente. O homem, então, só é visto metafisicamente, porém mesmo assim sem garantia no que se vê.
Assim o Nada da realidade humana advém pela interrogação, que ao buscar um ser na consciência constata o nada. Isso significa que o homem não pode pensar a si mesmo. E se isso ocorrer ele se depara como o seu nada de ser. Aí estaria então o Nada; portanto se mostra que o Nada não é uma constatação, obviamente, mas uma criação humana. Ela não pode se colocar como objeto de investigação, ou seja, repito: o homem, então, só é visto metafisicamente, mesmo assim sem garantia no que se vê. Sem garantia nenhuma, voltamos à estaca zero.
Nem metafisicamente não se pode pensar que o nada é, pois se estaria transformando ele em objeto, em ente, mas o nada não é ente. O nada é nada de ente.
Somos mais sedentos, sempre queremos mais, mais e mais e vivemos essa falta; se tivéssemos um vazio talvez nos preencheríamos, mas o Nada jamais é preenchido, o homem é preenchido? Então temos aí o nada e não o vazio. No entanto concordo somente no aspecto do que o "nada" não existe, mas é concebido por operações de mente. O homem não existe, mas é concebido por operações de mente.
Vamos além das metáforas... O nada não é uma constatação, obviamente, mas uma criação humana. Como se constata o nada? O homem então não existe ou é uma criação de si mesmo, contudo o nada não cria o nada, então como homem criaria a si mesmo? É ilusão o homem criar a si mesmo. Há uma tentativa de criação, há sempre uma recriação, por isso que o homem nunca está feito, completo, perfeito, pois do nada, nada pode surgir ou se criar. Ele nem mesmo sabe se existe, quanto mais...
Aqui nem chegamos a um tipo de existencialidade nádica, pois me disseram já sobre isso, em que o termo “nada” nos leva em direção ao “esvaziar”. Assim, citaram que o nada para Heidegger não é um vazio ou uma falta e sim uma ausência que nos permite dizer que já esteve lá... O esvaziamento de algo que diz que: em algum momento lá esteve, e que talvez volte a se preencher, assim é a ausência, estava e deixou de estar, com a possibilidade de retorno, e será neste retorno que o desenvolvimento nádico se transforma em clareza de realidade, isto é, existência.
Esse Nada de Heidegger é um nada que pode ser tão extenso, tão rico e complexo que nos torna incompreensível, como realmente somos. Mas o meu nada é pobre. O nada é nada, não é nem mesmo esvaziamento. No nada, nada acontece. O estado de "nada" aqui é o nada absoluto. Ausência, quer absoluta, quer relativa, do ser ou da realidade; o que não existe, mesmo metafisicamente falando, como foi exposto aqui.
Se para Heidegger o esvaziamento de algo diz que em algum momento lá esteve, e que talvez volte a se preencher; para mim, isso está mais para o vazio do que para o nada, pois o vazio é passivo de ser preenchido, mas o Nada não é nunca preenchido. Por isso Heidegger ganha em falar em ausência e não em vazio.
O meu Nada é a inexistência das leis físicas ou quaisquer leis que alguma coisa existente e idealizada obedeceria, então adeus ciência, adeus metafísica. No máximo fala-se da “ausência” de Heidegger, mas o meu nada continua sendo nada de fato, aliás, nem isto, pois o “nada” aqui pensado não pode vir a “ser”. É o substrato inconcebível, inominável, inexplicável, incognoscível e inapreensível. Na verdade há algo para conceber? Então nem inconcebível é...
O meu Nada implica na impossibilidade de qualquer coisa, por isso o homem sempre está em busca de algo para se preencher e não consegue o tal feito. O homem então tem um nada. Não se pode estar no nada. O nada é, pois, um não-lugar. O homem é o não-lugar. Não se pode falar nada sobre o “nada”.
Por isso quando o homem olha para si mesmo enquanto ente, o que ele encontra? O nada. E como não pode ser dito sobre o “nada”, isso vira sintoma. Quando o que não pode ser dito vira sintoma. A única salvação seria libertar o homem do pensamento substancial e da comoção substancial de si mesmo, mas isso seria possível? É como se fosse fugir do “nada”. Mas quando se foge, foge de alguma coisa.
Schopenhauer disse: "nossa vida é um episódio que perturba, sem nenhuma utilidade, a serenidade do nada". Considerando o “nada” deste meu texto, sem maiores pretensões, poderíamos dizer: "nossa vida é um episódio que perturba, sem nenhuma utilidade, a serenidade de nós mesmo", pois como eu disse anteriormente: o homem é o não-lugar e não um ser faltante ou vazio. O homem é um Nada.
Nesse caso, se falando de homem, eu não disse nada sobre ele, de fato. Neste caso, eu não disse nenhuma palavra. Neste caso eu disse algo, mas como uma insignificância que se encaixou no pretendido. Como falar do que não existe? Por ser nada, não há palavras, pois não há ente para se referir, há apenas um estranhamento por não se saber explicar que coisa há.
O nada não é coisa alguma, logo não existe. O nada, no máximo, é um signo, uma representação lingüística do que se pensa ser a ausência de tudo. O homem não existe. O que existe são representações mentais do nada ou do homem.
Devido a isso, os prospectos imaginários e metafísicos do homem, só levam-nos a uma incerteza maior, que faz alterar toda sua vida presente. E a ciência? Cada vez mais objetiva menos capaz de analisar se torna, a esse respeito. Se a idéia de Deus parece ilusória e insatisfatória, a idéia do nada não melhora esta nossa condição.
O homem então está longe de ser até o Nada, que tanto foi exposto aqui. O homem está longe de ser qualquer coisa. O que é então o homem? O que é então o nada? O que é a não existência? Se não existe é porque não é e isso não é um simples jogo semântico, é um fato lógico: ou é ou não é, ou existe ou não existe (ser e não ser ao mesmo tempo é uma tentativa de explicação ordinária, segundo as leis naturais desse mundo). Não é também só uma limitação da lógica cartesiana, mas da metafísica também, já que esta não explica o “Nada”, senão, estaria tudo resolvido. Então não se faz essas perguntas, que eu fiz. Silencia-se, pois é um absurdo.
Assim, começamos entrar numa lógica mais drástica, pois o nada, até pelo viés metafísico, é um manto que encobre, é mais uma explicação ilusória sobre o homem, porque o nada não é uma constatação, de modo algum. Ao contrário do que parece um descortinar, o nada é também um meio de aliviar a tensão da finitude do curso humano, que pede uma resposta segura.
E mais: não sei até onde os conceitos dos pensadores citados aqui estão certos, se é que estão. Gosto da forma com que os filósofos destroem conceitos e as teorias que os precederam. Isso tem acontecido há séculos. “Não, não é assim” – dizem – “É desse jeito”. Isto continua sem parar e parece lógica, esta continuidade. Mas, tem que ser assim.
Ah! Coisa nenhuma aqui faz sentido e nem é um pouco interessante? Pode ser refutado em menos de um segundo? E quem se importa com isso? Você acredita que na minha insônia, às 4 horas da manhã, estaria interessado em explicar a humanidade, com minha perfeita filosofia, ou estaria matando o tempo até o sono voltar? Ou estaria falando de mim mesmo aqui? Quem sabe isto não é eu? Eu não quero convencer ninguém, ajudar ninguém, salvar ninguém… Eu queria mesmo era sair dessa dimensão do meu, de ser e estar em alguma outra coisa… Qual o tolo que ficaria discutindo sobre o “nada”? Qual o tolo que perderia seu tempo para analisar o que não existe? Normalmente se analisa o que existe.
Ultimamente eu tenho achado que escrever é apenas uma maneira de organizar meus pensamentos. O bom seria eu conseguir ficar nessa confusão do juízo… E pegar toda essa pulsão, essa energia, esse monte de impulso e estetizar de alguma maneira, pintar um quadro, fazer um desenho, escrever um livro...
Essa coisa meio escriba, a pessoa que narra é um lugar de prazer, mas também de anestesia, porque é operacional… Funcional, é a voz oficial que dar a ver... Mas quando eu ordeno, eu construo o texto, eu elaboro os argumentos, eu materializo de alguma forma esses pensamentos no teclado e eu me sinto melhor... Escrever é meu Prozac, às vezes, e mesmo assim minha escrita foi feita para se dizer tudo o que não corresponde aos meus conceitos.
Hoje não são as nossas ideias que nos fazem otimistas ou pessimistas, mas o otimismo e o pessimismo de origem fisiológica que fazem as nossas ideias, e não falo só de Prozac, falo da escrita, falo da fala, falo da linguagem, falo...
marcelovinicius
Artigo da autoria de Marcelo Vinicius.
Escritor e agitador cultural. Estudante de Psicologia. Faz parte do projeto de pesquisa e extensão sobre cinema e produção de subjetividade (Sala de Cinema) e do projeto de pesquisa em Psicologia Social na Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS..
Saiba como fazer parte da obvious.
domingo, 17 de fevereiro de 2013
Petrobrás
Prejuízo da Petrobrás: a grande mentira Imprimir E-mail
Escrito por Emanuel Cancella
Sexta, 08 de Fevereiro de 2013
A Petrobrás é uma empresa estatal. Uma das diferenças entre uma empresa privada e uma estatal é o seu compromisso não apenas com o lucro, mas com um projeto de desenvolvimento nacional. Por isso é preciso desconfiar quando se alardeia que “a Petrobrás teve prejuízo em 2012”, o que é uma grande mentira. Como nada acontece por acaso, não demorou a serem plantadas justificativas para a privatização, como “saída inevitável para a crise”. O fato é que as aves de rapina não descansam. Estão sempre prontas a dar o bote.
Vamos colocar os pingos nos is: a Petrobrás lucrou em 2012 R$21,1 bilhões. Isso depois de produzir, refinar, comercializar, transportar e garantir o abastecimento de derivados de petróleo em todo o país. Aliás, essa é a sua função constitucional. A título de comparação, entre as empresas brasileiras, a Petrobrás continuou na liderança. Depois dela veio o Banco Itaú, que lucrou R$ 13,59 bi. Mas os bancos se utilizam de várias brechas legais para burlar o pagamento de impostos e não têm compromisso social, não investem no desenvolvimento nacional (ao contrário do que fazem as empresas estatais).
Por exemplo: a Petrobrás paga royalties à União, aos estados e municípios. A companhia também financia 50% do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC. É, ainda, a empresa que mais paga impostos para União, estados e municípios. Sem contar os inúmeros projetos culturais. Alguma outra empresa ficaria oito anos com o preço da gasolina congelado, para impedir que a inflação e os preços disparassem? E isso pode ser considerado ruim para o povo brasileiro? É bom refletir sobre o papel social da empresa, antes de aplaudir aqueles de raciocínio estreito que só calculam o lucro imediato. Historicamente, quem sempre financiou o desenvolvimento do nosso país foi o capital estatal.
Mas por que a Petrobrás lucrou menos em 2012?
A crítica à Petrobrás é por conta da queda de seu lucro em 32%. Um dos principais motivos da queda nos lucros da Petrobrás foi a importação de gasolina durante certo período, em consequência da necessidade de suprir o mercado interno. Para estimular a indústria de automóveis, o governo isentou os compradores do pagamento do IPI. Resultado: aumentou significativamente a frota de automóvel nas ruas, sem esperar que a empresa se preparasse para a nova demanda.
Para atender o crescimento do consumo, a Petrobrás precisou importar parte da gasolina, pagando mais caro, e revendeu no mercado interno subsidiando parte do seu custo. Mas a pergunta que não quer calar: por que a Petrobrás também teve que subsidiar a gasolina repassada aos postos de bandeira estrangeira (Shell, Esso, Texaco, Repsol etc.)? Por que os postos de bandeira estrangeira não dividiram o prejuízo no custo final da gasolina com a Petrobrás? Com a palavra, a responsável pela fiscalização, Agência Nacional de Petróleo e Gás Combustível – ANP.
Mas a Petrobrás – repetimos – ainda é uma empresa estatal e, por isso, pensa no futuro e não apenas no lucro imediato. A preocupação com o futuro levou à construção de mais cinco refinarias o que, além de suprir o mercado interno, vai permitir a exportação de derivados de petróleo.
Então, por que privatizar?
A sociedade tem que ficar atenta, já que a presidente da companhia, Maria das Graças Foster, encabeça uma campanha junto à grande mídia para desgastar a companhia e possibilitar a privatização da Petrobrás, seja por inteiro ou, como já se cogita nos bastidores: a criação de uma empresa de refino e a venda de 30% das ações dessa empresa.
Foster também já vendeu blocos de petróleo, o BS-4, na Bacia de Santos, para o megaempresário Eike Batista, através do plano de desinvestimento. Ou seja, Foster está entregando nossos poços de petróleo, que são patrimônio de todo o povo brasileiro. Será que teremos uma nova “privataria” pela frente?
Como os trabalhadores já fizeram no passado – nas campanhas Fora Collor e Fora FHC -, principalmente por conta das privatizações, está na hora da campanha Fora Graça Foster Já! Será que as crises nos Estados Unidos, na Europa e que se refletem em todo o mundo não foram suficientes para mostrar o quanto o neoliberalismo é nocivo?
Sindicatos discutem saída da presidente Graça Foster
Os sindicatos de petróleo ligados à Federação Nacional dos Petroleiros (FNP) já discutem ação na justiça para a destituição da presidente da Petrobrás e de sua diretoria, por priorizarem metas alheias ao interesse nacional, e por macularem a imagem da Petrobrás. Foster tem anunciado na imprensa a necessidade de sucessivos aumentos nos preços dos combustíveis, o que prejudica a sociedade que é quem paga a conta, e também alimentaria a alta da inflação. Uma das formas de resolver esse problema seria rever a margem de lucro das distribuidoras, por exemplo.
Por outro lado, os aumentos favorecem os acionistas. Em Londres, no dia 3/7/12, publicado em o Globo, Foster declarou a investidores estrangeiros: “Vamos dedicar as nossas vidas para recuperar o valor das suas ações”. Além disso, Foster tem sido a grande defensora dos leilões de petróleo, que é a entrega do nosso petróleo. A presidente da Petrobrás utiliza a mesma estratégia das privatizações da era Collor e FHC: deprecia a empresa para justificar a privatização.
A presidente da Petrobrás se autointitulou ex-catadora de papel. Mas, como ex-baixa renda, deveria se preocupar com as donas de casa brasileiras que, no interior, estão abandonando o gás de cozinha e utilizando lenha e carvão por conta do preço do botijão. Foster também poderia se esforçar para aumentar o subsídio do diesel, aliviando o bolso dos trabalhadores que gastam metade de um salário mínimo para ir e voltar do trabalho. Mas Foster parece preocupada apenas com o investidor estrangeiro.
Emanuel Cancella é coordenador da FNP (Federação Nacional dos Petroleiros) e do Sindipetro-RJ.
Para ajudar o Correio da Cidadania e a construção da mídia independente, você pode contribuir clicando abaixo.
Escrito por Emanuel Cancella
Sexta, 08 de Fevereiro de 2013
A Petrobrás é uma empresa estatal. Uma das diferenças entre uma empresa privada e uma estatal é o seu compromisso não apenas com o lucro, mas com um projeto de desenvolvimento nacional. Por isso é preciso desconfiar quando se alardeia que “a Petrobrás teve prejuízo em 2012”, o que é uma grande mentira. Como nada acontece por acaso, não demorou a serem plantadas justificativas para a privatização, como “saída inevitável para a crise”. O fato é que as aves de rapina não descansam. Estão sempre prontas a dar o bote.
Vamos colocar os pingos nos is: a Petrobrás lucrou em 2012 R$21,1 bilhões. Isso depois de produzir, refinar, comercializar, transportar e garantir o abastecimento de derivados de petróleo em todo o país. Aliás, essa é a sua função constitucional. A título de comparação, entre as empresas brasileiras, a Petrobrás continuou na liderança. Depois dela veio o Banco Itaú, que lucrou R$ 13,59 bi. Mas os bancos se utilizam de várias brechas legais para burlar o pagamento de impostos e não têm compromisso social, não investem no desenvolvimento nacional (ao contrário do que fazem as empresas estatais).
Por exemplo: a Petrobrás paga royalties à União, aos estados e municípios. A companhia também financia 50% do Programa de Aceleração do Crescimento – PAC. É, ainda, a empresa que mais paga impostos para União, estados e municípios. Sem contar os inúmeros projetos culturais. Alguma outra empresa ficaria oito anos com o preço da gasolina congelado, para impedir que a inflação e os preços disparassem? E isso pode ser considerado ruim para o povo brasileiro? É bom refletir sobre o papel social da empresa, antes de aplaudir aqueles de raciocínio estreito que só calculam o lucro imediato. Historicamente, quem sempre financiou o desenvolvimento do nosso país foi o capital estatal.
Mas por que a Petrobrás lucrou menos em 2012?
A crítica à Petrobrás é por conta da queda de seu lucro em 32%. Um dos principais motivos da queda nos lucros da Petrobrás foi a importação de gasolina durante certo período, em consequência da necessidade de suprir o mercado interno. Para estimular a indústria de automóveis, o governo isentou os compradores do pagamento do IPI. Resultado: aumentou significativamente a frota de automóvel nas ruas, sem esperar que a empresa se preparasse para a nova demanda.
Para atender o crescimento do consumo, a Petrobrás precisou importar parte da gasolina, pagando mais caro, e revendeu no mercado interno subsidiando parte do seu custo. Mas a pergunta que não quer calar: por que a Petrobrás também teve que subsidiar a gasolina repassada aos postos de bandeira estrangeira (Shell, Esso, Texaco, Repsol etc.)? Por que os postos de bandeira estrangeira não dividiram o prejuízo no custo final da gasolina com a Petrobrás? Com a palavra, a responsável pela fiscalização, Agência Nacional de Petróleo e Gás Combustível – ANP.
Mas a Petrobrás – repetimos – ainda é uma empresa estatal e, por isso, pensa no futuro e não apenas no lucro imediato. A preocupação com o futuro levou à construção de mais cinco refinarias o que, além de suprir o mercado interno, vai permitir a exportação de derivados de petróleo.
Então, por que privatizar?
A sociedade tem que ficar atenta, já que a presidente da companhia, Maria das Graças Foster, encabeça uma campanha junto à grande mídia para desgastar a companhia e possibilitar a privatização da Petrobrás, seja por inteiro ou, como já se cogita nos bastidores: a criação de uma empresa de refino e a venda de 30% das ações dessa empresa.
Foster também já vendeu blocos de petróleo, o BS-4, na Bacia de Santos, para o megaempresário Eike Batista, através do plano de desinvestimento. Ou seja, Foster está entregando nossos poços de petróleo, que são patrimônio de todo o povo brasileiro. Será que teremos uma nova “privataria” pela frente?
Como os trabalhadores já fizeram no passado – nas campanhas Fora Collor e Fora FHC -, principalmente por conta das privatizações, está na hora da campanha Fora Graça Foster Já! Será que as crises nos Estados Unidos, na Europa e que se refletem em todo o mundo não foram suficientes para mostrar o quanto o neoliberalismo é nocivo?
Sindicatos discutem saída da presidente Graça Foster
Os sindicatos de petróleo ligados à Federação Nacional dos Petroleiros (FNP) já discutem ação na justiça para a destituição da presidente da Petrobrás e de sua diretoria, por priorizarem metas alheias ao interesse nacional, e por macularem a imagem da Petrobrás. Foster tem anunciado na imprensa a necessidade de sucessivos aumentos nos preços dos combustíveis, o que prejudica a sociedade que é quem paga a conta, e também alimentaria a alta da inflação. Uma das formas de resolver esse problema seria rever a margem de lucro das distribuidoras, por exemplo.
Por outro lado, os aumentos favorecem os acionistas. Em Londres, no dia 3/7/12, publicado em o Globo, Foster declarou a investidores estrangeiros: “Vamos dedicar as nossas vidas para recuperar o valor das suas ações”. Além disso, Foster tem sido a grande defensora dos leilões de petróleo, que é a entrega do nosso petróleo. A presidente da Petrobrás utiliza a mesma estratégia das privatizações da era Collor e FHC: deprecia a empresa para justificar a privatização.
A presidente da Petrobrás se autointitulou ex-catadora de papel. Mas, como ex-baixa renda, deveria se preocupar com as donas de casa brasileiras que, no interior, estão abandonando o gás de cozinha e utilizando lenha e carvão por conta do preço do botijão. Foster também poderia se esforçar para aumentar o subsídio do diesel, aliviando o bolso dos trabalhadores que gastam metade de um salário mínimo para ir e voltar do trabalho. Mas Foster parece preocupada apenas com o investidor estrangeiro.
Emanuel Cancella é coordenador da FNP (Federação Nacional dos Petroleiros) e do Sindipetro-RJ.
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Livros
Ode ao Livro Usado
por Mariana Keller
Uma homenagem aos livros que transmitem vida.
Eu gosto mesmo é dos livros velhos. Aqueles com as páginas amareladas e trechos sublinhados, notas escritas e folhas levemente amassadas. Os que vêm com dedicatória, com cheirinho que provoca espirro e manchas de café.
O livro não nos pertence, nós é que pertencemos a ele enquanto estamos em sua companhia. Livros deveriam ser sempre transitórios, precisam passar de mão em mão. De diferentes pessoas, em diferentes momentos da vida.
De uma criança que foi obrigada a ler na escola e que não entendeu quase nada do que estava escrito. De uma moça que o ganhou de seu pretendente para ser conquistada. De um amigo oculto. De um aniversariante presenteado. De um apaixonado por capas e que escolhe os títulos através delas. De um escritor em busca de inspiração. De um viajante durante seus trajetos. De um solitário que faz dos personagens citados suas únicas companhias. De um intelectual viciado em leitura. De um estudante desesperado para tirar boas notas. De um questionador em busca de respostas. Dos sonhadores que fazem das palavras escritas sua fábrica de sonhos.
