sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Brasil e Cuba

Por que o Brasil está reforçando sua presença em Cuba por : Diario do Centro do Mundo Dilma e Raúl Castro Publicado originalmente na DW. Brasil e Cuba têm mais em comum do que as críticas aos Estados Unidos – os dois países mantêm uma cooperação especial, que se tornou mais intensa nos últimos anos. Enquanto médicos cubanos desembarcam em território brasileiro, a ilha caribenha recebe produtos agrícolas. Agora, ambos trabalham juntos no megaprojeto do Porto de Mariel, cuja primeira parte foi inaugurada nesta segunda-feira (27/01) pela presidente Dilma Rousseff. O Brasil se vê no momento como um dos motores do desenvolvimento, ainda que lento, da economia cubana. E mira, segundo especialistas, um eventual fim do embargo americano, que já dura mais de cinco décadas. Em discurso na ilha caribenha, Dilma não escondeu o desejo de reforçar a cooperação com o governo de Raúl Castro. “Laços profundos unem os nossos países, um sentimento de amizade aproxima nossas sociedades. O Brasil acredita e aposta no potencial humano e econômico de Cuba”, afirmou a presidente. “O Brasil quer tornar-se parceiro econômico de primeira ordem para Cuba.” Mais empréstimos Não é coincidência que o Porto de Mariel, maior projeto de infraestrutura em andamento em Cuba, esteja a cargo de uma empreiteira brasileira, a Odebrecht. O financiamento da obra também tem o governo brasileiro por trás: o BNDES aprovou empréstimos de 682 milhões de dólares para financiar a construção, que tem custo total de 957 milhões de dólares. Nesta segunda-feira, Dilma ainda ofereceu um crédito adicional de 290 milhões de dólares, dinheiro a ser destinado também para a zona econômica especial do Porto de Mariel. “É a expressão do compromisso brasileiro de apoiar o desenvolvimento econômico de nossos irmãos caribenhos”, disse o Itamaraty em nota à DW. Dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC) mostram o crescimento da parceria comercial entre os dois países. As exportações do Brasil para Cuba aumentaram de 80 milhões de dólares em 2003 para 568 milhões em 2012. De janeiro a setembro de 2013, o valor das exportações já atingia cifra próxima a 515 milhões de dólares. Desde 1998, o BNDES garantiu empréstimos no total de 703 milhões de dólares a empresas brasileiras que investem em Cuba. Em 2013, Cuba foi o terceiro maior destino de financiamentos do banco para exportação de bens e serviços do Brasil. Para especialistas ouvidos pela DW, não há dúvida: os investimentos são estratégicos. “O porto é visto como uma maneira de se antecipar aos investidores americanos”, explica Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da FGV. Segundo ele, tem-se no Brasil a concepção de que numa Cuba pós-Castro a liberalização da economia prosseguirá mais rapidamente e pode levar, em consequência, ao levantamento do embargo americano. À espera do fim do embargo A agência de investimentos alemã GTAI já aposta há um bom tempo no relaxamento do embargo a Cuba. Peter Buerstedde, especialista da agência, observa que, como Raúl Castro quer permanecer na presidência apenas até 2018, existem indicações de mudança em médio prazo nos rumos da ilha. “O Porto de Mariel poderá se tornar um centro de logística no Caribe quando os EUA levantarem o embargo”, prevê. Na próxima reunião de cúpula da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), nos dias 28 e 29 de janeiro, em Havana, já são evidentes alguns sinais de uma diminuição das animosidades. Pela primeira vez, o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), José Miguel Insulza, aceitou o convite para participar do evento. Insulza quer impulsionar as conversações com Cuba, que foi excluída da organização em 1962 por pressão dos EUA. “O modo como os EUA lidam com Cuba é visto em toda a região como nada construtivo”, explica Stuenkel. Para ele, o Brasil se prepara para entrar no lugar da Venezuela como o principal parceiro do regime cubano. “A Venezuela não consegue mais transferir, em longo prazo, ajuda de grande porte a Cuba, porque luta internamente com seus próprios problemas econômicos.” Na opinião de Stuenkel, a intensidade dos confrontos ideológicos entre a esquerda latino-americana e os Estados Unidos está diminuindo. Sem Hugo Chávez, Cuba não poderia ir muito longe. “Se governo cubano perder um apoio de grande porte, as mudanças em larga escala serão inevitáveis”, aposta. O Ministério das Relações Exteriores já busca, de longa data, fortalecer os laços políticos com Cuba. “As relações Brasil e Cuba atravessam excelente momento. Por trás da cooperação existe uma visão compartilhada”, afirmou o Itamaraty à DW. “Nossos governos acreditam que não basta crescer; é preciso promover o desenvolvimento social e melhorar as condições de vida dos mais necessitados.” (Diário do Centro do Mundo)

Química e Agrotóxicos

A indústria química, os agrotóxicos e a loucura A indústria química é um ramo industrial, formado por oito grupos. Sua história guarda episódios que expressam as mazelas do capitalismo Porto Alegre - Este é um ramo industrial, formado por oito grupos, desde a produção de químicos básicos, farmacêuticos, higiene pessoal, perfumaria e cosméticos, adubos e fertilizantes, agrotóxicos, sabão e detergentes, tintas, esmaltes e vernizes e fibras artificiais e sintéticas. Faturou no mundo US$3,4 trilhões em 2010. No Brasil pouco mais de US$100 bilhões. As vendas globais da indústria química como um todo são divididas da seguinte forma: 37% para os produtos químicos básicos, 30% para os produtos das ciências da vida (fármacos e agroquímicos), 23% para as chamadas especialidades – tintas e cosméticos e 10% para produtos de consumo. Para um PIB mundial de US$70 trilhões, as vendas da indústria química representam 4,8%. O Brasil ainda importa a maioria dos produtos, o que custou no ano passado quase US$20 bilhões. O histórico da indústria química está ligado à Alemanha. Não somente pelas descobertas, como a síntese da amônia (NH3), para uso em fertilizantes, ou a criação da aspirina, cuja patente ocorreu em 1899. Em 1860, foi criada a empresa BASF – Badische Anilin und Soda Fabrick (Fábrica de Baden de Anilina e Soda), em Mannhein. Em 1863, o comerciante de corantes Friedrich Bayer e o mestre-tintureiro, Johann Weskott, instalaram uma pequena fábrica para produzir corantes artificiais para tingimento de tecidos. Assim nasceu a Bayer, que em 1896 se instalou no Brasil. Em 1922 criaram o slogan “se é Bayer é bom”. Primeiro ataque com arma química O químico envolvido com a Basf chamado Fritz Haber, autor da descoberta da síntese da amônia e ganhador do prêmio Nobel de 1920, financiado por esta empresa a partir de 1909, também foi o responsável pelo uso de gases tóxicos na primeira guerra mundial.O primeiro ataque com armas químicas aconteceu em Ypres, cidade belga, contra tropas francesas e argelinas, no dia 22 de abril de 1915. Conforme o relato dos pesquisadores Reinaldo Calixto de Campos e João Augusto Gouveia em um texto sobre a história da química: “-O primeiro emprego moderno, em larga escala, de um agente químico como arma letal direta foi o gás cloro, lançado a partir de 5.730 cilindros de metal, cada um pesando 100kg, com cloro líquido, ao longo de 10km de frente. O primeiro ataque foi um sucesso, com uma nuvem de gás verde, de cerca de um metro e meio de altura avançando, empurrada pelo vento, abrindo uma larga brecha nas linhas inimigas, uma vez que os que não sufocaram, debandaram, com os alemães avançando pela terra de ninguém e tomando as trincheiras aliadas. A partir daí os aliados passaram a usar também gases químicos. Até o fim da primeira guerra mundial 22 tipos diferentes de agentes químicos foram testados”. Criminoso de guerra Quando a guerra terminou, com a derrota da Alemanha, Fritz Haber, que era judeu, foi procurado como criminoso de guerra, mas se escondeu na Suíça. Ele morreu em 1934, o homem que ajudou a transformar nitrogênio em pão, cujo processo industrial é responsável ainda hoje pela produção de 130 milhões de toneladas de amônia, usada pela indústria de fertilizantes. Era autoritário, monarquista, e um precursor do delírio alemão de superioridade racial. Quando ganhou a patente de capitão do exército alemão, deu uma festa para comemorar em Breslau, cidade onde conheceu a mulher Clara Immerwahr, judia e a primeira mulher a doutorar-se em Química pela Universidade de Breslau, embora nunca tenha trabalhado na profissão. Neste dia fatídico, Clara deu dois tiros no peito com a arma do recém -nomeado capitão. O filho deles, Hermann mudou-se para os Estados Unidos e, no final da II Guerra Mundial, em 1945, também se suicidou. DDT usado no combate aos piolhos Outro alemão, Friedrich Wöhler, está ligado à história dos agroquímicos. Em 1828 ele sintetizou o composto inorgânico cianato de amônia, transformando-o em ureia. Porém, os inseticidas orgânicos só começaram a ser utilizados em larga escala na década de 1940, durante a segunda guerra mundial, a fim de proteger os soldados nas regiões tropicais e subtropicais da África e da Ásia, das pragas transmissoras da doença do sono, da malária, do tifo, entre outras. Devido a necessidade de proteger o exército, as pesquisas de novos inseticidas foram impulsionadas, o que resultou no desenvolvimento de vários agrotóxicos, que são usados ainda hoje. O marco na química foi a descoberta da atividade inseticida do 1,1,1-tricloro-2,2-di (p-clorofenil) etano, em 1939, pelo pesquisador Paul Muller, prêmio Nobel em 1948. O famoso DDT foi usado pela primeira vez em 1943, para combater piolhos que infestavam as tropas estadunidenses na Europa, e que transmitiam a doença do tifo exantemático. O DDT é um organoclorado composto por átomos de carbono, hidrogênio e cloro. Outros organoclorados desenvolvidos nesta época – aldrin, dieldrin, heptacloro e toxafeno. Mais tóxicos que os organoclorados Os organofosforados foram desenvolvidos nas décadas de 1930/40, como armas químicas, eram compostos derivados do ácido fosfórico, que podem conter em sua estrutura átomos de carbono, hidrogênio, oxigênio, enxofre, nitrogênio e fósforo. A toxidade é maior que os organoclorados, mas são menos persistentes no ambiente. O herbicida glifosato e os inseticidas malation, paration e dissulfoton são exemplos de organofosforados. Dos 115 elementos químicos da tabela periódica, 11 podem estar presentes nas formulações dos agrotóxicos, sendo que a indústria trabalha com mais de mil formulações. As seis maiores empresas do ramo – Bayer, Syngenta, Basf, Monsanto, Dow e Dupont – controlam quase 90% do mercado mundial. No Brasil são oito empresas que controlam a maioria do mercado. A produção de organossintéticos no Brasil começou em 1946, com a empresa Eletroquímica Fluminense, que fabricava o BHC, também conhecido como gamexane ou pó de gafanhoto. Teve seu uso proibido em 1983. Em 1948, a Rhodia passou a produzir o inseticida parathion, e em 1950, uma fábrica de armas químicas do exército brasileiro começou a fabricar no Rio de Janeiro o DDT. Explosão dos agrotóxicos Mas a explosão dos agrotóxicos no país só ocorreu a partir da década de 1970, quando os militares lançaram o Programa Nacional de Defensivos Agrícolas (PNDA), que funcionou até 1979. A produção e a instalação de fábricas recebiam incentivos fiscais, financiamentos, benefícios tarifários para a importação de maquinário e equipamentos. Tudo isso foi evoluindo e hoje o Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo, com mais de um bilhão de litros, e um faturamento que no ano passado alcançou quase US$9bilhões para a induústria. Muito pior que isso foi a introdução dos transgênicos, a partir do início da década, cuja responsável maior é a empresa Monsanto, que incentivou o contrabando de sementes da Argentina para o Rio Grande do Sul, durante o governo Olívio Dutra. Usou o sobrenome da esposa Esta mesma empresa tem um histórico trágico e pestilento. Criada em 1901, em Saint Louis por John Francis Queeny, que aproveitou o nome de solteira da mulher para registrar a firma Monsanto Chemical Works – o nome dela era Olga Mendez Monsanto, conforme histórico publicado no livro “Transgênicos, as sementes do mal”, do pesquisador brasileiro Antônio Andreoli e do pesquisador alemão Richard Fuchs. O primeiro produto que a empresa desenvolveu foi a sacarina, que era vendida para a Coca-Cola. Começou a produzir aspirina em 1917, mercado que dominou até 1980. A partir de 1933 entrou para a Bolsa de Nova Iorque, registrada com o nome de Monsanto Chemical Company. Desde 1930 vendeu os produtos originados do PCB – bifenil policlorinado – que causa grave danos à saúde, o que era do conhecimento da empresa, e mesmo assim continuou vendendo até 1979. O PCB é usado na indústria eletrônica, o maior cliente da Monsanto era a General Eletric, usava como lubrificantes de motores, transformadores elétricos e agente refrigerador. A GE na época tinha uma indústria a beira do rio Moharwk, no estado de Nova Iorque, e por sua vez, é afluente do rio Hudson. Histórico do glifosato No dia 16 de abril de 1947, um cargueiro ancorado nas proximidades da indústria da Monsanto, carregado com nitrato de amônia, se incendiou devido a um cigarro e explodiu. A cidade de Texas e a indústria da Monsanto foram destruídas. O fogo atingiu um oleoduto com fluídos inflamáveis – benzeno, propano e benzol etílico – e o fogo se alastrou por três dias, matando 576 pessoas. Em 1955, a Monsanto retomou os negócios com adubo e em 1956 lançou o herbicida Randox. A partir de 1960 começou a crescer no setor agrícola. Em 1969, lançou o herbicida Lasso. Em 1970 o pesquisador John Franz, da Monsanto, sintetizou uma molécula mais tarde conhecida – registrada em 1974 – como glifosato, o princípio ativo do herbicida Roundup. Em 1974 ele chegou ao mercado da Malásia e do Reino Unido. Dois anos depois foi lançado nos Estados Unidos. Em 1983, o Departamento Agrícola da Monsanto começou a cultivar as primeiras plantas transgênicas. Em 1992, começou a comprar as empresas de sementes. Em 1999 bateu recorde de lucro, com US$9,1 bilhões, sendo 50% do setor agrícola. A escória da humanidade Na década de 1990, a Monsanto entrou no mercado de algodão da Índia, que é o segundo maior produtor mundial, com mais de 12 milhões de hectares cultivados. Lançou a semente Bt. A maior parte da produção está no estado de Maharastra. Desde 1997, 54 mil agricultores familiares se suicidaram na região. A causa: endividamento no banco, secas, inundações, baixa produtividade. No total, o que é um escândalo mundial, são quase 200 mil suicídios, desde 1997. A Monsanto diz que as mortes não tem ligação com o lançamento da semente Bt. O detalhe é que o preço das sementes de algodão subiu mais de 1000% no mesmo período. A Monsanto, desde a sua origem – o marido não quis se comprometer com o nome próprio e usou o da esposa - mostrou a capacidade de provocar discórdias no planeta. Sem contar a pretensão de dominar o mercado de alimentos no mundo, o que significa exercer seu poder fascista, numa área onde pelo menos metade da população mundial ainda depende dos recursos de suas propriedades. A outra metade vive nas cidades. A Monsanto, certamente, ocupará o espaço destinado à escória da humanidade, num futuro bem próximo. (Carta Maior)

