sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Teologia da Libertação

Gustavo Gutiérrez: ‘O teólogo do Deus Libertador’
Juan José Tamayo
Adital

Por Juan José Tamayo
Tradução: ADITAL

Arguedas e Gutiérrez

A teologia cristã tem sido, com frequência, uma disciplina inócua no conjunto dos saberes; beligerante frente aos avanços científicos; legitimadora dos poderes estabelecidos; alheia à marcha da história; pouco sensível aos sofrimentos humanos; e muro de contenção das revoluções sociais e políticas. A teologia latino-americana da libertação quebrou dita imagem, situando o cristianismo na vanguarda dos movimentos sociais que lutam pela transformação da sociedade de todas as opressões, inclusive da religiosa.

Tudo começou com umas conferências do sacerdote peruano Gustavo Gutiérrez, em Chimbote (Peru), em 1968. Essas conferências foram assistidas por seu compatriota, o escritor e antropólogo José María Arguedas, que, em El zorro de arriba y el zorro de abajo, define a Gutiérrez como "o teólogo do Deus Libertador” e o contrapõe ao "sacerdote do Deus inquisidor”, de sua novela Todas las sangres. Em um texto escrito em Santiago de Chile, datado de 20 de agosto de 1969, Arguedas recorda a Gitiérrez que lhe havia lido em Lima as "páginas de Todas las sangres na qual o sacristão e cantor de San Pedro de Lahuaymarca, vendo sua igreja queimada e refugiado junto à comunidade, lhe replica a um sacerdote do Deus inquisidor com argumentos muito similares aos utilizados nas lúcidas e patéticas conferências pronunciadas há pouco, em Chimbote”. O próprio Gutiérrez considera ao sacristão de San Pedro "precursor da Teologia da Libertação” e dedica a Arguedas o livro Teologia de la Liberación. Perspectivas (edição peruana, de 1971; edição espanhola, de 1972), que se abre como texto de Todas las sangres, ao qual se referia o escrito peruano.

Arguedas afirma que talvez com ele se fecha um ciclo e se abre outro no Peru: "fecha-se o da calandria consoladora, do chicote, do ódio impotente, dos fúnebres ‘levantes’, do temor a Deus e do predomínio desse Deus e de seus protegidos, de seus fabricantes”, e se abre o ciclo "da luz e da força libertadora invencível do homem do Vietnam, da calandria de fogo, do Deus libertador”.

Naquelas conferências, Gutiérrez falou da teologia como inteligência do compromisso. Dedica a Arguedas sua obra mais influente no panorama teológico cristão das quatro últimas décadas, a já citada Teologia da Libertação. Perspectivas, que define a teologia como reflexão crítica da praxis histórica à luz da Palavra, como teologia da transformação libertadora da história da humanidade, que não se limita a pensar o mundo; mas, que é um momento do processo através do qual o mundo é transformado, abrindo-se ao dom do reino de Deus.

Perguntas interpeladoras

Estamos ante uma nova maneira de fazer teologia, que teve repercussões sociais e políticas desestabilizadoras para o sistema neocolonial latino-americano e continuam tendo, hoje, para a globalização neoliberal. Gutiérrez leva a cabo uma verdadeira revolução na teologia, cujo ato primeiro é o compromisso com os oprimidos e a experiência religiosa do Deus dos pobres; e cujo ato segundo é a reflexão; porém, não a partir da neutralidade social e da assepsia doutrinal; mas, a partir do reverso da história e da opção ético-evangélica pelos pobres. A estes, o teólogo peruano reconhece uma força histórica capaz de mudar o curso da história em direção à libertação. A teologia da libertação remete ao compromisso dos cristãos nos movimentos de libertação.

Georges Bernanos afirmava que os cristãos são capazes de instalar-se comodamente, inclusive, sob a cruz de Cristo. Gustavo Gutiérrez pretende corrigir essa tendência conformista, ativando as energias utópico-libertadoras do cristianismo. Sua referência intelectual é Bartolomé de las Casas, defensor dos índios submetidos à escravidão pelos conquistadores e precursor do diálogo inter-religioso e da interculturalidade. Sobre ele escreveu um de seus melhores estudos: En busca de los pobres de Jesucristo. El pensamiento de Bartolomé de las Casas, que dedica ao teólogo mártir Ignacio Ellacuría.

As perguntas interpeladoras que queimam os lábios de Gustavo Gutiérrez e golpeiam sua consciência têm a ver com a linguagem sobre Deus: como falar sobre Deus a partir do sofrimento dos inocentes?; como falar de Deus Pai em um mundo onde os seres humanos não são irmãos?; como falar da ressurreição em um mundo onde os excluídos são carne de canhão? A pergunta que agora o interpela com mais radicalidade e urgência é a que dá título a um de seus últimos ensaios: ¿Dónde dormirán los pobres?