Como são sortudas as pessoas que já leram livros de bibliotecas e sebos. Livros que já visitaram diferentes lares. Porque livro bom é aquele que, além de nos fazer mergulhar na história escrita em suas páginas, também está impregnado de fábulas da nossa vida real, da vida dos leitores que o folhearam.
marianakeller
Artigo da autoria de Mariana Keller.
Observadora e sonhadora, faz de cada sorriso e olhar alheio uma história inventada..
Saiba como fazer parte da obvious.
por Mariana Keller
Uma homenagem aos livros que transmitem vida.
Eu gosto mesmo é dos livros velhos. Aqueles com as páginas amareladas e trechos sublinhados, notas escritas e folhas levemente amassadas. Os que vêm com dedicatória, com cheirinho que provoca espirro e manchas de café.
O livro não nos pertence, nós é que pertencemos a ele enquanto estamos em sua companhia. Livros deveriam ser sempre transitórios, precisam passar de mão em mão. De diferentes pessoas, em diferentes momentos da vida.
De uma criança que foi obrigada a ler na escola e que não entendeu quase nada do que estava escrito. De uma moça que o ganhou de seu pretendente para ser conquistada. De um amigo oculto. De um aniversariante presenteado. De um apaixonado por capas e que escolhe os títulos através delas. De um escritor em busca de inspiração. De um viajante durante seus trajetos. De um solitário que faz dos personagens citados suas únicas companhias. De um intelectual viciado em leitura. De um estudante desesperado para tirar boas notas. De um questionador em busca de respostas. Dos sonhadores que fazem das palavras escritas sua fábrica de sonhos.
Como são sortudas as pessoas que já leram livros de bibliotecas e sebos. Livros que já visitaram diferentes lares. Porque livro bom é aquele que, além de nos fazer mergulhar na história escrita em suas páginas, também está impregnado de fábulas da nossa vida real, da vida dos leitores que o folhearam.
marianakeller
Artigo da autoria de Mariana Keller.
Observadora e sonhadora, faz de cada sorriso e olhar alheio uma história inventada..
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quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013
Martin Luther King
Papai-Noel-ização de Martin Luther King, Jr.
“Santa Claus-ifying Martin Luther King, Jr.”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Martin Luther King, Jr. discursando em 1967
Quando militares dos EUA tuitam citações de MLK como se apoiasse a guerra, você pode ter certeza de que as coisas vão mal, muito mal – para os militares dos EUA.
Todos os anos, entre o Dia de MLK e o início do Mês da História dos Negros, o esforço para distorcer e falsificar o legado e a vida de King parece intensificar-se. Às vezes, veem-se conservadores a mentir que, se King vivesse hoje, já estaria filiado ao Partido Republicano Neoconfederado. Noutros anos, é enganação por omissão – ouvem-se reproduções do discurso de 1963 “Eu tenho um sonho”... mas não se ouve uma linha sequer de qualquer de seus muitos discursos contra a guerra e a miséria.
Cornel West
Cornel West, professor de Princeton, chama a esse processo a “Papai-Noel-ização” do Dr. King. E se você já ouviu ou leu alguma vez qualquer fragmento do Discurso de 1967 na Igreja de Riverside, entenderá o quanto a expressão é adequada.
Entenderá também por que, dessa vez, em 2013, a mais grotesca tentativa para Papai-Noel-izar a vida de Martin Luther King é repugnante, mas, de certo modo, também muito estimulante.
Em 2013, os Marines dos EUA comemoraram o Dia de Martin Luther King (terceira 2ª-feira de janeiro) tuitando aquela frase famosa de King “Homem que não abrace alguma causa pela qual se disponha a morrer, também não está preparado para viver”. Foi tentativa nada sutil de usar o nome e a memória de King, apresentando-o como se algum dia tivesse apoiado alguma guerra.
Glenn Greenwald
Glenn Greenwald do The Guardian foi o primeiro a observar: o Comando das Forças Aéreas de Ataque Global dos EUA [orig. US Air Force's Global Strike Command] postou semana passada um ensaio online no qual afirma que o Dr. King, se vivo fosse, estaria saudando nossos soldados “que trabalham para que as mais poderosas armas que há no arsenal dos EUA continuem a servir como fundamento e pilar central confiável de nossa defesa nacional”. E para os Marines, a “Força Aérea, assegurando nosso compromisso com nossa equipe de Ataque Global (...) é tributo adequado que prestamos ao Dr. King”. Simultaneamente, os Marines comemoraram o Dia de MLK tuitando a conhecida frase de King, numa tentativa nada sutil para pintar o Dr. King como apoiador de guerras.
Aconteceu depois de um artigo de 2011, postado na página Internet do Departamento de Defesa, sob o título: “Dr. King compreenderia as nossas atuais guerras, diz advogado do Pentágono”.
Nesse contexto, é preciso voltar à excepcional importância do Discurso na Igreja Riverside – exatamente o discurso e o pensamento que o processo de Papai-Noel-ização tanto trabalha para apagar da história.
Naquela fala, o mais famoso e empenhado pregador norte-americano pela não violência lastimava que “Uma nação que continua, ano após ano, a gastar mais dinheiro com militares e armamentos, do que com programas de promoção social, já se aproxima perigosamente de um estado de morte espiritual”.
Dizia também que o militarismo não ajuda a proteger os EUA; denunciava “o grande incentivador e distribuidor de violência e dor em todo o mundo hoje: o governo dos EUA, meu próprio governo”. E insistia que “nada, exceto um trágico desejo de morte, nos impede de reordenar nossas prioridades, de modo a que trabalhemos mais em busca da paz, do que em busca da guerra”.
Comparando o revisionismo histórico do Pentágono e as verdadeiras palavras de King, Greenwald observa:
“Os militares dos EUA dizem agora, publicamente, que o homem que recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1964, e crítico feroz do imperialismo norte-americano, seria admirador de arsenais nucleares, de programas de assassinatos em massa, do emprego clandestino de técnicas de violência em vários países do mundo, inclusive em países com os quais os EUA não estão em guerra. Anotar aqui esse tipo de propaganda pró-guerra já é comprovar o quanto há nela, de repugnante”.
Greenwald está absolutamente certo: a propaganda do Pentágono é repugnante. Mas é muito estimulante constatar que esse tipo de propaganda expõe, muito visível, um sistema político no qual a extensão das mentiras mostra a extensão do desespero.
Nesse caso específico, a facilidade com que o Pentágono mente sobre o que MKL disse e foi, é prova de alucinado desespero, de quem tenta, já arrastado pelo pânico, alterar as tendências da opinião pública. O Pentágono já dá sinais de saber que, segundo todas as pesquisas, mais e mais norte-americanos começam a redescobrir as perguntas que King propôs sobre gastos do governo norte-americano para manter exércitos assassinos e contra a opção pelo militarismo, sobre todas as prioridades sociais.
Quando a propaganda do Pentágono já tenta descaradamente Papai-Noel-izar Martin Luther King, fazer com que todos esqueçamos quem foi ele e por que lutou e morreu, o que se vê é que, afinal, temos, cada dia mais, de honrar a sua luta e o seu legado.
A propaganda do Pentágono é vergonhosa e imperdoável, sim. Mas é estimulante sinal, também, de que nos aproximamos, sim, hoje, mais do que nunca, de realizarmos o sonho de Martin Luther King.
David Sirota* é editor sênior e colunista do blog In These Times; é escritor e seu livro mais vendido foi “Back to Our Future: How the 1980s Explain the World We Live In Now—Our Culture, Our Politics, Our Everything” lançado em 2011. Seus livros anteriores são: “The Uprising” e “Hostile Takeover”; também é co-apresentador do programa de rádio “The Rundown” na AM630 Khow no Colorado.
E-mail: ds@davidsirota.com
Twitter: @davidsirota
website em: http://www.davidsirota.com
Postado por Castor Filho às 23:51:00
(Redecastor)
“Santa Claus-ifying Martin Luther King, Jr.”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Martin Luther King, Jr. discursando em 1967
Quando militares dos EUA tuitam citações de MLK como se apoiasse a guerra, você pode ter certeza de que as coisas vão mal, muito mal – para os militares dos EUA.
Todos os anos, entre o Dia de MLK e o início do Mês da História dos Negros, o esforço para distorcer e falsificar o legado e a vida de King parece intensificar-se. Às vezes, veem-se conservadores a mentir que, se King vivesse hoje, já estaria filiado ao Partido Republicano Neoconfederado. Noutros anos, é enganação por omissão – ouvem-se reproduções do discurso de 1963 “Eu tenho um sonho”... mas não se ouve uma linha sequer de qualquer de seus muitos discursos contra a guerra e a miséria.
Cornel West
Cornel West, professor de Princeton, chama a esse processo a “Papai-Noel-ização” do Dr. King. E se você já ouviu ou leu alguma vez qualquer fragmento do Discurso de 1967 na Igreja de Riverside, entenderá o quanto a expressão é adequada.
Entenderá também por que, dessa vez, em 2013, a mais grotesca tentativa para Papai-Noel-izar a vida de Martin Luther King é repugnante, mas, de certo modo, também muito estimulante.
Em 2013, os Marines dos EUA comemoraram o Dia de Martin Luther King (terceira 2ª-feira de janeiro) tuitando aquela frase famosa de King “Homem que não abrace alguma causa pela qual se disponha a morrer, também não está preparado para viver”. Foi tentativa nada sutil de usar o nome e a memória de King, apresentando-o como se algum dia tivesse apoiado alguma guerra.
Glenn Greenwald
Glenn Greenwald do The Guardian foi o primeiro a observar: o Comando das Forças Aéreas de Ataque Global dos EUA [orig. US Air Force's Global Strike Command] postou semana passada um ensaio online no qual afirma que o Dr. King, se vivo fosse, estaria saudando nossos soldados “que trabalham para que as mais poderosas armas que há no arsenal dos EUA continuem a servir como fundamento e pilar central confiável de nossa defesa nacional”. E para os Marines, a “Força Aérea, assegurando nosso compromisso com nossa equipe de Ataque Global (...) é tributo adequado que prestamos ao Dr. King”. Simultaneamente, os Marines comemoraram o Dia de MLK tuitando a conhecida frase de King, numa tentativa nada sutil para pintar o Dr. King como apoiador de guerras.
Aconteceu depois de um artigo de 2011, postado na página Internet do Departamento de Defesa, sob o título: “Dr. King compreenderia as nossas atuais guerras, diz advogado do Pentágono”.
Nesse contexto, é preciso voltar à excepcional importância do Discurso na Igreja Riverside – exatamente o discurso e o pensamento que o processo de Papai-Noel-ização tanto trabalha para apagar da história.
Naquela fala, o mais famoso e empenhado pregador norte-americano pela não violência lastimava que “Uma nação que continua, ano após ano, a gastar mais dinheiro com militares e armamentos, do que com programas de promoção social, já se aproxima perigosamente de um estado de morte espiritual”.
Dizia também que o militarismo não ajuda a proteger os EUA; denunciava “o grande incentivador e distribuidor de violência e dor em todo o mundo hoje: o governo dos EUA, meu próprio governo”. E insistia que “nada, exceto um trágico desejo de morte, nos impede de reordenar nossas prioridades, de modo a que trabalhemos mais em busca da paz, do que em busca da guerra”.
Comparando o revisionismo histórico do Pentágono e as verdadeiras palavras de King, Greenwald observa:
“Os militares dos EUA dizem agora, publicamente, que o homem que recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 1964, e crítico feroz do imperialismo norte-americano, seria admirador de arsenais nucleares, de programas de assassinatos em massa, do emprego clandestino de técnicas de violência em vários países do mundo, inclusive em países com os quais os EUA não estão em guerra. Anotar aqui esse tipo de propaganda pró-guerra já é comprovar o quanto há nela, de repugnante”.
Greenwald está absolutamente certo: a propaganda do Pentágono é repugnante. Mas é muito estimulante constatar que esse tipo de propaganda expõe, muito visível, um sistema político no qual a extensão das mentiras mostra a extensão do desespero.
Nesse caso específico, a facilidade com que o Pentágono mente sobre o que MKL disse e foi, é prova de alucinado desespero, de quem tenta, já arrastado pelo pânico, alterar as tendências da opinião pública. O Pentágono já dá sinais de saber que, segundo todas as pesquisas, mais e mais norte-americanos começam a redescobrir as perguntas que King propôs sobre gastos do governo norte-americano para manter exércitos assassinos e contra a opção pelo militarismo, sobre todas as prioridades sociais.
Quando a propaganda do Pentágono já tenta descaradamente Papai-Noel-izar Martin Luther King, fazer com que todos esqueçamos quem foi ele e por que lutou e morreu, o que se vê é que, afinal, temos, cada dia mais, de honrar a sua luta e o seu legado.
A propaganda do Pentágono é vergonhosa e imperdoável, sim. Mas é estimulante sinal, também, de que nos aproximamos, sim, hoje, mais do que nunca, de realizarmos o sonho de Martin Luther King.
David Sirota* é editor sênior e colunista do blog In These Times; é escritor e seu livro mais vendido foi “Back to Our Future: How the 1980s Explain the World We Live In Now—Our Culture, Our Politics, Our Everything” lançado em 2011. Seus livros anteriores são: “The Uprising” e “Hostile Takeover”; também é co-apresentador do programa de rádio “The Rundown” na AM630 Khow no Colorado.
E-mail: ds@davidsirota.com
Twitter: @davidsirota
website em: http://www.davidsirota.com
Postado por Castor Filho às 23:51:00
(Redecastor)
SAlomé
Lou Andreas Salomé e a Paixão
por Eli Boscatto em 28 de mar de 2012 às 18:49
Lou Andreas Salomé, o grande e talvez único amor na vida de Nietzsche, justo ele que era contra esse sentimento por achá-lo uma fraqueza do Homem, ironicamente pode ter sucumbido ao mesmo, enlouquecido de amor. Impossível não ter a curiosidade despertada por alguém que conseguiu desarrumar a alma desse filósofo-poeta que subverteu ideias e dizia que as respostas para nossa existência nesse mundo estão dentro de nós mesmos. Nietzsche inclusive a teria pedido em casamento, que foi por ela recusado. Descrever Lou Andreas Salomé não seria bem o termo, nem tão pouco explicá-la, mas talvez possamos refletir sobre ela.
Nascida Louise Von Salomé em 12 de fevereiro de 1861 foi uma intelectual alemã nascida na Rússia. Foi uma bela mulher que escandalizou a sociedade e quebrou regras morais. Conheceu Sigmund Freud, Friedrich Nietzsche, Rainer Maria Rilke, Paul Rée, entre outros grandes homens. Era sensível e tinha mito de sedutora. A produção literária de Lou Salomé esteve sempre muito ligada aos seus envolvimentos amorosos e da relação com Rainer Maria Rilke, aos 36 anos, resultaram obras fundamentais da escritora como “A humanidade da mulher” e “Reflexões sobre o problema do amor”. Parece que nem mesmo Richard Wagner resistiu ao seu encanto e Freud lhe teria escrito um dia: “você tem um olhar como se fosse Natal”.
Sobre Lou Andreas Salomé foi dito que era apaixonada pela vida, pela alegria de viver e que esta paixão transbordava para o seu físico e a tornava um ser luminoso, transparente e lúcido, daquela lucidez de que fala João Cabral de Melo Neto: “uma lucidez que tudo via, como se à luz ou de dia”. E que essa paixão e alegria contagiava de tal forma quem dela se aproximasse que por causa disso, acabavam eles por extrair o melhor de si mesmos. Para Lou Salomé o exercício de viver era um ato de contemplação, de aprendizado e busca, e o objeto de sua atenção podia ser a psicanálise, a curtição de uma paisagem, de uma flor ou de um corpo amado.
Ouse, ouse... ouse tudo!!
Não tenha necessidade de nada!
Não tente adequar sua vida a modelos,
nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém.
Acredite: a vida lhe dará poucos presentes.
Se você quer uma vida, aprenda... a roubá-la!
Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer.
Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso:
algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!!
Conhecendo um pouco sobre Lou Salomé, podemos concluir que “ser apaixonado” extrapola o apenas “estar apaixonado”. Todos nós buscamos essa embriaguez física e espiritual de que ela falava: a paixão amorosa. Lou assinala em uma de suas obras, a capacidade que a paixão tem de nos abrir o caminho ao sentimento da totalidade da vida e de nos colocar em estado criativo. A paixão transformaria o nosso olhar sobre o mundo, tornaria o simples mortal um artista para si mesmo, e alguém já disse que “o Homem só se realiza através da arte”.
A paixão amorosa é um estado de graça que embriaga os sentidos, é o paraíso dentro de nós. Mas dizem que Lou não se deixava embalar incondicionalmente pelo êxtase da paixão e em um dos seus ensaios, ela nos lembra que no êxtase amoroso, por mais que desejemos nossa fusão com o amado, sempre somos em última análise, remetidos a nós mesmos através do outro.
E Lou analisa a necessidade de renovação e da existência do mistério na relação amorosa:
"Pois, no seio mesmo da paixão, nunca se deve tratar de "conhecer perfeitamente o outro": por mais que progridam neste conhecimento, a paixão restabelece constantemente entre os dois este contato fecundo que não pode se comparar a nenhuma relação de simpatia e os coloca de novo em sua relação original: a violência do espanto que cada um deles produz sobre o outro e que põe limites a toda tentativa de apreender objetivamente este parceiro. É terrível de dizer, mas , no fundo, o amante não está querendo saber "quem é" em realidade seu parceiro. Estouvado em seu egoísmo, ele se contenta de saber que o outro lhe faz um bem incompreensível... os amantes permanecem um para o outro, em última análise, um mistério.
Nas anotações íntimas dos últimos anos de vida, Lou Salomé escreve:
"Distingue-se entre os humanos aqueles que se sentem divididos em um passado e um futuro e aqueles que vivem o presente com cada vez mais densidade, sempre mais plenitude. Os orientais acham natural insistir menos sobre a morte do que se passa do que sobre a perfeição do que se acaba, como aprofundamento da realidade. Nós, ao contrário, começamos a ver aquilo que nos chega, apenas sob o aspecto sempre mais sinistro da morte - como tudo o que se observa de um olhar exterior, logo mortífero."
"Sempre não tive a idéia fixa de que a velhice me traria muito? Em meus jovens anos escrevi em algum lugar: primeiro nós vivemos nossa juventude, em seguida nossa juventude vive em nós. Não sei bem, ainda hoje, o que eu queria dizer com isso outrora. Mas eu tinha realmente medo de não atingir a idade de viver esta experiência; eu o sabia profundamente, uma longa vida, com todas as suas dores, vale ser vivida,. Claro, o valor da vida pode nos ficar escondido pelos desgastes sofridos pela nossa carne, nosso espírito (...) do mesmo modo que a juventude mais empreendedora pode se ver entravada em sua felicidade e em seu sucesso, por um fatal concurso de circunstâncias; mas, por além das perdas, a velhice adquire muito mais que a famosa aptidão à serenidade e à lucidez: ela permite que se chegue a uma plenitude mais acabada."
“A morte desfaz, assim, a distância entre os amantes, que agora vivem um no outro, sem que o individualismo os separe. A morte não é uma partida, mas uma volta: um retorno do indivíduo àquela união primitiva com as coisas. Por isso não a devemos temer”.
No dia em que eu estiver no meu leito de morte
Faísca que se apagou
Acaricia ainda uma vez meus cabelos
Com tua mão bem-amada
Antes que devolvam à terra
O que deve voltar à terra,
Pousa sobre minha boca que amaste
Ainda um beijo.
Mas não esqueças: no esquife estrangeiro
Eu só repouso em aparência
Porque em ti minha vida se refugiou
E agora sou toda tua [Hino à morte]
Fonte: (Do Livro: Os Sentidos da Paixão. Ed. Cia de Letras, 1987)
eliboscatto
Artigo da autoria de Eli Boscatto.
Formada em Ciências Políticas e Sociais, curiosa, inquieta, adora se emocionar. Pretensa poeta..
Saiba como fazer parte da obvious.
por Eli Boscatto em 28 de mar de 2012 às 18:49
Lou Andreas Salomé, o grande e talvez único amor na vida de Nietzsche, justo ele que era contra esse sentimento por achá-lo uma fraqueza do Homem, ironicamente pode ter sucumbido ao mesmo, enlouquecido de amor. Impossível não ter a curiosidade despertada por alguém que conseguiu desarrumar a alma desse filósofo-poeta que subverteu ideias e dizia que as respostas para nossa existência nesse mundo estão dentro de nós mesmos. Nietzsche inclusive a teria pedido em casamento, que foi por ela recusado. Descrever Lou Andreas Salomé não seria bem o termo, nem tão pouco explicá-la, mas talvez possamos refletir sobre ela.
Nascida Louise Von Salomé em 12 de fevereiro de 1861 foi uma intelectual alemã nascida na Rússia. Foi uma bela mulher que escandalizou a sociedade e quebrou regras morais. Conheceu Sigmund Freud, Friedrich Nietzsche, Rainer Maria Rilke, Paul Rée, entre outros grandes homens. Era sensível e tinha mito de sedutora. A produção literária de Lou Salomé esteve sempre muito ligada aos seus envolvimentos amorosos e da relação com Rainer Maria Rilke, aos 36 anos, resultaram obras fundamentais da escritora como “A humanidade da mulher” e “Reflexões sobre o problema do amor”. Parece que nem mesmo Richard Wagner resistiu ao seu encanto e Freud lhe teria escrito um dia: “você tem um olhar como se fosse Natal”.