Pasolini

Pepe Escobar: − Somos o “Teorema” de Pasolini vivo [*] Pepe Escobar, Asia Times Online “We are all living Pasolini's Theorem” Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu Pier Paolo Pasolini BOLONHA – Nas primeiras horas da manhã de 2/11/1975, em Idroscalo, numa favela imunda e miserável em Ostia, nos arredores de Roma, foi encontrado o corpo de Pier Paolo Pasolini, 53 anos, uma usina intelectual e um dos maiores cineastas dos anos 1960s e 1970s; fora severamente espancado e duas vezes esmagado pelas rodas do seu próprio Alfa Romeo. Difícil conceber mais dolorosa, aterradora, mistura moderna de tragédia grega e iconografia renascentista; em cenário que parecia copiado de filme de Pasolini, o autor foi imolado como seu principal personagem em Mamma Roma (1962) jazendo na prisão à maneira do Cristo Morto, também conhecido como “A lamentação do corpo de Cristo”, de Andrea Mantegna. A lamentação do corpo de Cristo Provavelmente, um encontro gay que deu terrivelmente errado; um jovem marginal de 17 anos foi acusado pelo assassinato, mas ele também tinha ligações com neofascistas italianos. A verdadeira história jamais foi divulgada. O que emergiu é que “a nova Itália” – os pós-efeitos de uma nova revolução capitalista – matou Pasolini. “Os destinados à morte” Pasolini só poderia ter saído à caça de estrelas, ao sair graduado em literatura da Universidade de Bolonha – a mais antiga do mundo –, em 1943. Hoje, um Pasolini é absolutamente impensável. Seria alguma espécie de OIVNI (Objeto Intelectual Voador Não Identificado). O intelectual total – poeta, dramaturgo, pintor, músico, autor de ficção, teórico da literatura, cineasta e analista político. Para italianos cultos, foi essencialmente poeta (o que, há algumas décadas, era imenso elogio...) Em sua obra-prima Ceneri di Gramsci (1952) [Cinzas de Gramsci], [1] Pasolini traça notável paralelo, em termos de ânsia por um ideal heroico, entre Gramsci e Shelley – que estão enterrados no mesmo cemitério em Roma. Justiça poética. [2] Então saltou sem dificuldade, da palavra à imagem. O jovem Martin Scorsese ficou embasbacado quando assistiu pela primeira vez a Accattone (1961); para nem falar do jovem Bernardo Bertolucci, que aprendia ao vivo, como cameraman de Pasolini. No mínimo, não haveria Scorsese, Bertolucci, ou, para não parar por aí, Fassbinder, Abel Ferrara e incontáveis outros, sem Pasolini. E especialmente hoje, quando flanamos 24 horas/dia, sete dias por semana, em nossa medíocre Feira da Vaidade, é impossível não simpatizar com o método de Pasolini – que muda de direção, de crítica ácida (sulfúrica) da burguesia (como em Teorema e Porcile [Pocilga]), para buscar refúgio nos clássicos (sua fase das tragédias gregas) e nos medievais, fascinantes, da “Trilogia da Vida” – adaptações do Decameron (1971), Contos de Canterbury (1972) e As Mil e Uma Noites (1974). Teorema Também não é surpresa que Pasolini decida sair da Itália decadente, corrupta, para filmar no Terceiro Mundo – na Cappadocia, Turquia, para Medea; e no Iêmem para As Mil e Uma Noites. Bertolucci adiante faria o mesmo, filmando no Marrocos (O céu que nos protege), no Nepal (seu épico Buda) e na China (O último imperador), seu formidável triunfo holliwoodiano. E então veio o inclassificável Salo, ou Os 120 Dias de Sodoma, último filme de Pasolini, torturado, devastador, distribuído apenas uns poucos meses depois do assassinato, proibido durante anos em vários países e impiedoso, ao extrapolar para muito além o flerte da Itália (e da cultura ocidental) com o fascismo. Entre 1973 e 1975, Pasolini escreveu várias colunas para o Corriere della Sera, jornal de Milão, publicados como Scritti Corsari em 1975 e depois como Lettere luterane, postumamente, em 1976. [3] O tema que engloba tudo é a “mutação antropológica” da Itália moderna, que também pode ser lido como um microcosmo para todo o ocidente. Sou de uma geração em que muitos eram enlouquecidamente apaixonados por Pasolini na tela e no papel. À época, era claro que aquelas colunas eram os RPGs [Role Playing Games] de um intelectual extremamente arguto – mas supremamente solitário. Relidas hoje, soam nada menos que proféticas. Porcile (Pocilga) Examinando a dicotomia entre rapazes burgueses e rapazes proletários – como Itália do Norte vs Itália do Sul – Pasolini descobre nada menos que uma nova categoria, “difícil de descrever (porque ninguém descreveu antes)” e para a qual ele não tinha “precedentes linguísticos e terminológicos”. E há os “destinados à morte”. Um desses, pode ter vindo a ser seu assassino em Idroscalo. Como Pasolini argumentou, os novos espécimes eram aqueles que, até meados dos 1950s teriam sido vítimas da mortalidade infantil. A ciência interveio e salvou-os da morte física. São portanto sobreviventes “e na vida deles há algo de contra natura”. Portanto, Pasolini argumentava, filhos nascidos hoje não não, a priori, “abençoados”; os que nascem “em excesso” são definitivamente “não abençoados”. Em resumo, era Pasolini presa de um sentimento de não ser realmente bem-vindo, e, mesmo, até, de ser culpado; a nova geração era “infinitamente mais frágil, embrutecida, triste, pálida e doentia que todas as gerações precedentes”. São depressivos ou agressivos. E “nada pode cancelar a sombra que uma anormalidade desconhecida projeta sobre a vida deles”. Hoje, essa interpretação pode facilmente explicar o jovem islamista, alienado, nascido em fronteiras que ninguém vê, e que cruza aquelas fronteiras para unir-se a qualquer jihad, em desespero. Salo ou 120 dias de Sodoma Ao mesmo tempo, segundo Pasolini, esse sentimento inconsciente de ser fundamentalmente descartável alimenta “os destinados à morte” em sua ânsia por normalidade, pela “total adesão, sem reservas, à horda, o desejo de não parecer distinto ou diverso.” E eles “mostram como viver agressivamente o conformismo”. Ensinam “a renunciar”, uma “tendência para a infelicidade”, a “retórica da feiúra” e a brutalidade. E os feios e brutos tornam-se expoentes, campeões da moda e do comportamento (como se Pasolini já antevisse os punks ingleses, em 1976). O autodescrito “velho burguês racionalista, idealista” foi muito além dessas reflexões sobre a geração “não há futuro para vocês”. Pasolini anteviu, dentre outros desastres, a destruição urbana da Itália, a responsabilidade pela “degradação antropológica” dos italianos, a condição terrível dos hospitais, escolas e da infraestrutura pública, a selvagem explosão da cultura de massa e da imprensa de massa, a “estupidez delinquente” da televisão, a “carga imoral” dos que governaram a Itália de 1945 a 1975 – isto é, a Democracia Cristã apoiada pelos EUA. Guy Debord Ele flagrou com destreza o “cinismo da nova revolução capitalista – a primeira real revolução de direita”. Essa revolução, disse ele, “de um ponto de vista antropológico – em termos da fundação de uma nova “cultura” – implica homens sem vínculo com o passado, vivendo em “imponderabilidade”. Assim, a única expectativa existencial possível é consumir e satisfazer seus impulsos hedonistas”. Aqui, é a crítica feroz de Guy Debord à “sociedade do espetáculo” expandida para o horizonte cultural de “o sonho acabou” dos anos 1970s. No momento em que foi escrito, tudo isso era pensamento radiativo. Pasolini não carregava prisioneiros; se o consumo arrancara a Itália da miséria, “para gratificá-la com algum bem-estar” e alguma cultura não popular, o resultado humilhante foi alcançado “com mimar a pequena burguesia, com escola obrigatória e com televisão delinquente”. Pasolini costumava zombar da burguesia italiana, “a mais ignorante de toda a Europa” (nisso, se enganou: a burguesia espanhola é imbatível). Assim brotou um novo modo de produção de cultura – construída sobre “o genocídio das culturas precedentes” – e uma nova espécie de burguês. Ah, se Pasolini tivesse sobrevivido para vê-lo em cena em uniforme completo, como Homo Berlusconis! A Grande Beleza já era! Agora, o coração consumista das trevas – “o horror, o horror” – profetizado e detalhado por Pasolini já em meados dos anos 1970s acaba de aparecer exposto em toda sua miserável purpurina por um cineasta italiano de Nápoles, Paolo Sorrentino, nascido quando Pasolini, para nem falar de Fellini, já estavam no auge da potência. La Grande Bellezza (A Grande Beleza) – que acaba de vencer o Golden Globes como Melhor Filme Estrangeiro e provavelmente também ficará com um Óscar – seria inconcebível sem La Dolce Vita de Fellini (do qual é coda não assumida) e a crítica de Pasolini à “nova Itália”. Pasolini e Fellini, aliás, ambos são ramos brotados numa fabulosa tradição intelectual na Emilia-Romagna (Pasolini, de Bolonha; Fellini, de Rimini; Bertolucci, de Parma). No início dos anos 1960s, Fellini dizia ao amigo e ainda aprendiz Pasolini, que ele, Fellini, não era equipado para o criticismo. Fellini era sempre emoção pura; Pasolini – e Bertolucci – eram emoção modulada pelo intelecto. Cena de "A Grande Beleza" de Paolo Sorrentino O surpreendente filme de Sorrentino – corrida vertiginosa sobre os galhos da Itália de Berlusconi – é La Dolce Vita que acabou horrivelmente azeda. Impossível não sentir empatia com ‘'Marcello'’ (Mastroianni), chegando aos 65 anos (representado pelo agradável Toni Servillo), padecendo de bloqueio de escritor, ao mesmo tempo em que surfa a própria reputação de rei da vida noturna em Roma. Como o grande Ezra Pound – que amava profundamente a Itália – também profetizou – uma torpeza barata de liquidação acabou por durar até nossos dias, convertida em insipidismo berlusconiano no qual – segundo um personagem – todos “esqueceram tudo sobre cultura e arte” e o ex-ápice da civilização terminou conhecido só por “moda e pizza". Pasolini nos falava exatamente sobre isso há quase 40 anos – antes que uma fantasmagórica, macabra manifestação dessa mesma mediocridade o tivesse silenciado. Sua morte demonstrou afinal – avant la lettre – o seu teorema; sempre esteve, desgraçadamente, mortalmente certo. Notas dos tradutores [1] PASOLINI , Pier Paolo. Le ceneri di Gramsci. Milano: Garzanti, 1957. 249 p.. Há traduções de alguns poemas em Le ceneri di Gramsci, Poemas I e Le ceneri di Gramsci IV - Porto: Assírio & Alvin, 2005. Trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo no blog Canal da Poesia. [2] De fato, estiveram bem separados nos cemitérios, por muito tempo. Gramsci foi enterrado, primeiro, no Cemitério Campo Verano, antes de suas cinzas serem trazidas para o Cemitério de Não Católicos de Roma, onde estão hoje, como Shelley e Keats. Foi a cunhada de Gramsci (Tatiana Schucht, cidadã russa e não católica, e quem cuidou de Gramcsi durante os anos de cárcere em Roma) quem fez a transferência das cinzas para onde estão hoje. Caso talvez mais de amor, que de justiça, poética ou qualquer outra. A história está contada em detalhes em: “Gramsci’s grave and Pasolini”, onde também aprendemos que no túmulo de Gramsci há a inscrição “Cinera Antonii Gramscii”, “cinzas de Antonio Gramsci”, que Pasolini usaria para título de seu poema. A internet é totalmente O MÁXIMO. [3] PASOLINI, Pier Paolo, “Escritos Corsários e Cartas Luteranas”, Porto: Assírio & Alvim,2006, 174 pp. ___________________ [*] Pepe Escobar (1954) é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no Asia Times Online; é também analista de política do blog Tom Dispatch e correspondente/ articulista das redes Russia Today, The Real News Network Televison e Al-Jazeera. Seus artigos podem ser lidos, traduzidos para o português pelo Coletivo de Tradutores da Vila Vudu e João Aroldo, no blog redecastorphoto. Livros: - Globalistan: How the Globalized World is Dissolving into Liquid War, Nimble Books, 2007. - Red Zone Blues: A Snapshot of Baghdad During the Surge, Nimble Books, 2007. - Obama Does Globalistan, Nimble Books, 2009. (Redecastor)

