Contra o crack, disciplina, trabalho e oração
Por Andrea Dip
Comunidades terapêuticas religiosas são maioria na terceirização do combate ao crack promovida pelo governo federal. Para deputado que lidera o tema, drogadição é “desvio de caráter”
Mariana* vem andando pelo corredor com um sorriso tímido e uma camiseta com dizeres bíblicos em cor verde neon. Aparenta ter muito mais de 36 anos. O crack redesenhou sua pele, seus dentes e marcou sua expressão. A pedido do presidente de honra da comunidade terapêutica – um dependente químico que diz estar limpo há 5 anos graças a sua passagem pela casa – ela saiu da reunião com as senhoras voluntárias da igreja carismática para vir me contar sua história de recuperação. As senhoras celebram minha chegada: “Hoje é dia de Santa Edwiges, foi ela que te mandou aqui conhecer esse trabalho maravilhoso” diz uma delas.
Vamos para outra sala e Mariana começa a contar sua história. É dependente química há 18 anos e foi usuária de crack por cinco anos. É mãe de 3 filhos, um deles diagnosticado como autista. Mora com os irmãos e com a mãe, que é quem agora tem a guarda das crianças. Conheceu aquela comunidade terapêutica – no caso a Servos, em Ceilândia (DF), mas todas que visitei são muito parecidas – através de um parente e, a pedido da família, resolveu se internar. “Nunca fiquei tanto tempo longe dos meus filhos” diz emocionada. “Foi uma decisão muito difícil vir para cá. Eu não conhecia ninguém, não sabia o que iria encontrar. Acontecem muitas brigas porque cada uma é de um lugar, tem uma cultura, uma religião. Pensei muitas vezes em desistir de tudo mas hoje sou grata pelo que passei, graças a Deus eu consegui” diz, referindo-se ao processo de recuperação em meio ao convívio com as companheiras de internação. Há oito meses e algumas semanas internada na comunidade, ela voltaria para casa no dia seguinte. Mariana explica que não tomou remédios para ajudar na desintoxicação “só mesmo para dor de cabeça, porque trabalhava na roça muito tempo debaixo do sol, para suar e esquecer a vontade e aí doía a cabeça”.
“Aqui não tem luxo. Elas arrumam as camas, lavam suas roupas, cuidam da roça e quando tem um trabalho mais pesado para fazer, como subir um muro, a gente chama os internos da unidade masculina. A gente trata os desvios de caráter com oração, disciplina e trabalho” diz Fernando de Oliveira Soares, diretor-presidente da instituição, que, em outubro, passou a receber mil reais mensais por interno, da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) através do programa “Crack, é possível vencer” do governo federal.
Apesar de esperançosa e com muitos planos para a vida do lado de fora, é difícil prever se Mariana vai realmente conseguir viver longe do crack. Isso porque a dependência química é uma doença, como dizem os especialistas, “crônica, progressiva, incurável mas tratável” e não existem até hoje no Brasil, pesquisas confiáveis, estatísticas ou evidências científicas que comprovem a efetividade a longo prazo do tratamento realizado pelas comunidades terapêuticas como a Servos – em sua maioria entidades privadas religiosas, sem fins lucrativos, de internação voluntária que pode chegar a 9 meses e que se baseiam em oração, trabalho e disciplina e nos 12 passos empregados pelos Alcoolicos Anônimos. Ainda assim, a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), através do programa “Crack é possível vencer” abriu um edital em novembro de 2012 para financiar comunidades terapêuticas e até o fechamento desta reportagem (um segundo edital estava em andamento) havia 114 contratos fechados por todo o país. A título de comparação, a rede de Centros de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas (CAPS AD), que se tornou política pública de saúde oficial no começo dos anos 2000, dez anos depois possui apenas 305 postos em todo o território nacional.