Sobre Lou Andreas Salomé foi dito que era apaixonada pela vida, pela alegria de viver e que esta paixão transbordava para o seu físico e a tornava um ser luminoso, transparente e lúcido, daquela lucidez de que fala João Cabral de Melo Neto: “uma lucidez que tudo via, como se à luz ou de dia”. E que essa paixão e alegria contagiava de tal forma quem dela se aproximasse que por causa disso, acabavam eles por extrair o melhor de si mesmos. Para Lou Salomé o exercício de viver era um ato de contemplação, de aprendizado e busca, e o objeto de sua atenção podia ser a psicanálise, a curtição de uma paisagem, de uma flor ou de um corpo amado.
Ouse, ouse... ouse tudo!!
Não tenha necessidade de nada!
Não tente adequar sua vida a modelos,
nem queira você mesmo ser um modelo para ninguém.
Acredite: a vida lhe dará poucos presentes.
Se você quer uma vida, aprenda... a roubá-la!
Ouse, ouse tudo! Seja na vida o que você é, aconteça o que acontecer.
Não defenda nenhum princípio, mas algo de bem mais maravilhoso:
algo que está em nós e que queima como o fogo da vida!!
Conhecendo um pouco sobre Lou Salomé, podemos concluir que “ser apaixonado” extrapola o apenas “estar apaixonado”. Todos nós buscamos essa embriaguez física e espiritual de que ela falava: a paixão amorosa. Lou assinala em uma de suas obras, a capacidade que a paixão tem de nos abrir o caminho ao sentimento da totalidade da vida e de nos colocar em estado criativo. A paixão transformaria o nosso olhar sobre o mundo, tornaria o simples mortal um artista para si mesmo, e alguém já disse que “o Homem só se realiza através da arte”.
A paixão amorosa é um estado de graça que embriaga os sentidos, é o paraíso dentro de nós. Mas dizem que Lou não se deixava embalar incondicionalmente pelo êxtase da paixão e em um dos seus ensaios, ela nos lembra que no êxtase amoroso, por mais que desejemos nossa fusão com o amado, sempre somos em última análise, remetidos a nós mesmos através do outro.
E Lou analisa a necessidade de renovação e da existência do mistério na relação amorosa:
"Pois, no seio mesmo da paixão, nunca se deve tratar de "conhecer perfeitamente o outro": por mais que progridam neste conhecimento, a paixão restabelece constantemente entre os dois este contato fecundo que não pode se comparar a nenhuma relação de simpatia e os coloca de novo em sua relação original: a violência do espanto que cada um deles produz sobre o outro e que põe limites a toda tentativa de apreender objetivamente este parceiro. É terrível de dizer, mas , no fundo, o amante não está querendo saber "quem é" em realidade seu parceiro. Estouvado em seu egoísmo, ele se contenta de saber que o outro lhe faz um bem incompreensível... os amantes permanecem um para o outro, em última análise, um mistério.
Nas anotações íntimas dos últimos anos de vida, Lou Salomé escreve:
"Distingue-se entre os humanos aqueles que se sentem divididos em um passado e um futuro e aqueles que vivem o presente com cada vez mais densidade, sempre mais plenitude. Os orientais acham natural insistir menos sobre a morte do que se passa do que sobre a perfeição do que se acaba, como aprofundamento da realidade. Nós, ao contrário, começamos a ver aquilo que nos chega, apenas sob o aspecto sempre mais sinistro da morte - como tudo o que se observa de um olhar exterior, logo mortífero."
"Sempre não tive a idéia fixa de que a velhice me traria muito? Em meus jovens anos escrevi em algum lugar: primeiro nós vivemos nossa juventude, em seguida nossa juventude vive em nós. Não sei bem, ainda hoje, o que eu queria dizer com isso outrora. Mas eu tinha realmente medo de não atingir a idade de viver esta experiência; eu o sabia profundamente, uma longa vida, com todas as suas dores, vale ser vivida,. Claro, o valor da vida pode nos ficar escondido pelos desgastes sofridos pela nossa carne, nosso espírito (...) do mesmo modo que a juventude mais empreendedora pode se ver entravada em sua felicidade e em seu sucesso, por um fatal concurso de circunstâncias; mas, por além das perdas, a velhice adquire muito mais que a famosa aptidão à serenidade e à lucidez: ela permite que se chegue a uma plenitude mais acabada."
“A morte desfaz, assim, a distância entre os amantes, que agora vivem um no outro, sem que o individualismo os separe. A morte não é uma partida, mas uma volta: um retorno do indivíduo àquela união primitiva com as coisas. Por isso não a devemos temer”.
No dia em que eu estiver no meu leito de morte
Faísca que se apagou
Acaricia ainda uma vez meus cabelos
Com tua mão bem-amada
Antes que devolvam à terra
O que deve voltar à terra,
Pousa sobre minha boca que amaste
Ainda um beijo.
Mas não esqueças: no esquife estrangeiro
Eu só repouso em aparência
Porque em ti minha vida se refugiou
E agora sou toda tua [Hino à morte]
Fonte: (Do Livro: Os Sentidos da Paixão. Ed. Cia de Letras, 1987)
eliboscatto
Artigo da autoria de Eli Boscatto.
Formada em Ciências Políticas e Sociais, curiosa, inquieta, adora se emocionar. Pretensa poeta..
Saiba como fazer parte da obvious.
Nazismo
Viktor Frankl: Um Psicólogo no Campo de Concentração
publicado em recortes por fernando camargo | 12 comentários
Psicólogo, psiquiatra, filósofo e sobrevivente dos campos de concentração mais letais, Auschwitz e Dachau. O ex-prisioneiro nº 119.104, Viktor Frankl, um ser–humano maravilhoso, foi o pai da logoterapia, a cura através do sentido.
Nascido em 1905, Frankl formou-se médico psiquiatra em 1930. Dois anos depois, foi deportado pelos nazistas para os campos de concentração, onde ficou até sua libertação treze anos depois, em 1945. Faleceu com 92 anos em Viena, em 1997.
Apresentar Viktor Frankl ao leitor não é tarefa simples. Poderia facilmente me perder nos horrores do holocausto e, para tanto, optei por descrever sua experiência íntima que levou à criação da terceira escola de psicologia após Adler (poder) e Freud (prazer): a logoterapia - a cura através do sentido.
O próprio Viktor Frankl nos diz em seus livros não se dedicar a descrever os horrores dos campos de concentração, pois outros autores já o fizeram melhor. Tem por objetivo descrever o comportamento da mente humana mediante um cenário de restrição total, onde seres humanos eram tratados pior que animais; onde, ele mesmo, se viu diversas vezes reduzido aos limites entre o ser e o não-ser.
Prisioneiro durante treze anos, com esposa grávida, pai, mãe e irmão (exceto sua irmã) mortos pelo regime nazista, fico me perguntando como foi que este homem - tendo perdido tudo o que tinha, com todos os seus valores destruídos, sofrendo de fome, frio e brutalidade, esperando a cada momento o próprio extermínio - conseguiu encarar a vida como algo que vale a pena preservar?
Ao contrário de muitos existencialistas europeus, Viktor Frankl não é nem pessimista nem anti-religioso. Para quem enfrentou com coragem as forças do mal, ele assume uma visão surpreendentemente positiva da capacidade humana de transcender uma situação difícil e descobrir uma adequada verdade orientadora.
Um exemplo que gosto de citar é o costume do Dr. Frankl em fazer a seguinte pergunta a seus pacientes: “Por que não opta pelo suicídio?” Parece estranho? Pois foi a partir desta questão que sobreviveu ao convite do suicídio nos campos nazistas e é a partir das respostas a esta pergunta que ele encontra as razões que ainda sustentam seus pacientes.
Quais motivos ainda te fazem viver? O amor por um filho? Um talento específico que você tem? Uma recordação a ser preservada? São justamente estes frágeis filamentos de uma vida semi-destruída que devem ser utilizados na construção de um padrão firme, um significado e uma responsabilidade para o ser humano. Este é o desafio e objetivo da logoterapia, uma versão moderna do humanismo existencialista, elaborado pelo próprio Dr. Frankl a partir de suas experiências pessoais nos campos de concentração.
Seus livros se tornaram verdadeiros best-sellers e, quando questionado sobre este sucesso, Frankl nos diz: “em primeiro lugar, vejo no status de best-seller do meu livro não tanto uma conquista e realização da minha parte, mas uma expressão da miséria dos nossos tempos: se centenas de milhares de pessoas procuram um livro cujo título promete abordar o problema do sentido da vida, deve ser uma questão que as está queimando por dentro.”
Pude experimentar duas de suas obras, leitura pesada. Ao ler Em Busca de Sentido – Um Psicólogo no Campo de Concentração, troquei diversas vezes a leitura em primeira pessoa para a terceira pessoa do singular, troquei o “Eu passei por determinada experiência...” por “Ele passou por determinada experiência...”. Sua história, de tão comovente, é muitas vezes dolorida introspecção literária.
Tudo o que escrevi neste texto não passa de pequena amostra da grandeza das obras de Viktor Frankl. Para que entrem em contato com sua dimensão humana, deixo de presente algumas citações de seus livros:
Citações
"Nós que vivemos em campos de concentração podemos nos lembrar que os homens que percorriam as barracas para confortar os outros abriam mão de seu último pedaço de pão. Eles podem ter sido poucos em número, mas sustentaram prova suficiente de que tudo pode ser tirado de um homem exceto uma coisa: a última de suas liberdades — escolher sua atitude em um determinado arranjo circunstancial, a escolha de seu próprio caminho."
"Fundamentalmente, portanto, qualquer homem pode, mesmo sob tais circunstâncias, decidir no que ele deve se tornar - mentalmente e espiritualmente. Ele pode manter sua dignidade humana mesmo em um campo de concentração."
"Nós podemos descobrir o significado da vida de três diferentes maneiras: (1) fazendo alguma coisa; (2) experimentando um valor/ o amor; e (3) sofrendo."
"O homem é capaz de mudar o mundo para melhor, se possível, e mudar a si mesmo para melhor, se necessário."
"Coloque isso como um selo sobre teu coração: o amor é tão forte quanto a morte."
"O que é então o ser humano? É o ser que sempre decide o que ele é."
fernandocamargo
fernando camargo acredita que é filho da chuva e, com ela, muito tem a aprender. Atualmente dedica-se ao lúdico e erótico como tintas que o tornam mais humano. Saiba como fazer parte da obvious.
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publicado em recortes por fernando camargo | 12 comentários
Psicólogo, psiquiatra, filósofo e sobrevivente dos campos de concentração mais letais, Auschwitz e Dachau. O ex-prisioneiro nº 119.104, Viktor Frankl, um ser–humano maravilhoso, foi o pai da logoterapia, a cura através do sentido.
Nascido em 1905, Frankl formou-se médico psiquiatra em 1930. Dois anos depois, foi deportado pelos nazistas para os campos de concentração, onde ficou até sua libertação treze anos depois, em 1945. Faleceu com 92 anos em Viena, em 1997.
Apresentar Viktor Frankl ao leitor não é tarefa simples. Poderia facilmente me perder nos horrores do holocausto e, para tanto, optei por descrever sua experiência íntima que levou à criação da terceira escola de psicologia após Adler (poder) e Freud (prazer): a logoterapia - a cura através do sentido.
O próprio Viktor Frankl nos diz em seus livros não se dedicar a descrever os horrores dos campos de concentração, pois outros autores já o fizeram melhor. Tem por objetivo descrever o comportamento da mente humana mediante um cenário de restrição total, onde seres humanos eram tratados pior que animais; onde, ele mesmo, se viu diversas vezes reduzido aos limites entre o ser e o não-ser.
Prisioneiro durante treze anos, com esposa grávida, pai, mãe e irmão (exceto sua irmã) mortos pelo regime nazista, fico me perguntando como foi que este homem - tendo perdido tudo o que tinha, com todos os seus valores destruídos, sofrendo de fome, frio e brutalidade, esperando a cada momento o próprio extermínio - conseguiu encarar a vida como algo que vale a pena preservar?
Ao contrário de muitos existencialistas europeus, Viktor Frankl não é nem pessimista nem anti-religioso. Para quem enfrentou com coragem as forças do mal, ele assume uma visão surpreendentemente positiva da capacidade humana de transcender uma situação difícil e descobrir uma adequada verdade orientadora.
Um exemplo que gosto de citar é o costume do Dr. Frankl em fazer a seguinte pergunta a seus pacientes: “Por que não opta pelo suicídio?” Parece estranho? Pois foi a partir desta questão que sobreviveu ao convite do suicídio nos campos nazistas e é a partir das respostas a esta pergunta que ele encontra as razões que ainda sustentam seus pacientes.
Quais motivos ainda te fazem viver? O amor por um filho? Um talento específico que você tem? Uma recordação a ser preservada? São justamente estes frágeis filamentos de uma vida semi-destruída que devem ser utilizados na construção de um padrão firme, um significado e uma responsabilidade para o ser humano. Este é o desafio e objetivo da logoterapia, uma versão moderna do humanismo existencialista, elaborado pelo próprio Dr. Frankl a partir de suas experiências pessoais nos campos de concentração.
Seus livros se tornaram verdadeiros best-sellers e, quando questionado sobre este sucesso, Frankl nos diz: “em primeiro lugar, vejo no status de best-seller do meu livro não tanto uma conquista e realização da minha parte, mas uma expressão da miséria dos nossos tempos: se centenas de milhares de pessoas procuram um livro cujo título promete abordar o problema do sentido da vida, deve ser uma questão que as está queimando por dentro.”
Pude experimentar duas de suas obras, leitura pesada. Ao ler Em Busca de Sentido – Um Psicólogo no Campo de Concentração, troquei diversas vezes a leitura em primeira pessoa para a terceira pessoa do singular, troquei o “Eu passei por determinada experiência...” por “Ele passou por determinada experiência...”. Sua história, de tão comovente, é muitas vezes dolorida introspecção literária.
Tudo o que escrevi neste texto não passa de pequena amostra da grandeza das obras de Viktor Frankl. Para que entrem em contato com sua dimensão humana, deixo de presente algumas citações de seus livros:
Citações
"Nós que vivemos em campos de concentração podemos nos lembrar que os homens que percorriam as barracas para confortar os outros abriam mão de seu último pedaço de pão. Eles podem ter sido poucos em número, mas sustentaram prova suficiente de que tudo pode ser tirado de um homem exceto uma coisa: a última de suas liberdades — escolher sua atitude em um determinado arranjo circunstancial, a escolha de seu próprio caminho."
"Fundamentalmente, portanto, qualquer homem pode, mesmo sob tais circunstâncias, decidir no que ele deve se tornar - mentalmente e espiritualmente. Ele pode manter sua dignidade humana mesmo em um campo de concentração."
"Nós podemos descobrir o significado da vida de três diferentes maneiras: (1) fazendo alguma coisa; (2) experimentando um valor/ o amor; e (3) sofrendo."
"O homem é capaz de mudar o mundo para melhor, se possível, e mudar a si mesmo para melhor, se necessário."
"Coloque isso como um selo sobre teu coração: o amor é tão forte quanto a morte."
"O que é então o ser humano? É o ser que sempre decide o que ele é."
fernandocamargo
fernando camargo acredita que é filho da chuva e, com ela, muito tem a aprender. Atualmente dedica-se ao lúdico e erótico como tintas que o tornam mais humano. Saiba como fazer parte da obvious.
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terça-feira, 12 de fevereiro de 2013
Mulheres
Quem é essa mulher,
36 anos depois?
.
Por Paulo Totti, em Valor Econômico
Duas mulheres de fibra: Zuzu Angel Jones, nascida Zuleika, e Clarice Herzog, nascida Ribeiro Chaves. Da primeira, mataram-lhe o filho, Stuart Edgar. Da segunda, o marido, Vlado.
Naqueles tempos duros, a censura sufocava o choro, mas protestava-se por meio de metáforas e algumas delas se alojaram entre as mais lindas da poesia brasileira. Chico Buarque e Miltinho, do MPB-4, num triste samba homenagearam Zuzu e lembraram o filho dela, morto aos 25 anos, em 1971. “Quem é essa mulher/ que canta sempre o mesmo arranjo:/ `Só queria agasalhar meu anjo/ e deixar seu corpo descansar´?”
Estilista famosa, costureira da sociedade carioca e, dizia-se, de Kim Novak, Liza Minelli e Joan Crawford, Zuzu tornou-se incômoda à ditadura. Moveu céus e terra, chegou à ONU com os reclamos pela recuperação do corpo do filho, torturado até a morte por oficiais da FAB na base aérea do Galeão. A identidade dos assassinos nunca foi revelada, nem encontrado o corpo de Stuart. Jogaram-no ao mar, dizia-se. Por isso, Chico fez mais os seguintes versos: “Quem é essa mulher/ que canta sempre esse estribilho:/ `Só queria embalar meu filho/ que mora na escuridão do mar´?”
Aos 54 anos, em 1976, Zuzu morreu como personagem de novela. Seu Karmann Ghia capotou diversas vezes na estrada Lagoa-Barra, chocou-se contra a mureta de proteção e precipitou-se pelo barranco. A suspeita de sabotagem no sistema de freios do carro nunca foi apurada. Zuzu virou filme.
Também protagonista involuntária daqueles tempos trágicos, dias, semanas, meses depois de Vlado ter sido assassinado nos porões do DOI-Codi de São Paulo, em 1975, Clarice ouvia ameaças sempre que o telefone tocava: “Judia fdp”, “comunista”, “matamos um e vamos matar o resto”. Em sua porta havia sempre, dia e noite, um carro da polícia a bisbilhotar, intimidar. E Clarice Herzog virou música. “Chora a nossa pátria mãe gentil./ Choram Marias e Clarices no solo do Brasil”, versos de João Bosco e Aldir Blanc na voz de Elis Regina.
“É mais fácil dizer que sou publicitária”
Trinta e seis anos depois, Clarice está “À Mesa com o Valor”, no Spadaccino, acolhedor restaurante da Vila Madalena, em São Paulo, onde se cultiva a boa tradição da comida bolonhesa e que ela sugeriu para este almoço. Clarice está esperta e saudável. Sobreviveu.
Quem é esta mulher, Clarice Herzog?
Clarice Herzog – Fiz Ciências Sociais na USP. Mas me digo publicitária porque trabalhei 25 anos em agência de publicidade, 21 deles na Standard Propaganda, que virou Standard Ogilvy e hoje acho que é só Ogilvy. Fiz parte do board, fui vice-presidente. Depois criei minha empresa. Nunca redigi ou vendi anúncios, também não fiz pesquisa eleitoral. Pesquisa qualitativa é a minha especialização até hoje. Tenho experiência em posicionamento de marcas, levantamento de informações junto ao consumidor para traçar a estratégia de comunicação dos clientes, entre eles muitas multinacionais. As marcas têm vida, sabe? Se disser que sou pesquisadora de mercado, ninguém vai saber o que isso significa. É mais fácil dizer que sou publicitária. Meu pai morreu sem saber direito o que eu fazia.
Durante a faculdade na rua Maria Antônia, célebre na época por conflitos entre os esquerdistas da USP e os direitistas da Universidade Mackenzie, Clarice conheceu Vlado, que concluía o curso de Filosofia. Casaram-se.
Naturalizou-se brasileiro e passou a assinar Vladimir
E como estão seus filhos?
C.H. – Ivo faz 45 anos exatamente hoje. E o André, com 43, está na Índia neste momento.
André é funcionário da área de urbanização do Banco Mundial em Washington. Formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, fez mestrado e doutorado em Londres e Roterdã, e, a cada dois meses, passa três semanas na Índia, onde participa de um programa de urbanização de favelas. Há 11 anos só vem ao Brasil em férias.
Quando morreu, em 25 de outubro de 1975, Vlado tinha 39 anos. Clarice, 33. E os filhos, nove e sete anos. “Ivo, o maiorzinho, ficou muito mal, precisou de terapia durante anos. Tinha idade para entender algumas coisas, mas não entendia tudo. Vlado morreu num sábado. Contei para os garotos na manhã de domingo. Disse que tinha sido um acidente de carro, mas essa versão não durou meio dia. A confusão em casa, os amigos, o velório, o enterro, a polícia. Tive de revelar que ele fora assassinado, coisa terrível para uma criança. Polícia mata bandido, o pai era um bandido? Um dia Ivo perguntou: `O país do papai vai entrar em guerra com o Brasil?´ Ele tinha ouvido que os militares do Brasil estavam em guerra. `Por isso mataram meu pai?´ Os garotos sabiam que Vlado era filho de judeus, que nascera na Iugoslávia, e isso em casa, até então, era uma coisa natural.”
Vlado Herzog, como se sabe, nasceu em Osijek, na Croácia, que então pertencia à Iugoslávia ocupada pela Alemanha nazista. O casal judeu Zigmund e Zora Herzog fugiu para o Brasil em 1940, com o único filho, de três anos. Ao atingir a maioridade, Vlado naturalizou-se brasileiro e passou a assinar Vladimir – “nome mais afinado com os trópicos”, dizia. Mas os amigos continuaram a chamá-lo de Vlado, como se fosse um diminutivo.
“Ivo criou o instituto para a celebração da vida dele”
Ivo levou anos para recuperar-se do trauma. Com o ingresso familiar reduzido apenas ao seu próprio salário, Clarice cortou fundo as despesas, mas preservou o suficiente para o acompanhamento psicológico do filho.
Formado em engenharia naval pela Faculdade Politécnica da USP, Ivo fez MBA em Logística nos Estados Unidos. Trabalhou nessa área até metade deste ano, quando resolveu largar tudo para dedicar-se integralmente ao Instituto Vladimir Herzog. Criado em 2009, o instituto, segundo seu site, pretende “contribuir para a reflexão e a produção de informação voltada ao Direito à Justiça e ao Direito à Vida”. Ao ato de seu lançamento, compareceram o então governador de São Paulo, José Serra, e o ministro de Direitos Humanos, Paulo Vannucchi. Os hoje ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso gravaram mensagens de apoio. “O instituto é ideia do Ivo”, diz Clarice.