Mídia

A velha linguagem da época da Guerra Fria O jornal o Globo a cada dia se supera em matéria de reacionarismo e manipulação da informação. A edição do último dia 7 talvez tenha batido recordes nesse sentido. De Arnaldo Jabor a José Casado, os leitores foram “agraciados” com artigos gênero Clube Militar. Jabor começou a destilar bílis criticando a exumação dos restos mortais de João Goulart, pedido feito pela família do Presidente deposto e atendido pela Comissão Nacional da Verdade em função dos fortes indícios de que o Presidente deposto pode ter sido assassinado com troca de remédios. Com linguajar da época da Guerra Fria, o comentário de Jabor deve ter agradado sobremaneira os associados do Clube Militar saudosistas da ditadura. Já José Casado, em linguagem similar ao Departamento de Estado destilava ódio contra o governo boliviano de Evo Morales. Ao estilo sujíssima Veja, este jornalista repetia baboseiras acusando o governo democrático do país vizinho de vínculos com o narcotráfico e assim sucessivamente. No caso de Casado, por coincidência ou não, o artigo foi postado em O Globo quase ao mesmo tempo em que o Presidente Evo Morales assumia a presidência pró tempore do G-77 e mais a China, cargo que ocupará por todo ano de 2014. Morales tinha sido eleito pelo Grupo no ano passado e nos primeiros dias do novo ano foi a Nova York assumir a função designada pelos integrantes do G-77, espaço criado na Organização das Nações Unidas em junho de 1964 com o objetivo de articular interesses das nações do Sul em questões econômicas. Além de não divulgar o fato para os seus leitores, O Globo concedeu espaço para o articulista José Casado misturar alhos com bugalhos no artigo intitulado Rede Coca em que falou da folha de coca como se fosse a droga. E de quebra ainda criticou o governo brasileiro no episódio do político boliviano, Róger Pinto Molina, que se encontra em Brasília, depois de fugir da Bolívia com a ajuda do diplomata Eduardo Saboia. Ao se referir ao senador boliviano, Casado simplesmente omitiu que Molina responde a vários processos de corrupção em seu país. Mas aí, o articulista de O Globo comentou apenas a versão dos opositores do governo de que o senador é “político ameaçado por denunciar o avanço do narcotráfico no governo Morales”. A fúria de O Globo contra o governo Morales se ampliou quando o Presidente boliviano declarou, após assumir a Presidência do G-77, que no seu país “atualmente o poder está em mãos do povo e não de impérios, pelo que não devem estar submetidos a condicionamentos e paternalismos”. E foi mais adiante ao afirmar que quando não há grupos que exploram, saqueiam e discriminam, a situação muda. Não estamos em tempos de monarquias nem de outros grupos de elites que sempre dominaram”. E assim caminha a mídia de mercado. Se diz imparcial, mas na hora do vamos ver fica geralmente do lado contrário aos governos de países que não aceitam as imposições do Departamento de Estado norte-americano, como notoriamente é o caso do governo Evo Morales. Por estas e outras, não será de se estranhar se em pouco tempo, tanto Jabor como Casado sejam convidados a apoiar os associados do Clube Militar, saudosistas da ditadura e dispostos a defender de todas as formas o regime que levou o país a uma longa noite escura que durou 21 anos. Na galeria dos convidados desta gente, já apareceram Merval Pereira e Reynaldo Azevedo. Podem os leitores imaginar o motivo. Enquanto isso, em Haia, a Corte Internacional está para examinar mil casos de torturas e 200 assassinatos cometidos por soldados do Reino Unido entre 2003 e 2008,. segundo informou a cadeia de televisão britânica Sky News com base em fontes próprias. Espera-se que o jornal mais vendido no Rio de Janeiro divulgue essa informação. Jacobiski (Direto da Redação)

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Cuba (c restrições...)

Christina Lemos Cuba erradicou a desnutrição infantil há cinco anos, em 2009; Cuba tem a segunda menor taxa de mortalidade infantil do mundo; Cuba é o país do mundo com maior proporção de pessoas com mais de 100 anos (originalmente publicado no blog de Christina Lemos) A pequena e atrasada Cuba, cujo dia-a-dia, os automóveis e o povo estacionaram nos anos 50, tragicamente congelados pelo regime comunista, tem lições graves a dar às autoridades brasileiras que desembarcam na ilha a partir deste domingo. O ministro da Saúde, Alexandre Padilha, e seu anunciado sucessor, Arthur Chioro, que integram a comitiva da presidente Dilma, em particular, deveriam se debruçar sobre como e porque um país que investe praticamente os mesmos 7,5% do PIB em Saúde, como faz o Brasil, consegue resultados impressionantes. Apenas para exemplificar: - Cuba erradicou a desnutrição infantil há cinco anos - em 2009. São dados do Unicef, que os reconfirmou em 2011. E é o único país da América Latina e do Caribe a fazê-lo. - Cuba tem a segunda menor taxa de mortalidade infantil do mundo (7 por mil nascidos, até os cinco anos), só perdendo para o Canadá. - Cuba apresenta uma cobertura vacinal de quase 99,8% da população (de pouco mais de 11 milhões de habitantes). - Cuba tem uma expectativa de vida ao nascer similar à dos EUA: 77 anos. - Cuba é o país do mundo com maior proporção de pessoas com mais de 100 anos, chegando a ter cinco vezes mais indivíduos centenários que o Japão, em termos relativos (1551 indivíduos em 11,2 milhões de habitantes). Na Educação, Cuba foi o primeiro país do mundo a erradicar o analfabetismo. E fez isso há mais de meio século: 1961. Custou aos revolucionários, seguidores Marx e Lenin, capitaneados por Guevara e Fidel, menos de três anos para reduzir a zero o analfabetismo, que passava dos 40% na zona rural. Passados 55 anos da Revolução, a paradoxal Cuba segue sendo um laboratório a céu aberto, para o bem e para o mal, que, aos olhos estrangeiros causa ao mesmo tempo admiração, espanto e horror. E fornece uma extraordinária aula sobre o que se deve e o que não se deve fazer a um povo. É fato que índices semelhantes são alcançados no mundo rico, isto é, em sociedades capitalistas que deram certo, como é o caso do Canadá, Suíça, Suécia e Dinamarca. São países que acumulam séculos de aprimoramento da vida em sociedade e de economia estável. Uma vez que a precária Cuba também chegou lá, a explicação parece ser mais complicada e remete à pergunta: em que medida a dedicação obstinada do gestor público pode superar a falta de recursos? Cuba também impressiona na mão oposta: a da tragédia do desrespeito aos direitos individuais e aos direitos humanos na ilha dos Castro. Neste paradisíaco pedaço de chão do Caribe, é proibida qualquer forma de oposição, há cerca de 200 prisioneiros políticos, 40 presídios de segurança máxima e o simples acesso não autorizado à internet pode levar à pena de 5 anos de prisão. Há meio século a população de todo o país vive confinada em suas fronteiras, sujeita a regras que a mantém refém do atraso, da pobreza e do subdesenvolvimento - e sem nem mesmo o mais elementar dos direitos: o de reclamar. Tudo isso, apesar do sucesso naqueles indicadores sociais que transformam o país num fenômeno bizarro da velha ordem mundial. (247)

Gelman

JUAN GELMAN (1930-2014) O humor ácido contra o desespero e medo Por Eric Nepomuceno em 21/01/2013 na edição 782 Reproduzido do Estado de S.Paulo, 18/1/2014; título original “O humor ácido era a sua arma contra o desespero e medo”, intertítulos do OI Tweet Nos últimos muitos anos, Juan Gelman morava num bairro chamado Colônia Condessa, na Cidade do México. Um bairro que, desde a década de 50, serviu e serve de abrigo para pintores, músicos, cineastas, escritores. E poetas, como ele. Foi no apartamento amplo e luminoso, coalhado de quadros, livros e memórias, que às quatro e meia da tarde da terça-feira, dia 14, Juan Gelman morreu. E com ele morreu o maior poeta do bairro, da cidade e um dos maiores do idioma espanhol das últimas muitas décadas. Juan aportou na Colônia Condessa em 1989, depois de 14 anos vagando entre Roma e Paris, Madri, Manágua e Nova York, além de breves pousos em outras paisagens. Foi um exílio duplo. O primeiro, em 1975, pelas ameaças da nefasta AAA, a Aliança Anticomunista Argentina, ainda em tempos da bizarra presidência de Isabelita Perón. O segundo, já na democracia recuperada pelos argentinos em 1983. Juan voltou várias vezes às ruas da sua Buenos Aires, e em 1988 tinha se instalado para viver. Até que o dia em que encontrou na rua um dos responsáveis pela morte de seu filho Marcelo, em 1976, uma das milhares de vítimas do terrorismo de Estado implantado pela ditadura dos militares. Viu o homem andando livre e solto, e decidiu ir embora para sempre. Foi quanto se mudou para a Cidade do México, e decidiu que lá passaria o resto de seus dias. Tinha olhos claros e eternamente tristes. A voz, gasta pelos cigarros e as madrugadas varadas à espera da luz, era grave e suave. A voz, gasta pelos cigarros e as madrugadas varadas em claro, era grave e suave. Ao longo dos 40 anos em que convivemos, foram poucas, pouquíssimas as vezes em que ouvi Juan erguer o tom de voz. Tinha um humor ágil e veloz, e que de vez em quando ficava ácido. Era impressionante: mesmo nos momentos da maior angústia, da dor mais sem-fim, restava algo desse humor. Era como se fosse uma arma contra o desespero, contra o medo. Foi o poeta da solidão e da dor, do amor e da esperança. Foi o poeta da ira contida e da fé permanente. Ou seja, foi o poeta da vida. Escreveu um dos poemas de amor mais marcantes do idioma espanhol, aquele que começa assim: “Essa mulher se parecia à palavra nunca/ de sua nuca subia um encanto particular/ uma espécie de esquecimento onde guardar os olhos/ essa mulher se instalava em meu lado esquerdo”. E de delicadezas como essa: “Teu corpo é alto como os pátios da infância/ doce como a luz dos crepúsculos/ e triste./ Teu corpo dura como o sol”. Seus versos eram minuciosamente construídos, buscando o tom da fala coloquial, buscando o ritmo das ruas, a melodia da memória. Vício de viver Começou escrevendo para encontrar o amor. Ou, mais precisamente: lá pelos 9 ou 10 anos, copiava versos de Almafuerte, um poeta argentino do século 19, para tentar conquistar o primeiro de seus grandes e definitivos amores, uma menina vizinha que talvez se chamava Ana. Digo talvez porque ele mesmo não se lembrava ao certo. A menina não deu a menor confiança e Juan decidiu escrever seus próprios versos. Em vão. “Ela seguiu seu caminho”, dizia Juan com sua voz de madrugada, “e eu fiquei com a poesia”. Na verdade, a poesia tinha chegado antes. Filho de imigrantes judeus russos, Juan nasceu no bairro portenho de Villa Crespo. Na primeira infância, seu irmão mais velho, Boris, lia para ele, em russo, versos de Pushkin. Ele não entendia as palavras: entendia a melodia das palavras. Assim descobriu a poesia. A função da poesia, descobriu mais tarde. E dela viveu para sempre, nela viverá para sempre. Publicou seu primeiro livro, Violín y Otras Cuestiones, em 1956. Trazia um prólogo carregado de entusiasmo, escrito por um poeta maior, um mestre rigoroso chamado Raúl González Tuñón. Juan tinha 26 anos. Esta voz, notável e singular na poesia do idioma castelhano, teve momentos – longos momentos – de silêncio. Quando soube do desaparecimento de seu filho Marcelo e de sua nora grávida, Maria Cláudia, sua mão secou. Ele havia saído da Argentina em 1975. Lembro bem da vez em que nos despedimos, na redação da revista Crisis, que Eduardo Galeano dirigia em Buenos Aires: um paletó de tweed, os bigodes eternos, um sorriso estacionado num canto da boca, uma mala pequena, quase maleta, um embrulho na mão esquerda. Nunca entendi aquele embrulho. Nunca perguntei o que havia nele. Passou um tempinho, veio o golpe, veio a ditadura, e no dia 24 de agosto de 1976 um grupo de militares – pouca gente, o suficiente – foi até a casa onde Juan havia morado. Levaram seu filho Marcelo, de 20 anos, sua nora Maria Cláudia, de 19. Treze anos depois, Juan conseguiu recuperar os restos do filho. Estavam dentro de um barril de aço, mergulhados em cimento. O barril foi tirado das águas do Rio da Prata. De Maria Cláudia, soube-se que tinha sido mantida viva. Foi levada para o Uruguai, dentro da Operação Condor. Mulheres grávidas eram preservadas, uma espécie de troféu. Logo depois de terem seus filhos, eram mortas. E os bebês eram entregues a militares ou policiais. Tudo isso era parte do plano sistemático e macabro do terrorismo de Estado praticado pelos militares argentinos. Havia uma lógica sinistra: filhos de terroristas não podiam ser criados por famílias de terroristas. Seriam contaminados. Marcelo e Maria Cláudia nunca foram terroristas. Eram militantes estudantis. E a única arma empunhada por Juan foi sempre a palavra. Mas isso não importou. Maria Cláudia teve uma filha, nascida num quartel uruguaio. Vinte dias depois, o bebê foi dado de presente a um chefe de polícia. Cresceu achando que aquela era a sua história. De Maria Cláudia, nunca mais se teve notícia. Foi morta, e é só. Assim que Juan soube do sequestro de Marcelo, e ele sabia que naquela Argentina ser sequestrado significava ser assassinado, foi abandonado pela poesia. Foram anos sem conseguir escrever. Uma vez, me explicou: “A poesia é uma senhora que nos visita ou não. Convocar essa senhora é uma impertinência inútil. Durante uns bons quatro anos, o choque do exílio e da dor fez com que essa senhora não me visitasse. Já tinha acontecido antes, é verdade, mas nunca por um tempo tão prolongado”. Um dia, a senhora voltou. E não o abandonou jamais. E como eram essas visitas e essa permanência? Dizia Juan: “Na verdade, é como uma obsessão. Uma espécie de ruído junto ao ouvido. Escrevo para entender o que está acontecendo. Em determinado momento, essa obsessão me leva a escrever. É sempre uma obsessão muito forte e meio nebulosa. Quando você começa a escrever, a obsessão está num ponto muito elevado, e a expressão dessa obsessão, num ponto muito baixo. Quase sempre a expressão traz elementos de uma obsessão anterior, que ficaram incrustados na memória. Isso aparece naquilo que os estudiosos chamam de ‘técnica’, de ‘estilo’. Qual o quê. À medida que você vai escrevendo, a obsessão baixa, e aumenta sua proximidade em relação à expressão. Há um ponto em que elas se cruzam, e aí, então, surge o poema”. Achava graça na própria explicação. E rindo seu riso travesso, dizia de lado: “O que eu faço, na verdade, é buscar. A partir de uma certa idade, você percebe que escrever deixou de ser vocação e virou vício. E, você sabe, é preciso cultivar algum vício nessa vida...”. O vício – esse vício – manteve Juan vivo, desde que enfrentou a dor maior de um ser humano, que é a de enterrar o próprio filho. E antes, enquanto durou a busca alucinada primeiro pelos restos do filho e, ao mesmo tempo e depois, pela filha do filho. Juan encontrou sua neta, Macarena, no ano 2000. Devolveu a ela sua história, roubada 24 anos antes. E ela devolveu a ele o direito de ser avô. Amigo fraterno Juan Gelman morreu em casa e em paz. Uma paz que não teve ao longo da vida. Muitos, muitos anos antes, havia escrito um poema estranho: “Um homem morreu e estão juntando seu sangue em colherinhas/ querido Juan, morreste finalmente./ De nada serviram teus pedaços/ molhados em ternura./ Como foi possível/ que tu fosses embora por um furinho/e ninguém tenha posto o dedo/ para que ficasses?”. É o que me pergunto até agora. Durante 40 anos fomos de uma amizade fraterna. Ele foi-se embora levando um pedaço da minha alma. (Obs. da Imprensa)