Para especialista, terceirização é retrocesso
“Atualmente temos 2679 vagas em funcionamento nas comunidades terapêuticas sendo custeadas por uma linha de financiamento exclusiva. São mil reais mensais por leito e devemos investir cerca de 180 milhões de reais” explica o Secretário Nacional de Políticas Sobre Drogas Vitore André Zilio Maxiano. O programa “Crack é possível vencer” foi lançado em 2011 e visa um pacote de ações conjuntas entre os Ministérios da Justiça, Saúde e do Desenvolvimento Social e Combate a fome para “enfrentamento ao crack e outras drogas” ao custo de R$ 4 bilhões. Entre as medidas mais polêmicas, principalmente entre os profissionais da saúde mental, está o financiamento das comunidades terapêuticas, por retomar o modelo de internação para o tratamento – algo que a reforma psiquiátrica e a política antimanicomial iniciada no fim dos anos 1970 vinham lutando para derrubar pelo grave histórico de torturas e violações de direitos humanos.
No artigo “Política anti crack:Epidemia do Desespero ou do mercado anti-droga?” publicado no site do Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (CEBES), o psiquiatra presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental e pesquisador da Fiocruz, Paulo Amarante, escreve que o financiamento às comunidades terapêuticas foi rejeitado por meio de moções, e que propostas alternativas foram apresentadas por cerca de 50 mil pessoas, tanto na IV Conferência Nacional de Saúde Mental quanto na recém realizada XIV Conferência Nacional de Saúde. Poucos dias após o encerramento da XIV Conferência, continua o pesquisador, o governo anunciou o plano de combate ao crack e o financiamento destas instituições: “A primeira vez que eu ouvi falar [ das comunidades terapêuticas ] foi em uma reunião particular que tive com Tim Lopes [ jornalista assassinado pelo tráfico em 2002 ] que me mostrou fotos e vídeos surpreendentes destas tais ‘comunidades’ que ele estava pesquisando para matérias para a TV Globo. Cenas de violências e maus tratos, de extorsão de familiares, de inúmeros constrangimentos. Mais recentemente o tema tomou uma enorme dimensão, com o crescimento do uso de crack (crescimento ainda muito pouco pesquisado e comprovado). Tenho notado que o processo na mídia tem distorcido a questão – para mais ou para menos – , de acordo com interesses de mercado jornalístico ou outros mercados afins”, escreveu.
Para Amarante, a Reforma Psiquiátrica brasileira, principalmente pela criação dos CAPS, é bem vista internacionalmente por respeitar a autonomia e os direitos dos dependentes – dispensando internação – e pelas iniciativas de Redução de Danos (se quiser saber mais sobre o assunto, eu fiz essa matéria para a revista Fórum em 2009 e pouca coisa mudou desde então). “Os modelos calcados na internação respondem ao imediatismo do desespero da sociedade mas após a alta, mais de 90% retornam às drogas” conclui o psiquiatra.
O Conselho Regional de Psicologia de São Paulo também lançou nota pública repudiando as ações do programa: “O Decreto nº 7.179, de maio de 2010, ao instituir o Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras drogas, tenta suprir a deficiência de uma política de saúde integral. Após este decreto, o Ministério da Saúde, em conjunto com a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD), promove editais que destina, entre outros, apoio financeiro a projetos de utilização de leitos de acolhimento para usuários de crack e outras drogas em Comunidades Terapêuticas. Porém, o nome comunidades terapêuticas abarca toda e qualquer instituição que se proponha a ‘cuidar’ do usuário de álcool e outras drogas na forma jurídica que melhor lhe couber, nos princípios e diretrizes dos proprietários dessas formas jurídicas – ONGS, grupos de auto-ajuda, instituições religiosas. (…) Em um momento em que a Reforma Psiquiátrica Brasileira vem sendo atacada por setores econômicos estratégicos, assistimos ao investimento em 2.500 leitos em instituições que não fazem parte da Rede Substitutiva de Atenção à Saúde Mental do SUS em detrimento da ampliação do número de CAPS-AD e Leitos em Hospitais Gerais. O que se pode observar é que, em sua grande maioria, as comunidades terapêuticas não promovem ações que visam reconstruir os laços comunitários e a inserção social dos internos; não têm articulação com a rede SUS e SUAS do município; não promovem a construção de um Projeto Terapêutico Individualizado, com a participação do usuário e seu familiar, com alternativas de continuidade após a saída do estabelecimento” diz uma parte da nota, que pode ser lida na íntegra aqui.
