quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Paris

O encontro marcado
Um dia desses tive um sonho bem estranho. Tomava uma taça de vinho na place de la République, com uma mulher que não conhecia. O papo era agradável, mas de repente surgiu uma contagem regressiva no alto da minha, digamos, tela mental. E indicava que aquele sonho terminaria em 5 segundos. Caramba, 5 segundos? No melhor da conversa? Quando já começávamos a virar fumaça como o gênio da lâmpada, tive a idéia.

- A gente se reencontra amanhã, aqui mesmo, às 14h.
- Mas onde?
- Na esquina em frente ao KFC.
- Combinado!

Nunca reparei se havia realmente um KFC em République. Fui conferir no dia seguinte, na internet, e para a minha surpresa havia mesmo um, exatamente em uma das esquinas. Nem preciso dizer que a minha manhã foi simplesmente a espera da hora do encontro. Até cheguei adiantado, como não é do meu costume.

Os termômetros marcavam 5 ºC. Moleza para quem já enfrentou -8 ºC. Tanto que fiquei sentado nas mesas do lado de fora, na esquina combinada, um pouco admirado da minha nova condição de imune ao frio. Aí lembrei que estava disfarçado de urso polar, com um grosso casaco de lã e um sobretudo. Bom, quase imune, digamos.

Eu não tinha muita certeza se ela viria mesmo. E além do mais, não seria muito fácil reconhecer um rosto que havia visto apenas uma vez, e em um sonho.

Uma senhora passa e pára em frente ao cardápio. Não era ela. Uma mais jovem vem em seguida, escutando seu iPod no último volume. Olhamo-nos nos olhos. Por um instante, pensei que poderia ser. Mas ela não me reconheceu, então não era.

Observo a paisagem ao redor. No meio da praça, a estátua construída em homenagem à volta da república na França, após o período dos imperadores. As árvores ainda estão secas. A fumaça sai da boca das pessoas quando elas falam. E elas falam os mais diferentes idiomas. Inglês, italiano, espanhol, português, línguas orientais, eslavas e tantas outras que não conseguiria entender nem aqui e nem na China. Muito menos na China, aliás.

Acredito tê-la visto saindo de um café ao lado. Mas essa passa por mim sem nem me notar. Observo uma outra, parada, exatamente no lugar onde combinamos. Parece esperar alguém. Olha impaciente para o relógio e, depois, na minha direção. Passo a mão nos cabelos, disfarçando um aceno tímido. Mas logo pára um carro na sua frente e ela salta pra dentro. Dommage.

O dia está bonito. Céu quase azul. O sol bate nas janelas dos prédios, revelando uma luz transversal e fraca. Apenas o suficiente para fazer dessa uma agradável journée d'hiver.

E é nesse exato momento que percebo que ela está ao meu lado. Na verdade, já estava quando eu cheguei. Reconheço seu rosto. É o rosto de todos que passam por aqui. É o negro, o japonês, o escandinavo, o latino, todos. São os carros, os ônibus, as vélibs, as motos. O KFC e o McDonald's ao lado de tradicionais cafés e brasseries. A senhora fumando, o senhor com as compras, a moça de óculos fashion, a mãe e a filha levando flores para alguém, os adolescentes com guitarras, o cachorro na coleira, o viajante e suas malas pesadas, o casal abraçado e apaixonado, os pombos misturando-se às pessoas, a velha de cabelo tingido de vermelho, as guimbas de cigarros ainda acesas pelo chão, o jovem pai empurrando um carrinho de bebê.

São 14h30. Já estou aqui há mais de meia hora. E ela, Paris, há muito mais tempo do que isso.
(Outras Palavras)

Sexo

Banana com açúcar
em recortes por Gabriel da Cruz em 09 de out de 2013 às 01:40

Fernanda Lima volta a falar daquele assunto que ninguém ousa dizer o nome, na maior intimidade.







Há alguns anos, comentei sobre o suposto caráter revolucionário do oscilante programa global Amor e Sexo. Agora, a atração chega à sua última temporada tentando inovar a revolução, mas parece que a receita da emissora pede conservantes além da medida.

O primeiro programa dessa última temporada foi ao ar na noite da última quinta-feira (3). O tema central era, para o espanto da minoria, nudez. Logo no início, alguns integrantes da equipe do programa desfilaram nus no palco. Como a própria direção do programa disse, uma nudez “política”. A atração foi rápida, com exibição do nu frontal em flashes. Alguns sites e blogs noticiaram o tal progressismo da Globo como uma grande audácia. No entanto, pouco se repercutiu nas mídias sociais, sendo a nudez, para aqueles usuários, menos relevante do que Zeca Camargo dançando no Programa do Jô. Por que hoje os canais tradicionais de televisão não conseguem mais chocar o público com o corpo nu?



Em primeiro lugar, o corpo passou por uma espécie de pasteurização com a sua reprodução industrial. Esquenta-o com apelos incisivos à potência, ao erotismo, à violência, ao descarte para então esfriá-lo com a reprodução desses valores em alta escala. Já é comum a constatação que os “jovens estão cada vez mais precoces” devido ao alto estímulo sexual. O corpo, para um adolescente de 13 anos, não é mais um objeto de desejo escondido em lingeries, mas sim um monumento disponível aos olhos a qualquer instante (programas de auditório) e em qualquer lugar (internet). Não quero interpretar aqui as possíveis implicações nefastas que isso pode trazer ao desenvolvimento social humano, apenas indicar prováveis caminhos que nós mesmos estamos a traçar.