Drogas

Dependência de drogas: o problema é a gaiola Caue Seigne Ameni Em quadrinhos, o experimento científico que derrubou o mito segundo a qual substâncias psicoativas são por natureza nocivas e viciantes Por Cauê Seignermartin Ameni Ao estampar em sua capa, na última quinta-feira (16/1), a imagem de uma paciente do novo programa para usuários de drogas de S.Paulo fumando crack após o trabalho, a Folha de S.Paulo praticou um atentado à privacidade da pessoa em tratamento médico, desencadeando crise de choro e revolta. E foi além. Na tentativa de “demonstrar” uma tese conservadora (a de que as terapias humanizadas são ineficazes para dependentes de drogas), ele ignorou um experimento científico realizado há mais de trinta anos. Já no final da década de 1970, o psicólogo canadense Bruce Alexander demonstrou que a socialização é, claramente, o melhor caminho (se não o único) para enfrentar a dependência química. Sua pesquisa, que passou a influenciar profissionais de saúde em todo o mundo, está descrita até em formato de quadrinhos – inclusive traduzidos para o português (veja-os ao fim deste post). O fato de prevalecer até hoje, entre os velhos jornais brasileiros, a velha crença em métodos de punição e encarceramento só demonstra o atraso destas publicações. Alexander, que trabalhava na Universidade Simon Fraser, questionou o pensamento predominante em sua época, segundo o qual as substâncias psicoativas produziam dependência, por sua natureza – e por isso deveriam ser proibidas. Para tanto, precisou enfrentar um problema. Em favor da crença comumente aceita, havia dezenas de experimentos “científicos”, geralmente realizados com ratos, e sempre com resultados semelhantes. “Demonstravam” que, uma vez em contato com drogas, os animais tornavam-se incapazes de viver sem elas. O psicólogo canadense observou, porém, que talvez a causa destes resultados recorrentes não estivesse na correção da hipótese que eles supostamente “comprovavam” — mas num erro metodológico comum a todos os experimentos. Em todo os casos, os ratos testados eram confinados em gaiolas. Tinham um canudo implantado cirurgicamente no sistema circulatório. Eram treinados a movimentar uma alavanca e receber, diretamente no sangue, doses de morfina, heroína ou cocaína. Ao final de algum tempo, preferiam a droga aos alimentos ou à própria água, sendo levados à morte. “Concluía-se cientificamente” que as substâncias eram nocivas e altamente perigosas, e deveriam ser proibidas para humanos. As pesquisas foram um poderoso reforço ao proibicionismo e, mais tarde, à chamada “Guerra contra drogas”, em curso até hoje. Bruce Alexander resolveu testar outra hipótese. Ao invés confinar os ratos em gaiolas minúsculas e solitárias, construiu para eles um parque 200 vezes maior com túneis, perfumes, cores. Mais importante, colocou outros ratos para interação. A experiência ficara conhecida como Rat Park – algo como Ratolândia em português. Para completar a “festa”, os roedores tinham acesso a duas fontes jorrando, incessantemente, água e morfina. Nestas novas condições, que reproduzem muito melhor a vida real, os resultados foram impressionantes. Percebeu-se, entre outros fatos, que os ratos livres consumiam 19 vezes menos psicoativos que seus iguais enjaulados. Hoje, com avanço da ciência, há um maior entendimento sobre o funcionamento químico cerebral. O jornalista Denis Russo Burgierman, autor do livro O Fim da Guerra, explica como se dá essa relação: ”O centro da questão é um químico chamado dopamina, o principal neurotransmissor do nosso sistema de recompensa. Quando animais sociais ficam isolados e sem estímulos, seus cérebros secam de dopamina. Resultado: um apetite enorme e insaciável pela substância. Drogas – todas elas – têm o poder de aumentar os níveis de dopamina no cérebro, aliviando essa fissura. O nome disso é dependência. Ou seja, não é a droga que causa dependência – é a combinação da droga com uma predisposição. E o único jeito de curar dependência é curar essa predisposição: dando a esse sujeito uma vida melhor, como Bruce Alexander fez com os ratinhos do Rat Park.” O paralelo com a situação brasileira é evidente. As políticas tradicionais tratam o usuário de drogas como pária a ser afastado do convívio social. Esta posição é radicalizada por autoridades e profissionais de saúde mais conservadores — para quem é preciso internar de forma compulsória os dependentes. Em contrapartida, a nova atitude adotada em São Paulo oferece a eles alojamento digno e ocupação e volta ao convívio social. Por que são tão fortes e persistentes as teorias retrógradas, mesmo quando descoladas totalmente da realidade? O neurocientista Carl Hart, professor neurocientista da Columbia University, entrevistado recentemente pela New York Times respondeu a essa questão: “Oitenta a 90 por cento das pessoas não são afetadas negativamente pelo uso de drogas, mas, na literatura científica, quase 100 por cento dos relatórios são negativos. Há um foco distorcido em patologia. Nós, os cientistas, sabemos que teremos mais dinheiro, se continuarmos dizendo ao governo que vamos resolver este terrível problema. Temos um papel desonroso na guerra contra as drogas”. Bruce Alexnder e Carl Hart são duas incômodas exceções. Enquanto ao resto, a industria farmacêutica e bélica agradecem o proibicionismo. (Outras Palavras)

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Insetos

Por que você deve começar a comer insetos Larvas e baratas estão prestes a chegar ao seu prato. E são essenciais para o futuro da alimentação. Conheça sete razões (e três receitas) que podem convencer você a encarar estes insetos do mesmo jeito que olha para o arroz e o feijão por Luiz Romero 1. O nojo que você sente é relativo Insetos podem, sim, ser bons substitutos para bois, porcos e frangos. No "pasto", eles ajudariam a economizar água e custariam menos, além de serem mais nutritivos do que outras carnes. Tudo muito legal se não fosse um detalhe: imagine como seria mastigar uma larva. Sentir a textura do bicho e o jeito que ele explode dentro da sua boca. Ruim? Saiba que o nojo que você sente é natural, mas pode ser domesticado. Tanto que existem provas de gente capaz de comer insetos espalhadas pelo mundo todo. Dos índios brasileiros, que adoram formigas, aos glutões japoneses, viciados em gafanhotos, passando por povos do México e aborígenes da Austrália. Você também pode dizer que a questão não está só na cabeça, mas no próprio bicho: eles são sujos. Bom, nem sempre. Clique na imagem abaixo e veja uma galeria com algumas iguarias prontas para serem comidas: 2. Insetos não são sempre sujos Está vendo as larvas deste macarrão? Elas cresceram protegidas da sujeira, comendo ração em fazendas especializadas na criação de insetos. Para Gilberto Schickler, um dos responsáveis pelo desenvolvimento deste gado meio diferente, nenhum animal é sujo por natureza. "Tudo depende do jeito que você cria. Porcos, por exemplo, podem crescer em granjas ou em lixões." Schickler trabalha na Nutrinsecta, que forneceu os bichos mostrados nesta matéria. Com planos de produzir insetos para consumo humano, a empresa de Minas Gerais foi a primeira do Brasil a consultar o Ministério da Agricultura sobre o assunto. Agora, planejam abrir um restaurante na região para divulgar a iguaria. No mundo Veja as regiões onde insetos são mais populares. E quantas espécies eles podem comer. África Espécies comestíveis - 524 Países que consomem - 62% Ásia Espécies comestíveis - 349 Países que consomem - 58% Oceania Espécies comestíveis - 152 Países que consomem - 56% América Espécies comestíveis - 679 Países que consomem - 41% Europa Espécies comestíveis - 41 Países que consomem - 21% Fonte Edible Forest Insects, Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação. 3. Insetos estão cheios de energia Adicione um fator importante à limpeza: eles são ricos em proteína. E costumam carregar mais deste nutriente do que outros bichos. Compare: enquanto a carne de boi é composta por apenas 28% de proteína, o corpo de moscas e mosquitos chega a quase 59%, e libélulas têm 58% (veja mais no gráfico). "Eles também são ricos em vitaminas, principalmente a B, e minerais, como ferro e cálcio", enumera Marcel Dicke, professor de entomologia da Universidade de Wageningen, na Holanda. Para terminar, possuem ácidos graxos essenciais, um tipo de gordura também encontrada em peixes, que ajuda nosso corpo a metabolizar energia. Quantidade de proteína Moscas têm quase o dobro de proteínas que bois. Veja a quantidade de nutrientes de outros insetos. Moscas e mosquitos - 59% Libélulas - 58% Percevejos - 55% Cigarras e cigarrinhas - 51% Besouros - 50% Formigas E abelhas - 47% Borboletas e mariposas - 45% Baratas e grilos - 44% Boi - 28% Porco - 25% Frango - 23% Quantidade de ração A mesma quantidade de alimento produz muito mais carne de inseto do que carne de boi. 10 kg de ração 1 kg de carne de boi 8 kg de carne de inseto Desperdício de carne Boa parte dos animais é perdida. Mas, em média, apenas 20% do corpo dos insetos não vai para o prato. Inseto - 20% Porco - 30% Frango - 35% Boi - 45% Fonte Edible Forest Insects, Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação. 4. Eles não são sempre nojentos Está mais convencido? Pronto para encarar uma pizza de larvas? Se a resposta for negativa, olhe para o pote branco bem ao lado da pizza, com uma colher dentro. A proteína, as vitaminas e a gordura estão todas neste potinho, porque isso é larva de mosca. E você nem desconfiou. Até mesmo uma inofensiva porção de pão de queijo pode ter baratas dentro. Não, você não vai encontrar asas ou patas no meio da mordida. Nesse caso, o bicho é esquentado, triturado e transformado em pó antes de ser misturado à massa. Isso faz com que todos os nutrientes do inseto fiquem escondidos na comida. Ou seja, a repulsa causada pela aparência pode ser evitada com um simples triturador. A Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação acredita nesta farinha. E defende que seja usada para reforçar a comida distribuída a povos que sofrem com a falta de comida. 5. Criar insetos é mais barato Além de mais nutritivos do que outros tipos de carne, é mais barato criar insetos do que gado. "Por terem sangue frio, eles precisam de menos comida", explica Lynn Kimsey, professora de entomologia da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, "e essa ração é mais simples e barata de produzir". Além disso, os bichinhos ocupam menos espaço e se reproduzem mais rápido do que os outros animais que estamos acostumados a ver em pastos. E, no final do processo, são mais bem aproveitados. Afinal, muitas partes do boi não são consumidas - pense em pés, dentes, ossos e pele. Enquanto isso você pode mandar uma larva numa mordida, de uma vez só. 6. Bifes serão como caviar Ainda prefere arroz e bife? No futuro, talvez esta não seja uma boa escolha. Porque, em algumas décadas, carne será uma iguaria de luxo. A previsão, da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação, diz que o pedaço de terra destinado à criação de animais precisará crescer em 70% para alimentar a população do planeta em 2050, que deve chegar a 9 bilhões de pessoas. "É simples: não teremos alimento se continuarmos usando a pecuária como a grande fonte de proteína", resume Marcel Dicke, da Universidade de Wageningen. Ajuda lembrar que, mesmo com a pouca quantidade de insetos que pode ser consumida por humanos (são apenas 1 600 tipos comestíveis entre 1,5 milhão de espécies catalogadas), o ritmo frenético com que eles se reproduzem transforma a carne de insetos numa fonte de comida abundante. 7. Você vai gostar de comer insetos Se você ainda não se convenceu, chegou a hora do argumento final: eles são gostosos. E eu não precisei ouvir isso dos entrevistados. Experimentei as três receitas que você vê nesta matéria (além de ter comido apenas os insetos, sem molhos e temperos, antes e depois do preparo) e descobri que eles são apetitosos. A única dificuldade é esquecer a natureza dos bichinhos. Para ajudar, lembrei que muitos dos alimentos que consumo no dia a dia já vêm com pedaços de insetos. "Porque é impossível separá-los da comida", explica Daniella Martin, jornalista especializada em gastronomia de insetos. "Sempre que colhemos uma safra, colhemos os bichos que andam pelas plantas também. E eles aparecem em muitos produtos vendidos no mercado." No fim das contas, acabei superando as impressões iniciais e até comeria uma segunda rodada de larvas. E você? Toparia um prato de arroz e baratas no jantar? Comer ou não comer Na dúvida, não coma: existem 1,5 milhão de espécies de insetos no mundo, mas apenas 1 662 são comestíveis. Veja a divisão. Número de espécies comestíveis 1 traça 468 besouros 3 piolhos 29 libélulas 49 moscas e mosquitos 61 cupins 78 cigarras e cigarrinhas 102 percevejos 253 borboletas e mariposas 267 gafanhotos, baratas e grilos 351 formigas, abelhas e vespas Fonte Edible Forest Insects, Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação.