Gunnar, carioca robusto, cabelos e bigodes brancos, que chegou ao restaurante acompanhando Clarice, esclarece: “Ivo criou o instituto não para celebrar a morte do pai, mas para a celebração da vida dele, das coisas que Vlado fazia e pensava: direitos humanos, democracia, justiça, liberdade de expressão.” Quem é Gunnar? Gunnar Cairoba, bisneto de alemães, neto de suecos e escoceses, filho de sueca e brasileiro, conheceu Clarice em 1977. Ele trabalhava na área de atendimento a clientes da MPM Propaganda, no Rio. E ela na Ogilvy, em São Paulo. Desde então, estão juntos. Formado em administração de empresas, Gunnar hoje é responsável pela área administrativa da Clarice Herzog Associados. Vlado e Gunnar não chegaram a se conhecer.
Decidiram voltar de Londres em 1968
A dedicação de Clarice à memória de Vlado nunca criou problemas entre vocês?
Gunnar Cairoba– Separo as duas coisas. Sei que esse espaço é da Clarice, que ela precisa desse espaço. Não interfiro, mas estou sempre do lado dela.
C.H.– Logo depois de começarmos a namorar, estávamos em Nova York, era o governo de Jimmy Carter. Eu disse para o Gunnar: “Vou a Washington fazer uma denúncia, você fica aqui. A morte do Vlado é meu problema.” E ele disse: “Se eu for ficar com você, é meu problema também.” E foi junto, deu força.
Somos quatro à mesa: Clarice, Gunnar, a fotógrafa Ana Paula Paiva e o repórter. Foi de Gunnar a sugestão do vinho tinto – um bem comportado Rupestro Umbria 2009, leve mescla de merlot (80%) e sangiovese – para acompanhar o prato executivo do dia: ravioli de carne ao molho pesto genovês, com entrada de salada verde temperada com vinagre branco, mel e manjericão. Clarice pede tão somente insalata ficchi, uma salada verde com figos recobertos por fina crosta dupla de pão e farinha de trigo e pequeninos cubos de ricota levemente picante, tudo encimado por uma flor comestível, violácea e saborosa, que Paula Lazzarini, a proprietária do Spadaccino, diz chamar-se capuchina. O repórter gostou do visual e substituiu a salada do menu executivo por meia salada de figos. Delícia!
Ivo e André nasceram em Londres, onde Vlado foi trabalhar na BBC e fazer um curso de documentarista de TV [o jornalista foi crítico de cinema no Estado de S. Paulo, professor na Escola de Comunicação e Artes da USP, e filmou Marimbás, documentário sobre pescadores do Posto Seis, no Rio – “cinema verdade”, como era moda]. Estavam em Londres havia dois anos e meio quando decidiram voltar. Era 1968. Clarice veio antes, de navio, com os filhos. Vlado viria em 15 de dezembro. Mas no dia 14 leu nos jornais: “Endurece a ditadura militar no Brasil.” No dia anterior saíra o ato institucional nº 5, o mais feroz dos atos que a ditadura publicou no Diário Oficial – houve outros, não documentados. Mas Vlado adiou a volta apenas por uma semana. Trabalhou então no Estado de S. Paulo, na Visão e em 1975 estava na TV Cultura.
“Precisamos falar com ele. Onde é a Cultura?”
Enquanto isso, Clarice iniciava sua vida de “publicitária”. “Cheguei no porto de Santos e duas amigas já me esperavam para dizer que tinham me arrumado emprego na Lintas, uma house agency da Unilever.” Estava há um ano na Ogilvy, quando Vlado foi morto. Dias depois, Jimmy Benson, o diretor da empresa para a América Latina, chamou-a para conversar. “Confesso que tive medo, era uma multinacional americana e eu a viúva de um cara que a polícia dizia ser membro do Partido Comunista Brasileiro...”
Benson foi direto ao ponto: “Quero lhe dizer que, se quiser sair do Brasil, consigo espaço para você em qualquer lugar. Nossa agência está em muitos países do mundo.” E comentou: “É impressionante a gente ver este país colorido, alegre, pessoas na rua cheias de vida, e não se sabe que nos bastidores acontecem essas brutalidades.” Clarice preferiu ficar. E ficou por mais 20 anos na Ogilvy. “Foram comoventes as manifestações de solidariedade. Pessoas que apenas encontrava na porta da escola quando ia levar meus filhos apareceram lá em casa. Velhos amigos reapareceram. Colegas de Vlado se mobilizaram no sindicato, nas redações dos jornais. Teve também o outro lado, pois alguns que considerava amigos de repente sumiram. É a vida.”
Em outubro de 1975, amigos de Vlado e jornalistas que tinham trabalhado com ele na revista Visão começaram a ser presos. Vlado previu que seria o próximo. Já era sexta-feira e Clarice sugeriu que, terminado o trabalho de Vlado na TV, colocado o noticioso da noite no ar, casal e filhos fossem diretamente para seu pequeno sítio em Bragança Paulista e só voltassem na segunda de manhã. Clarice iria de carro apanhá-lo na TV. “Ser preso no fim de semana é um problema. Você não consegue contato com ninguém, o advogado está viajando, está tudo desarticulado”, comentou com Vlado.
Mas a polícia chegou antes. Um dos presos, torturado, indicara o endereço de Vlado. “Anoitecia quando os caras bateram lá em casa. Não se identificaram e disseram que procuravam o Vlado para encomendar um trabalho de free lancer, queriam que fotografasse um casamento no fim de semana. Falei que ele não era free lancer, tinha emprego fixo na TV Cultura e não era fotógrafo. Falaram: `Mesmo assim, precisamos falar com ele. Onde é a Cultura?´ Disse que sabia ir até lá, mas não tinha o endereço. Eles disseram: `A gente se vira´, e foram embora.”
“Recebe a indenização e quem matou, fica livre?”
Clarice ligou imediatamente para o marido que estava pronto para colocar o noticiário no ar. “Eles estão indo para aí, mas acho que chego antes.” Pegou os filhos e partiu. Chegou na TV e os “caras” já estavam lá. Os filhos testemunharam a discussão com os policiais – já aí assumidos – e ficou claro que estavam ali para prender seu pai. A intervenção de colegas, telefonemas “para a central”, “consultas às autoridades”, resultaram na suspensão da prisão imediata e o compromisso de Vlado comparecer ao DOI-Codi no dia seguinte. Vlado dormiu em casa e às 8 da manhã chegou ao Paraíso, o bairro onde ficava o prédio do DOI-Codi, na rua Tutoia. Pouco depois do meio-dia estava morto.
Ainda na manhã de sábado, Clarice teve de contar para dona Zora que o filho dela estava preso. Clarice lembra que procurou não assustar a sogra, disse que não era como na época do nazismo na Croácia. Apreensiva, Dona Zora – o marido, Zigmund, morrera em 1972 – foi dormir na casa de um irmão. “Às 11 da noite, quando apareci na casa do irmão dela, nem precisei abrir a boca. Ela me viu e começou a chorar.” Dona Zora, segundo Clarice, foi de grande coragem e dedicação à nora e aos netos. “Todo o amor que tinha para o marido e o filho transferiu para nós. Cuidou de nós até morrer, em 2009. Quando casei com Gunnar, ela passou a chamá-lo de genro.” Gunnar acrescenta com bom humor: “Casado com minha nora, só pode ser meu genro, não é?”
Clarice ganhou na Justiça um rumoroso processo de responsabilização do regime militar pela prisão, tortura e morte de Vlado. Seria o caso óbvio de ação indenizatória. Clarice, porém, não queria reduzir a perda do marido a uma questão financeira. “Recebe a indenização e o processo acaba? E quem matou fica livre?” Além disso, admite hoje, não lhe importava que a considerassem judia, o que ela não devia era reforçar a maledicência do preconceito: “O corpo nem esfriou e a judia já vai em busca do ouro.”
Às portas do Tribunal de Haia
Clarice não tem ascendência judaica. É paulistana do bairro de Pinheiros, filha de católicos, o pai um engenheiro da construção civil, e a mãe, costureira. Na história familiar de Clarice há um episódio de violência e morte na luta contra ditaduras. Um tio, irmão de sua mãe, preso durante o Estado Novo no presídio Maria Zélia, em São Paulo, organizou a fuga com outros presos políticos. “Alguém dedurou e eles foram simplesmente metralhados. Meninos de vinte e poucos anos! Meu avô ficou de cabelo branco de um dia para o outro; entrou com processo, mas resultou em nada. Cresci com ódio do Getúlio.”
Dois advogados que Clarice consultou em São Paulo, para que também a morte de Vlado não ficasse sem punição, aconselharam-na a desistir de ações contra o regime. Um deles escapuliu-se à responsabilidade de enfrentar os militares fazendo-se de radical: “Os crimes são tão hediondos que teremos que esperar um novo Tribunal de Nuremberg.”
Foi então que o jornalista Zuenir Ventura, colega de Vlado na Visão, levou-a a conversar com Heleno Fragoso, no Rio. O veterano criminalista aceitou a causa e convocou para auxiliá-lo três jovens advogados especialistas em processo civil – Samuel Mac Dowell de Figueiredo, Marco Antonio Barbosa e Sérgio Bermudes. Em 1978, dois juízes da 7ª Vara da Justiça Federal, João Gomes Martins Filho, de 70 anos, em seus últimos dias de magistratura, e o jovem de 32 que o substituiu, Márcio José de Moraes, deram ganho de causa a Clarice. O Tribunal Federal de Recursos. confirmou a sentença. Agora, Clarice bate às portas do Tribunal de Haia. A ação é para condenar o governo a investigar e punir os responsáveis pela morte de Vlado, atribuída pela polícia a “suicídio”.
“Só no Brasil há perdão para a tortura política”
Por que não usou a Justiça brasileira?
C.H. – Tentei usar, mas uma juíza considerou coisa já decidida em função da Lei de Anistia, sancionada em plena ditadura, 1979, pelo general João Figueiredo. A lei é uma aberração!
Já são mais de três horas e foi servida a sobremesa da fórmula executiva: musse de tourrone, frutas cristalizadas, mel, calda de frutas vermelhas. Clarice, que declinou do sorvete, precisa ir trabalhar. “Trabalho 12, até 13 horas por dia. Hoje, vou sair mais cedo, pois é o aniversário do Ivo.” Clarice sempre trabalhou muito e desde muito cedo. Fez o ginásio no Colégio Fernão Dias Paes, seguido do curso técnico de química industrial. Mas já traduzia livros de inglês e francês para uma pequena editora, com a ajuda de dicionários e da troca de ideias com duas amigas. Na faculdade de Ciências Sociais, pela manhã dava expediente como química industrial; à tarde ia para a editoria internacional do jornal Última Hora, onde trabalhou por dois anos, e à noite, faculdade.
O que acha da Comissão da Verdade?
C.H. – Sou absolutamente a favor da abertura de todos os arquivos. Mas defendo a punição dos culpados. Não anistio os torturadores. As pessoas que foram presas, assassinadas, estavam reagindo a um estado de exceção, a um golpe militar que derrubou um presidente eleito. Na Argentina, no Uruguai, no Chile os golpistas foram punidos. Só no Brasil há perdão para a tortura política, um crime de lesa-humanidade, imprescritível.
Fonte: ViaPolítica/Observatório da Imprensa/Valor Econômico
Paulo Totti é jornalista.
Reproduzido do Valor Econômico, 30/9/2011
36 anos depois?
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Por Paulo Totti, em Valor Econômico
Duas mulheres de fibra: Zuzu Angel Jones, nascida Zuleika, e Clarice Herzog, nascida Ribeiro Chaves. Da primeira, mataram-lhe o filho, Stuart Edgar. Da segunda, o marido, Vlado.
Naqueles tempos duros, a censura sufocava o choro, mas protestava-se por meio de metáforas e algumas delas se alojaram entre as mais lindas da poesia brasileira. Chico Buarque e Miltinho, do MPB-4, num triste samba homenagearam Zuzu e lembraram o filho dela, morto aos 25 anos, em 1971. “Quem é essa mulher/ que canta sempre o mesmo arranjo:/ `Só queria agasalhar meu anjo/ e deixar seu corpo descansar´?”
Estilista famosa, costureira da sociedade carioca e, dizia-se, de Kim Novak, Liza Minelli e Joan Crawford, Zuzu tornou-se incômoda à ditadura. Moveu céus e terra, chegou à ONU com os reclamos pela recuperação do corpo do filho, torturado até a morte por oficiais da FAB na base aérea do Galeão. A identidade dos assassinos nunca foi revelada, nem encontrado o corpo de Stuart. Jogaram-no ao mar, dizia-se. Por isso, Chico fez mais os seguintes versos: “Quem é essa mulher/ que canta sempre esse estribilho:/ `Só queria embalar meu filho/ que mora na escuridão do mar´?”
Aos 54 anos, em 1976, Zuzu morreu como personagem de novela. Seu Karmann Ghia capotou diversas vezes na estrada Lagoa-Barra, chocou-se contra a mureta de proteção e precipitou-se pelo barranco. A suspeita de sabotagem no sistema de freios do carro nunca foi apurada. Zuzu virou filme.
Também protagonista involuntária daqueles tempos trágicos, dias, semanas, meses depois de Vlado ter sido assassinado nos porões do DOI-Codi de São Paulo, em 1975, Clarice ouvia ameaças sempre que o telefone tocava: “Judia fdp”, “comunista”, “matamos um e vamos matar o resto”. Em sua porta havia sempre, dia e noite, um carro da polícia a bisbilhotar, intimidar. E Clarice Herzog virou música. “Chora a nossa pátria mãe gentil./ Choram Marias e Clarices no solo do Brasil”, versos de João Bosco e Aldir Blanc na voz de Elis Regina.
“É mais fácil dizer que sou publicitária”
Trinta e seis anos depois, Clarice está “À Mesa com o Valor”, no Spadaccino, acolhedor restaurante da Vila Madalena, em São Paulo, onde se cultiva a boa tradição da comida bolonhesa e que ela sugeriu para este almoço. Clarice está esperta e saudável. Sobreviveu.
Quem é esta mulher, Clarice Herzog?
Clarice Herzog – Fiz Ciências Sociais na USP. Mas me digo publicitária porque trabalhei 25 anos em agência de publicidade, 21 deles na Standard Propaganda, que virou Standard Ogilvy e hoje acho que é só Ogilvy. Fiz parte do board, fui vice-presidente. Depois criei minha empresa. Nunca redigi ou vendi anúncios, também não fiz pesquisa eleitoral. Pesquisa qualitativa é a minha especialização até hoje. Tenho experiência em posicionamento de marcas, levantamento de informações junto ao consumidor para traçar a estratégia de comunicação dos clientes, entre eles muitas multinacionais. As marcas têm vida, sabe? Se disser que sou pesquisadora de mercado, ninguém vai saber o que isso significa. É mais fácil dizer que sou publicitária. Meu pai morreu sem saber direito o que eu fazia.
Durante a faculdade na rua Maria Antônia, célebre na época por conflitos entre os esquerdistas da USP e os direitistas da Universidade Mackenzie, Clarice conheceu Vlado, que concluía o curso de Filosofia. Casaram-se.
Naturalizou-se brasileiro e passou a assinar Vladimir
E como estão seus filhos?
C.H. – Ivo faz 45 anos exatamente hoje. E o André, com 43, está na Índia neste momento.
André é funcionário da área de urbanização do Banco Mundial em Washington. Formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, fez mestrado e doutorado em Londres e Roterdã, e, a cada dois meses, passa três semanas na Índia, onde participa de um programa de urbanização de favelas. Há 11 anos só vem ao Brasil em férias.
Quando morreu, em 25 de outubro de 1975, Vlado tinha 39 anos. Clarice, 33. E os filhos, nove e sete anos. “Ivo, o maiorzinho, ficou muito mal, precisou de terapia durante anos. Tinha idade para entender algumas coisas, mas não entendia tudo. Vlado morreu num sábado. Contei para os garotos na manhã de domingo. Disse que tinha sido um acidente de carro, mas essa versão não durou meio dia. A confusão em casa, os amigos, o velório, o enterro, a polícia. Tive de revelar que ele fora assassinado, coisa terrível para uma criança. Polícia mata bandido, o pai era um bandido? Um dia Ivo perguntou: `O país do papai vai entrar em guerra com o Brasil?´ Ele tinha ouvido que os militares do Brasil estavam em guerra. `Por isso mataram meu pai?´ Os garotos sabiam que Vlado era filho de judeus, que nascera na Iugoslávia, e isso em casa, até então, era uma coisa natural.”
Vlado Herzog, como se sabe, nasceu em Osijek, na Croácia, que então pertencia à Iugoslávia ocupada pela Alemanha nazista. O casal judeu Zigmund e Zora Herzog fugiu para o Brasil em 1940, com o único filho, de três anos. Ao atingir a maioridade, Vlado naturalizou-se brasileiro e passou a assinar Vladimir – “nome mais afinado com os trópicos”, dizia. Mas os amigos continuaram a chamá-lo de Vlado, como se fosse um diminutivo.
“Ivo criou o instituto para a celebração da vida dele”
Ivo levou anos para recuperar-se do trauma. Com o ingresso familiar reduzido apenas ao seu próprio salário, Clarice cortou fundo as despesas, mas preservou o suficiente para o acompanhamento psicológico do filho.
Formado em engenharia naval pela Faculdade Politécnica da USP, Ivo fez MBA em Logística nos Estados Unidos. Trabalhou nessa área até metade deste ano, quando resolveu largar tudo para dedicar-se integralmente ao Instituto Vladimir Herzog. Criado em 2009, o instituto, segundo seu site, pretende “contribuir para a reflexão e a produção de informação voltada ao Direito à Justiça e ao Direito à Vida”. Ao ato de seu lançamento, compareceram o então governador de São Paulo, José Serra, e o ministro de Direitos Humanos, Paulo Vannucchi. Os hoje ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso gravaram mensagens de apoio. “O instituto é ideia do Ivo”, diz Clarice.
Gunnar, carioca robusto, cabelos e bigodes brancos, que chegou ao restaurante acompanhando Clarice, esclarece: “Ivo criou o instituto não para celebrar a morte do pai, mas para a celebração da vida dele, das coisas que Vlado fazia e pensava: direitos humanos, democracia, justiça, liberdade de expressão.” Quem é Gunnar? Gunnar Cairoba, bisneto de alemães, neto de suecos e escoceses, filho de sueca e brasileiro, conheceu Clarice em 1977. Ele trabalhava na área de atendimento a clientes da MPM Propaganda, no Rio. E ela na Ogilvy, em São Paulo. Desde então, estão juntos. Formado em administração de empresas, Gunnar hoje é responsável pela área administrativa da Clarice Herzog Associados. Vlado e Gunnar não chegaram a se conhecer.
Decidiram voltar de Londres em 1968
A dedicação de Clarice à memória de Vlado nunca criou problemas entre vocês?
Gunnar Cairoba– Separo as duas coisas. Sei que esse espaço é da Clarice, que ela precisa desse espaço. Não interfiro, mas estou sempre do lado dela.
C.H.– Logo depois de começarmos a namorar, estávamos em Nova York, era o governo de Jimmy Carter. Eu disse para o Gunnar: “Vou a Washington fazer uma denúncia, você fica aqui. A morte do Vlado é meu problema.” E ele disse: “Se eu for ficar com você, é meu problema também.” E foi junto, deu força.
Somos quatro à mesa: Clarice, Gunnar, a fotógrafa Ana Paula Paiva e o repórter. Foi de Gunnar a sugestão do vinho tinto – um bem comportado Rupestro Umbria 2009, leve mescla de merlot (80%) e sangiovese – para acompanhar o prato executivo do dia: ravioli de carne ao molho pesto genovês, com entrada de salada verde temperada com vinagre branco, mel e manjericão. Clarice pede tão somente insalata ficchi, uma salada verde com figos recobertos por fina crosta dupla de pão e farinha de trigo e pequeninos cubos de ricota levemente picante, tudo encimado por uma flor comestível, violácea e saborosa, que Paula Lazzarini, a proprietária do Spadaccino, diz chamar-se capuchina. O repórter gostou do visual e substituiu a salada do menu executivo por meia salada de figos. Delícia!
Ivo e André nasceram em Londres, onde Vlado foi trabalhar na BBC e fazer um curso de documentarista de TV [o jornalista foi crítico de cinema no Estado de S. Paulo, professor na Escola de Comunicação e Artes da USP, e filmou Marimbás, documentário sobre pescadores do Posto Seis, no Rio – “cinema verdade”, como era moda]. Estavam em Londres havia dois anos e meio quando decidiram voltar. Era 1968. Clarice veio antes, de navio, com os filhos. Vlado viria em 15 de dezembro. Mas no dia 14 leu nos jornais: “Endurece a ditadura militar no Brasil.” No dia anterior saíra o ato institucional nº 5, o mais feroz dos atos que a ditadura publicou no Diário Oficial – houve outros, não documentados. Mas Vlado adiou a volta apenas por uma semana. Trabalhou então no Estado de S. Paulo, na Visão e em 1975 estava na TV Cultura.
“Precisamos falar com ele. Onde é a Cultura?”
Enquanto isso, Clarice iniciava sua vida de “publicitária”. “Cheguei no porto de Santos e duas amigas já me esperavam para dizer que tinham me arrumado emprego na Lintas, uma house agency da Unilever.” Estava há um ano na Ogilvy, quando Vlado foi morto. Dias depois, Jimmy Benson, o diretor da empresa para a América Latina, chamou-a para conversar. “Confesso que tive medo, era uma multinacional americana e eu a viúva de um cara que a polícia dizia ser membro do Partido Comunista Brasileiro...”