Em segundo lugar, o discurso de naturalizar o corpo é interpretado de maneira aleatória. A ideia de corpo biológico, com sua anatomia e organicidade, é preservada e estendida à ideia de corpo sensual, com seus sentidos e gestualidades. A evidência dessa naturalização pode ser vista justamente na atração inicial de Amor e Sexo: o corpo deve ser habitual, algo tão comum quanto nossas roupas ou o penteado de cabelo que usamos. Ora, algo está errado: se o corpo é, simultaneamente, sentidos e orgânico, físico e gestual, biológico e sensual (para dizer o mínimo), por que deve ser “livre”, “normal”, “sem censura”, “despudorado”?

Fica claro que o que está em jogo é a definição de corpo e seu uso. Em um programa relacionado a sexo, o corpo é instrumento, por mais que Fernanda Lima diga o contrário. Desse modo, querer neutralizar o corpo num ambiente em que é necessária sua instrumentalização me parece um grande equívoco. As pessoas nuas no palco surgiram de luxuosas plumas ostentadas por modelos engravatados, como em um cabaré. O corpo biologicamente nu estava envolto em sensualidades.

Por fim, como no texto citado no início, continuo a me questionar sobre a pertinência do sexo em programas televisivos. A intimidade como mídia vem sendo amplamente difundida nos dominicais, nos especiais jornalísticos e nos entretenimentos televisivos. No entanto, trata-se de uma intimidade caricata, reduzida a funções a serem executadas. Falar de sexo em programas como Amor e Sexo é elencar ações a serem feitas pelo sujeito a fim de conquistar seu objetivo. Assim, sexo pode ser ensinado.

E o verbo se fez carne.



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gabrielsantin
Artigo da autoria de Gabriel da Cruz.
Pois a delícia de sentir o cheiro de tinta fresca é a delícia de ouvir o barulho de uma parede caindo..
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Teologia da Libertação

Teólogo Pablo Richard: A Teologia da Libertação pode recuperar a memória de seus mártires
José Eduardo Mora
Adital

O encontro do 11 de setembro entre Jorge Bergoglio e Gustavo Gutiérrez, criador da Teologia da Libertação (TdL), no Vaticano, desatou todo tipo de afirmações e contrainformações sobre se esse era um gesto inequívoco do Papa para com um movimento marginalizado e perseguido pela Cúria Romana nos últimos 40 anos.

Tradução: ADITAL


Pablo Richard confia em que a Teologia da
Libertação recupere sua memória com a
abertura a este movimento, por parte do
papa Francisco. (Foto: Katya Alvarado)

A atenção da mídia, no caso a concedida pelo L’Obsservatore Romano ao livro "De parte de los pobres. Teología de la Liberación. Teoría de la Iglesia” −de Gutiérrez−, bem como ao próprio autor, foram as chispas que acabaram de acender a incomodidade do setor mais conservador do clero, que considera inadmissível que uma teologia com influência marxista coabite dentro da Igreja.

Pablo Richard (nascido no Chile, em 1939), doutor em teologia e sociologia, e um dos estudiosos mais profundos da TdL na América Latina, e membro do Departamento Ecumênico de Investigações (DEI), analisa nesta entrevista as portas que, atualmente, se abrem para esta teologia, que, em seu momento foi repreendida duramente por João Paulo II, e desacreditada por Joseph Ratzinger.

Autor de livros como Fuerza ética y espiritual de la Teología de la Liberación en el contexto actual de la globalización (2004); La Iglesia de los pobres en América Central, em coautoría com Guillermo Meléndez (1984); La fuerza espiritual de la iglesia de los pobres (1987) e Diez palabras clave sobre la iglesia en América Latina, entre outros textos, Richard ressalta que com o Papa Francisco pode acontecer um renascimento e uma recuperação da memória de 40 anos da TdL e que um dos gestos transcendentais poderia ser a canonização de Dom Óscar Arnulfo Romero, assassinado em San Salvador enquanto celebrava a missa, no dia 24 de março de 1980.

Depois de longos anos de silêncio a que foi submetida pelo poder de Roma, a Teologia da Libertação (TdL) volta a ser tema dentro da Igreja. Que primeiras interpretações podem ser extraídas de dita conjuntura?

- É a possibilidade de recuperar a memória do passado e a possibilidade de abrir um fórum público para avaliar os últimos 40 anos da TdL. O papa Francisco abre esse espaço de reflexão crítica, que também nos permite recuperar a memória de nossos mártires, que deram sua vida pelo Evangelho.

As denúncias da influência marxista na TdL legitimaram em grande medida a perseguição de milhares de cristãos, leigos e sacerdotes, muitos assassinados por seu testemunho evangélico, não por razões ideológicas.

Um fato que transformaria a memória histórica desses 40 anos seria que o papa Francisco canonizasse a Dom Óscar Romero, arcebispo, profeta e mártir de San Salvador, assassinado por anunciar o Evangelho, no dia 24 de março de 1980.

Estamos em presença de uma oportunidade transcendental para a Teologia da Libertação, no sentido de que pode acontecer um ressurgimento, depois de que esta opção fosse "demonizada” e combatida fortemente pelo Vaticano?

− Creio que o papa Francisco nos está dando a grande oportunidade de que a TdL saia à luz pública para provocar um debate aberto sobre ela. O encontro do papa Francisco com o padre Gustavo Gutiérrez, principal inspirador da TdL nesses 40 anos de sua existência, como também o encontro com o arcebispo e teólogo Herdhard Müller, secretário da Congregação para a Doutrina da fé, são signos de uma mudança profundo e radical da reflexão teológica na era que agora se abre.