Mídia

A velha linguagem da época da Guerra Fria O jornal o Globo a cada dia se supera em matéria de reacionarismo e manipulação da informação. A edição do último dia 7 talvez tenha batido recordes nesse sentido. De Arnaldo Jabor a José Casado, os leitores foram “agraciados” com artigos gênero Clube Militar. Jabor começou a destilar bílis criticando a exumação dos restos mortais de João Goulart, pedido feito pela família do Presidente deposto e atendido pela Comissão Nacional da Verdade em função dos fortes indícios de que o Presidente deposto pode ter sido assassinado com troca de remédios. Com linguajar da época da Guerra Fria, o comentário de Jabor deve ter agradado sobremaneira os associados do Clube Militar saudosistas da ditadura. Já José Casado, em linguagem similar ao Departamento de Estado destilava ódio contra o governo boliviano de Evo Morales. Ao estilo sujíssima Veja, este jornalista repetia baboseiras acusando o governo democrático do país vizinho de vínculos com o narcotráfico e assim sucessivamente. No caso de Casado, por coincidência ou não, o artigo foi postado em O Globo quase ao mesmo tempo em que o Presidente Evo Morales assumia a presidência pró tempore do G-77 e mais a China, cargo que ocupará por todo ano de 2014. Morales tinha sido eleito pelo Grupo no ano passado e nos primeiros dias do novo ano foi a Nova York assumir a função designada pelos integrantes do G-77, espaço criado na Organização das Nações Unidas em junho de 1964 com o objetivo de articular interesses das nações do Sul em questões econômicas. Além de não divulgar o fato para os seus leitores, O Globo concedeu espaço para o articulista José Casado misturar alhos com bugalhos no artigo intitulado Rede Coca em que falou da folha de coca como se fosse a droga. E de quebra ainda criticou o governo brasileiro no episódio do político boliviano, Róger Pinto Molina, que se encontra em Brasília, depois de fugir da Bolívia com a ajuda do diplomata Eduardo Saboia. Ao se referir ao senador boliviano, Casado simplesmente omitiu que Molina responde a vários processos de corrupção em seu país. Mas aí, o articulista de O Globo comentou apenas a versão dos opositores do governo de que o senador é “político ameaçado por denunciar o avanço do narcotráfico no governo Morales”. A fúria de O Globo contra o governo Morales se ampliou quando o Presidente boliviano declarou, após assumir a Presidência do G-77, que no seu país “atualmente o poder está em mãos do povo e não de impérios, pelo que não devem estar submetidos a condicionamentos e paternalismos”. E foi mais adiante ao afirmar que quando não há grupos que exploram, saqueiam e discriminam, a situação muda. Não estamos em tempos de monarquias nem de outros grupos de elites que sempre dominaram”. E assim caminha a mídia de mercado. Se diz imparcial, mas na hora do vamos ver fica geralmente do lado contrário aos governos de países que não aceitam as imposições do Departamento de Estado norte-americano, como notoriamente é o caso do governo Evo Morales. Por estas e outras, não será de se estranhar se em pouco tempo, tanto Jabor como Casado sejam convidados a apoiar os associados do Clube Militar, saudosistas da ditadura e dispostos a defender de todas as formas o regime que levou o país a uma longa noite escura que durou 21 anos. Na galeria dos convidados desta gente, já apareceram Merval Pereira e Reynaldo Azevedo. Podem os leitores imaginar o motivo. Enquanto isso, em Haia, a Corte Internacional está para examinar mil casos de torturas e 200 assassinatos cometidos por soldados do Reino Unido entre 2003 e 2008,. segundo informou a cadeia de televisão britânica Sky News com base em fontes próprias. Espera-se que o jornal mais vendido no Rio de Janeiro divulgue essa informação. Jacobiski (Direto da Redação)