Benson foi direto ao ponto: “Quero lhe dizer que, se quiser sair do Brasil, consigo espaço para você em qualquer lugar. Nossa agência está em muitos países do mundo.” E comentou: “É impressionante a gente ver este país colorido, alegre, pessoas na rua cheias de vida, e não se sabe que nos bastidores acontecem essas brutalidades.” Clarice preferiu ficar. E ficou por mais 20 anos na Ogilvy. “Foram comoventes as manifestações de solidariedade. Pessoas que apenas encontrava na porta da escola quando ia levar meus filhos apareceram lá em casa. Velhos amigos reapareceram. Colegas de Vlado se mobilizaram no sindicato, nas redações dos jornais. Teve também o outro lado, pois alguns que considerava amigos de repente sumiram. É a vida.”
Em outubro de 1975, amigos de Vlado e jornalistas que tinham trabalhado com ele na revista Visão começaram a ser presos. Vlado previu que seria o próximo. Já era sexta-feira e Clarice sugeriu que, terminado o trabalho de Vlado na TV, colocado o noticioso da noite no ar, casal e filhos fossem diretamente para seu pequeno sítio em Bragança Paulista e só voltassem na segunda de manhã. Clarice iria de carro apanhá-lo na TV. “Ser preso no fim de semana é um problema. Você não consegue contato com ninguém, o advogado está viajando, está tudo desarticulado”, comentou com Vlado.
Mas a polícia chegou antes. Um dos presos, torturado, indicara o endereço de Vlado. “Anoitecia quando os caras bateram lá em casa. Não se identificaram e disseram que procuravam o Vlado para encomendar um trabalho de free lancer, queriam que fotografasse um casamento no fim de semana. Falei que ele não era free lancer, tinha emprego fixo na TV Cultura e não era fotógrafo. Falaram: `Mesmo assim, precisamos falar com ele. Onde é a Cultura?´ Disse que sabia ir até lá, mas não tinha o endereço. Eles disseram: `A gente se vira´, e foram embora.”
“Recebe a indenização e quem matou, fica livre?”
Clarice ligou imediatamente para o marido que estava pronto para colocar o noticiário no ar. “Eles estão indo para aí, mas acho que chego antes.” Pegou os filhos e partiu. Chegou na TV e os “caras” já estavam lá. Os filhos testemunharam a discussão com os policiais – já aí assumidos – e ficou claro que estavam ali para prender seu pai. A intervenção de colegas, telefonemas “para a central”, “consultas às autoridades”, resultaram na suspensão da prisão imediata e o compromisso de Vlado comparecer ao DOI-Codi no dia seguinte. Vlado dormiu em casa e às 8 da manhã chegou ao Paraíso, o bairro onde ficava o prédio do DOI-Codi, na rua Tutoia. Pouco depois do meio-dia estava morto.
Ainda na manhã de sábado, Clarice teve de contar para dona Zora que o filho dela estava preso. Clarice lembra que procurou não assustar a sogra, disse que não era como na época do nazismo na Croácia. Apreensiva, Dona Zora – o marido, Zigmund, morrera em 1972 – foi dormir na casa de um irmão. “Às 11 da noite, quando apareci na casa do irmão dela, nem precisei abrir a boca. Ela me viu e começou a chorar.” Dona Zora, segundo Clarice, foi de grande coragem e dedicação à nora e aos netos. “Todo o amor que tinha para o marido e o filho transferiu para nós. Cuidou de nós até morrer, em 2009. Quando casei com Gunnar, ela passou a chamá-lo de genro.” Gunnar acrescenta com bom humor: “Casado com minha nora, só pode ser meu genro, não é?”
Clarice ganhou na Justiça um rumoroso processo de responsabilização do regime militar pela prisão, tortura e morte de Vlado. Seria o caso óbvio de ação indenizatória. Clarice, porém, não queria reduzir a perda do marido a uma questão financeira. “Recebe a indenização e o processo acaba? E quem matou fica livre?” Além disso, admite hoje, não lhe importava que a considerassem judia, o que ela não devia era reforçar a maledicência do preconceito: “O corpo nem esfriou e a judia já vai em busca do ouro.”
Às portas do Tribunal de Haia
Clarice não tem ascendência judaica. É paulistana do bairro de Pinheiros, filha de católicos, o pai um engenheiro da construção civil, e a mãe, costureira. Na história familiar de Clarice há um episódio de violência e morte na luta contra ditaduras. Um tio, irmão de sua mãe, preso durante o Estado Novo no presídio Maria Zélia, em São Paulo, organizou a fuga com outros presos políticos. “Alguém dedurou e eles foram simplesmente metralhados. Meninos de vinte e poucos anos! Meu avô ficou de cabelo branco de um dia para o outro; entrou com processo, mas resultou em nada. Cresci com ódio do Getúlio.”
Dois advogados que Clarice consultou em São Paulo, para que também a morte de Vlado não ficasse sem punição, aconselharam-na a desistir de ações contra o regime. Um deles escapuliu-se à responsabilidade de enfrentar os militares fazendo-se de radical: “Os crimes são tão hediondos que teremos que esperar um novo Tribunal de Nuremberg.”
Foi então que o jornalista Zuenir Ventura, colega de Vlado na Visão, levou-a a conversar com Heleno Fragoso, no Rio. O veterano criminalista aceitou a causa e convocou para auxiliá-lo três jovens advogados especialistas em processo civil – Samuel Mac Dowell de Figueiredo, Marco Antonio Barbosa e Sérgio Bermudes. Em 1978, dois juízes da 7ª Vara da Justiça Federal, João Gomes Martins Filho, de 70 anos, em seus últimos dias de magistratura, e o jovem de 32 que o substituiu, Márcio José de Moraes, deram ganho de causa a Clarice. O Tribunal Federal de Recursos. confirmou a sentença. Agora, Clarice bate às portas do Tribunal de Haia. A ação é para condenar o governo a investigar e punir os responsáveis pela morte de Vlado, atribuída pela polícia a “suicídio”.
“Só no Brasil há perdão para a tortura política”
Por que não usou a Justiça brasileira?
C.H. – Tentei usar, mas uma juíza considerou coisa já decidida em função da Lei de Anistia, sancionada em plena ditadura, 1979, pelo general João Figueiredo. A lei é uma aberração!
Já são mais de três horas e foi servida a sobremesa da fórmula executiva: musse de tourrone, frutas cristalizadas, mel, calda de frutas vermelhas. Clarice, que declinou do sorvete, precisa ir trabalhar. “Trabalho 12, até 13 horas por dia. Hoje, vou sair mais cedo, pois é o aniversário do Ivo.” Clarice sempre trabalhou muito e desde muito cedo. Fez o ginásio no Colégio Fernão Dias Paes, seguido do curso técnico de química industrial. Mas já traduzia livros de inglês e francês para uma pequena editora, com a ajuda de dicionários e da troca de ideias com duas amigas. Na faculdade de Ciências Sociais, pela manhã dava expediente como química industrial; à tarde ia para a editoria internacional do jornal Última Hora, onde trabalhou por dois anos, e à noite, faculdade.
O que acha da Comissão da Verdade?
C.H. – Sou absolutamente a favor da abertura de todos os arquivos. Mas defendo a punição dos culpados. Não anistio os torturadores. As pessoas que foram presas, assassinadas, estavam reagindo a um estado de exceção, a um golpe militar que derrubou um presidente eleito. Na Argentina, no Uruguai, no Chile os golpistas foram punidos. Só no Brasil há perdão para a tortura política, um crime de lesa-humanidade, imprescritível.
Fonte: ViaPolítica/Observatório da Imprensa/Valor Econômico
Paulo Totti é jornalista.
Reproduzido do Valor Econômico, 30/9/2011
Jihadismo
Rui Martins – O jihadismo é de esquerda?
Berna (Suíça) – Conta a mitologia grega que a primeira mulher criada por Zeus, chamada Pandora, dele recebeu um jarro (com o tempo se passou a dizer caixa) com a advertência de nunca abri-lo.
Mas tão desobediente ou curiosa como a outra primeira mulher, Eva, da lenda ou mitologia cristã, que comeu uma fruta proibida (depois virou maçã), provocou o fim de sua vida no Paraíso e introduziu o pecado, Pandora roía as unhas de tanta vontade por saber o conteúdo do jarro.
Até ceder enfim à sua curiosidade, destampando o jarro. Imediatamente jorraram para fora todos os males ali dentro comprimidos, restando nele apenas a esperança.
Quando George W. Bush, alegando implantar a democracia mas, na verdade, atraído pelos lucros do petróleo, inventou a mentira das armas destruidoras no Iraque, para justificar a guerra contra Sadam Hussein, agiu como Pandora.
Conta a mitologia ser impossível recolocar no jarro os males dele saídos. A guerra contra o Iraque equivaleu à abertura da caixa ou do jarro de Pandora, pois ainda hoje os males provenientes continuam incontroláveis.
O ditador Sadam Hussein era, como todos os ditadores, terrível, malvado, perigoso e cruel. E era assim impondo o medo que mantinha seu país, o Iraque, em paz, embora nele vivessem religiosos muçulmanos sunitas e xiitas prontos a se matarem, e curdos ávidos de independência.
Quando Bush, ignorante e mal assessorado pela CIA, destruiu Sadam e colocou suas democráticas tropas invasoras no Iraque, desequilibrou o precário equilíbrio no Oriente Médio. Algo parecido tinha ocorrido após a morte de Tito na Iugoslávia. Em pouco tempo, as facções contidas retornaram aos seus ódios antigos.
Bush, o tolo, provocou um terremoto com efeitos justamente contrários aos previstos por seus ambiciosos mas incompetentes assessores. Sem a presença do bicho-papão Sadam, ateu de formação marxista, estourou o tampão por ele instalado na região contra a predominância religiosa muçulmana, do qual as mulheres eram as principais beneficiárias.
Acabou-se o Iraque laico e de dentro da caixa de Pandora ressurgiram os ódios religiosos e o coranismo contra o capitalismo, sutil miragem política cujas perigosas nuances até hoje não são vistas por certas esquerdas. Na verdade, não se trata de uma oposição capaz de favorecer a luta contra o neoliberalismo, por se tratar, na verdade, de um retrocesso, anterior ao Iluminismo e à Revolução francesa.
O desequilíbrio instaurado no Oriente Médio não liberou apenas os males do anacronismo religioso, mas permitiu aos jovens a esperança de uma modernização política com o fim de seculares sistemas de dominação do povo e de velhas ditaduras. Entretanto, as revoluções da primavera árabe já foram recuperadas pelos religiosos muçulmanos e o retorno da política ao livro e textos sagrados é sinônimo de um regresso histórico.
Como se não bastasse a caixa de Pandora aberta por Bush, o tolo, houve outra caixa aberta com a pretendida libertação da Líbia, do ditador Kadafi, dessa vez por franceses e ingleses ansiosos por instaurar na África um neocolonialismo. De novo, a morte do tirano não favoreceu aos africanos e, de repente, ventos medievais levaram ao Mali guerreiros pregadores da guerra santa, instaurando na região a chariá, a dura lei corânica e a lei de talião.
Os invasores jihadistas, prontos a fazerem do Mali um outro Afeganistão, onde em matéria de direitos humanos e das mulheres o retrocesso seria ao século XII, acabam de ser expulsos por invasores franceses, menos afeitos à cultura religiosa e mais interessados nas riquezas locais, para satisfação dos laicistas e iluministas de todos os matizes, que não vêem revolução de esquerda no coranismo, como também não viram nem Nasser, nem Sadam Hussein e nem Kadafi.
*Rui Martins é jornalista e colabora com o “Quem tem medo da democracia?“, onde mantém a coluna “Estado do Emigrante“.
Berna (Suíça) – Conta a mitologia grega que a primeira mulher criada por Zeus, chamada Pandora, dele recebeu um jarro (com o tempo se passou a dizer caixa) com a advertência de nunca abri-lo.
Mas tão desobediente ou curiosa como a outra primeira mulher, Eva, da lenda ou mitologia cristã, que comeu uma fruta proibida (depois virou maçã), provocou o fim de sua vida no Paraíso e introduziu o pecado, Pandora roía as unhas de tanta vontade por saber o conteúdo do jarro.
Até ceder enfim à sua curiosidade, destampando o jarro. Imediatamente jorraram para fora todos os males ali dentro comprimidos, restando nele apenas a esperança.
Quando George W. Bush, alegando implantar a democracia mas, na verdade, atraído pelos lucros do petróleo, inventou a mentira das armas destruidoras no Iraque, para justificar a guerra contra Sadam Hussein, agiu como Pandora.
Conta a mitologia ser impossível recolocar no jarro os males dele saídos. A guerra contra o Iraque equivaleu à abertura da caixa ou do jarro de Pandora, pois ainda hoje os males provenientes continuam incontroláveis.
O ditador Sadam Hussein era, como todos os ditadores, terrível, malvado, perigoso e cruel. E era assim impondo o medo que mantinha seu país, o Iraque, em paz, embora nele vivessem religiosos muçulmanos sunitas e xiitas prontos a se matarem, e curdos ávidos de independência.
Quando Bush, ignorante e mal assessorado pela CIA, destruiu Sadam e colocou suas democráticas tropas invasoras no Iraque, desequilibrou o precário equilíbrio no Oriente Médio. Algo parecido tinha ocorrido após a morte de Tito na Iugoslávia. Em pouco tempo, as facções contidas retornaram aos seus ódios antigos.
Bush, o tolo, provocou um terremoto com efeitos justamente contrários aos previstos por seus ambiciosos mas incompetentes assessores. Sem a presença do bicho-papão Sadam, ateu de formação marxista, estourou o tampão por ele instalado na região contra a predominância religiosa muçulmana, do qual as mulheres eram as principais beneficiárias.
Acabou-se o Iraque laico e de dentro da caixa de Pandora ressurgiram os ódios religiosos e o coranismo contra o capitalismo, sutil miragem política cujas perigosas nuances até hoje não são vistas por certas esquerdas. Na verdade, não se trata de uma oposição capaz de favorecer a luta contra o neoliberalismo, por se tratar, na verdade, de um retrocesso, anterior ao Iluminismo e à Revolução francesa.
O desequilíbrio instaurado no Oriente Médio não liberou apenas os males do anacronismo religioso, mas permitiu aos jovens a esperança de uma modernização política com o fim de seculares sistemas de dominação do povo e de velhas ditaduras. Entretanto, as revoluções da primavera árabe já foram recuperadas pelos religiosos muçulmanos e o retorno da política ao livro e textos sagrados é sinônimo de um regresso histórico.
Como se não bastasse a caixa de Pandora aberta por Bush, o tolo, houve outra caixa aberta com a pretendida libertação da Líbia, do ditador Kadafi, dessa vez por franceses e ingleses ansiosos por instaurar na África um neocolonialismo. De novo, a morte do tirano não favoreceu aos africanos e, de repente, ventos medievais levaram ao Mali guerreiros pregadores da guerra santa, instaurando na região a chariá, a dura lei corânica e a lei de talião.
Os invasores jihadistas, prontos a fazerem do Mali um outro Afeganistão, onde em matéria de direitos humanos e das mulheres o retrocesso seria ao século XII, acabam de ser expulsos por invasores franceses, menos afeitos à cultura religiosa e mais interessados nas riquezas locais, para satisfação dos laicistas e iluministas de todos os matizes, que não vêem revolução de esquerda no coranismo, como também não viram nem Nasser, nem Sadam Hussein e nem Kadafi.
*Rui Martins é jornalista e colabora com o “Quem tem medo da democracia?“, onde mantém a coluna “Estado do Emigrante“.
HQ erótica
Milo Manara:
O rei dos quadrinhos
eróticos, agora nu
.
Por Irene Hdez. Velasco, de Roma, para El Mundo, de Madri
.
Um universo sensual habitado por mulheres dignas dos melhores sonhos adolescentes, materializa-se agora em Siena. Mas parece destino à jaula em tempos de Silvio Berlusconi e ‘bunga-bunga’.
Desenhar quadrinhos eróticos não é nada fácil: o habitual é que quem os faça seja desqualificado com os rótulos habituais de pornográfico, indecente, obsceno... Milo Manara é, nesse sentido, a grande exceção. Com 66 anos, e mesmo que muitos de seus cenários sejam sexualmente explícitos, este italiano há tempo que é reconhecido mundialmente como um grande artista e como um dos grandes nomes da pintura figurativa. Amigo de Federico Fellini e de Hugo Pratt (o pai de Corto Maltés), profundo conhecedor da pintura clássica em geral e de Rafael em particular, o trabalho de Manara reflete um erotismo refinado que fez escola e influiu -e segue influindo- sobre numerosos desenhistas.
O universo sensual de Milo Manara, habitado por mulheres imponentes dignas dos melhores sonhos adolescentes, materializa-se agora em Siena, Itália. Daqui até o próximo 8/1/2011, a cidade toscana dedica ao mestre da sensualidade a primeira grande retrospectiva de sua carreira sob o título 'As moradas do desejo’. Através de quase 300 obras que repassam 40 anos de carreirra, a exposição no magnífico Museo de Santa María della Scala (um antigo hospital) permite ao visitante realizar uma viajem sensorial e onírica pelo mundo de Manara.
Há um lugar dedicado a Guiseppe Bergman, o alter ego de Milo Manara. Também um espaço consagrado a duas heroínas saídas dos pincéis do artista: Claudia e Miele. Não faltam os comics sobre os Borgia desenhados por Manara com textos de Alejandro Jodorowsky. E uma seção destinada a analisar a relação do desenhista com Hugo Pratt e Federico Fellini. Com este último Manara realizou 'A viagem de Mastorna', quadrinhos baseados em um roteiro reciclado do cineasta de La Dolce Vita que não chegou a se transformar em filme.
Como cereja da exposição, ‘um aposento proibido’, que sob o nome 'Eros e Thanatos' reúne algumas das imagens mais sexualmente explícitas do mestre. E que parece destinada a levantar poucas polêmicas em vista dos tempos que correm na Itália, marcados pelos escândalos sexuais de Silvio Berlusconi, seu processo por prostituição de menores e os detalhes sobre suas 'bunga-bunga' que a cada dia os jornais trazem à luz.
"A vida real está muito adiante de qualquer fantasia", admite Manara. "Os quadrinhos já não provocam escândalo. O erotismo perdeu sua carga de liberação e transgressão, já não joga o papel provocativo que tinha quando eu comecei. Parece que agora chegou o momento de enjaular, mais que de liberar".
Fonte: ViaPolítica/El Mundo
Tradução livre de Omar L. de Barros Filho, editor de VP
O rei dos quadrinhos
eróticos, agora nu
.
Por Irene Hdez. Velasco, de Roma, para El Mundo, de Madri
.
Um universo sensual habitado por mulheres dignas dos melhores sonhos adolescentes, materializa-se agora em Siena. Mas parece destino à jaula em tempos de Silvio Berlusconi e ‘bunga-bunga’.
Desenhar quadrinhos eróticos não é nada fácil: o habitual é que quem os faça seja desqualificado com os rótulos habituais de pornográfico, indecente, obsceno... Milo Manara é, nesse sentido, a grande exceção. Com 66 anos, e mesmo que muitos de seus cenários sejam sexualmente explícitos, este italiano há tempo que é reconhecido mundialmente como um grande artista e como um dos grandes nomes da pintura figurativa. Amigo de Federico Fellini e de Hugo Pratt (o pai de Corto Maltés), profundo conhecedor da pintura clássica em geral e de Rafael em particular, o trabalho de Manara reflete um erotismo refinado que fez escola e influiu -e segue influindo- sobre numerosos desenhistas.
O universo sensual de Milo Manara, habitado por mulheres imponentes dignas dos melhores sonhos adolescentes, materializa-se agora em Siena, Itália. Daqui até o próximo 8/1/2011, a cidade toscana dedica ao mestre da sensualidade a primeira grande retrospectiva de sua carreira sob o título 'As moradas do desejo’. Através de quase 300 obras que repassam 40 anos de carreirra, a exposição no magnífico Museo de Santa María della Scala (um antigo hospital) permite ao visitante realizar uma viajem sensorial e onírica pelo mundo de Manara.
Há um lugar dedicado a Guiseppe Bergman, o alter ego de Milo Manara. Também um espaço consagrado a duas heroínas saídas dos pincéis do artista: Claudia e Miele. Não faltam os comics sobre os Borgia desenhados por Manara com textos de Alejandro Jodorowsky. E uma seção destinada a analisar a relação do desenhista com Hugo Pratt e Federico Fellini. Com este último Manara realizou 'A viagem de Mastorna', quadrinhos baseados em um roteiro reciclado do cineasta de La Dolce Vita que não chegou a se transformar em filme.
Como cereja da exposição, ‘um aposento proibido’, que sob o nome 'Eros e Thanatos' reúne algumas das imagens mais sexualmente explícitas do mestre. E que parece destinada a levantar poucas polêmicas em vista dos tempos que correm na Itália, marcados pelos escândalos sexuais de Silvio Berlusconi, seu processo por prostituição de menores e os detalhes sobre suas 'bunga-bunga' que a cada dia os jornais trazem à luz.
"A vida real está muito adiante de qualquer fantasia", admite Manara. "Os quadrinhos já não provocam escândalo. O erotismo perdeu sua carga de liberação e transgressão, já não joga o papel provocativo que tinha quando eu comecei. Parece que agora chegou o momento de enjaular, mais que de liberar".
Fonte: ViaPolítica/El Mundo
Tradução livre de Omar L. de Barros Filho, editor de VP
China
Cena e Sequência
No Universo do Cinema
UM CONTO CHINÊS
em Sinopses Filmes por Renata Jamus
Se você está depressivo, dê abrigo para um Chinês. Vai passar!
O cinema feito na Argentina produz de tudo. Filmes de arte, independentes, comerciais, comédias, aventura, fantasias, românticos etc. Quase todos, quase sempre, mostrando a cidade de Buenos Aires, ou lugares importantes da história do país. Nenhum deles deixa de exaltar o que há de bom no traço bem peculiar do povo, tampouco de falar sobre mazelas e coisas que não dão certo pelas bandas de lá.