De João Paulo II a Jorge Bergoglio, que principais mudanças experimentou, em seu interior, a Teologia da Libertação em tão largo período?

− A TdL não é uma doutrina ou um dogma; mas, uma nova maneira de fazer teologia. O primeiro é a prática de libertação, a reflexão teológica é o "ato segundo”. A evolução da TdL não é uma evolução teórica. O que vai mudando é a prática da libertação. Em cada época surge um novo sujeito, uma consciência crítica, um projeto, uma utopia e uma esperança de libertação que nos orienta para onde caminhar. No ato segundo, que é a reflexão teórica a partir da prática de libertação, a grande novidade da TdL é o diálogo com outras ciências: economia política, ciências sociais e filosóficas. A TdL não foi "uma” teologia; mas, um "movimento teológico” que ia nascendo com as novas práticas de libertação e os novos movimentos sociais. Com o papa Francisco, pensamos que a TdL começou a desenvolver-se abertamente na Igreja e em comunhão com ela.

A CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina) confirmou que, em 2012, a pobreza na América Latina atingiu a 167 milhões. Um dos núcleos da TdL era que deviam mudar as estruturas que regiam a sociedade. Nesse sentido, se pode sustentar que a TdL é tão necessária como em seu início?

− Enquanto existir pobreza e estivermos decididos a lutar contra ela, haverá TdL. "Quando os pobres sofrem, os profetas são uma necessidade”.

Qual seria a transcendência para a TdL de que o Vaticano, pelo menos, não a combata abertamente como fez no passado?

− O problema principal não é que a TdL seja ou não seja aceita pelo Vaticano. Se legitima por si mesma a partir de sua força evangélica e libertadora. Se entra livremente no fórum público da Igreja, esta poderia acompanhar todas as correntes atuais de libertação. Já participa no movimento que grita> "outro mundo é possível” e já existem os sujeitos capazes de construí-lo.

Francisco expressou, na entrevista com La Civiltá Cattólica, que não se pode falar da pobreza sem experimentá-la. Esta afirmação o aproxima mais ao que foi defendido pela TdL?

− Com certeza. Não basta fazer uma opção pelos pobres; deve-se estar com eles; dar tempo para estar com eles e cuidar deles. Além disso, a opção pelos pobres é cada vez mais uma opção pelos "movimentos sociais” dos pobres; e isso exige "estar sempre aí”. Historicamente, a TdL nasceu nas "favelas”, nas populações marginais”, nos "tugúrios” e nos lugares mais pobres e também perigosos da América Latina. Aí vivemos, estamos e aí crescemos.

Houve entusiasmo, inclusive, de parte de figuras como Leonardo Boff e Gustavo Gutiérrez por este novo Papa. Como teólogo e estudioso, considera que Francisco contribuirá para mudanças significativos na Igreja?

− Creio que sim. Colocou signos poderosos e discursos radicais (que vão à raiz dos problemas). O papa Francisco já havia dado muitos "testemunhos proféticos”, que são somente um começo de mudanças mais estruturais e globais na Igreja. Por exemplo: a reforma da Cúria vaticana e do Estado vaticano. Alguns pensam que essa mudança é tão global e transcendente, que é possível que o "assassinem”. É possível. Porém, creio que poderia acontecer algo pior: que "fabriquem uma armadilha mortal”, que tornem sua vida impossível, uma guerra invisível e destrutiva. Existe uma "direita católica internacional”, com o apoio de um setor eclesiástico, que é capaz de tudo. Não permitirão que o "bispo de Roma” questione o sistema econômico e político global. Essa "direita católica internacional” conta, possivelmente, com o apoio do poderoso "Opus Dei” e também com a organização mais poderosa ainda: os "Legionários de Cristo” (cujo fundador, o padre Maciel, foi sacerdote pedófilo mais perverso e protegido na historia mais ou menos recente da Igreja).

Existe outro movimento "obscurantista”: "Heraldos do Evangelho”, com muito poder econômico, considerado por alguns como o "exército a serviço do Papa”.

A América Latina poderia experimentar, no novo contexto que surge com o novo Papa, um ressurgimento de suas bases, desde as comunidades que foram marginalizadas historicamente?

− Creio que é uma esperança real e possível. No entanto, devemos insistir em que os movimentos de base, como as Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e os movimentos de leitura pastoral da Bíblia, e muitos outros, vivam com a força que lhes é própria.
[Fonte: Original em espanhol, publicado por Seminario Universidad Digital —Entrevista / 2010 País— 24 de setembro de 2013].

Classe Média

Raul Longo – Esquerda ou direita: qual o cerne ideológico da classe média?

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“A impaciência revolucionária é um fenômeno eminentemente pequeno burguês”

(frase atribuída a Mao Tsé Tung)

Por Raul Longo(*)

Evidente que a ideologia independe da classe social, mas os comportamentos identificam os de cada classe independentemente da ideologia à que se reivindicam.

Tive isso muito claro numa discussão sobre Luchino Visconti que, oriundo da nobreza, era comunista. Foi por volta do ano 2000 e o acesso à parafernália da informática e novos meios eletrônicos de difusão cultural, hoje entretenimento, ainda era restrito a uma minoria.