Portugal

Woody Allen deveria filmar também em Lisboa by Marcelo Franco Já me disseram que há um ditado que nos lembra que conhecer o mundo sem ir a Sintra não seria verdadeiramente conhecer o mundo. Bem, não há como discordar, mas acredito que pecado maior talvez seja ir a Lisboa e não ouvir fado. Estamos em Lisboa já há alguns dias, R. e eu, e ainda não ouvimos fado. Ou antes: ainda não fomos a uma casa de fado, pois já ouvimos fadistas na rua e também a música, quase sempre de Amália Rodrigues, que sai das lojas de discos (percebo que escrevi “discos” em vez de “CDs”: muitas vezes, palavras entregam a idade). E há uma mendiga cega na Rua Augusta que sempre está cantando e balançando seu copo para recolher moedas; seu lamento, do qual não entendo nada, fere de um modo pungente meu coração. (Não sei se R. também se sente assim, preciso perguntá-la sobre isso — aliás, noto agora, parece-me que ela ainda não reparou na mendiga, o que pode significar que os vinhos que tenho bebido talvez estejam fazendo com que eu transforme coisas banais em situações memoráveis. Como teste, passarei um dia sem vinho para conferir e, se não encontrar a velhinha novamente, com certeza ficarei não apenas um, mas muitos dias sem beber.) Iremos, claro, ouvir a música na fonte. Antes da aula prática de fado, porém, faço minhas pesquisas e descubro coisas do balacobaco (uma curiosidade: a palavra balacobaco tem certa ligação com o samba; qual seria, se é que existe, a palavra equivalente para o fado?). O fado tem, como todos os tipos de música, seus mistérios: por exemplo, não há concordância sequer em relação a sua origem. Para alguns, ele vem da música dos invasores árabes; para outros, ele descende dos cantos dos trovadores; há ainda quem o queira fruto das canções dos marinheiros portugueses que correram o mundo. Muita gente, contudo, crê que o fado, vejam vocês, viria da nossa música, da modinha e do lundu, influência brasileira (e africana) que teria chegado a Lisboa com o retorno da Família Real, em 1821, do Brasil, onde ela aportara, em 1808, fugida das tropas napoleônicas. Essa versão de origem brasileira do fado tem defensores famosos. Mário de Andrade é um deles, tendo até escrito um artigo sobre o assunto, “As Origens do Fado”, publicado em 1930. E Manuel Antônio de Almeida sempre é lembrado por ter descrito, em “Memórias de um Sargento de Milícias”, várias passagens em que há fado — mas, se me lembro bem das leituras da minha adolescência, esse fado descrito no livro era uma dança, o que José Ramos Tinhorão, imagino, também demonstra em “Fado: Dança do Brasil, Cantar de Lisboa. O Fim de um Mito”, publicado por editora portuguesa (não tenho o livro, que descobri noutro livro de Tinhorão e venho procurando nas livrarias de Lisboa; portanto, por ora apenas especulo para depois, quando conseguir um exemplar, conferir). Com tantas incertezas, fico com algumas definições, por assim dizer, mais poéticas. Uma delas é a do fado “Tudo Isto é Fado”, que Amália, sempre ela, tornou famoso: “Perguntaste-me outro dia Se eu sabia o que era o fado Disse-te que não sabia Tu ficaste admirado Sem saber o que dizia Eu menti naquela hora Disse-te que não sabia Mas vou-te dizer agora Almas vencidas Noites perdidas Sombras bizarras Na Mouraria Canta um rufia Choram guitarras Amor e ciúme Cinzas e lume Dor e pecado Tudo isto existe Tudo isto é triste Tudo isto é fado Se queres ser meu senhor E teres-me sempre a teu lado Não me fales só de amor Fala-me também do fado O fado é meu castigo Só nasceu para me perder O fado é tudo o que eu digo Mais o que eu não sei dizer” Outra definição (explicação talvez seja a palavra mais exata), agora do poeta José Régio (“Fado Português”), liga o fado às viagens marítimas — e o poema também é cantado como fado por Amália: “O fado nasceu num dia Em que o vento mal bulia E o céu o mar prolongava, Na amurada dum veleiro, No peito dum marinheiro Que estando triste, cantava”. (...) De qualquer modo, é certo que o fado se alastrou pelos bairros pobres de Lisboa — ele tem uma nítida identidade urbana —, isso aí pela primeira metade do século 19. Depois, ele foi aos poucos ganhando os salões mais requintados, como talvez fosse previsível que acontecesse — o tango, por exemplo, teve destino semelhante. Com a chegada de Salazar ao poder, houve, de início, censura de letras: um decreto até proibiu os “cantos avinhados de vozes roucas e guitarras pífias”. Mas o fado acabou por se tornar um dos chamados três efes da ditadura: fado, futebol e Fátima (o santuário), o que o levou a uma espécie de ostracismo após a revolução de abril de 1974, a Revolução dos Cravos, por conta dessa identificação, para muitos injusta, do fado com o Estado Novo português (para outros, a identificação não era exagerada: Amália Rodrigues foi até vista chorando no enterro de Salazar). (Uma nota que nada tem a ver com o fado: Manuel, nosso motorista de táxi de vastos bigodes portugueses — os motoristas de táxi de Lisboa, confirmando a piada, se chamam mesmo Joaquim ou Manuel —, disse-nos que “Salazar foi bom para quem não foi preso”. Não percebi ironia nas suas palavras.) Com o tempo, o caráter de esquerda da Revolução foi serenando, e o fado, a partir da década de 80, começou a sair da redoma que lhe fora imposta. Hoje, como toda música identificada com um país, a exemplo do tango e do samba, tem servido para tudo, desde valorizar a identidade nacional até alavancar o turismo. Também seguindo a mesma toada de outras músicas nacionais, tem havido a valorização de fados tradicionais ao mesmo tempo em que são feitas as mais curiosas experimentações, as quais permitiram que se começasse a falar num “novo fado”, com a cantora Mísia como uma espécie de ícone desse movimento não organizado (e atenção, leitor, o famoso grupo Madredeus não é fadista e a também famosa Dulce Pontes não é estritamente uma cantora de fado, já que interpreta outros tipos de música). Há algumas figuras sagradas no panteão dos fadistas. Maria Severa Onofriana, uma espécie de mito fundador, uma protofadista, foi uma prostituta que viveu em Lisboa há quase dois séculos: nasceu em 1820 e morreu em 1846, na Mouraria, com fama de grande cantora. Alfredo Marceneiro (1890-1982), cantor um tanto solene, foi um dos mais venerados entre os fadistas homens. E, claro, há a onipresente Amália Rodrigues, que nasceu em 1920 e estreou, com 19 anos (19!), na legendária casa Retiro da Severa, no Bairro Alto; Amália, falecida em 1999, é a “maior figura de sempre” do fado, como dizem os portugas. Assim, o que se percebe é que o fado, com ou sem ditadura, novo ou velho, talvez seja o mais forte elemento de identidade nacional de Portugal. Algumas músicas mostram essa profunda ligação entre o fado e a gente portuguesa, como o singelo “Ó Gente da Minha Terra”, que, apesar de ser de autoria de Amália Rodrigues e Tiago Machado, prefiro na voz de Mariza: (...) “Ó gente da minha terra Agora é que percebi Esta tristeza que trago Foi de vós que recebi” (...) [saibamais posts=" 1839 "]Feita a lição de casa, pergunto-me: onde é que se canta e toca o fado hoje? Em Lisboa, há casas de fado por toda a cidade, e não poderia ser diferente, pois foi onde ele, quaisquer que tenham sido as suas influências, se fixou de modo definitivo na primeira metade do século 19. Muitas ficam no Bairro Alto e na Mouraria (nome que nos faz ter vontade de lá ter nascido apenas para dizer “sou da Mouraria”), mas as mais conhecidas são as da Alfama, bairro que se alastra, ladeira abaixo, do Castelo de São Jorge até o Tejo, repleto de ruelas e escadarias que lembram a sua origem medieval. Portanto, contra fados não há argumentos. À Alfama, então, já que o bairro “não tem outra canção”, como cantou Amália no fado chamado — surpresa! — “Alfama”: (...) “Alfama não cheira a fado Cheira a povo, a solidão Cheira a silêncio magoado Sabe a tristeza com pão Alfama não cheira a fado Mas não tem outra canção” Não faltam casas de fado no bairro, mas ficamos em dúvida entre duas, diferentes nas suas propostas. O Clube de Fado é, por assim dizer, mais turístico, não tanto como o Viejo Almacén, em Buenos Aires, que tanto estilizou o tango que o transformou num espetáculo insosso, mas é, ainda assim, frequentado praticamente só por estrangeiros. Fica próximo à Sé, cuja vista é magnífica à noite, na Rua de São João da Praça, um pouco antes da verdadeira Alfama. Já a Parreirinha de Alfama, no Beco do Espírito Santo, é uma casa mais rústica, com pé-direito baixo e entrada estreita. Também ela parece destinada aos turistas — e o que não é, nestes tempos globalizados? —, mas lá ainda aparecem muitos lisboetas (ia escrevendo “alfacinhas”, mas não sei se isso seria aceitável ou ofensivo). Optamos, então, pela Parreirinha. Caminhamos na noite fria, mas limpa e agradável, desde nosso hotel, na Baixa, até a Parreirinha. As ruelas são intrincadas; porém, cumprindo uma atávica atividade masculina, estudei antes o mapa e, com poucos erros e pedidos de informações, alcançamos nosso objetivo. Por sorte, conseguimos a última mesa vaga; ao lado, muito perto de nós, há um casal de portugueses de meia-idade. Na entrada, recebeu-nos uma senhora idosa, que depois descobrimos ser Argentina Santos, dona do pedaço, talvez a última cantora de fado tradicional, castiço (ou fado fado, como às vezes se diz). Ela nasceu em 1926 — portanto, já passou dos 80 anos — e abriu o restaurante em 1950. Ao seu lado, um senhor também idoso, elegante e discreto. A noite com certeza promete. O local é um tanto apertado, com as mesas pegadas umas nas outras — onde moramos, isso é defeito; em viagens, é charmoso. Conseguimos chamar a atenção da garçonete, que corre atarefada entre as mesas, e então pedimos nossos pratos e o vinho e aguardamos o espetáculo. A comida — jantamos bacalhau, claro — é saborosa sem ser marcante. Lá pelas tantas (meço o tempo pelo vinho: na segunda garrafa), num espaço que se abre entre as mesas, no meio do restaurante, os músicos se juntam e iniciam o espetáculo; a cada três ou quatro músicas há uma interrupção para que os clientes façam seus pedidos, e nessa hora os músicos são trocados. Nada de especial acontece durante as primeiras músicas. Mas em algum momento um forte sentimento, surgido talvez da acumulação de vinho bebido e fados já cantados, toma conta rapidamente do restaurante, e os portugueses vão juntando suas vozes, comovidos, às vozes dos músicos, enquanto os estrangeiros tentam repetir os refrões que não entendem — uns ingleses numa mesa próxima são especialmente cômicos nessa tentativa, repetindo desajeitamente as palavras: as que terminam em “ão” saem como tijolos de suas bocas. A emoção é grande quando todos cantam os versos “Coimbra tem mais encanto/Na hora da despedida”, da famosa “Balada da Despedida”, e atinge o seu auge, logo depois, com Argentina, agora usando o obrigatório xale preto, cantando “Volta Atrás, Vida Vivida”, acompanhada ao violão — ou guitarra portuguesa, não sei bem — pelo senhor que estava ao seu lado quando chegamos (curiosos, nos perguntamos se ele seria seu marido). A letra arranca pedaços de nós: “Volta atrás, vida vivida Para eu tornar a viver Aquela vida perdida Que nunca soube viver Voltar de novo, quem dera A tal tempo, que saudade Volta sempre a primavera Só não volta a mocidade A vida começa cedo Mas assim que ela começa Começamos por ter medo Que ela se acabe depressa O tempo vai-se passando E agente vai-se iludindo Ora rindo ora chorando Ora chorando ora rindo Meu Deus, como o tempo passa Dizemos de quando em quando Afinal o tempo fica A gente é que vai passando” Argentina Santos Argentina Santos A velha Argentina Santos impõe-se, todos nós estamos com a atenção centrada nela, que não se abala e é toda seriedade: a mulher não esboça nenhum sorriso. Depois de cantar o refrão muitas vezes — e cada repetição é um lâmina espetada em nós —, ela encerra e deixa a clareira entre as mesas, carregando consigo nossas dores e saudades. Caminha no exíguo espaço entre as mesas com o queixo apontando para o alto; o brio de quem sabe que merece toda a atenção até nos faz esquecer o cenário pouco digno, com garçons correndo, barulho de copos e cadeiras arrastadas. Fascinado, eu a sigo com os olhos; seu porte me faz lembrar as mulheres duras e longevas da minha família — imagino que ela seja uma dessas rochas que esteiam todo um clã. R. e eu, machucados na alma, aplaudimos e tomamos largos goles do vinho, talvez tentando cauterizar as feridas. Após mais um intervalo, há ainda Luís Tomar, competente e compenetrado no seu terno escuro, bem mais novo do que a anfitriã — devia estar na primeira dentição quando Argentina já fazia sucesso na Parreirinha. Ele parece ser o preferido de muitos, principalmente de alguns portugueses que, acredito, sejam clientes cativos da casa (mas não é o meu: Argentina tem o meu voto). Escrevendo agora, lembrei-me de uma descrição de uma sessão de fado que emocionou a norte-americana Frances Mayes, autora de best sellers sobre sua mudança dos EUA para a Toscana (“Sob o Sol da Toscana” e “Bela Toscana”); tenho certeza, sem ter ainda relido o texto, que ela se refere a Tomar e à Parreirinha. Procuro o livro, “Um Ano de Viagens”, e vejo que acertei na mosca (ela não cita expressamente a casa nem Argentina Santos, mas a descrição do local e o fato de Luís Tomar ser mencionado comprovam que foi na Parreirinha que ela teve “sua espinha dorsal transformada num fio elétrico”, como escreveu): “O próximo cantor nos derruba de nossas cadeiras. É tão inverossímil! A fadista se encaixa no seu papel, mas Luís Tomar, rígido no seu terno, poderia estar vendendo apólices de seguros. Só para provar que não se deve julgar ninguém pela aparência, a sua voz, tão carregada de emoção contida, cinde os átomos da sala. A paixão ameaça subjugar a canção a qualquer momento, mas permanece contida, num timbre que corresponde exatamente às sinapses dos seus próprios sonhos e anseios íntimos. Gostaria que ele não parasse mais de cantar”. Tomar, mesmo contido, parte para uns fados mais alegres, como “Oiça Lá, Ó Senhor Vinho”, seguido mais uma vez por todos; os ingleses sofrem de novo com as palavras, cantadas muito rapidamente e com a costumeira omissão de vogais: “Oiça lá, ó senhor vinho Vai responder-me, mas com franqueza Por que é que tira toda a firmeza A quem encontra no seu caminho (...) Vossa Mercê tem razão E é ingratidão Falar mal do vinho E a provar o que digo Vamos, meu amigo A mais um copinho” Argentina Santos é às vezes difícil de entender (o verso “Para eu tornar a viver” vira algo como “Pa ieu turnar a v’ver”), já Tomar tem menos acento português. Mas também ele, depois de deixar todos ofegantes com seus fados rápidos, encerra sua parte. E eu lamento que ninguém cante “Estranha Forma de Vida”, talvez o fado mais famoso interpretado por Amália; eu o conheço desde menino (não poderia dar certo: os garotos da minha idade brincando de pique e eu ouvindo fado). Queria ouvi-lo por isso, por sabê-lo de cor há muito tempo, mas também porque sua letra combina com os turbulentos dias que tenho vivido (melhor dizendo: que estava vivendo no Brasil): “Foi por vontade de Deus Que eu vivo nesta ansiedade Que todos os ais são meus Que é toda a minha a saudade Foi por vontade de Deus Que estranha forma de vida Tem este meu coração Vive de forma perdida Quem lhe daria o condão Que estranha forma de vida Coração independente Coração que não comando Vive perdido entre a gente Teimosamente sangrando Coração independente Eu não te acompanho mais Pára, deixa de bater Se não sabes onde vais Por que teimas em correr Eu não te acompanho mais” Ninguém cantou, paciência, pois o espetáculo termina; pagamos então nossa conta e deixamos a Parreirinha. A noite esfriou muito, a temperatura com certeza está abaixo dos dez graus. Embrulhados nos nossos capotes, R. e eu saímos para enfrentar o frio. As ruas encheram-se, há muita gente nos bares, talvez tomando a última ginjinha (“com ou sem?”, perguntam sempre os portugueses para que os clientes digam se querem ou não a bebida com as ginjas, frutinhas parecidas com cereja e com as quais o licor é feito). A emoção da música que ouvimos ainda está conosco, o frio aumenta mais ainda, a alegria das pessoas nos bares contrasta com a tristeza das letras dos fados. Olho R., especialmente bonita e elegante na sua roupa de inverno, noto que ela está feliz pelo fato de estar em outro país (ela é uma dessas mulheres em que a alegria transforma-se em mais beleza física) e penso que vivemos uma dessas ocasiões que marcam qualquer viagem, um dos momentos que ficarão gravados fortemente na memória e que serão repetidos à exaustão aos amigos. No retorno a casa, a soma de cinco ou seis desses momentos torna-se a própria viagem. prazeres Vamos seguindo, sem trocar muitas palavras, para o hotel. E pensando no que vi e no que ainda verei (espero que sempre na companhia de R.), lamentando “Que estranha forma de vida/Tem este meu coração” e lembrando que “Afinal o tempo fica/A gente é que vai passando”, constato mais uma vez que somente estas novas experiências — viagens, literatura, música, gastronomia — podem me suspender um pouco acima da mediocridade em que vivo, sempre envolvido por obrigações e horários a cumprir e sufocado pelas agressões da vida moderna. Como Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), que era português dos pés à cabeça, eu “tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas”; como ele, eu sou também “vadio e pedinte”, e sei que “Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,/Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:/É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,/É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte”. Mas Lisboa e sua música alçaram-me, ainda que por breves momentos, acima disso tudo. E o fado encheu-nos, a mim e a R., da obsessiva saudade portuguesa, essa saudade que já se definiu como uma melancolia feliz e que é “um mal, de que se gosta, e um bem, que se padece” (D. Francisco Manuel de Mello) — mas, ai de nós, ninguém mais sente saudades como nos tempos de Amália. Pois é saudoso — melancólico e feliz ao mesmo tempo —, livre das minhas agruras habituais, que leio de novo, no hotel, Pessoa-Álvaro de Campos, e agora é mais forte a ideia de que eu mereço, de que R. merece mais noites assim e menos obrigações maçantes: “Tão pouca heráldica a vida!/Tão sem tronos e ouropéis quotidianos!/Tão de si própria oca, tão de sentir-se despida/Afogai-me, ó ruído da acção, no som dos vossos oceanos!”. É tarde. Com a música de certa forma ainda presente, olho R., já adormecida, e peço que o fado — sinônimo de “destino” — nos seja leve e que não tenhamos nunca de pedir: “Volta atrás, vida vivida”. Marcelo Franco (Revista Bula)

Céline

Céline – um louco dentro do insano século XX No romance Pulp, de Charles Bukowski, o detetive Nick Belane é contratado pela Morte para encontrar um escritor chamado Céline, que estaria circulando por Los Angeles mesmo depois de morto. Já este artigo busca apresentar quem fora o indivíduo homenageado por Bukowski. Sim, o Céline realmente existiu. Em vida, foi um francês de convicções repugnantes. Entretanto, é inegável que a sua escrita revolucionou e se encontra entre as melhores da literatura moderna. Entenda abaixo porque conhecê-lo se faz necessário... Céline nasceu em Courbevoie, periferia parisiense, no ano de 1894. O seu nome de batismo era Louis-Ferdinand Auguste Destouches. Sobre o seu pseudônimo, o mesmo pode ser explicado como uma homenagem para a avó materna, de quem pegara emprestada a alcunha. louis-ferdinand-celine-a-meudon_1222763465.jpgLouis-Ferdinand Céline A família do escritor, composta por comerciantes e burgueses decadentes, era bastante problemática. Louis Céline nos deu uma mostra de como era doentio o ambiente em que foi criado ao relatar a sua juventude no livro Morte à Crédito. A referida obra, lançada em 1936, é um romance de formação às avessas, no qual Céline procura escancarar em cada linha a miséria humana: a sua, a de sua família, a das figuras que habitavam as vielas de Paris... A existencialista ideia central, como entrega o título, é a de que viver seria esperar pelo fim, quando terminaria a agonia do cotidiano. É digno de nota que as melhores páginas de Morte à Crédito ocorrem quando o autor rememora os episódios traumáticos de sua infância, como quando o pai batia nele por considerá-lo relaxado. Ainda sobre Morte à Crédito, Céline nele radicalizou aquela que depois seria vista como a sua marca: o uso de uma linguagem musical e de expressões populares. Contudo, a proposta da publicação não foi bem compreendida - foi dito que lê-la era “chafurdar na merda” - e Morte à Crédito não recebeu a aclamação que a sua primeira produção, Viagem ao fim da noite, teve. Viagem-ao-fim-da-Noite-Louis-Ferdinand-Celine-Bons-Livros-Para-Ler.jpg “Viagem...” também é autobiográfico, e o livro deu fama à Céline pela sua percepção do trauma coletivo que fora a I Guerra Mundial. Nele, conta-se como um jovem estudante, Ferdinand Bardamu, acabou nos fronts. E é através dessa trajetória que o autor, que realmente abandonou os seus estudos para servir ao exército francês, revela para seus leitores que a guerra era tudo o que ele não compreendia. E que como, de missão em missão, o que ele mais temia era morrer carregando batatas. A história de Viagem ao fim da noite também se desenvolve nas colônias da África, em um hospício e nos Estados Unidos. Todos, pintados em tons infernais e, sem exceção, lugares que o escritor realmente visitara. Apesar da recepção calorosa de parte da crítica, a inovação e o tom de “Viagem...” fizeram Louis Céline perder o Goncourt de 1932. Naquele ano, a justificativa dos jurados do prêmio era a de que eles não podiam laurear grosserias. É que não podemos esquecer que, até a década de 1930, Em Busca do Tempo Perdido ditava o que seria boa literatura. E, se Marcel Proust era delicadeza, fineza e meios-tons, Céline era a crueza, a sujeira e a violência de um tempo de recessão. lf-celine.1190847904.jpg Porém, o maior escândalo da vida deste homem começou em dezembro de 1937. Foi quando Céline embarcou numa viagem sem volta pelo anti-semitismo e racismo, defendidos por ele com uma fúria até hoje inexplicável. É a partir desta data que ele começa a publicar alguns panfletos de ódio e a dar entrevistas exaltando a perseguição aos judeus e outras minorias. Apesar de, posteriormente, ele ter negado as referidas declarações, impõe-se o peso da realidade dos registros. Logo após o desembarque dos aliados na Normandia, Destouches escapou da França com um salvo-conduto fornecido pelos alemães. Esta temporada de sua vida é contada na trilogia De castelo em castelo, Norte e Rigodon, ainda não traduzido para o português. Em fevereiro de 1950, Louis-Ferdinand foi condenado a um ano de prisão, ao estado de indignidade nacional e ao confisco de seus bens. Anistiado alguns meses depois, retornou à França em 1951, reinscrevendo-se na Ordem dos Médicos. Por fim, Céline morreu de congestão cerebral, aos 67 anos, desprezado e esquecido. Contudo, recebeu o reconhecimento póstumo de outros escritores. Entre eles, o já mencionado Bukowski, os beatniks que se encantaram com a sua prosa fluída e Henry Miller. Sobre este último, reza a lenda de que ele teria reescrito o seu Trópico de Câncer após ler “Viagem...”. Concluímos colocando que, ao longo dos seus anos, Louis-Ferdinand Céline participou de momentos chaves da história ocidental, como a I Guerra Mundial, a dominação da África, a crise dos anos 30 e o Holocausto. Estas vivências estão refletidas no seu legado, que nos presenteia com um olhar niilista, e muitas vezes também insano, sobre tais fatos de nossa história. E, se em um momento inicial, é possível acreditar que estamos diante de um indivíduo de convicções esquerdistas, a sua recusa de qualquer crença na capacidade e na bondade humana derruba tal tese. E acaba nos mostrando que a sua pessoa vivia era num permanente estado de quase loucura. Mariana Carolo a dona de mil galáxias. Saiba como escrever na obvious. © obvious: http://lounge.obviousmag.org/o_grito_mudo/2013/01/celine-um-louco-dentro-do-insano-seculo-xx.html?utm_source=obvious&utm_medium=web&utm_campaign=OB7_artigos_relacionados_topo#ixzz2r9M9ZMNy Follow us: obviousmagazine on Facebook