As perguntas dão uma ideia acertada da orientação de sua teologia: não levítico-sacerdotal, mas samaritana; não de pensamento único, mas crítica; na perspectiva da libertação e sensível às novas escravidões geradas pela globalização neoliberal. Na teologia de Gustavo Gutiérrez voltam a articular-se harmonicamente pensamento e vida; teoria e práxis; rigor metodológico e talante profético, como aconteceu com missionários, teólogos e bispos defensores dos direitos dos ameríndios no século XVI. O teólogo peruano costumava dizer que ele não acredita na teologia da libertação; pois esta é somente um caminho para melhor seguir a Jesus de Nazaré e contribuir para a libertação dos pobres. Todo um exemplo de modéstia intelectual para os teólogos europeus que nos acostumamos a conceder mais importância à teologia do que à vida e à libertação.

Onde dormirão os pobres?

Gustavo Gutiérrez é o terceiro teólogo a receber o Prêmio Príncipe de Asturias. O primeiro foi Ignacio Ellacuría, título póstumo, em reconhecimento à coerência entre seu trabalho intelectual como teólogo e filósofo, e seu compromisso social com as maiorias populares, que o levou ao martírio, em novembro de 1989, juntamente com outros cinco jesuítas e duas mulheres. O segundo, o cardeal Martini, arcebispo de Milão, por toda uma vida dedicada aos estudos da Bíblia em diálogo com as ciências sociais e por sua permanente atitude de diálogo com os setores não crentes, como demonstrou nas obras En qué creen los que no creen, que recolhe uma série de cartas cruzadas com Umberto Eco, e La oración de los que no creen. ¿Se puede rezar sin fe? Talvez Ludwig Wittgenstein tinha razão ao escrever em seu Notebooks 1914-1916: «Rezar é pensar no sentido do mundo».

Gutiérrez recebeu, em 2003, o Prêmio Príncipe de Asturias de Comunicação e Humanidades junto com o jornalista polonês Ryszard Kapuściński, por seu compromisso ético com os setores mais desfavorecidos, e por ter iniciado e impulsionado uma das correntes de pensamento cristão mais vivas e dinâmicas dos últimos quarenta anos, a teologia da libertação, que se inicia na América Latina na década dos sessenta e pronto se estende por todo o Terceiro Mundo e por ambientes de marginalização do Primeiro.

Gutiérrez dedicou seu trabalho intelectual a desenvolver, fundamentar e difundir as grandes intuições da teologia da libertação entre os públicos mais plurais, desde os universitários, primeiro como conselheiro nacional da União de Estudantes Católicos (UNEC) do Peru, depois como professor de teologia e ciências sociais na Universidade Católica de Lima, e agora, como professor da Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos, até os setores populares, com quem convive e partilha experiências de vida e sofrimento, de esperança e de luto.

Por primeira vez, Gustavo a expressão teología de la liberación em 1968, pouco antes da celebração da II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, e, em seguida adquiriu carta de cidadania. Sua Teología de la Liberación. Perspectivas é, sem dúvida, uma das obras de mais impacto da teologia posterior ao Concílio Vaticano II e conta com traduções para inúmeras línguas e com dezenas de edições em castelhano. Ela, junto com a Teología desde la praxis de la liberación, do brasileiro Hugo Assmann, são consideradas as mais representativas da primeira etapa da teologia da libertação. Ambas, reconhecia, em 1974 o teólogo uruguaio Juan Luis Segundo, "constituem as duas únicas obras da teologia da libertação que elevam o debate a um diálogo científico e bem documentado com a teologia europeia”. A essas duas, creio que se deve somar a Liberación de la teologia, do teólogo uruguaio citado.

A partir delas, a teologia na América Latina deixa de ser sucursal ou arremedo da feita na Europa ou nos Estados Unidos, como havia sido desde a conquista, com apenas algumas exceções, para converter-se na primeira grande corrente de pensamento cristão crítico-libertador nascida fora do primeiro mundo com sinais de identidade e estatuto metodológico próprios. Não em vão se considera uma nova maneira de fazer teologia. Uma teologia que pretende harmonizar a dimensão crítico-profética da fé e o rigor metodológico que corresponde a essa disciplina. Uma teologia na qual se volte a escutar o grito dos pobres com a mesma força e paixão que no Êxodo dos hebreus, nos Profetas de Israel, em Jesus de Nazaré o Cristo Libertador e em Bartolomé de las Casas, defensor dos índios. Uma teologia com entranhas de misericórdia, que não passa ao largo ante o sofrimento dos seres humanos, como o levita e o sacerdote da parábola do bom samaritano.

Nem Gutiérrez, nem a teologia que ele cultiva pretendem roubar o protagonismo aos pobres e oprimidos no processo de libertação. Seu objetivo é devolver-lhes a palavra; contribuir a que recuperem seu protagonismo na comunidade de crentes e na construção de uma sociedade mais justa, fraterna e sororal; e ajudar-lhes a descobrir sua "força histórica”, como reconhece o próprio teólogo peruano em um de seus livros, que leva precisamente esse título: La fuerza histórica de los pobres.
(Adital)

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