Em conversa paralela numa reunião de amigos, não dei atenção ao dono da casa que concentrava a conversa com os demais acusando algo de ser uma merda. Alguém ao lado me cochichou indignação por ele estar ser se referindo a um clássico da cinematografia universal: “Morte em Veneza”.

Indignei-me também e lembrando não gostar da linguagem literária dos filmes de Godard ou Bergman, afirmei que nem assim classificaria de “merda” a obra desses mestres. Expliquei quem foi e qual o significado de Visconti para a 7ª arte. Também contei sobre o escritor Thomas Mann e o cinema expressionista alemão reportado no “Morte em Veneza”.

Foi meu erro. Apesar de identificados como esquerdas e militantes lulistas, tomaram como ofensa o fato de alguém que não tinha sequer um aparelho de TV deter informações que não eles não possuíam. Acusaram-me de prepotente e não quiseram mais saber de amizade.

A informática popularizou-se tanto que certamente já não se sentem mais ameaçados quando alguém expõe alguma informação que desconheçam, pois recentemente encontrei a esposa do casal que me cumprimentou muito reconciliadora. Tudo é bastante compreensível considerando que em centros pequenos raramente se depara com alguém que exceda a um nível médio de informações, como é ocorrência comum nas cidades maiores onde normalmente não se sente obrigação de saber mais do que a maioria.

Talvez ainda por essa falta de circulação de informações, pontos de vista, percepções e opiniões divergentes é que há pouco provoquei outra discussão com amigos comentando as manifestações de junho como resultado da sistemática e permanente campanha da mídia contra o governo. Apesar de candidatos pelo PT, coesa e peremptoriamente esses amigos não admitiram nenhuma possibilidade de interferência midiática, convictos de que as manifestações foram espontâneas e provenientes do que consideram falho no governo.

Tentei argumentar concordando com a falta de reações do governo Dilma em alguns aspectos, mas não haver outra justificativa para uma mobilização que não se verificou nem mesmo em momentos de incomparáveis maiores dificuldades à população. Não aceitaram e garantiram que desde o início a mídia se posicionou contra as manifestações.

Como não deixaram expor o que percebia, desisti de tentar e depois usei o correio da internet para enviar imagens e textos da mídia enaltecendo o movimento, e considerações de observadores nacionais e internacionais com a mesma conclusão comum à grande maioria dos que buscaram analisar os motivos daquelas manifestações. E, claro, ironizei desculpando-me por concordar com aquelas opiniões contrárias às de suas certezas.

Dias depois, tentando retomar a mesma discussão, um deles demonstrou-se ofendido com minhas brincadeiras, mas pedi para não retornarmos a uma conversa inútil se impossível aceitar o que se comprovava pelo material que enviei.

Tentei entender porque tamanha dificuldade em concordar com a percepção de tantos analistas e acabei concluindo que se deva ao fato de aqui – como deve ocorrer em outras partes e com todos os partidos – no diretório do Partido dos Trabalhadores haver muitos envolvidos em projetos pessoais que, por maior esforço ou oportunidade, estreitaram relações com o governo federal. Imaginei provável que os amigos se sintam preteridos, transferindo suas mágoas às lideranças nacionais, inclusive Dilma e Lula a quem, na oportunidade seguinte, um deles conferiu todos os adjetivos empregados pela direita. Só faltou o “apedeuta”, porque de resto entrou até o “mau pai” do Collor de Melo!

Dizer o quê? Nada!… Até porque isso da classe média, de direita ou esquerda, adotar os preconceitos da elite, é típico. Mas cometi a bobagem de tentar alguma ponderação sugerindo sempre haver os que cometem erros e deslizes, numa rápida lembrança ao caso dos “Aloprados”. Imediatamente afirmou que ali é que Lula prejudicou Gushiken.

Espantado, lembrei que Gushiken não teve nada a ver com o caso dos “Aloprados”. Insistiu: “- Claro que sim.” Imaginei ter se confundido e lembrei se tratar do caso em que se envolveu o churrasqueiro, natural daqui de Florianópolis; mas então se uniram e pela experiência anterior senti que tentariam me convencer do que sabia não ser verdade. Também indisposto com o mórbido oportunismo, considerei melhor deixar a conversa. Afinal, como candidatos devem ter lá suas razões, mas não sou filiado a partido algum e embora acostumado às assimilações dos discursos da mídia, ainda me é impossível aceitar métodos de manipulação e falsificação de denúncias sem fundamentos. Mesmo quando empregados por quem se identifique como esquerda.

Aí também não tem nada a ver com classe social ou ideologia. Seja discutindo com rico, pobre ou remediado; comunista ou capitalista, a experiência indica que isso de domínio do fato só no STF e o melhor seria enviar o que encontrasse do histórico do que foi citado.

Insistiram para que ficasse, mas sorri me despedindo e prometendo enviar pela internet o que não me deixariam falar ali. No computador, em casa, foi só consultar por “Escândalo dos Aloprados” e copiar o trecho em que são relacionados os nomes dos envolvidos. Novamente fiz acompanhar os pedidos de desculpas por não haver qualquer indicação sobre Gushiken no verbete do Wikipédia.

Aí um escreveu suas dúvidas sobre minha amizade, já que me recusei a ouvir a relação de companheiros que acredita terem sido abandonados por Lula, inclusive Gushiken a quem a seu ver o ex Presidente teria abandonado. Como entre os citados se incluem alguns de meus correspondentes, respondi oferecendo transmitir-lhes suas impressões para conferir o que pensam e sentem a respeito. E copiei trechos de notícias sobre visitas de Lula à Gushiken no Hospital 9 de Julho e Sírio Libanês, onde faleceu após 12 anos de tratamento de câncer no estômago que provocou seu pedido de exoneração em 2006.