Em entrevista ao jornal O Globo no começo deste ano, porém, o Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, defendeu o investimento: “Não podemos fechar os olhos para as comunidades terapêuticas. Eu sei que há polêmicas, controvérsias com certos segmentos da sociedade, mas queremos criar condições para que essas entidades façam um trabalho melhor. Queremos que os serviços sejam prestados, o mais rápido possível. Quanto mais leitos, melhor”.
Amorex em vez de médico: a ferramenta de cura de Carimbão
“Se para a psiquiatria existe o Aldol e o Fernagan, para as comunidades acolhedoras existe o Amorex” me disse o deputado federal Givaldo Carimbão (PROS/AL) em seu gabinete em Brasília, orgulhoso das mudanças de rumo que está ajudando a trilhar na política de drogas no país.
Relator do substitutivo ao Projeto de Lei de Osmar Terra (PMDB/RS) 7663/2010, que tramita no Senado, sobre o Sistema Nacional de Política sobre Drogas, o ex-gráfico Carimbão (por isso o apelido) propõe não só o tratamento nas comunidades terapêuticas mas internações involuntárias e penas mais duras para traficantes, como quer ver implantado no país o sistema que apadrinhou em Alagoas: a Secretaria de Promoção da Paz (Sepaz) – órgão especial do governo do Estado que atua através de uma Superintendência de Políticas Sobre Drogas com 40 comunidades terapêuticas e equipes chamadas de “anjos da paz”com a função de convencer dependentes químicos a se internar em uma das instituições. Carimbão, que diz ter ajudado a fundar 98% das comunidades no Estado, indicou diversos secretários da Sepaz, incluindo Jardel Aderico, que pediu exoneração do cargo em outubro após diversos motins, fugas de menores e uma série de denúncias de agressões na Unidade de Internação Masculina, destinada a assistir os menores infratores no estado – também competência da secretaria.
“O problema do crack é um certo desvio de conduta do usuário. É um equívoco colocar a questão das drogas na saúde pública. É uma questão muito mais de violência do que de saúde”, teoriza o deputado e ex-gráfico. Mais do que tratar, precisamos acolher os dependentes, afastar eles do seu habitat. Na comunidade acolhedora o médico fica de fora. Em Alagoas o governador me deu a chance de quebrar esse tabu. Temos 42 comunidades e dois Caps AD” explicou, para disparar em seguida:“Caps AD é uma praga e consultório de rua é um fracasso mental. Redução de danos é um modelo europeu. Eu viajei o mundo estudando isso e para cá não funciona” diz, taxativo.
O deputado contou também que deu terras para uma comunidade e emprestou uma fazenda para outra em Craíbas, também em Alagoas, onde construiu a Cidade de Maria, uma espécie de santuário católico aberto a visitação pública. Em Alagoas, o presidente de uma comunidade disse que Carimbão, em pessoa, roda as instituições nos finais de semana para garantir que está tudo “nos eixos”. “É minha vocação e meu compromisso político” afirma o deputado.
Há cerca de dois anos, porém, a Sepaz distanciou-se um pouco do discurso de Carimbão e colocou o psicólogo Luan Gomes como superintendente. Segundo Gomes, montou-se então uma equipe multidisciplinar que foi a cada uma das 40 comunidades e implantou um projeto terapêutico em que todas são obrigadas pelo governo do Estado a ter ao menos um psicólogo e um assistente social e a se integrar à rede pública de saúde. Segundo ele, hoje os dependentes químicos passam por uma triagem em um centro de atendimento feita por médicos, psicólogos e assistentes sociais e são encaminhados para comunidades que “combinem com seu perfil, dependendo da religião e orientação sexual, por exemplo”. Em 2012, segundo a assessoria de imprensa da Secretaria, foram realizados mais de 5 mil atendimentos. Além da procura voluntária, conselhos tutelares, albergues e a policia comunitária também encaminham pedidos de “convencimento” aos Anjos da Paz. Luan diz que a Sepaz conta ainda com um callcenter, uma frota de carros para levar os dependentes às comunidades, leitos para desintoxicação em um hospital geral e um setor para colocação no mercado de trabalho depois do acolhimento. “Nosso modelo tem sido referência no país, muitos estados já vieram conhecer a Sepaz para implantar algo parecido”, diz, embora reconheça não saber ainda quantas dessas pessoas voltaram ao uso do crack. “A secretaria ainda é muito nova, tem apenas 4 anos, ainda não conseguimos fazer essa pesquisa”, alega.