Sebastian Borensztein é o diretor desta comédia dramática que conta a história de como o acaso na verdade nunca é acaso. Roberto, abrimos aspas para falar do “sensacional Ricardo Darín”, é um adulto metódico, solitário, turrão, ranzinza, porém deliciosamente doce quando o calo dos outros aperta, além de ter um humor negro de primeira. A mãe morreu quando jovem (e Roberto estranhamente cultua sua progenitora num altar, onde coloca um presente sempre que ela “faz aniversário”) e o pai pouco tempo depois. Roberto é o tipo de pessoa que conta quantos pregos existem na caixa, para saber se a informação é fidedigna, ou que dorme todo dia no mesmo horário (23:00h). Pois bem, ele acredita piamente que o acaso é que comanda a vida das pessoas. Por conta disso, coleciona histórias impossíveis de acreditar – compra jornais de várias localidades para achar relatos fantasiosos, porém reais, sobre a vida de gente que não conhece.
Um belo dia, quando está sentado perto de uma pista do aeroporto de Buenos Aires, um chinês é jogado de um táxi e cai diante dos olhos de Roberto. O rapaz, de nome Jun, não sabe falar uma única palavra em castelhano, além de não entender nada. O jovem chinês saiu do seu país depois que uma tragédia inacreditável se abateu sobre sua vida: no momento em que ia pedir a mão de sua noiva uma vaca caiu do céu exatamente em cima da sua amada. Sem motivos para permanecer em sua cidade ele vem tentar vida nova em outro país, e, para isso, precisa encontrar seu tio. O périplo que une o ranzina Roberto e o doce Jun é o que comanda a história. E é nessa busca que o acaso deixa de ser acaso e acaba transformando a vida de ambos.
Um bom número de cenas interessantes aparece no filme. A sequência inicial, da vaca caindo do céu é excelente. Em outro momento, dentro de uma delegacia, Roberto dá uma lição de moral em um dos policiais – “duro é ter que ver uma servidor público me tratando desta maneira”. Lá pelas tantas, em plena embaixada da China, ele vocifera: “bilhões e bilhões de chineses no Mundo e não existe um para me atender?”. Ainda há uma das sequências mais legais, em que Roberto apresenta o doce de leite argentino para Jun. Ele diz: “prove, se chama doce de leite, vocês se esqueceram de inventar isso, então, nós argentinos, inventamos. É o melhor do Mundo”. Pode ser mais argentino? Uma bossa super interessante é que o diretor preferiu não traduzir nenhuma fala em chinês. Nós ficamos tão perdidos quanto Roberto. Quando ele precisa entender algo (e nós também), surge alguém que fala a língua e nos esclarece tudo.
Se o famoso Juan Jose Campanella (do famoso e antológico O Segredo dos Seus Olhos) é O Diretor do cinema argentino moderno, Ricardo Darín é O Rosto. Está perfeito! Ignacio Huang é Jun e empresta para ele toda a capacidade de interpretar sem falar. Ainda mais porque Jun é um sujeito contido, introspectivo. Interpretar alguém que quase não fala durante o filme, que é tímido (portanto, de poucos gestos) e ainda assim nos emocionar é sinal de muito talento. Nascido em Taiwan, o ator desenvolveu toda a carreira artística na Argentina.
Um Conto Chinês é um daqueles filmes que nos abraça, e nos leva para um lugar só dele. Depois somos devolvidos com um sorriso no rosto!
renatajamus
Artigo da autoria de Renata Jamus.
Se quiser falar diretamente comigo me procure no rejamus@gmail.com..
Saiba como fazer parte da obvious.
No Universo do Cinema
UM CONTO CHINÊS
em Sinopses Filmes por Renata Jamus
Se você está depressivo, dê abrigo para um Chinês. Vai passar!
O cinema feito na Argentina produz de tudo. Filmes de arte, independentes, comerciais, comédias, aventura, fantasias, românticos etc. Quase todos, quase sempre, mostrando a cidade de Buenos Aires, ou lugares importantes da história do país. Nenhum deles deixa de exaltar o que há de bom no traço bem peculiar do povo, tampouco de falar sobre mazelas e coisas que não dão certo pelas bandas de lá.
Sebastian Borensztein é o diretor desta comédia dramática que conta a história de como o acaso na verdade nunca é acaso. Roberto, abrimos aspas para falar do “sensacional Ricardo Darín”, é um adulto metódico, solitário, turrão, ranzinza, porém deliciosamente doce quando o calo dos outros aperta, além de ter um humor negro de primeira. A mãe morreu quando jovem (e Roberto estranhamente cultua sua progenitora num altar, onde coloca um presente sempre que ela “faz aniversário”) e o pai pouco tempo depois. Roberto é o tipo de pessoa que conta quantos pregos existem na caixa, para saber se a informação é fidedigna, ou que dorme todo dia no mesmo horário (23:00h). Pois bem, ele acredita piamente que o acaso é que comanda a vida das pessoas. Por conta disso, coleciona histórias impossíveis de acreditar – compra jornais de várias localidades para achar relatos fantasiosos, porém reais, sobre a vida de gente que não conhece.
Um belo dia, quando está sentado perto de uma pista do aeroporto de Buenos Aires, um chinês é jogado de um táxi e cai diante dos olhos de Roberto. O rapaz, de nome Jun, não sabe falar uma única palavra em castelhano, além de não entender nada. O jovem chinês saiu do seu país depois que uma tragédia inacreditável se abateu sobre sua vida: no momento em que ia pedir a mão de sua noiva uma vaca caiu do céu exatamente em cima da sua amada. Sem motivos para permanecer em sua cidade ele vem tentar vida nova em outro país, e, para isso, precisa encontrar seu tio. O périplo que une o ranzina Roberto e o doce Jun é o que comanda a história. E é nessa busca que o acaso deixa de ser acaso e acaba transformando a vida de ambos.
Um bom número de cenas interessantes aparece no filme. A sequência inicial, da vaca caindo do céu é excelente. Em outro momento, dentro de uma delegacia, Roberto dá uma lição de moral em um dos policiais – “duro é ter que ver uma servidor público me tratando desta maneira”. Lá pelas tantas, em plena embaixada da China, ele vocifera: “bilhões e bilhões de chineses no Mundo e não existe um para me atender?”. Ainda há uma das sequências mais legais, em que Roberto apresenta o doce de leite argentino para Jun. Ele diz: “prove, se chama doce de leite, vocês se esqueceram de inventar isso, então, nós argentinos, inventamos. É o melhor do Mundo”. Pode ser mais argentino? Uma bossa super interessante é que o diretor preferiu não traduzir nenhuma fala em chinês. Nós ficamos tão perdidos quanto Roberto. Quando ele precisa entender algo (e nós também), surge alguém que fala a língua e nos esclarece tudo.
Se o famoso Juan Jose Campanella (do famoso e antológico O Segredo dos Seus Olhos) é O Diretor do cinema argentino moderno, Ricardo Darín é O Rosto. Está perfeito! Ignacio Huang é Jun e empresta para ele toda a capacidade de interpretar sem falar. Ainda mais porque Jun é um sujeito contido, introspectivo. Interpretar alguém que quase não fala durante o filme, que é tímido (portanto, de poucos gestos) e ainda assim nos emocionar é sinal de muito talento. Nascido em Taiwan, o ator desenvolveu toda a carreira artística na Argentina.
Um Conto Chinês é um daqueles filmes que nos abraça, e nos leva para um lugar só dele. Depois somos devolvidos com um sorriso no rosto!
renatajamus
Artigo da autoria de Renata Jamus.
Se quiser falar diretamente comigo me procure no rejamus@gmail.com..
Saiba como fazer parte da obvious.
segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013
Saramago
Claraboia, o jovem Saramago
Marcelo Spalding
Poucos ofícios imortalizam tanto um homem quanto o de escritor. Um bom livro sobrevive ao seu autor nas prateleiras das livrarias, nas estantes das casas, no orgulho da família. E não raro novos textos seus são publicados mesmo depois de sua morte.
Com José Saramago, o Nobel da língua portuguesa, o mais polêmico, conhecido e reconhecido escritor contemporâneo de nossa língua, não poderia ser diferente. Um ano e meio depois de sua morte, ocorrida em 2010, foi lançado o romance Claraboia (Companhia das Letras, 2006, 384 págs.), incrivelmente escrito em 1953 — se fosse publicado à época seria o segundo romance do autor.
Os motivos para a não-publicação nos anos 1950 são mais comerciais que literários: a obra foi enviada a uma editora lusitana que nunca respondeu ao autor, nem aceitando nem rejeitando o original (desrespeitosa prática comum até hoje, diga-se de passagem), até que nos anos 1980, com Saramago já famoso por sua literatura, a tal editora entrou em contato com o autor para publicar o livro. Aí foi a vez de Saramago rejeitar, por despeito ou por questões literárias, sabe-se lá. Deixou a decisão para que a família tomasse, depois de sua morte.
Felizmente para os leitores, a família optou por publicar o romance, cuja história narra episódios da vida de seis famílias do subúrbio lisboeta, histórias que se encontram e desencontram ao longo da narrativa. Enredos desse tipo hoje são comuns no cinema (Babel, Crash), mas acrescente-se a essa falta de unidade temática o fato de que em Claraboia o leitor começa a conhecer as famílias no meio de suas histórias e não saberá o final delas. Trata-se, portanto, de uma crônica de costumes, de um romance de representação social em que o cenário é mais importante que os acontecimentos.
Para quem gosta de literatura e de Saramago em especial, o romance é leitura obrigatória porque revela os primeiros passos do gênio, o que primeiro ele inventou na prosa até chegar à sua forma complexa e admirável de um Evangelho Segundo Jesus Cristo, por exemplo. Em Claraboia, os diálogos ainda são pontuados da maneira tradicional, mas já temos aqui o narrador intruso, onisciente e irônico, marca da ficção do autor. O começo, misto de descrição com narrativa, é arrebatador:
"Por entre os véus oscilantes que lhe povoavam o sono, Silvestre começou a ouvir rumores de loiça mexida e quase juraria que transluziam claridades pelas malhas largas dos véus. Ia aborrecer-se, mas percebeu, de repente, que estava acordando. Piscou os olhos repetidas vezes, bocejou e ficou imóvel, enquanto sentia o sono afastar-se devagar. Com um movimento rápido, sentou-se na cama. Espreguiçou-se, fazendo estalar rijamente as articulações dos braços. Por baixo da camisola, os músculos do dorso rolaram e estremeceram. Tinha o tronco forte, os braços grossos e duros, as omoplatas revestidas de músculos encordoados. Precisava desses músculos para o seu ofício de sapateiro. As mãos, tinha-as como petrificadas, a pele das palmas tão espessa que podia passar-se nela, sem sangrar, uma agulha enfiada."
Silvestre, aliás, será um personagem importante nesse mosaico de tipos por expressar em seus diálogos os pensamentos político-ideológicos do autor. Nesse romance, o Saramago jovem (o autor tinha em torno de 30 anos, a idade de Abel, personagem-chave do livro pelos diálogos que trava com Silvestre) é muito mais explícito do que nos romances de sua maturidade acerca de política, filosofia e engajamento social, utilizando-se dos diálogos entre o jovem Abel e o sapateiro Silvestre para expressá-los.
"- Ouça, Abel! Quando ouvir falar no homem, lembre-se dos homens. O Homem, com H grande, como às vezes leio nos jornais, é uma mentira, uma mentira que serve de capa a todas as vilanias. Toda a gente quer salvar o Homem, ninguém quer saber dos homens.
Abel encolheu os ombros, num gesto de desalento. Reconhecia a verdade das últimas palavras de Silvestre, ele próprio já o pensara muitas vezes, mas não tinha aquela fé. Perguntou:
- E que podemos nós fazer? Eu? O senhor?
- Vivemos entre os homens. Ajudemos os homens.
- E o que faz o senhor para isso?
- Conserto-lhes os sapatos, já que nada mais posso fazer agora. O Abel é novo, é inteligente, tem uma cabeça sobre os ombros... Abra os olhos e veja, e se depois disto ainda não tiver compreendido, feche-se em casa e não saia, até que o mundo lhe desabe em cima!"
Muitos dirão e escreverão que esse parece um diálogo entre o jovem Saramago e o velho Saramago, que talvez o autor tenha dado algumas pinceladas no original dos anos 50 antes de falecer. Mas tudo será especulação, e evitemos a especulação...
Vale ressaltar é que esse uso da ficção para a veiculação de discussões político-ideológicas é comum nos anos 50, época de grandes e inesquecíveis romances como O Tempo e o Vento (1959) e Cem Anos de Solidão (1962). Já no final do século XX, com o fim dos regimes totalitários e a mudança das discussões do eixo político para o econômico, a ficção volta a se preocupar mais com o sujeito e sua identidade. E é importante ressaltar que embora a história de Abel e Silvestre seja repleta de discussões políticas, e que essa história abra e feche o livro, ela é apenas uma das seis histórias de Claraboia, e as outras têm um aprofundamento psicológico e identitário dignos dos romances psicológicos mais modernos.
Entramos não apenas na casa dos casais e seus filhos, descobrimos seus pensamentos, suas intenções, seus medos, seus desejos, penetramos em cada um como jamais conseguiríamos penetrar em nós mesmos, com uma lucidez e praticidade que só alguém de fora poderia enxergar. Vemos sob a claraboia a mãe que perdeu a filha pequena e vive com um marido grosseiro e repulsivo; o casal que zela pela bela filha adolescente enquanto faz as contas para fechar o mês; a vizinha sedutora e seu amante; as quatro mulheres unidas pela música e por amores não realizados; o filho que quer unir os pais e os vê cada vez mais distantes, embora sob o mesmo teto. Desta história vale reproduzirmos um trecho:
"Henrique não compreendia. Amara pouco o pai, mas descobrira que podia amá-lo sem reservas; durante algum tempo receara a mãe, mas agora a mãe chorava e ele reconhecia que nunca deixara de a amar. Amava ambos e via que eles se afastavam cada vez mais um do outro. Por que não falavam? Por que se olhavam, às vezes, como se não se conhecessem ou como se se conhecessem demais?"
Poder-se-ia acusar a abordagem, e não seria de todo injusto, de certo machismo. É evidente, aqui, a influência do narrador homem revelando alguns fetiches, reproduzindo alguns valores, talvez próprios dos anos 50, mas talvez próprios de um pensamento sexista. De qualquer forma, poderíamos dizer que esse narrador-observador é mais uma das personagens vivendo sob a claraboia, e seus valores são mais reflexo do que ele vê do que criações suas. Nesse aspecto, a propósito, a obra pode ser lida em linha com Pequenas Memórias, livro de memórias de Saramago publicado em 2006 que revela a infância pobre do autor, sem dinheiro para livros ou jornais. E muitos dirão e escreverão, também, que o cenário diz muito sobre o autor, que isso é natural nos primeiros romances de um escritor, que a obra vale mais pelo aspecto histórico e biográfico que literário ou ideológico. Mas tudo será especulação. E evitemos a especulação...
Marcelo Spalding
(Digest.Cultural)
Marcelo Spalding
Poucos ofícios imortalizam tanto um homem quanto o de escritor. Um bom livro sobrevive ao seu autor nas prateleiras das livrarias, nas estantes das casas, no orgulho da família. E não raro novos textos seus são publicados mesmo depois de sua morte.
Com José Saramago, o Nobel da língua portuguesa, o mais polêmico, conhecido e reconhecido escritor contemporâneo de nossa língua, não poderia ser diferente. Um ano e meio depois de sua morte, ocorrida em 2010, foi lançado o romance Claraboia (Companhia das Letras, 2006, 384 págs.), incrivelmente escrito em 1953 — se fosse publicado à época seria o segundo romance do autor.
Os motivos para a não-publicação nos anos 1950 são mais comerciais que literários: a obra foi enviada a uma editora lusitana que nunca respondeu ao autor, nem aceitando nem rejeitando o original (desrespeitosa prática comum até hoje, diga-se de passagem), até que nos anos 1980, com Saramago já famoso por sua literatura, a tal editora entrou em contato com o autor para publicar o livro. Aí foi a vez de Saramago rejeitar, por despeito ou por questões literárias, sabe-se lá. Deixou a decisão para que a família tomasse, depois de sua morte.
Felizmente para os leitores, a família optou por publicar o romance, cuja história narra episódios da vida de seis famílias do subúrbio lisboeta, histórias que se encontram e desencontram ao longo da narrativa. Enredos desse tipo hoje são comuns no cinema (Babel, Crash), mas acrescente-se a essa falta de unidade temática o fato de que em Claraboia o leitor começa a conhecer as famílias no meio de suas histórias e não saberá o final delas. Trata-se, portanto, de uma crônica de costumes, de um romance de representação social em que o cenário é mais importante que os acontecimentos.
Para quem gosta de literatura e de Saramago em especial, o romance é leitura obrigatória porque revela os primeiros passos do gênio, o que primeiro ele inventou na prosa até chegar à sua forma complexa e admirável de um Evangelho Segundo Jesus Cristo, por exemplo. Em Claraboia, os diálogos ainda são pontuados da maneira tradicional, mas já temos aqui o narrador intruso, onisciente e irônico, marca da ficção do autor. O começo, misto de descrição com narrativa, é arrebatador:
"Por entre os véus oscilantes que lhe povoavam o sono, Silvestre começou a ouvir rumores de loiça mexida e quase juraria que transluziam claridades pelas malhas largas dos véus. Ia aborrecer-se, mas percebeu, de repente, que estava acordando. Piscou os olhos repetidas vezes, bocejou e ficou imóvel, enquanto sentia o sono afastar-se devagar. Com um movimento rápido, sentou-se na cama. Espreguiçou-se, fazendo estalar rijamente as articulações dos braços. Por baixo da camisola, os músculos do dorso rolaram e estremeceram. Tinha o tronco forte, os braços grossos e duros, as omoplatas revestidas de músculos encordoados. Precisava desses músculos para o seu ofício de sapateiro. As mãos, tinha-as como petrificadas, a pele das palmas tão espessa que podia passar-se nela, sem sangrar, uma agulha enfiada."
Silvestre, aliás, será um personagem importante nesse mosaico de tipos por expressar em seus diálogos os pensamentos político-ideológicos do autor. Nesse romance, o Saramago jovem (o autor tinha em torno de 30 anos, a idade de Abel, personagem-chave do livro pelos diálogos que trava com Silvestre) é muito mais explícito do que nos romances de sua maturidade acerca de política, filosofia e engajamento social, utilizando-se dos diálogos entre o jovem Abel e o sapateiro Silvestre para expressá-los.
"- Ouça, Abel! Quando ouvir falar no homem, lembre-se dos homens. O Homem, com H grande, como às vezes leio nos jornais, é uma mentira, uma mentira que serve de capa a todas as vilanias. Toda a gente quer salvar o Homem, ninguém quer saber dos homens.
Abel encolheu os ombros, num gesto de desalento. Reconhecia a verdade das últimas palavras de Silvestre, ele próprio já o pensara muitas vezes, mas não tinha aquela fé. Perguntou:
- E que podemos nós fazer? Eu? O senhor?
- Vivemos entre os homens. Ajudemos os homens.
- E o que faz o senhor para isso?
- Conserto-lhes os sapatos, já que nada mais posso fazer agora. O Abel é novo, é inteligente, tem uma cabeça sobre os ombros... Abra os olhos e veja, e se depois disto ainda não tiver compreendido, feche-se em casa e não saia, até que o mundo lhe desabe em cima!"
Muitos dirão e escreverão que esse parece um diálogo entre o jovem Saramago e o velho Saramago, que talvez o autor tenha dado algumas pinceladas no original dos anos 50 antes de falecer. Mas tudo será especulação, e evitemos a especulação...
Vale ressaltar é que esse uso da ficção para a veiculação de discussões político-ideológicas é comum nos anos 50, época de grandes e inesquecíveis romances como O Tempo e o Vento (1959) e Cem Anos de Solidão (1962). Já no final do século XX, com o fim dos regimes totalitários e a mudança das discussões do eixo político para o econômico, a ficção volta a se preocupar mais com o sujeito e sua identidade. E é importante ressaltar que embora a história de Abel e Silvestre seja repleta de discussões políticas, e que essa história abra e feche o livro, ela é apenas uma das seis histórias de Claraboia, e as outras têm um aprofundamento psicológico e identitário dignos dos romances psicológicos mais modernos.
Entramos não apenas na casa dos casais e seus filhos, descobrimos seus pensamentos, suas intenções, seus medos, seus desejos, penetramos em cada um como jamais conseguiríamos penetrar em nós mesmos, com uma lucidez e praticidade que só alguém de fora poderia enxergar. Vemos sob a claraboia a mãe que perdeu a filha pequena e vive com um marido grosseiro e repulsivo; o casal que zela pela bela filha adolescente enquanto faz as contas para fechar o mês; a vizinha sedutora e seu amante; as quatro mulheres unidas pela música e por amores não realizados; o filho que quer unir os pais e os vê cada vez mais distantes, embora sob o mesmo teto. Desta história vale reproduzirmos um trecho:
"Henrique não compreendia. Amara pouco o pai, mas descobrira que podia amá-lo sem reservas; durante algum tempo receara a mãe, mas agora a mãe chorava e ele reconhecia que nunca deixara de a amar. Amava ambos e via que eles se afastavam cada vez mais um do outro. Por que não falavam? Por que se olhavam, às vezes, como se não se conhecessem ou como se se conhecessem demais?"