Pensei em explicar que não votei em Dilma ou Lula para serem companheiros de sindicalistas ou coo partidários, mas pelo povo brasileiro. Talvez pudesse também escrever que não votei esperando que em 10 anos mudassem os 500 da história da sociedade brasileira, como Fidel mudou a de Cuba, já que desde Salvador Allende não confio no voto como arma mais adequada para mudanças tão abruptas. Mas adiantaria tentar demonstrar que com o surgimento da máfia russa após o fim da União Soviética e tentando entender os motivos da China reassumir a economia capitalista, concluo as utopias como incompatíveis a imediatismos pretensamente revolucionários?

Dizem que Mao Tse Tung afirmava que a impaciência revolucionária é um fenômeno eminentemente pequeno burguês. Não sei se é verdadeira a autoria, mas a frase me faz mesmo lembrar a proverbial paciência chinesa de tão longa história.

Poderia ter escrito também que jamais votaria em qualquer candidato esperando que fizesse um governo perfeito, pois me parece impossível ou irreal um governo perfeito num sistema imperfeito. Mas será que adiantaria?

Depois encontrei também o outro amigo que igualmente demonstrou não ter mais motivos para continuar sendo meu amigo. É triste, mas o que fazer quando os ideais não correspondem aos fatos?

Como dizia Cazuza, sempre há quem precise de alguma ideologia pra viver.

*Raul Longo é jornalista, escritor e poeta. Mora em Florianópolis e é colaborador do “Quem tem medo da democracia?”, onde mantém a coluna “Pouso Longo”.

Segregação

Cultura segregacionista

por Frei Betto*

20130919 betto1 300x225 Cultura segregacionista

A segregação é uma cultura e impregna o instinto. A reação ao diferente é impulsiva, irracional. Como a do ianque que despreza muçulmano por identificar nele um terrorista em potencial; do judeu sionista em relação a árabes; do branco racista frente ao negro; do cristão homofóbico diante de um homossexual.

Essa cultura nefasta impregna também governos e instituições. Chega a ser atávica, inconsciente. A família diz não ser racista, até o dia em que a filha, branca, loura, de olhos claros, apresenta o namorado negro…

Caso recente foi a obstrução do voo de Evo Morales, de Moscou a La Paz, em julho deste ano. Supondo que viajava a bordo o jovem Edward Snowden, que revelou como os serviços secretos estadunidenses espionam o mundo, os EUA convenceram França, Itália, Portugal e Espanha a impedirem escala técnica em seus territórios, obrigando a aeronave a pousar em Viena, onde foi revistada.

A 18 de agosto, David Miranda, companheiro do jornalista Glenn Greenwald, que mora no Rio e divulgou as denúncias de Snowden, ficou 9 horas retido no aeroporto de Londres, onde faria uma escala de duas horas ao viajar de Berlim ao Rio. Confiscaram seus equipamentos eletrônicos, incluindo celular, computador, câmera, cartões de memória, DVDs e jogos.

O objetivo da polícia britânica, monitorada pelos EUA, era obrigar Miranda a revelar senhas e códigos do material que trazia de Berlim, onde havia se encontrado com a documentarista Laura Poitras, para dar prosseguimento ao documentário que Glenn Greenwald está fazendo sobre as informações da NSA, reveladas por Snowden sobre como os EUA espionam o planeta.

Eis a lógica do poder: pune-se quem denuncia o crime e não quem o comete.

O pior é como a grande mídia dá pouca importância a tais atos segregacionistas. Aconselhados por Paulo Freire, façamos o exercício contrário e coloquemos o opressor no lugar do oprimido. Como reagiria a mídia se o avião de Obama fosse interceptado por caças de um país africano? Qual seria o impacto se a filha de George W. Bush fosse detida, ao desembarcar no Brasil, por ter um pai que defende a tortura de supostos terroristas, crime considerado inafiançável por nossas leis?

Nossa cultura segregacionista reduz a pessoa à sua função, origem, cor, condição social. Quem de nós indaga o nome do garçom que lhe serve?

Em julho, a atriz estadunidense Oprah Winfrey entrou em uma loja de Zurique, na Suíça, e pediu para ver uma bolsa que custava o equivalente a R$ 90 mil. A lojista se recusou, supondo que, por ser negra, a consumidora não tinha como pagar aquele preço.

Um amigo que pesquisa o tema fez, há pouco, um teste em um restaurante de luxo de São Paulo. Vestiu duas mulheres e um homem, todos brancos, com jeans esfarrapados, como dita a moda, e enviou-os ao restaurante. Foram acolhidos com derramadas cortesias.

Uma semana depois, um trio de negros chegou ao mesmo restaurante vestindo a mesmas roupas do trio de brancos. O porteiro encarou-os como se fossem mendigos, chamou o maitre, que chamou o gerente, que chamou o dono. O ingresso foi permitido, mas o clima segregacionista perdurou no ambiente.

* Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais.