Trabalho Escravo

TRABALHO ESCRAVO EXISTE. RURALISTAS, PAREM DE NEGAR Para: BANCADA RURALISTA Nos dias de hoje, a escravidão é outra e se apresenta de diferentes maneiras. Em todas elas, os trabalhadores têm sua dignidade negada por meio de condições degradantes de trabalho ou por jornadas que vão além do que se pode suportar, sendo em alguns casos forçados a trabalhar sob violência, ameaça ou dívida fraudulenta. São tratados como mercadoria. Graças à adoção de uma nova lei mais dura contra o trabalho escravo (PEC do Trabalho Escravo 57A/1999) temos como melhorar a vida de milhares de brasileiros hoje submetidos à escravidão. Este é um problema grave a ser enfrentado com coragem. A solução não é negá-lo. Trabalho degradante é trabalho escravo, e trabalho escravo é crime. Ruralistas, aprovem a nova lei do trabalho escravo (PEC) sem alteração na definição legal do trabalho escravo. Por que isso é importante? Desde 1995, mais de 46 mil trabalhadores foram resgatados da escravidão. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) reconhece o Brasil como uma referência na luta contra a escravidão contemporânea. Mas este não é suficiente. Precisamos de uma legislação mais radical contra esse crime horroroso. A luta pela aprovação da PEC do Trabalho Escravo já tem 19 anos. Pelas pesadas consequências legais resultando desta prática, a nova lei irá dissuadir o empresariado de usar o trabalho escravo. Quando aprovada a PEC, o empregador irá perder sua propriedade se nela for constatado o uso de trabalho escravo. Essa propriedade será destinada a famílias sem terra ou sem teto. Graças a pessoas como você, comprometidas com a luta pela erradicação da escravidão, a PEC do Trabalho Escravo foi aprovada pela Câmara dos Deputados. Agora que estamos perto de a lei ser definitivamente aprovada no Senado, os Ruralistas querem alterar a definição da escravidão moderna na atual legislação, descaracterizando o que é trabalho escravo. Isso faria com que milhares de casos em que pessoas estão submetidas a condições degradantes análogas às de escravos deixassem de ser considerados. Está na hora de acabar com a escravidão no Brasil. Exija que a bancada ruralista aprove a nova lei do trabalho escravo (PEC) sem alteração na definição legal do trabalho escravo. (Repórter Brasil)

BBB

Como será o BBB 3 000 000? por : Leonardo Mendes Do BBB 14 para o BBB 3 000 000 pode ser um pulo Nietzsche disse que o tempo é um círculo e não uma linha contínua em que caminhamos sempre do passado para o futuro. O passado assim é infinito, tanto quanto o futuro. Duas estradas curvas e infinitas que se encontram sempre no “Instante”. Talvez seja impossível representar racionalmente o que isso significa. O infinito parece que não cabe nas nossas ideias e mesmo o paraíso eterno das religiões é inimaginável. Tanto quanto uma natureza em que o Big Bang seja uma constante. Mas a ideia de Nietzsche do Eterno Retorno parece então cientificamente e talvez até religiosamente razoável. Contudo, traz o problema de que em um universo assim, infinito no tempo, tudo o que poderia acontecer, de fato, já aconteceu. O passado não tem fim nem começo. “E a gente de tanto se repetir não vai notar… que a gente de tanto se repetir não vai notar…”, resume o refrão de “Domingo”, dos Cavaleiros Marginais. Acredito ter visto uma evidência disso assistindo ao Big Brother. De repente fiquei com a impressão de que aquela história seria repetida para sempre e cedo ou tarde mesmo os personagens e suas conversas se repetiriam. A miss desse programa talvez já fosse a mesma de algum outro e a gente não percebesse. Nietzsche perguntava se nos agradaria viver essa mesma vida ainda infinitas vezes e eu pergunto quem será a miss do BBB 3.000.000? Quando as possibilidades de ser alguém absolutamente único entrarão em colapso com o Eterno Retorno no infinito e veremos que a miss é a mesma? Como uma alma que reencarna num outro mundo ou uma combinação aleatória de fatores que, nas probabilidades do infinito, para sempre terão de se repetir. Na verdade, a pergunta mais adequada talvez seja o que temos de tão único que nos garanta que jamais existirá alguém igual a nós? Para alguns empiristas, uma defesa possível dessa condição singular parece a de que nossos amigos são únicos, assim como nossos inimigos ou as impressões digitais. Porém nossa experiência no tempo e no espaço é limitada demais para aceitá-la. Já outros podem dizer que é o observador quem modifica o observado e é quando nós mesmos mudamos que os outros nos parecem diferentes. Mas então até quando mudaremos e no que queremos nos transformar ou estamos nos transformando, pergunta Nietzsche. Qual ser humano acreditamos ser o melhor, pergunta o Big Brother. O programa, no entanto, é uma simulação mal-acabada do Deus que morre em Nietzsche. Um Deus preso a valores e que observa, julga e distribui prêmios e castigos de acordo com o que lhe agrada. É isso o que o Big Brother oferece ao público. A voz da maioria simula a voz desse Deus morto e é à maioria que o participante precisa agradar, como o religioso a seu Deus. Ele se vê também observado o tempo inteiro, ainda que tenha no pensamento um esconderijo inviolável, podendo assim tentar enganar o público. Calcular ações a simular o que acredita serem virtudes e sentimentos nobres. Algo impossível em relação ao Deus de Nietzsche, a quem ninguém enganava. As pessoas é que eram enganadas e por isso mataram Deus. É provável que no BBB 3.000.000 ainda nenhum aparelho seja capaz de apanhar os pensamentos dos participantes ou se relacionar com eles do mesmo modo que fazia o Deus morto. Mais difícil ainda que leia nas entrelinhas do silêncio de cada um. Caso consiga, talvez revele que a miss, de fato, é a mesma. Ou quem sabe não encontre miss alguma. Descubra que na verdade não há nada de único nos seus pensamentos que lhe garanta uma individualidade e encontre em todos os outros os mesmos, traduzidos em diferentes linguagens. As mesmas máquinas desejantes, batizadas por Deleuze. Sempre desmontáveis, reversíveis, conectáveis, com múltiplas entradas e saídas. Purgatórios, infernos e paraísos. Todas as formas de um mesmo princípio criador de realidades, sem centro, início ou fim e nenhum juiz além de nós mesmos. Na ausência de Deus, para julgar a vida alheia, criamos o Big Brother. Sobre o Autor Leonardo é catarinense, jornalista e escreve no blog Van Filosofia. http://filosofiavan.wordpress.com (Diário do Centro do Mundo)