Poder-se-ia acusar a abordagem, e não seria de todo injusto, de certo machismo. É evidente, aqui, a influência do narrador homem revelando alguns fetiches, reproduzindo alguns valores, talvez próprios dos anos 50, mas talvez próprios de um pensamento sexista. De qualquer forma, poderíamos dizer que esse narrador-observador é mais uma das personagens vivendo sob a claraboia, e seus valores são mais reflexo do que ele vê do que criações suas. Nesse aspecto, a propósito, a obra pode ser lida em linha com Pequenas Memórias, livro de memórias de Saramago publicado em 2006 que revela a infância pobre do autor, sem dinheiro para livros ou jornais. E muitos dirão e escreverão, também, que o cenário diz muito sobre o autor, que isso é natural nos primeiros romances de um escritor, que a obra vale mais pelo aspecto histórico e biográfico que literário ou ideológico. Mas tudo será especulação. E evitemos a especulação...
Marcelo Spalding
(Digest.Cultural)
Ivette
Sabor de Mar (47)
E a Ivette? Onde estaria a Ivette? Maria Eduarda sabia que ela estava à sua frente, mas sabia que não era a líder. Havia outra corredoras, mais moças, atletas de verdade, que tinham vindo de outros estados para disputar a prova, como a Eliane Reinhart. A Ivette ia completar 40 anos, mas só dois dias depois da Maratona. Naquele sábado, ela competia ainda na faixa etária de 35 a 39 anos, a mesma de Maria Eduarda. A disputa amigável entre ambas era saber quem chegaria na frente, mas Maria Eduarda estava até disposta a deixá-la ganhar, como uma homenagem a quem a iniciara no esporte. Só não queria perder para a mulher do Fernando Azeredo, embora soubesse que ela ainda nem chegara aos 30 anos.
Aquele dia, 22 de novembro de 1980, foi um dos mais felizes da vida de Maria Eduarda. Ao dobrar de volta na Avenida Princesa Isabel, para entrar de novo na Avenida Atlântica, viu Rodrigo, Verinha, Aluízio e Elvira, bem na esquina, onde a direção da prova colocara uma fiscalização especial, para evitar que os espertinhos virassem à esquerda e rumassem diretamente até a chegada no Leme, sem ir ao fim do Leblon e retornar. Os quatro gritaram quando ela passou e pareciam orgulhosos, especialmente Rodrigo e Verinha. A noite já havia caído e Maria Eduarda ouviu quando Aluízio anunciou bem alto: “Ganhou aquele americano, o Greg Meyer”. Os homens de ponta já haviam terminado, a Eliane Reinhart devia vir já de volta, na altura do Posto Seis, mas Maria Eduarda tinha ainda 16 quilômetros pela frente. Não importava, nada importava, ela estava dentro de seu ritmo e chegou a pensar: “Se eu não estiver morta quando pegar a Avenida Atlântica de volta, posso até apertar um pouquinho minhas passadas nos últimos quatro quilômetros.
E, ao chegar ao fim do Leblon, sentiu que aquele dia seria mesmo muito especial. Estava cansada, pois já correra 34 quilômetros, mas não tão cansada quanto esperava. O importante é que passara, ali perto do Country Club, pela temida barreira dos 32 quilômetros. Paulinho Olivieri lhe dissera: “Se você ultrapassar os 32 quilômetros e não sentir que seu gás acabou, você vai completar a prova. Podes crer”. Paulinho era um pouco como o Frederico Hochstatter, mas pela metade. Misturava a segunda e a terceira pessoas.
Ao chegar perto do final do Leblon, Maria Eduarda viu Ivette, correndo na direção oposta. Estava uns cem metros à sua frente. Parecia mais cansada do que ela.
Nota do Editor: na primeira quinta-feira de cada mês, José Inácio Werneck publica um trecho de seu livro Sabor de Mar.
(Direto da Redação)
Literatura
O longo adeus à literatura
Marcelo Vinicius
Abordaremos um texto que saiu na Folha de São Paulo intitulado “O longo adeus à literatura”. Em seu texto, a professora *Leyla Perrone-Moisés demonstra como ao longo dos anos o fim da literatura tem sido exaustivamente anunciado.
literatura acabou. Pelo menos, é o que foi anunciado há mais de um século e tem sido repetido desde então, com uma insistência cansativa. Talvez o primeiro a anunciá-lo tenha sido Rimbaud. Em 1879, ele respondeu ao amigo Delahaye: "Não me interesso mais por isso." "Isso" era a poesia, a literatura.
Ao longo do século 20, grandes teóricos falaram do fim da literatura. Valéry declarou o fim do romance quando disse que não se podia mais escrever "A marquesa saiu às cinco horas". Sartre, em 1948, terminava seu "O Que É a Literatura?" com uma advertência: "Nada nos garante que a literatura seja imortal [...] O mundo pode muito bem passar sem a literatura. Mas pode passar ainda melhor sem o homem".
Maurice Blanchot mergulhou a fundo na questão e concluiu, em 1959: "A literatura vai em direção a ela mesma, em direção à sua essência, que é o desaparecimento". E Roland Barthes, em seu último curso, de 1979, lamentava: "Algo ronda a nossa história: a morte da literatura".
Os títulos de vários ensaios editados na última década falam por si: "Os Fins da Literatura" (B. Levinson, 2001); "O Último Escritor" e "Desencanto da Literatura" (R. Millet, 2005 e 2007); "O Adeus à Literatura. História de uma Desvalorização, do Século 18 ao 20" (W. Marx, 2005); "O Último Leitor" (R. Piglia, 2006); "O Silêncio dos Livros" (G. Steiner, 2006); "Literatura para Quê?" (A. Compagnon, 2007); "A Literatura em Perigo" (T. Todorov, 2007).
CRÍTICOS SE CALARAM
Quando se fala do fim da literatura, trata-se do fim de um tipo de literatura: aquela da modernidade. É evidente que algo mudou, e muito, na esfera literária. Os leitores talvez tenham mudado mais do que os escritores. As novas gerações não querem mais ler aquilo que os teóricos do século 20 chamavam de literatura. Por falta de critérios estáveis de avaliação, os críticos literários calaram-se, perderam espaço e prestígio. A disciplina chamada "literatura" desapareceu no ensino secundário, em que se tornou "comunicação e expressão"; na universidade, deu lugar a "estudos culturais".
A literatura se tornou coisa do passado. Mas como?, dirão os leitores. Nunca se publicou tanta ficção e tanta poesia quanto agora. Nunca houve tantas feiras de livros, tantos prêmios, tantos eventos literários. Nunca os escritores foram tão midiatizados, tão internacionalmente conhecidos e festejados. Fica claro, então, que, quando se fala do fim da literatura, não estamos falando da mesma coisa.
Ora, nenhum teórico jamais conseguiu definir exatamente o que é (ou não é) literatura. Até o século 18, literatura era o conjunto das obras escritas, em qualquer gênero. Foi somente a partir do romantismo que ela passou a ter o sentido que, em parte, tem ainda hoje: textos escritos numa linguagem particular, que interrogam e desvendam o homem e o mundo de maneira aprofundada, complexa, surpreendente. Atualmente, a imensa maioria dos livros mais lidos no mundo não corresponde a essa definição. Vejam-se as listas dos mais vendidos.
LITERATURA PÓSTUMA
O que aconteceu? A situação em que se encontra hoje a literatura não é a de uma ruptura, como a ocorrida entre o classicismo e o romantismo. Não se trata de uma simples oposição ao que havia antes. Boa parte da literatura atual vive da referência àquela que a precedeu, a da modernidade, que nela sobrevive na forma de citação, alusão, pastiche ou intertextualidade. Sua própria designação, literatura pós-moderna, a amarra à anterior. É uma literatura póstuma, uma literatura do adeus.
Um subgênero surgido nos anos 1980 e ainda próspero é o do romance que ficcionaliza a vida dos escritores da alta modernidade.
Para citar apenas alguns entre dezenas de romances desse tipo: Dostoiévski foi ficcionalizado por Leonid Tsípkin ("Verão em Baden-Baden", 1981) e por J. M. Coetzee ("O Mestre de Petersburgo", 1994); Fernando Pessoa se transformou em personagem de José Saramago ("O Ano da Morte de Ricardo Reis", 1984) e de Antonio Tabucchi ("Réquiem", 1992, "Os Últimos Três Dias de Fernando Pessoa", 1994); Rimbaud voltou à cena nas obras de Dominique Noguez ("Os Três Rimbaud", 1986), Pierre Michon ("Rimbaud, o Filho", 1991) e J.M.G. Le Clézio ("A Quarentena", 1995); Henry James é o herói de Colm Tóibin ("O Mestre", 2004) e de David Lodge ("Autor, Autor", 2004); depois de ser personagem de Fedorovski e de Ken Kalfus, Tolstói ganhou sua última personificação na obra de Jay Parini ("A Última Estação: Os Momentos Finais de Tolstoi", 2010).
Essa lista contém romancistas internacionais de renome, alguns deles premiados com o Nobel, o que dá testemunho da importância do subgênero. Os fantasmas modernos continuam assombrando seus herdeiros. Metafórica e literalmente, pois nesses romances os espectros são numerosos.
METALITERATURA
Por falar em fantasmas, acaba de ser publicado mais um livro que pode entrar na categoria do "adeus à literatura": "Dublinesca", de Enrique Vila-Matas [trad. José Rubens Siqueira, Cosac Naify, 320 págs., R$ 59]. O escritor catalão já vem praticando há tempos um gênero misto de romance, diário e ensaio literário que tem sido chamado de metaliterário.
Em "Bartleby e Companhia" (2000), ele tratava de uma série de escritores atingidos pelo "mal de Bartleby", isto é, escritores que preferiram não escrever, que abandonaram a literatura ou não escreveram obra alguma. Em "O Mal de Montano" (2002), ele narrava as aventuras e desventuras de pessoas que confundem a vida com a literatura. Em "Doutor Pasavento" (2006), encontramos intelectuais cuja única aspiração é desaparecer.
"Dublinesca" prossegue na mesma via ultraliterária, com a diferença de que agora o herói da ficção não é um escritor, mas um editor aposentado que sofre ao mesmo tempo com seu envelhecimento pessoal e com o desaparecimento dos grandes escritores, dos editores de boa literatura e dos leitores à altura desses livros.
O tema central do romance é o "réquiem pela era de Gutenberg": a ausência de Deus, a obsolescência dos livros, a morte da literatura. Nada melhor para selar esse apocalipse do que uma viagem a Dublin, com amigos igualmente fanáticos por literatura, para comemorar o "Bloomsday" numa cerimônia realizada no cemitério descrito por Joyce em "Ulisses".
Vários espectros assombram a personagem: familiares, conhecidos e desconhecidos, escritores mortos ou virtuais. Joyce é, naturalmente, o principal; mas há também um jovem que surge e some na bruma --e que se parece com Beckett. Numa entrevista, o romancista explicou que se trata da passagem de uma época de epifania, representada por Joyce, a uma época de afonia, encarnada pelo outro, isto é, "a decadência de certa forma de entender a literatura".
HUMOR REFINADO
Com essa temática tão especializada e obsessiva, o surpreendente é que Vila-Matas tem tido excelente recepção, tanto da parte da crítica especializada quanto da de seus numerosos leitores. Isso acontece porque mesmo aqueles que não têm um repertório de leituras tão vasto quanto o do autor nem perdem o sono pensando no fim da literatura são seduzidos por suas extravagantes personagens, por uma trama cheia de suspenses, por um humor refinado que se sobrepõe, com delicadeza, a experiências dramáticas.
Aparentemente apocalíptico, Vila-Matas não é, entretanto, pessimista. No fim de "Dublinesca", salva-se o deprimido editor e reaparece o autor. A um entrevistador do "El País" que lhe perguntava como explicaria seu romance a um leigo, ele respondeu: "Eu lhe diria que trata de alguém muito acabado, que deseja celebrar o funeral do mundo e descobre que isso, paradoxalmente, é o que permite ter um futuro na vida". O velho Freud estaria de acordo.
O trabalho de luto ainda está em curso. Em seu recente romance, "Se Um de Nós Dois Morrer" [Alfaguara, 124 págs., R$ 36,90], Paulo Roberto Pires cria uma personagem afetada pela "síndrome de Vila-Matas". Naturalmente, a história inclui cemitérios e defuntos, agora reduzidos a cinzas: "Em poucas gerações não haverá nada, nadinha a cultuar" (p. 50).
O adeus à literatura não é, evidentemente, o único tema dos escritores atuais. Mas, por enquanto, tem dado a ela surpreendente sobrevida.
*A professora emérita da Universidade de São Paulo (USP) Leyla Perrone-Moisés é uma das mais destacadas críticas literárias do Brasil. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa Brasil-França, do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, tem foco de estudo na literatura brasileira e portuguesa e é especialista na obra do semiólogo francês Roland Barthes.
Por seus trabalhos, recebeu, em 2002, o Prêmio Alejandro José Cabassa, concedido pela União Brasileira de Escritores; o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, na categoria ensaio, em 1993; e as comendas de Officier de l'Ordre des Palmes Académiques, em 1986, e de Chevalier de l'Ordre des Palmes Académiques, em 1970, ambas concedidas pelo Ministério da Educação da França.Por seus trabalhos, recebeu, em 2002, o Prêmio Alejandro José Cabassa, concedido pela União Brasileira de Escritores; o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, na categoria ensaio, em 1993; e as comendas de Officier de l'Ordre des Palmes Académiques, em 1986, e de Chevalier de l'Ordre des Palmes Académiques, em 1970, ambas concedidas pelo Ministério da Educação da França.
marcelovinicius
Artigo da autoria de Marcelo Vinicius.
Escritor e agitador cultural. Estudante de Psicologia. Faz parte do projeto de pesquisa e extensão sobre cinema e produção de subjetividade (Sala de Cinema) e do projeto de pesquisa em Psicologia Social na Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS..
Saiba como fazer parte da obvious.
Marcelo Vinicius
Abordaremos um texto que saiu na Folha de São Paulo intitulado “O longo adeus à literatura”. Em seu texto, a professora *Leyla Perrone-Moisés demonstra como ao longo dos anos o fim da literatura tem sido exaustivamente anunciado.
literatura acabou. Pelo menos, é o que foi anunciado há mais de um século e tem sido repetido desde então, com uma insistência cansativa. Talvez o primeiro a anunciá-lo tenha sido Rimbaud. Em 1879, ele respondeu ao amigo Delahaye: "Não me interesso mais por isso." "Isso" era a poesia, a literatura.
Ao longo do século 20, grandes teóricos falaram do fim da literatura. Valéry declarou o fim do romance quando disse que não se podia mais escrever "A marquesa saiu às cinco horas". Sartre, em 1948, terminava seu "O Que É a Literatura?" com uma advertência: "Nada nos garante que a literatura seja imortal [...] O mundo pode muito bem passar sem a literatura. Mas pode passar ainda melhor sem o homem".
Maurice Blanchot mergulhou a fundo na questão e concluiu, em 1959: "A literatura vai em direção a ela mesma, em direção à sua essência, que é o desaparecimento". E Roland Barthes, em seu último curso, de 1979, lamentava: "Algo ronda a nossa história: a morte da literatura".
Os títulos de vários ensaios editados na última década falam por si: "Os Fins da Literatura" (B. Levinson, 2001); "O Último Escritor" e "Desencanto da Literatura" (R. Millet, 2005 e 2007); "O Adeus à Literatura. História de uma Desvalorização, do Século 18 ao 20" (W. Marx, 2005); "O Último Leitor" (R. Piglia, 2006); "O Silêncio dos Livros" (G. Steiner, 2006); "Literatura para Quê?" (A. Compagnon, 2007); "A Literatura em Perigo" (T. Todorov, 2007).
CRÍTICOS SE CALARAM
Quando se fala do fim da literatura, trata-se do fim de um tipo de literatura: aquela da modernidade. É evidente que algo mudou, e muito, na esfera literária. Os leitores talvez tenham mudado mais do que os escritores. As novas gerações não querem mais ler aquilo que os teóricos do século 20 chamavam de literatura. Por falta de critérios estáveis de avaliação, os críticos literários calaram-se, perderam espaço e prestígio. A disciplina chamada "literatura" desapareceu no ensino secundário, em que se tornou "comunicação e expressão"; na universidade, deu lugar a "estudos culturais".
A literatura se tornou coisa do passado. Mas como?, dirão os leitores. Nunca se publicou tanta ficção e tanta poesia quanto agora. Nunca houve tantas feiras de livros, tantos prêmios, tantos eventos literários. Nunca os escritores foram tão midiatizados, tão internacionalmente conhecidos e festejados. Fica claro, então, que, quando se fala do fim da literatura, não estamos falando da mesma coisa.
Ora, nenhum teórico jamais conseguiu definir exatamente o que é (ou não é) literatura. Até o século 18, literatura era o conjunto das obras escritas, em qualquer gênero. Foi somente a partir do romantismo que ela passou a ter o sentido que, em parte, tem ainda hoje: textos escritos numa linguagem particular, que interrogam e desvendam o homem e o mundo de maneira aprofundada, complexa, surpreendente. Atualmente, a imensa maioria dos livros mais lidos no mundo não corresponde a essa definição. Vejam-se as listas dos mais vendidos.
LITERATURA PÓSTUMA
O que aconteceu? A situação em que se encontra hoje a literatura não é a de uma ruptura, como a ocorrida entre o classicismo e o romantismo. Não se trata de uma simples oposição ao que havia antes. Boa parte da literatura atual vive da referência àquela que a precedeu, a da modernidade, que nela sobrevive na forma de citação, alusão, pastiche ou intertextualidade. Sua própria designação, literatura pós-moderna, a amarra à anterior. É uma literatura póstuma, uma literatura do adeus.
Um subgênero surgido nos anos 1980 e ainda próspero é o do romance que ficcionaliza a vida dos escritores da alta modernidade.
Para citar apenas alguns entre dezenas de romances desse tipo: Dostoiévski foi ficcionalizado por Leonid Tsípkin ("Verão em Baden-Baden", 1981) e por J. M. Coetzee ("O Mestre de Petersburgo", 1994); Fernando Pessoa se transformou em personagem de José Saramago ("O Ano da Morte de Ricardo Reis", 1984) e de Antonio Tabucchi ("Réquiem", 1992, "Os Últimos Três Dias de Fernando Pessoa", 1994); Rimbaud voltou à cena nas obras de Dominique Noguez ("Os Três Rimbaud", 1986), Pierre Michon ("Rimbaud, o Filho", 1991) e J.M.G. Le Clézio ("A Quarentena", 1995); Henry James é o herói de Colm Tóibin ("O Mestre", 2004) e de David Lodge ("Autor, Autor", 2004); depois de ser personagem de Fedorovski e de Ken Kalfus, Tolstói ganhou sua última personificação na obra de Jay Parini ("A Última Estação: Os Momentos Finais de Tolstoi", 2010).
Essa lista contém romancistas internacionais de renome, alguns deles premiados com o Nobel, o que dá testemunho da importância do subgênero. Os fantasmas modernos continuam assombrando seus herdeiros. Metafórica e literalmente, pois nesses romances os espectros são numerosos.
METALITERATURA
Por falar em fantasmas, acaba de ser publicado mais um livro que pode entrar na categoria do "adeus à literatura": "Dublinesca", de Enrique Vila-Matas [trad. José Rubens Siqueira, Cosac Naify, 320 págs., R$ 59]. O escritor catalão já vem praticando há tempos um gênero misto de romance, diário e ensaio literário que tem sido chamado de metaliterário.
Em "Bartleby e Companhia" (2000), ele tratava de uma série de escritores atingidos pelo "mal de Bartleby", isto é, escritores que preferiram não escrever, que abandonaram a literatura ou não escreveram obra alguma. Em "O Mal de Montano" (2002), ele narrava as aventuras e desventuras de pessoas que confundem a vida com a literatura. Em "Doutor Pasavento" (2006), encontramos intelectuais cuja única aspiração é desaparecer.
"Dublinesca" prossegue na mesma via ultraliterária, com a diferença de que agora o herói da ficção não é um escritor, mas um editor aposentado que sofre ao mesmo tempo com seu envelhecimento pessoal e com o desaparecimento dos grandes escritores, dos editores de boa literatura e dos leitores à altura desses livros.
O tema central do romance é o "réquiem pela era de Gutenberg": a ausência de Deus, a obsolescência dos livros, a morte da literatura. Nada melhor para selar esse apocalipse do que uma viagem a Dublin, com amigos igualmente fanáticos por literatura, para comemorar o "Bloomsday" numa cerimônia realizada no cemitério descrito por Joyce em "Ulisses".
Vários espectros assombram a personagem: familiares, conhecidos e desconhecidos, escritores mortos ou virtuais. Joyce é, naturalmente, o principal; mas há também um jovem que surge e some na bruma --e que se parece com Beckett. Numa entrevista, o romancista explicou que se trata da passagem de uma época de epifania, representada por Joyce, a uma época de afonia, encarnada pelo outro, isto é, "a decadência de certa forma de entender a literatura".
HUMOR REFINADO
Com essa temática tão especializada e obsessiva, o surpreendente é que Vila-Matas tem tido excelente recepção, tanto da parte da crítica especializada quanto da de seus numerosos leitores. Isso acontece porque mesmo aqueles que não têm um repertório de leituras tão vasto quanto o do autor nem perdem o sono pensando no fim da literatura são seduzidos por suas extravagantes personagens, por uma trama cheia de suspenses, por um humor refinado que se sobrepõe, com delicadeza, a experiências dramáticas.
Aparentemente apocalíptico, Vila-Matas não é, entretanto, pessimista. No fim de "Dublinesca", salva-se o deprimido editor e reaparece o autor. A um entrevistador do "El País" que lhe perguntava como explicaria seu romance a um leigo, ele respondeu: "Eu lhe diria que trata de alguém muito acabado, que deseja celebrar o funeral do mundo e descobre que isso, paradoxalmente, é o que permite ter um futuro na vida". O velho Freud estaria de acordo.
O trabalho de luto ainda está em curso. Em seu recente romance, "Se Um de Nós Dois Morrer" [Alfaguara, 124 págs., R$ 36,90], Paulo Roberto Pires cria uma personagem afetada pela "síndrome de Vila-Matas". Naturalmente, a história inclui cemitérios e defuntos, agora reduzidos a cinzas: "Em poucas gerações não haverá nada, nadinha a cultuar" (p. 50).