** Publicado originalmente no site Adital.

Pensamentando

Os donos do saber não sabem ser donos

Músicos, artistas, escritores, blogueiros, cientistas: quem cria quer dialogar e difundir saber. Já quem detém a “propriedade intelectual”

Da Redação

A transformação tecnológica vem há tempos reforçando relevantes transformações políticas, culturais, sociais e econômicas, provocando o rompimento com antigos paradigmas. Em 2011 não foi diferente, e Outras Palavras acompanhou alguns temas que se destacaram no decorrer do ano: a transformação pela qual se passa o jornalismo, os desdobramentos dos avanços tecnológicos no software livre, na cultura digital e na blogosfera, a restrição da liberdade na rede com o aumento da vigilância e a corrida da industria farmacêutica atrás de doenças que dão lucro.

No campo midiático, a consolidação das redes, o ciberativismo, hackerativismo e a luta pela transparência nos negócios públicos mudaram as regras do jogo para os jornais. Em algumas ocasiões, o poder se meteu em saias justas. Nunca os cidadãos contribuíram tanto para a informação uns dos outros — e isso ameaça os antigos conglomerado midiáticos e os poderes que neles se apoiam. Aqui, o Wikileaks pôde introduzir-se e desenvolver-se, colaborando com a exposição de suculentos documentos que ameaçaram o submundo dos sigilosos segredos da diplomacia internacional.

Em contrapartida, tendo em vista o perigo da “ameaça terrorista” e a obsessiva pressão em manter o sigilo, o presidente Barack Obama, prorrogou o Patriot Act – o que seria “a mais recente cortina inventada contra a transparência”, segundo David Bromwich. Tudo leva a crer que Obama, hoje, partilha com seu antecessor a inabalável crença segundo a qual a transparência pública é inimiga do Estado. A internet sofre do mesmo mal. Outras Palavras recordou como a internet foi sendo vampirizadas pelas corporações, que, ao perceberem o valor da colaboração em rede, não tardaram em cravar seus tentáculos para saborear o lucro. Nesse mecanismo, os usuários — essenciais para a construção dessa riqueza — não são remunerados. Pelo contrário, têm suas informações roubadas.

Applemania, lado B
Steve Jobs teria “mudado o mundo”? Ensaio sobre os hábitos de consumo e condições de trabalho que sua empresa reforçou

Não é hora de sair do Facebook
É preciso assumir nosso tempo em todos seus paradoxos, contradições e perplexidades. Ao capitalismo cognitivo, corresponde um movimento em enxame

Pela pirataria na internet
Winton Cardoso defende direito irrestrito ao conhecimento e informação e afirma: esta postura pode criar a biblioteca total gratuita

Ignacio Ramonet descreve explosão do jornalismo
Velha mídia já não pode, nem deseja, separar-se do poder. É possível superá-la articulando redes com publicações profundas e inovadoras

Vigilância, agora sob gestão Obama
Como o presidente prorrogou Patriot Act, que multiplica espionagem sobre cidadãos. Que isso revela acerca de sua relação com poder

As doenças que mais venderão em 2012
“Se há um remédio capaz de gerar lucros, deve haver consumidores”. O que as corporações querem que você compre agora
(Outras Palavras)

domingo, 20 de outubro de 2013

Pensamentando

Hoje n haverá postagens alheias, embora as possua. Primeiro pq este maldito notebook, n obedece as ordens de sua dono e tutor, ou, como diria o Castor filho, a respeito de Marina, este detestável note!
Queria e gostaria, por outro lado, de realizar uma experiência de democracia: tenho ou possuo estes 2 blogues, o Espinho no Dedo pai e o Espinho no Dedo filhote, ambos oriundos de um projeto sem sucesso de escrever um segundo livro - o primeiro, 'Flor de Lótus', muitos do antigo Orkut, já conhecem - resolvi dar um tempo a ditadura militar, saí da APM do B, embora lá tivesse apenas como militante, e fui curtir o meu underground, meu easy rider, muita leitura de budismo, zen, muita praia, fiquei um ano sem estudar e/ou trabalhar. Mas n renego o passado: tornei-me existencialista, graças ao Sartre - escritor - mas numa perspectiva muito niilista, como diria a Bellzinha, minha eterna musa em tudo, serei sempre um misantropo, n misantropo radical, afinal, contrairia minha prática como médico. Mas sou asocial, ateu, abomino as instituições - mas tb n sou anarquista - n vivo numa gaiola de ouro pq n sou rico, digamos gaiola de flande....
Como disse gostaria de socializar + este (e o 'pai', claro) blogue....enviem-me, até anonimamente suas opiniões gostos, ressalvas. eu as receberei c um pé atrás, mas é a vida, correto, editor de Paris, q transcrevo muito aqui...bon jour, p dar uma de pedante....

sábado, 19 de outubro de 2013

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Pensamentando

Otimismo, atitude subversiva
Por
Rodrigo Savazoni

Novos experimentos culturais brasileiros revelam possibilidade de reinventar democracia, diz Rodrigo Savazoni: falta agora Semana de Arte Moderna da política

Rodrigo Savazoni, entrevistado por Sérgio Cohn

Surgiu, nas últimas semanas, uma interpretação particularmente mórbida para as manifestações que sacudiram o Brasil em junho. Elas teriam, segundo tal viés, rasgado a máscara de um país que “se achou”; que ousou acreditar em si mesmo e nas contribuições civilizatórias que poderia aportar ao mundo. A insatisfação de junho teria demonstrado que estas ilusões são tolas. E somam-se agora as imagens da visita do Papa: a praia de Guaratiba enlameada, as multidões comprimindo-se em Copacabana seriam o sinal definitivo de que nos resta curvar a cabeça, em sinal de humildade, meter o rabo entre as pernas e, quem sabe, orar…

Sairá nos próximos dias um livro que é a antítese desta imagem auto-flagelatória. Chama-se “A Onda Rosa Choque – Reflexões sobre redes, cultura e política contemporânea”. Reúne ensaios do jornalista Rodrigo Savazoni, um dos fundadores da Casa de Cultura Digital (CCD), em São Paulo. Transita entre o debate sobre Políticas Culturais e novas Culturas Políticas. Aborda a gestão de Gilberto Gil e Juca Ferreira no MinC; o declínio desse ministério, no governo Dilma; os Fóruns Sociais Mundiais e sua herança; a CCD e o coletivo Fora do Eixo – que o autor estuda, em sua dissertação de mestrado, e com o qual se diz “identificado politicamente”. Mas o livro vai muito além.