Portugal

Woody Allen deveria filmar também em Lisboa by Marcelo Franco Já me disseram que há um ditado que nos lembra que conhecer o mundo sem ir a Sintra não seria verdadeiramente conhecer o mundo. Bem, não há como discordar, mas acredito que pecado maior talvez seja ir a Lisboa e não ouvir fado. Estamos em Lisboa já há alguns dias, R. e eu, e ainda não ouvimos fado. Ou antes: ainda não fomos a uma casa de fado, pois já ouvimos fadistas na rua e também a música, quase sempre de Amália Rodrigues, que sai das lojas de discos (percebo que escrevi “discos” em vez de “CDs”: muitas vezes, palavras entregam a idade). E há uma mendiga cega na Rua Augusta que sempre está cantando e balançando seu copo para recolher moedas; seu lamento, do qual não entendo nada, fere de um modo pungente meu coração. (Não sei se R. também se sente assim, preciso perguntá-la sobre isso — aliás, noto agora, parece-me que ela ainda não reparou na mendiga, o que pode significar que os vinhos que tenho bebido talvez estejam fazendo com que eu transforme coisas banais em situações memoráveis. Como teste, passarei um dia sem vinho para conferir e, se não encontrar a velhinha novamente, com certeza ficarei não apenas um, mas muitos dias sem beber.) Iremos, claro, ouvir a música na fonte. Antes da aula prática de fado, porém, faço minhas pesquisas e descubro coisas do balacobaco (uma curiosidade: a palavra balacobaco tem certa ligação com o samba; qual seria, se é que existe, a palavra equivalente para o fado?). O fado tem, como todos os tipos de música, seus mistérios: por exemplo, não há concordância sequer em relação a sua origem. Para alguns, ele vem da música dos invasores árabes; para outros, ele descende dos cantos dos trovadores; há ainda quem o queira fruto das canções dos marinheiros portugueses que correram o mundo. Muita gente, contudo, crê que o fado, vejam vocês, viria da nossa música, da modinha e do lundu, influência brasileira (e africana) que teria chegado a Lisboa com o retorno da Família Real, em 1821, do Brasil, onde ela aportara, em 1808, fugida das tropas napoleônicas. Essa versão de origem brasileira do fado tem defensores famosos. Mário de Andrade é um deles, tendo até escrito um artigo sobre o assunto, “As Origens do Fado”, publicado em 1930. E Manuel Antônio de Almeida sempre é lembrado por ter descrito, em “Memórias de um Sargento de Milícias”, várias passagens em que há fado — mas, se me lembro bem das leituras da minha adolescência, esse fado descrito no livro era uma dança, o que José Ramos Tinhorão, imagino, também demonstra em “Fado: Dança do Brasil, Cantar de Lisboa. O Fim de um Mito”, publicado por editora portuguesa (não tenho o livro, que descobri noutro livro de Tinhorão e venho procurando nas livrarias de Lisboa; portanto, por ora apenas especulo para depois, quando conseguir um exemplar, conferir). Com tantas incertezas, fico com algumas definições, por assim dizer, mais poéticas. Uma delas é a do fado “Tudo Isto é Fado”, que Amália, sempre ela, tornou famoso: “Perguntaste-me outro dia Se eu sabia o que era o fado Disse-te que não sabia Tu ficaste admirado Sem saber o que dizia Eu menti naquela hora Disse-te que não sabia Mas vou-te dizer agora Almas vencidas Noites perdidas Sombras bizarras Na Mouraria Canta um rufia Choram guitarras Amor e ciúme Cinzas e lume Dor e pecado Tudo isto existe Tudo isto é triste Tudo isto é fado Se queres ser meu senhor E teres-me sempre a teu lado Não me fales só de amor Fala-me também do fado O fado é meu castigo Só nasceu para me perder O fado é tudo o que eu digo Mais o que eu não sei dizer” Outra definição (explicação talvez seja a palavra mais exata), agora do poeta José Régio (“Fado Português”), liga o fado às viagens marítimas — e o poema também é cantado como fado por Amália: “O fado nasceu num dia Em que o vento mal bulia E o céu o mar prolongava, Na amurada dum veleiro, No peito dum marinheiro Que estando triste, cantava”. (...) De qualquer modo, é certo que o fado se alastrou pelos bairros pobres de Lisboa — ele tem uma nítida identidade urbana —, isso aí pela primeira metade do século 19. Depois, ele foi aos poucos ganhando os salões mais requintados, como talvez fosse previsível que acontecesse — o tango, por exemplo, teve destino semelhante. Com a chegada de Salazar ao poder, houve, de início, censura de letras: um decreto até proibiu os “cantos avinhados de vozes roucas e guitarras pífias”. Mas o fado acabou por se tornar um dos chamados três efes da ditadura: fado, futebol e Fátima (o santuário), o que o levou a uma espécie de ostracismo após a revolução de abril de 1974, a Revolução dos Cravos, por conta dessa identificação, para muitos injusta, do fado com o Estado Novo português (para outros, a identificação não era exagerada: Amália Rodrigues foi até vista chorando no enterro de Salazar). (Uma nota que nada tem a ver com o fado: Manuel, nosso motorista de táxi de vastos bigodes portugueses — os motoristas de táxi de Lisboa, confirmando a piada, se chamam mesmo Joaquim ou Manuel —, disse-nos que “Salazar foi bom para quem não foi preso”. Não percebi ironia nas suas palavras.) Com o tempo, o caráter de esquerda da Revolução foi serenando, e o fado, a partir da década de 80, começou a sair da redoma que lhe fora imposta. Hoje, como toda música identificada com um país, a exemplo do tango e do samba, tem servido para tudo, desde valorizar a identidade nacional até alavancar o turismo. Também seguindo a mesma toada de outras músicas nacionais, tem havido a valorização de fados tradicionais ao mesmo tempo em que são feitas as mais curiosas experimentações, as quais permitiram que se começasse a falar num “novo fado”, com a cantora Mísia como uma espécie de ícone desse movimento não organizado (e atenção, leitor, o famoso grupo Madredeus não é fadista e a também famosa Dulce Pontes não é estritamente uma cantora de fado, já que interpreta outros tipos de música). Há algumas figuras sagradas no panteão dos fadistas. Maria Severa Onofriana, uma espécie de mito fundador, uma protofadista, foi uma prostituta que viveu em Lisboa há quase dois séculos: nasceu em 1820 e morreu em 1846, na Mouraria, com fama de grande cantora. Alfredo Marceneiro (1890-1982), cantor um tanto solene, foi um dos mais venerados entre os fadistas homens. E, claro, há a onipresente Amália Rodrigues, que nasceu em 1920 e estreou, com 19 anos (19!), na legendária casa Retiro da Severa, no Bairro Alto; Amália, falecida em 1999, é a “maior figura de sempre” do fado, como dizem os portugas. Assim, o que se percebe é que o fado, com ou sem ditadura, novo ou velho, talvez seja o mais forte elemento de identidade nacional de Portugal. Algumas músicas mostram essa profunda ligação entre o fado e a gente portuguesa, como o singelo “Ó Gente da Minha Terra”, que, apesar de ser de autoria de Amália Rodrigues e Tiago Machado, prefiro na voz de Mariza: (...) “Ó gente da minha terra Agora é que percebi Esta tristeza que trago Foi de vós que recebi” (...) [saibamais posts=" 1839 "]Feita a lição de casa, pergunto-me: onde é que se canta e toca o fado hoje? Em Lisboa, há casas de fado por toda a cidade, e não poderia ser diferente, pois foi onde ele, quaisquer que tenham sido as suas influências, se fixou de modo definitivo na primeira metade do século 19. Muitas ficam no Bairro Alto e na Mouraria (nome que nos faz ter vontade de lá ter nascido apenas para dizer “sou da Mouraria”), mas as mais conhecidas são as da Alfama, bairro que se alastra, ladeira abaixo, do Castelo de São Jorge até o Tejo, repleto de ruelas e escadarias que lembram a sua origem medieval. Portanto, contra fados não há argumentos. À Alfama, então, já que o bairro “não tem outra canção”, como cantou Amália no fado chamado — surpresa! — “Alfama”: (...) “Alfama não cheira a fado Cheira a povo, a solidão Cheira a silêncio magoado Sabe a tristeza com pão Alfama não cheira a fado Mas não tem outra canção” Não faltam casas de fado no bairro, mas ficamos em dúvida entre duas, diferentes nas suas propostas. O Clube de Fado é, por assim dizer, mais turístico, não tanto como o Viejo Almacén, em Buenos Aires, que tanto estilizou o tango que o transformou num espetáculo insosso, mas é, ainda assim, frequentado praticamente só por estrangeiros. Fica próximo à Sé, cuja vista é magnífica à noite, na Rua de São João da Praça, um pouco antes da verdadeira Alfama. Já a Parreirinha de Alfama, no Beco do Espírito Santo, é uma casa mais rústica, com pé-direito baixo e entrada estreita. Também ela parece destinada aos turistas — e o que não é, nestes tempos globalizados? —, mas lá ainda aparecem muitos lisboetas (ia escrevendo “alfacinhas”, mas não sei se isso seria aceitável ou ofensivo). Optamos, então, pela Parreirinha. Caminhamos na noite fria, mas limpa e agradável, desde nosso hotel, na Baixa, até a Parreirinha. As ruelas são intrincadas; porém, cumprindo uma atávica atividade masculina, estudei antes o mapa e, com poucos erros e pedidos de informações, alcançamos nosso objetivo. Por sorte, conseguimos a última mesa vaga; ao lado, muito perto de nós, há um casal de portugueses de meia-idade. Na entrada, recebeu-nos uma senhora idosa, que depois descobrimos ser Argentina Santos, dona do pedaço, talvez a última cantora de fado tradicional, castiço (ou fado fado, como às vezes se diz). Ela nasceu em 1926 — portanto, já passou dos 80 anos — e abriu o restaurante em 1950. Ao seu lado, um senhor também idoso, elegante e discreto. A noite com certeza promete. O local é um tanto apertado, com as mesas pegadas umas nas outras — onde moramos, isso é defeito; em viagens, é charmoso. Conseguimos chamar a atenção da garçonete, que corre atarefada entre as mesas, e então pedimos nossos pratos e o vinho e aguardamos o espetáculo. A comida — jantamos bacalhau, claro — é saborosa sem ser marcante. Lá pelas tantas (meço o tempo pelo vinho: na segunda garrafa), num espaço que se abre entre as mesas, no meio do restaurante, os músicos se juntam e iniciam o espetáculo; a cada três ou quatro músicas há uma interrupção para que os clientes façam seus pedidos, e nessa hora os músicos são trocados. Nada de especial acontece durante as primeiras músicas. Mas em algum momento um forte sentimento, surgido talvez da acumulação de vinho bebido e fados já cantados, toma conta rapidamente do restaurante, e os portugueses vão juntando suas vozes, comovidos, às vozes dos músicos, enquanto os estrangeiros tentam repetir os refrões que não entendem — uns ingleses numa mesa próxima são especialmente cômicos nessa tentativa, repetindo desajeitamente as palavras: as que terminam em “ão” saem como tijolos de suas bocas. A emoção é grande quando todos cantam os versos “Coimbra tem mais encanto/Na hora da despedida”, da famosa “Balada da Despedida”, e atinge o seu auge, logo depois, com Argentina, agora usando o obrigatório xale preto, cantando “Volta Atrás, Vida Vivida”, acompanhada ao violão — ou guitarra portuguesa, não sei bem — pelo senhor que estava ao seu lado quando chegamos (curiosos, nos perguntamos se ele seria seu marido). A letra arranca pedaços de nós: “Volta atrás, vida vivida Para eu tornar a viver Aquela vida perdida Que nunca soube viver Voltar de novo, quem dera A tal tempo, que saudade Volta sempre a primavera Só não volta a mocidade A vida começa cedo Mas assim que ela começa Começamos por ter medo Que ela se acabe depressa O tempo vai-se passando E agente vai-se iludindo Ora rindo ora chorando Ora chorando ora rindo Meu Deus, como o tempo passa Dizemos de quando em quando Afinal o tempo fica A gente é que vai passando” Argentina Santos Argentina Santos A velha Argentina Santos impõe-se, todos nós estamos com a atenção centrada nela, que não se abala e é toda seriedade: a mulher não esboça nenhum sorriso. Depois de cantar o refrão muitas vezes — e cada repetição é um lâmina espetada em nós —, ela encerra e deixa a clareira entre as mesas, carregando consigo nossas dores e saudades. Caminha no exíguo espaço entre as mesas com o queixo apontando para o alto; o brio de quem sabe que merece toda a atenção até nos faz esquecer o cenário pouco digno, com garçons correndo, barulho de copos e cadeiras arrastadas. Fascinado, eu a sigo com os olhos; seu porte me faz lembrar as mulheres duras e longevas da minha família — imagino que ela seja uma dessas rochas que esteiam todo um clã. R. e eu, machucados na alma, aplaudimos e tomamos largos goles do vinho, talvez tentando cauterizar as feridas. Após mais um intervalo, há ainda Luís Tomar, competente e compenetrado no seu terno escuro, bem mais novo do que a anfitriã — devia estar na primeira dentição quando Argentina já fazia sucesso na Parreirinha. Ele parece ser o preferido de muitos, principalmente de alguns portugueses que, acredito, sejam clientes cativos da casa (mas não é o meu: Argentina tem o meu voto). Escrevendo agora, lembrei-me de uma descrição de uma sessão de fado que emocionou a norte-americana Frances Mayes, autora de best sellers sobre sua mudança dos EUA para a Toscana (“Sob o Sol da Toscana” e “Bela Toscana”); tenho certeza, sem ter ainda relido o texto, que ela se refere a Tomar e à Parreirinha. Procuro o livro, “Um Ano de Viagens”, e vejo que acertei na mosca (ela não cita expressamente a casa nem Argentina Santos, mas a descrição do local e o fato de Luís Tomar ser mencionado comprovam que foi na Parreirinha que ela teve “sua espinha dorsal transformada num fio elétrico”, como escreveu): “O próximo cantor nos derruba de nossas cadeiras. É tão inverossímil! A fadista se encaixa no seu papel, mas Luís Tomar, rígido no seu terno, poderia estar vendendo apólices de seguros. Só para provar que não se deve julgar ninguém pela aparência, a sua voz, tão carregada de emoção contida, cinde os átomos da sala. A paixão ameaça subjugar a canção a qualquer momento, mas permanece contida, num timbre que corresponde exatamente às sinapses dos seus próprios sonhos e anseios íntimos. Gostaria que ele não parasse mais de cantar”. Tomar, mesmo contido, parte para uns fados mais alegres, como “Oiça Lá, Ó Senhor Vinho”, seguido mais uma vez por todos; os ingleses sofrem de novo com as palavras, cantadas muito rapidamente e com a costumeira omissão de vogais: “Oiça lá, ó senhor vinho Vai responder-me, mas com franqueza Por que é que tira toda a firmeza A quem encontra no seu caminho (...) Vossa Mercê tem razão E é ingratidão Falar mal do vinho E a provar o que digo Vamos, meu amigo A mais um copinho” Argentina Santos é às vezes difícil de entender (o verso “Para eu tornar a viver” vira algo como “Pa ieu turnar a v’ver”), já Tomar tem menos acento português. Mas também ele, depois de deixar todos ofegantes com seus fados rápidos, encerra sua parte. E eu lamento que ninguém cante “Estranha Forma de Vida”, talvez o fado mais famoso interpretado por Amália; eu o conheço desde menino (não poderia dar certo: os garotos da minha idade brincando de pique e eu ouvindo fado). Queria ouvi-lo por isso, por sabê-lo de cor há muito tempo, mas também porque sua letra combina com os turbulentos dias que tenho vivido (melhor dizendo: que estava vivendo no Brasil): “Foi por vontade de Deus Que eu vivo nesta ansiedade Que todos os ais são meus Que é toda a minha a saudade Foi por vontade de Deus Que estranha forma de vida Tem este meu coração Vive de forma perdida Quem lhe daria o condão Que estranha forma de vida Coração independente Coração que não comando Vive perdido entre a gente Teimosamente sangrando Coração independente Eu não te acompanho mais Pára, deixa de bater Se não sabes onde vais Por que teimas em correr Eu não te acompanho mais” Ninguém cantou, paciência, pois o espetáculo termina; pagamos então nossa conta e deixamos a Parreirinha. A noite esfriou muito, a temperatura com certeza está abaixo dos dez graus. Embrulhados nos nossos capotes, R. e eu saímos para enfrentar o frio. As ruas encheram-se, há muita gente nos bares, talvez tomando a última ginjinha (“com ou sem?”, perguntam sempre os portugueses para que os clientes digam se querem ou não a bebida com as ginjas, frutinhas parecidas com cereja e com as quais o licor é feito). A emoção da música que ouvimos ainda está conosco, o frio aumenta mais ainda, a alegria das pessoas nos bares contrasta com a tristeza das letras dos fados. Olho R., especialmente bonita e elegante na sua roupa de inverno, noto que ela está feliz pelo fato de estar em outro país (ela é uma dessas mulheres em que a alegria transforma-se em mais beleza física) e penso que vivemos uma dessas ocasiões que marcam qualquer viagem, um dos momentos que ficarão gravados fortemente na memória e que serão repetidos à exaustão aos amigos. No retorno a casa, a soma de cinco ou seis desses momentos torna-se a própria viagem. prazeres Vamos seguindo, sem trocar muitas palavras, para o hotel. E pensando no que vi e no que ainda verei (espero que sempre na companhia de R.), lamentando “Que estranha forma de vida/Tem este meu coração” e lembrando que “Afinal o tempo fica/A gente é que vai passando”, constato mais uma vez que somente estas novas experiências — viagens, literatura, música, gastronomia — podem me suspender um pouco acima da mediocridade em que vivo, sempre envolvido por obrigações e horários a cumprir e sufocado pelas agressões da vida moderna. Como Fernando Pessoa (Álvaro de Campos), que era português dos pés à cabeça, eu “tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas”; como ele, eu sou também “vadio e pedinte”, e sei que “Sim, ser vadio e pedinte, como eu sou,/Não é ser vadio e pedinte, o que é corrente:/É ser isolado na alma, e isso é que é ser vadio,/É ter que pedir aos dias que passem, e nos deixem, e isso é que é ser pedinte”. Mas Lisboa e sua música alçaram-me, ainda que por breves momentos, acima disso tudo. E o fado encheu-nos, a mim e a R., da obsessiva saudade portuguesa, essa saudade que já se definiu como uma melancolia feliz e que é “um mal, de que se gosta, e um bem, que se padece” (D. Francisco Manuel de Mello) — mas, ai de nós, ninguém mais sente saudades como nos tempos de Amália. Pois é saudoso — melancólico e feliz ao mesmo tempo —, livre das minhas agruras habituais, que leio de novo, no hotel, Pessoa-Álvaro de Campos, e agora é mais forte a ideia de que eu mereço, de que R. merece mais noites assim e menos obrigações maçantes: “Tão pouca heráldica a vida!/Tão sem tronos e ouropéis quotidianos!/Tão de si própria oca, tão de sentir-se despida/Afogai-me, ó ruído da acção, no som dos vossos oceanos!”. É tarde. Com a música de certa forma ainda presente, olho R., já adormecida, e peço que o fado — sinônimo de “destino” — nos seja leve e que não tenhamos nunca de pedir: “Volta atrás, vida vivida”. Marcelo Franco (Revista Bula)