O adeus à literatura não é, evidentemente, o único tema dos escritores atuais. Mas, por enquanto, tem dado a ela surpreendente sobrevida.
*A professora emérita da Universidade de São Paulo (USP) Leyla Perrone-Moisés é uma das mais destacadas críticas literárias do Brasil. Coordenadora do Núcleo de Pesquisa Brasil-França, do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, tem foco de estudo na literatura brasileira e portuguesa e é especialista na obra do semiólogo francês Roland Barthes.
Por seus trabalhos, recebeu, em 2002, o Prêmio Alejandro José Cabassa, concedido pela União Brasileira de Escritores; o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, na categoria ensaio, em 1993; e as comendas de Officier de l'Ordre des Palmes Académiques, em 1986, e de Chevalier de l'Ordre des Palmes Académiques, em 1970, ambas concedidas pelo Ministério da Educação da França.Por seus trabalhos, recebeu, em 2002, o Prêmio Alejandro José Cabassa, concedido pela União Brasileira de Escritores; o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro, na categoria ensaio, em 1993; e as comendas de Officier de l'Ordre des Palmes Académiques, em 1986, e de Chevalier de l'Ordre des Palmes Académiques, em 1970, ambas concedidas pelo Ministério da Educação da França.
marcelovinicius
Artigo da autoria de Marcelo Vinicius.
Escritor e agitador cultural. Estudante de Psicologia. Faz parte do projeto de pesquisa e extensão sobre cinema e produção de subjetividade (Sala de Cinema) e do projeto de pesquisa em Psicologia Social na Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS..
Saiba como fazer parte da obvious.
domingo, 10 de fevereiro de 2013
Millennium
Millennium – (Nem) toda unanimidade é burra
por Mariana Carolo
Conheci a trilogia Millennium no ano de 2009, quando trabalhei em uma livraria. Na época, por a série estar fazendo um sucesso comercial avassalador, torci o nariz para ela. Entretanto, tempos depois, me despi dos preconceitos e resolvi dar uma chance para a obra. Tive então uma grata surpresa e uma experiência literária instigante.
A trilogia Millennium, editada no Brasil entre 2008 e 2009 pela Companhia das Letras, é composta pelas seguintes partes: “Os homens que não amavam as mulheres”, “A menina que brincava com fogo” e “A rainha do castelo de ar”. O autor da tríade é o sueco Stieg Larsson, que, por morrer de ataque cardíaco em 2004, não presenciou o retumbante sucesso de seus livros.
É interessante mencionar a teoria de que o infarto que fulminara Larsson, na verdade, teria sido induzido. Esta hipótese advém do fato de que o sueco, em vida, foi um respeitado jornalista, que denunciara várias organizações neofascistas e xenófobas. E que, por manter tal postura, era constantemente ameaçado de morte. Contudo, nada foi provado até agora.
Também não se sabe se é realidade, ou apenas boato, os rascunhos de continuações que estariam armazenados no computador do escritor. Muito se fala e pouco se tem, pois ainda estão ocorrendo disputas judiciais pelo legado do morto e, atualmente, novas publicações só complicariam ainda mais os trâmites legais. Mas vamos ao que interessa... O que torna Millennium maior que um simples best-seller policial?
Quando acabamos de ler a série, a sensação que fica é a de que o autor sempre soube o que estava fazendo. Isto porque a trilogia é um engenhoso quebra-cabeça. A cada página que avançamos, personagens aparentemente irrelevantes mostram a sua importância e fatos que acreditávamos banais revelam-se peças indispensáveis na conclusão da trama... Só o que fica claro desde o começo é que os protagonistas de Millennium são Lisbeth Salander e Mikael Blomkvist.
Lisbeth Salander é descrita como uma hacker, bissexual, superdotada e com problemas de interação social. É levantada a possibilidade de que, talvez, ela possua a Síndrome de Asperger. Porém, o tema não é mais bem desenvolvido. Fisicamente, ela se assemelharia mais com um adolescente punk do que com uma mulher em torno dos vinte e poucos anos. E a sua vida teria mais mistérios e problemas do que piercings e tatuagens em seu corpo...
r do filme estadunidense e a das adaptações suecas, respectivamente
Para sobreviver, Lisbeth é uma competente investigadora de uma empresa de segurança, apesar de quase todos na firma acreditarem que ela é só “a garota retardada do café”. Por fim, outra de suas características é a de “odiar homens que odeiam mulheres”, o que fez da personagem uma espécie de heroína feminista. É digno de nota que, ao longo de sua história, Stieg Larsson procurou denunciar os crimes cometidos contra mulheres na Suécia, como o tráfico humano de fim sexual. O que desconstrói o mito de que tal local é um “paraíso” e nos mostra que, infelizmente, estamos no século XXI e ainda não nos livramos da chaga da misoginia.
Já Mikael Blomkvist é uma espécie de alter-ego do autor: jornalista na casa dos cinquenta anos, sócio de uma revista chamada Millennium. Um homem desleixado com a aparência, mas, mesmo assim, sedutor e mulherengo. O “super Blomkvist” (apelido odiado pelo mesmo) se tornaria atraente por ser inteligente, íntegro e obstinado em denunciar o que estaria errado ao seu redor. Doa a quem doer... Inclusive a ele mesmo.
Michael Blomkvist da trilogia cinematográfica sueca e o do americano “Os Homens que não amavam as mulheres”
Tanto que, quando o conhecemos, nosso herói está arruinado financeiramente e com pouca credibilidade no meio jornalístico. A causa da sua decadência é a condenação que recebera por “difamar” o poderoso empresário Wernerstrom. Logo, as circunstâncias o levam a aceitar empreender uma investigação sobre o desaparecimento da sobrinha do milionário Henrik Vanger, episódio ocorrido na década de 1960.
Este inquérito é a premissa de “Os Homens que não amavam as mulheres”. Nele, Blomkvist e Salander se conhecerão e serão apresentados ao público. O laço construído aqui é o que os unirá para enfrentarem os eventos futuros. Uma ligação que se concretiza muito pela hacker, tão desiludida com o ser humano, enxergar no jornalista qualidades que acreditava não existirem mais, como bondade e honestidade.
Como um fica sabendo da existência do outro? Primeiramente, Lisbeth é contratada para revolver a vida de Mikael. A finalidade desta sua pesquisa era a de Vanger assegurar-se que o “super Blomkvist” era realmente confiável para o serviço que iria lhe propor. Depois, ela é chamada para auxiliá-lo no caso Harriet Vanger. Sim, “Os Homens...” é repleto de clichês, como o do assassino que tem na bíblia uma inspiração para os seus crimes. No entanto, aqui, eles funcionam e o final é inesperado.
Os momentos mais relevantes de Millennium sucedem em “A menina que brincava com fogo” e “A rainha do castelo de ar”. Não é possível falar muito, já que as surpresas fazem parte do prazer que a saga proporciona, mas pode-se dizer que, nestes volumes, Mikael e Lisbeth se unem para enfrentar o Estado sueco. Este que não seria benevolente, igualitário e preocupado com os seus cidadãos. Mas sim composto por indivíduos que abusam dos seus e que cometem os piores crimes com a abstrata justificativa de que fazem o que fazem “em prol do bem geral”.
As armas dos dois serão a resistência e a tenacidade de Blomkvist e o domínio do fluído território cibernético que Lisbeth possui. No espaço virtual, ela não seria só uma menina, um alvo. Na terra dos bytes, ela seria uma vespa de ferroada letal. Para concluirmos, é possível que talvez, daqui a cem anos, Millennium não seja um grande clássico... O que não impede que, atualmente, a sua leitura seja uma experiência extremamente prazerosa. Com ela, o tempo passa mais rápido que um clique.
marianacarolo
Artigo da autoria de Mariana Carolo.
a dona de mil galáxias.
Saiba como fazer parte da obvious.
por Mariana Carolo
Conheci a trilogia Millennium no ano de 2009, quando trabalhei em uma livraria. Na época, por a série estar fazendo um sucesso comercial avassalador, torci o nariz para ela. Entretanto, tempos depois, me despi dos preconceitos e resolvi dar uma chance para a obra. Tive então uma grata surpresa e uma experiência literária instigante.
A trilogia Millennium, editada no Brasil entre 2008 e 2009 pela Companhia das Letras, é composta pelas seguintes partes: “Os homens que não amavam as mulheres”, “A menina que brincava com fogo” e “A rainha do castelo de ar”. O autor da tríade é o sueco Stieg Larsson, que, por morrer de ataque cardíaco em 2004, não presenciou o retumbante sucesso de seus livros.
É interessante mencionar a teoria de que o infarto que fulminara Larsson, na verdade, teria sido induzido. Esta hipótese advém do fato de que o sueco, em vida, foi um respeitado jornalista, que denunciara várias organizações neofascistas e xenófobas. E que, por manter tal postura, era constantemente ameaçado de morte. Contudo, nada foi provado até agora.
Também não se sabe se é realidade, ou apenas boato, os rascunhos de continuações que estariam armazenados no computador do escritor. Muito se fala e pouco se tem, pois ainda estão ocorrendo disputas judiciais pelo legado do morto e, atualmente, novas publicações só complicariam ainda mais os trâmites legais. Mas vamos ao que interessa... O que torna Millennium maior que um simples best-seller policial?
Quando acabamos de ler a série, a sensação que fica é a de que o autor sempre soube o que estava fazendo. Isto porque a trilogia é um engenhoso quebra-cabeça. A cada página que avançamos, personagens aparentemente irrelevantes mostram a sua importância e fatos que acreditávamos banais revelam-se peças indispensáveis na conclusão da trama... Só o que fica claro desde o começo é que os protagonistas de Millennium são Lisbeth Salander e Mikael Blomkvist.
Lisbeth Salander é descrita como uma hacker, bissexual, superdotada e com problemas de interação social. É levantada a possibilidade de que, talvez, ela possua a Síndrome de Asperger. Porém, o tema não é mais bem desenvolvido. Fisicamente, ela se assemelharia mais com um adolescente punk do que com uma mulher em torno dos vinte e poucos anos. E a sua vida teria mais mistérios e problemas do que piercings e tatuagens em seu corpo...
r do filme estadunidense e a das adaptações suecas, respectivamente
Para sobreviver, Lisbeth é uma competente investigadora de uma empresa de segurança, apesar de quase todos na firma acreditarem que ela é só “a garota retardada do café”. Por fim, outra de suas características é a de “odiar homens que odeiam mulheres”, o que fez da personagem uma espécie de heroína feminista. É digno de nota que, ao longo de sua história, Stieg Larsson procurou denunciar os crimes cometidos contra mulheres na Suécia, como o tráfico humano de fim sexual. O que desconstrói o mito de que tal local é um “paraíso” e nos mostra que, infelizmente, estamos no século XXI e ainda não nos livramos da chaga da misoginia.
Já Mikael Blomkvist é uma espécie de alter-ego do autor: jornalista na casa dos cinquenta anos, sócio de uma revista chamada Millennium. Um homem desleixado com a aparência, mas, mesmo assim, sedutor e mulherengo. O “super Blomkvist” (apelido odiado pelo mesmo) se tornaria atraente por ser inteligente, íntegro e obstinado em denunciar o que estaria errado ao seu redor. Doa a quem doer... Inclusive a ele mesmo.
Michael Blomkvist da trilogia cinematográfica sueca e o do americano “Os Homens que não amavam as mulheres”
Tanto que, quando o conhecemos, nosso herói está arruinado financeiramente e com pouca credibilidade no meio jornalístico. A causa da sua decadência é a condenação que recebera por “difamar” o poderoso empresário Wernerstrom. Logo, as circunstâncias o levam a aceitar empreender uma investigação sobre o desaparecimento da sobrinha do milionário Henrik Vanger, episódio ocorrido na década de 1960.
Este inquérito é a premissa de “Os Homens que não amavam as mulheres”. Nele, Blomkvist e Salander se conhecerão e serão apresentados ao público. O laço construído aqui é o que os unirá para enfrentarem os eventos futuros. Uma ligação que se concretiza muito pela hacker, tão desiludida com o ser humano, enxergar no jornalista qualidades que acreditava não existirem mais, como bondade e honestidade.
Como um fica sabendo da existência do outro? Primeiramente, Lisbeth é contratada para revolver a vida de Mikael. A finalidade desta sua pesquisa era a de Vanger assegurar-se que o “super Blomkvist” era realmente confiável para o serviço que iria lhe propor. Depois, ela é chamada para auxiliá-lo no caso Harriet Vanger. Sim, “Os Homens...” é repleto de clichês, como o do assassino que tem na bíblia uma inspiração para os seus crimes. No entanto, aqui, eles funcionam e o final é inesperado.
Os momentos mais relevantes de Millennium sucedem em “A menina que brincava com fogo” e “A rainha do castelo de ar”. Não é possível falar muito, já que as surpresas fazem parte do prazer que a saga proporciona, mas pode-se dizer que, nestes volumes, Mikael e Lisbeth se unem para enfrentar o Estado sueco. Este que não seria benevolente, igualitário e preocupado com os seus cidadãos. Mas sim composto por indivíduos que abusam dos seus e que cometem os piores crimes com a abstrata justificativa de que fazem o que fazem “em prol do bem geral”.
As armas dos dois serão a resistência e a tenacidade de Blomkvist e o domínio do fluído território cibernético que Lisbeth possui. No espaço virtual, ela não seria só uma menina, um alvo. Na terra dos bytes, ela seria uma vespa de ferroada letal. Para concluirmos, é possível que talvez, daqui a cem anos, Millennium não seja um grande clássico... O que não impede que, atualmente, a sua leitura seja uma experiência extremamente prazerosa. Com ela, o tempo passa mais rápido que um clique.
marianacarolo
Artigo da autoria de Mariana Carolo.
a dona de mil galáxias.
Saiba como fazer parte da obvious.
Histórias
Um Conto Chinês, um filme de Sebastián Borensztein.
em cinema por Madlene Nunes Cardoso
O filme "Um conto chinês" é um filme argentino do diretor Sebastián Borensztein, ele trata sobre uma grande relação de amizade que surge entre Jun (um chinês) e Roberto (um argentino)a partir de um fato absurdo e inesperado: uma vaca que caiu do céu.
Como uma vaca que caiu do céu poderia mudar o rumo da vida de duas pessoas?
Esta é uma frase que pode soar com um ar estranho ou de certa forma cômico, porém é uma história real que foi adaptada para o cinema, um filme argentino de 2011 sob direção de Sebastián Borensztein. O filme “Um conto chinês” trata da história de um argentino e um chinês que se uniram por uma vaca que caiu do céu, eles que estabeleceram uma grande amizade e um vínculo muito forte sem um entender sequer uma palavra do que o outro dizia... Uma história comovente e forte onde a comunicação se faz por gestos e olhares profundos.
Roberto é um homem solitário e arrogante que possui uma loja de ferramentas em Buenos Aires, ele é acostumado com sua rotina extremamente meticulosa (como dormir exatamente às 23hrs todos os dias), um homem totalmente misantropo que trata todo mundo quase sempre mau, somente segura "sua boca" devido precisar de clientes para a sua loja. Roberto possui uma admiradora nada secreta, ela é Mari, cunhada de um amigo seu que é perdidamente apaixonada por ele desde o primeiro momento que o viu na casa de sua irmã... Ela em vão faz várias tentativas de aproximar-se de Roberto, porém sem êxito. Mari é um ponto fundamental para o rumo desta história também, pois em muito ela ajudou Roberto a avaliar seus atos e pensamentos sobre os outros e sobre si mesmo.
Jun é um chinês que vai para a Argentina atrás de seu tio, o Sr. Quian, após um triste fato que ocorreu com ele: a morte de forma absurda de sua esposa após uma vaca cair do céu e lhe atingir violentamente enquanto eles passeavam em um barquinho no lago... Jun, com o objetivo de esquecer esta situação vai para a argentina sem saber uma palavra em espanhol, ele que não tem sequer nenhum parente além desse seu tio.
As vidas de Jun e Roberto se cruzam quando Jun é atirado de um táxi após ser assaltado pelo motorista já em Buenos Aires. Roberto, por mais ranzinza que seja, se sentiu na necessidade de ajudar este pobre e infeliz chinês desolado... Chegando ao ponto de levá-lo para sua casa e hospedá-lo, a princípio, somente por esta noite.
Creio eu que um dos trechos mais cômicos deste filme é quando após o protagonista levar o chinês no consulado ele se vê em apuros, pois o consulado irá tentar localizar o tio dele, no entanto não disponibilizará alojamento... o que resta? Resta a Roberto hospedar o chinês por mais tempo. Não é de se surpreender que ele não gostou nada da ideia e literalmente foge do prédio... Mas Jun vai atrás dele, e, ao chegar na porta ele vê somente o carro se afastando e fica lá...triste, triste...Mas Roberto engole sua estupidez e volta para pegar Jun, indo contra sua adorável e inseparável misantropia.
“NÃO ESTOU ACOSTUMADO A TER COMPANHIA!"(Roberto)
Uma das cenas mais bonitas é totalmente simbólica... No primeiro dia em que o chinês esteve na casa de Roberto ele o deixava trancado no quarto de hóspede por um receio natural humano de ele não ser de confiança, porém no outro dia, após ele o mandar para o quarto, Jun entra, Roberto fecha a porta, toca na chave...Reflete, mas não o tranca. Isso representa uma quebra no paradigma dos princípios do personagem que já começa a se sensibilizar e a se envolver com a triste história do chinês perdido na argentina e a acreditar que ele é alguém de confiança.
De tão incomodado com o fato desse hóspede inesperado, Roberto não sabe o que fazer para livrar-se dele, ele começa a entrar em algumas crises devido ter perdido um pouco de sua privacidade, ele estabelece que Jun deverá passar somente 7 dias na sua casa, e após isso, deve ir embora... Os dias vão passando e eles não conseguem resultados positivos na busca pelo tio de Jun e cada vez mais Roberto não sabe o que fazer para livrar-se desse grande incômodo.
Jun é um ótimo rapaz que tenta a todo custo agradar Roberto, sendo trabalhador a respeitando seu espaço, realizando toda e qualquer tarefa que lhe for pedida. Ele se sente muito grato pelo fato do velho ranzinza estar lhe ajudando dia após dia. Vale lembrar que Roberto possui um certo grau de TOC (transtorno obsessivo compulsivo), isto fica evidente na forma meticulosa de como ele sempre toma se café da manhã, a forma em que tira o miolo do pão ou o fato dele esperar exatamente vidrado no relógio chegar ás 23hrs em ponto para que assim ele apague a luz e vá dormir.
Algumas frases de Roberto:
“ADOREI O TELEFONE TOCAR E UM CHINÊS DIZER QUE VIRÁ BUSCÁ-LO!”
“ISTO É DOCE-DE-LEITE, VOCÊS SE ESQUECERAM DE INVENTAR, POR ISSO NÓS INVENTAMOS!”
“OLÁ, BOM DIA! SEI QUE VOCÊS TÊM MAIS DE 5 MIL ANOS DE HISTÓRIA E UMA PACIÊNCIA INFINITA, MAS PRECISO IR ABRIR A MINHA LOJA...”
Este é o diálogo entre Roberto é um chinês quando ele vai no consulado procurar ajuda para solucionar o caso de Jun:
"ROBERTO: PODERIAM FAZER A GENTILEZA DE ME ATENDER AGORA? PRECISO FALAR COM O SR. PIN GA HION!
CHINÊS: ELE ESTÁ NA CHINA E SÓ VOLTA EM 2 MESES!
ROBERTO: PODERIA ME ATENDER QUEM ESTÁ NO LUGAR DELE?
CHINÊS: NÃO HÁ NINGUÉM PARA ATENDER, NÃO TEMOS GENTE!
ROBERTO: 1 BILHÃO E 300 MILHÕES DE CHINESES NO MUNDO E VOCÊS NÃO TÊM GENTE?? MAS QUE CARA DE PAU!!”
Em uma de suas crises de raiva, Roberto expulsa Jun de sua casa após ele quebrar por descuido toda a sua coleção de brinquedos de vidro que ficavam em uma estante. Roberto pega Jun, coloca ele em um táxi e pede para o motorista largar ele na rua central do bairro chinês de Buenos Aires. Após este fato Mari aparece e com poucas, porém profundas palavras, faz Roberto refletir sobre esse seu ato, sendo que ele fala a Mari que Jun foi embora por conta própria...
A partir deste ponto do filme é que a história toma um dos rumos mais fortes, pois é quando Roberto vai procurar o chinês, uma situação violenta acontece com Roberto e Jun aparece na hora para lhe ajudar. Roberto se mostra muito grato com Jun, lhe pede desculpas (do seu modo) e muda sua forma de agir e pensar. Agora Roberto vai descobrir o que realmente houve com Jun para que ele deixasse sua pátria e viesse parar em Buenos Aires. Coincidentemente ele descobre que conhece a história de Jun, pois ele coleciona notícias absurdas que saem em jornais e o caso da vaca que caiu do céu e matou uma moça era uma delas... Somente há um diálogo compreensível devido a ajuda do rapaz que entrega comida chinesa saber espanhol e chinês e assim, poder servir como um rápido tradutor para Roberto e Jun.
Não posso falar sobre o que há de mais profundo, emocionante e o desfecho do filme, apenas deixo aqui o sabor da história, creio que quem assistir a este filme não se decepcionará. Uma história linda onde palavras não foram fundamentais, apenas a relação de amizade, confiança e gratidão criadas a partir de um “fato absurdo”.
madlenecardoso
Artigo da autoria de Madlene Nunes Cardoso.
Trago em minhas mãos a poeira das constelações para contar o tempo contido na ampulheta... .
Saiba como fazer parte da obvious.
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