Como jornalista, Savazoni oferece visões instigantes sobre todos estes processos. Porém, é como cientista social e político em formação que ele parece mais ousado e agudo. Do conjunto de ensaios, sobressai uma visão do atual cenário brasileiro que talvez possa ser resumida em três grandes ideias: a) Embora marcada por quinhentos anos de injustiça, nossa sociedade vive desde o início deste século, pela primeira vez, um processo intenso de reconhecimento e valorização de suas singularidades – daquilo que fora sempre reprimido, porque nos “diferencia” do padrão e das medidas brancas e europeias; b) Uma das chaves centrais para compreender estas singularidades é a antropofagia. Ao contrário de muitos pesquisadores ilustres, o livro não a vê apenas como eco distante e abstrato dos “insights” de Oswald de Andrade. Identifica-a viva em processos culturais e políticos contemporâneos. Por exemplo, nas originalidades e contradições do Lulismo; ou na audácia (certamente arriscada…) da CCD e do Fora do Eixo, ao lidar com o Estado e o mercado. c) Refugiarmo-nos, em meio às turbulências, no abrigo seguro da régua eurocêntrica seria a estratégia do avestruz – e a certeza da tragédia. O caminho é o oposto. Ao invés de negar, assumir a potência de “nossa natureza cultural, política, afetiva”. Compreender que nossa afirmação será turbulenta e contraditória – ou não será. Aprofundá-la, ao invés de recuar, reverentes a… um padrão civilizatório em frangalhos.

Para chegar a tais posições, Savazoni constroi, ao longo dos textos, revelações importantes e hipóteses saborosas. Conta, por exemplo, que, em meio a importante polêmica interna, a Casa de Cultura Digital recebeu, certa vez, a diretoria da Pepsi do Brasil – levada até lá por uma “agência de tendências”. O encontro (que muitos temeriam, identificando-o como “rendição ao capital”) teve, ao fim, sentido contrário. Se grandes corporações busvacam na CCD a “liberdade” que apregoam hipocritamente em sua publicidade, é porque seu mundo é, de fato, uma gaiola em que se projetam ilusões de autonomia e poder.

Também são provocadoras as visões sobre o Fora do Eixo. Savazoni identifica no coletivo algo que sequer seus desafetos apontaram: traços de leninismo. Mas, ao invés de condenar a tendência – munido do velho calibre europeu bem-pensante –, indaga-se: será que um pouco de centralização não é essencial para garantir a perenidade de experimentos sociais complexos, que precisam reproduzir-se continuamente, para se manter em pé?

Um dos textos mais inspiradores de “A Onda Rosa Choque” é uma entrevista – espécie de anexo – que Savazoni concede ao poeta e editor Sérgio Cohn. Outras Palavras tem a satisfação de publicá-la, a seguir. Nela, o autor fala de uma forma particular de violência pós-capitalista. É oposta às exibições de machismo dos black-blocks, que reproduzem tão enfadonhamente o mesmo culto à força bruta das tropas de choque.

Numa sociedade de controle e consumo, alegria, otimismo e criação são subversivos, sugere Savazoni. Eles negam, em sua imanência, a ideia paralisante e castradora segundo a qual estamos “condenados” à prisão do mercado. Eles abrem portas para uma dissidência quiçá áspera (é muito mais cômodo entorpecer-se no acalento de que “não há saídas”…) – porém tangível, (auto-)transformadora, prazerosa. Eles são “a prova dos nove”, como sugere o Manifesto Antropofágico. Estaremos preparados? Ou recuaremos ao “porto seguro” contra o qual Gil advertia já no antológico Tropicália? Para ajudar a sondar respostas, fique com o diálogo entre Sérgio Cohn e o autor de “A Onda Rosa Choque”. (A.M.)

savazoni

A célebre frase de Décio Pignatari, “na geléia geral brasileira alguém tem que exercer as funções de medula e osso” foi importantíssima para alguns dos expoentes da tropicália. Ela ressoa, por exemplo, na música “Geléia geral”, do Torquato Neto e Gilberto Gil, e depois no texto “Brasil diarréia”, de Hélio Oiticica. Agora que você está ampliando novamente a sua atuação da rede e da sociedade civil e entrando em uma posição institucional, de trabalhar na Secretaria de Cultura da cidade de São Paulo, tendo que encarar a superestrutura, como pensa essa questão?

