segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

Escritos

Jacques Gruman O verão de Wanderley e Jerry A rotina corria mansa, sem pressa. De vez em quando quebrada por puçás carregados de siris, escaldados vivos nos panelões de almoços remotos. Chegou com a grande novidade. Que nos preparássemos, aquele verão passaríamos na Ilha do Governador. O Menino não fazia a menor ideia de que lugar era aquele. Para quebrar o gelo, o Grande lhe disse que também iriam os primos e tios, que a farra na praia da Freguesia (que nome estranho, pensou) estava garantida. Deu uma olhada no Tesouro da Juventude, o Google dos anos 60, e descobriu que a ilha ficava perto de um aeroporto e que a ponte que a ligava ao Rio era novinha, final dos anos 40. Bem, a coisa parecia promissora para quem costumava levar a sério o ócio das grandes férias escolares. Ócio, entenda-se, era ficar encostado, sem ter o que fazer. Solidão. A casa, na rua de terra batida, não ficava longe da praia, mas o essencial é que estava a dois passos do apartamento onde ficavam primos e tios. Eram a parte bem-humorada da família, generosos com os livros que abriram as primeiras portas para o Menino. A prima Sônia fez mais do que isso. Percebendo a introspecção radical e angustiada do Menino, providenciou um singelo antídoto. Durante o carnaval, a televisão mostrava um daqueles bailes das antigas, Municipal, Glória, por aí. Movimentos frenéticos, erotismo no ar (e, certamente, debaixo das mesas...). Clima que intimidava o adolescente, em cujo corpo se travava a luta entre a timidez e a explosão hormonal dos de sua idade. De repente, Sônia se levanta e tira o som do aparelho. As imagens perdem o sentido. O que era aquilo? Não te parece que são macaquinhos pulando feito doidos?, pergunta Sônia com um sorriso cúmplice e sacana nos lábios, ridicularizando a “ameaça”. O Menino entende e se pacifica. Com o primo David, um sorridente improvisador, havia uma disputa, digamos, intelectual. Em cima de um tabuleiro de xadrez. Apesar das provocações do tio, jamais conseguiu derrotar o primo, muito mais velho e experiente. Ainda remoendo as surras no jogo de xadrez, se preparou para uma revanche audaciosa. Contra ninguém menos do que o Grande. ComoAbertura Ruy Lopez derrotá-lo? Era necessária uma preparação, uma estratégia, uma ferramenta que lhe desse alguma vantagem. Conseguiu um livro de aberturas, do russo Eugênio Znosko Borovsky (com a breca, quem já ouviu falar de Eugênio Znosko Borovsky?) e tomou conhecimento da abertura Ruy Lopez. Decorou umas jogadas, bispos e cavalos em movimento de pinça, sem entender muito bem o espírito da coisa. Pouco importava. O objetivo era empilhar cascas de banana e esperar que o Grande, distraído, tenso e cansado de uma vida cinzenta, estivesse num dia pouco inspirado. Aguardava sua chegada, arrumava o tabuleiro e ... Não é que de vez em quando dava certo ? Como se não bastassem as sucessivas derrotas existenciais, enterrado até os ossos em frustrações e falta de perspectivas, o Grande não conseguia nem salvar o seu rei. Que ele nunca levou na barriga. A rotina corria mansa, sem pressa. De vez em quando quebrada por puçás carregados de siris, escaldados vivos nos panelões de Wanderley Cardosoalmoços remotos. A trilha sonora não era diferente da que ouvia na casa da Vila. O rádio valvulado não parava de tocar músicas francesas e italianas em versões adocicadas para os pioneiros da Jovem Guarda. Jerry Adriani e Wanderley Cardoso reinavam na cozinha, entre feijões e batatas, e o som vazava para todo canto. Intercalados pelos bolerões do Altemar Dutra e as excentricidades do Orlando Dias. Esse último fazia as “macacas de auditório” (perdão, eram tempos politicamente incorretos) delirarem, agitando um lencinho branco e cantarolando tenho ciúme até da roupa que tu veste. Nada que competisse com os delírios geniais do Além da imaginação, que passava num horário interditado em épocas escolares, mas liberado naquela ilha da fantasia. O Menino não sabia, mas era também naquela ilha que morava um sobrevivente do Maracanazo. Augusto, capitão da seleção brasileira. Será que todo aquele oceano tinha sido capaz de afogar a melancolia da derrota inesperada, do jogo que insistia em não terminar ? De tragar uma sensação de perda impenetrável à elaboração do luto? Uma calça curta e um caldo interrompido. Dois incidentes aparentemente descartáveis, dor que agita a mansidão. Andava pelas ruas irregulares, chutando pedras, clássico adorado pela Mafalda. Vestia, extemporaneamente, calças curtas com suspensórios. Roupa de criança, ora já se viu ! Adultos têm cabeça dura, não percebem a fragilidade destas transições que deixam marcas e cicatrizes. PanosMenino de calça curta e suspensórios ultrapassados num corpo que explodia. Não deu outra. Um molecote olhou para a figura bizarra e não perdoou. Mariquinha foi o mínimo que disse. O Menino abaixou a cabeça, não era de briga, tinha medo que lhe quebrassem os dentes protusos. Engoliu a ofensa e só se desvencilhou dela depois de, com a ajuda de Hércules e outros semideuses, limpar as cavalariças do rei Augias. Já na praia, se meteu com os mais velhos. Deram-lhe um caldo, recebido com pompa e fanfarras. Era o ritual de passagem para fora da infância. Afinal de contas, respirar debaixo d’água já era assunto de gente corajosa, de profissionais. De repente, alguém diz para parar, o Menino podia não aguentar. Anticlímax. Recolhem-se os cacos da frustração, encolhem-se os desejos, posterga-se o degrau que dava acesso ao mundo dos Grandes. Depois disso, só lhe restava atravessar a ponte do Galeão, olhar para o esqueleto do hospital do Fundão e deixar para trás aquelas imagens. O acampamento, no entanto, virou um espectro. Não conseguiu. Foi mergulhar nas águas do verão e acabou nadando num turbilhão de memórias incandescentes. De alguma forma, qual roteiro de Rod Serling, jamais saiu da Ilha do Governador. (Carta Maior)

Nenhum comentário:

Postar um comentário