Mesmo com as mudanças para incluir os especialistas no projeto terapêutico, a comunidade terapêutica que visitei em Alagoas era de orientação católica, com um grande espaço para cultos, além de abrigar uma capela e vários missionários residentes.
Violações de direitos humanos em 68 comunidades terapêuticas visitadas
Em 2011, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) fez uma inspeção em 68 comunidades terapêuticas em todos os estados do país e constatou violações de direitos humanos em todas elas. Na época, o programa “Crack É Possível Vencer” estava em fase de lançamento e já se falava no financiamento às instituições, como explica o coordenador da Comissão de Direitos Humanos do CFP, Pedro Paulo Bicalho: “Nós resolvemos fazer esta inspeção por causa do grande volume de denúncias de maus tratos e violações de direitos que estavam chegando a nós através da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila). Nosso primeiro movimento foi o de fazer contato com a Senad para pedir informações sobre essas instituições e percebemos que eles não tinham essas informações, apesar da proposta de financiamento público. Por isso resolvemos conhecer essas instituições e dar visibilidade a essas denúncias”.
Ele conta que através de uma rede formada pelos conselhos regionais em parceria com o Ministério Público, defensorias e parceiros locais, equipes fizeram uma varredura pelas comunidades. “Infelizmente, o que era uma pergunta acabou se consolidando como resposta positiva em todas as instituições. Em algumas, as violações eram mais evidentes como punições e castigos. Em outras, mais sutis, como o trabalho forçado travestido de laborterapia ou o desrespeito às opções sexuais e identidade de gênero, que se dão através de dogmas religiosos que, na nossa opinião, não são compatíveis com um Estado laico de Direito”. Pedro explica que o relatório foi encaminhado a todos os ministérios, audiências públicas foram criadas mas que, ainda assim, o financiamento foi consolidado. Em um cruzamento entre a primeira lista das instituições aprovadas pela Senad e o relatório do CFP sobre as irregularidades, é possível encontrar três nomes de entidades em comum. As condições para o edital podem ser lidas aqui.
“O plano nacional envolve três Ministérios: o da Educação, o da Saúde e o da Justiça. Nenhum conselho, de nenhum deles foi consultado ou ouvido neste processo. Não houve discussão com a sociedade civil e portanto não houve nenhuma participação social na construção dessa política. Nós não sabemos nem quais foram os critérios reais para a escolha dessas entidades e quem vai fiscalizar e monitorar”, detalha Pedro, acrescentando que, na sua opinião, foi uma opção política: “Nossa impressão é que existe uma pressão política das bancadas religiosas e que as próprias parcerias que foram firmadas para essa base do governo não permitem contrariar essas forças. Essa discussão aponta para uma dificuldade de produzir políticas publicas laicas onde temas como homossexualidade e aborto não encontram espaço de discussão. O que importa é tirar essas pessoas da rua, cumprir uma política higienista muito oportuna em um momento em que o país precisa se preparar para os grandes eventos. Essas pessoas na rua significam uma não assepsia” diz. O psiquiatra Dartiu Xavier, professor da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e diretor do Proad (Programa de Orientação e Assistência a Dependentes), concorda com o raciocínio de Pedro: “Nas cracolândias já houve internações compulsórias através de medidas judiciais, e essa é uma lógica muito perversa porque se atribui a miséria social como consequência do uso da droga e isso não é verdade. Ninguém chegou ali por ter usado droga. Chegaram por um tremendo descaso do estado. São pessoas abandonadas, que não têm acesso à educação, saúde e moradia e a situação de miséria favorece que ele se torne um dependente. Estes modelos ultrapassados de internação tiram das vistas mas não resolvem o problema”.
(Agência Pública)
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