É claro que é sempre mais cômodo e mais agradável se banhar no tecido gosmento do que ter que enfrentar as obrigações institucionais. Lembro-me do Mármore e a Murta: A inconstância da alma selvagem, ensaio em que Eduardo Viveiros de Castro recupera o sermão do Padre Antonio Vieira. Naquele texto, Viveiros trata de nossa dificuldade, como sociedade, em constituir formas fixas, estruturais. Ele recupera a ideia de que os gentios recebiam os jesuítas e Deus com uma grande facilidade, mas que rapidamente esqueciam aquele Deus dos jesuítas, aquele mesmo Deus que eles tinham tanto adorado no dia anterior, porque já haviam mudado de ideia e de adoração. Enquanto os europeus, talhados no mármore, demoravam mais para assimilar esse Deus, mas uma vez assimilado não mais deixavam de adorá-lo, os gentios, feitos de murta e encontrados na América, eram facilmente talháveis mas rapidamente perdiam a forma. Talvez daí venha a nossa geleia geral matricial. Sempre olhamos para isso por uma tradição filosófica que tentou fazer com que a gente se enquadrasse nos homens de mármore, sem perceber que a nossa grande potência era o fato de sermos de murta. Qual é a grande dificuldade que eu vejo, quando eu topo esse desafio de trabalhar na Secretaria de Cultura? É trabalhar para forjar institucionalidades que lidem com esses homens de murta, que somos nós. Como criar formas de estimular e fortalecer as forças tropicalistas, antropofágicas, e não querer enquadrar as nossas estruturas ou formatar instituições que tenham que lidar com um modelo mental, com formas de agir que são estranhas à nossa natureza cultural, política, afetiva, isso que nos constitui e nos diferencia? “Ou o mundo se brasilifica ou vira nazista”, como diz de forma fantástica Jorge Mautner. Nós podemos olhar para o que conseguimos desenvolver ao longo desse tempo, dessa tradição toda, e fazer com que isso se torne parte do nosso estado, parte das instituições que regulam nossa cultura, parte das instituições que comandam as nossas políticas. Esse é um desafio que me seduz, eu acredito nessa possibilidade, pois quando criamos da sociedade civil instituições como a Casa da Cultura Digital, ou participamos das redes que emergiram nos últimos anos, estamos a criar micro instituições, ainda que efêmeras, nômades, mas que possam dar conta do nosso tempo. A questão é de que maneira podemos fazer isso dentro das grandes estruturas, e fazer de uma maneira que permaneça? É possível? Pelo menos, que criemos instrumentos de fomento às dissidências.

O que Gilberto Gil e Juca Ferreira criaram no MinC foi determinante para as escolhas de toda uma geração. No contexto do governo Lula, surge um ministro e um grupo que se propõe a criar novos espaços políticos, baseados nessa dimensão antropofágica, voltados a reconhecer, fomentar e fortalecer essa diretriz longeva e clandestina da nossa cultura, não tornando-a oficial, mas dizendo: “bom, é isso que nos constitui, é essa a nossa força”. Acho um desafio fascinante, vem daí minha vontade de entender como é que se processam essas redes, essas dinâmicas políticas, que sujeito social é esse e como é que ele pode dialogar com essas outras estruturas, sejam os movimentos mais antigos, os partidos, as instituições. Ao fim, fica a pergunta: de que maneira que possamos avançar com essa compreensão num plano democrático, de repente até constituir uma nova esquerda desse caldo?

Ao mesmo tempo, o Brasil tem que lidar sempre com certo elogio da precariedade, transformada em potência em alguns momentos, como na maravilhosa “estética da fome” de Glauber Rocha, ou utilizada como afirmação da nossa incapacidade de lidar com projetos de longo prazo. Como criar políticas que não enrijeçam as regras, mas que não façam com que as experiências sejam sempre efêmeras e precárias?

Que elas sejam efêmeras e precárias o tanto quanto elas precisam para continuar sendo mananciais de renovação estética e cultural. Pois quer queria, quer não, Glauber filmou em um contexto e teve algumas condições para realizar seu projeto estético. Por mais que fosse “uma câmera na mão e uma ideia da cabeça”, era uma câmera 35mm que custava caríssimo, era preciso obter celulóide, era preciso ter os equipamentos para levá-los até o extremo. O Cinema Novo desemboca na Embrafilme. Essas estruturas, essas relações, permitiram à geração do Cinema Novo realizar seu projeto político e cultural. Até os milicos tiveram um papel fundamental naquele momento. Não é à toa que o Glauber delirante do fim da vida chega a tecer elogios aos seus algozes. Até para estressar as estruturas é preciso ter acesso a elas. De repente, a partir da redemocratização, o Brasil foi ficando careta, e o neoliberalismo à brasileira foi encaretando os processos político-culturais, a cultura seria, no máximo, um bom negócio, ou um adereço de perfumaria. Aí vem um ministro tropicalista no meio do governo Lula e retoma a possibilidade de criarmos políticas que permitam que as nossas maluquices se expressem continuamente. Isso é sensacional.

Em uma entrevista que fiz com o Arto Lindsay, ele comparou a relação das produções culturais no Brasil e EUA nos anos 1970, dizendo que aqui os equipamentos tinham que ser preservados, porque eram escassos. E nos Estados Unidos, como os equipamentos eram muito acessíveis, quando um artista tinha acesso a alguma novidade, podia ter o direito de forçá-la ao limite, para conhecê-la, saber até onde ela alcançava – podia inclusive quebrá-la. E dessa fartura advinha parte da estética punk.

Aí se cria a relação entre a infraestrutura e a estética. É desse caldo essencial que a ética hacker surge: a possibilidade de você modificar o equipamento por dentro, hackeá-lo, abrir essa caixa preta e dar a ela outro significado, outro sentido, outro uso, que faz com que você possa gerar inovação. Agora, até para isso é preciso ter equipamentos e a possibilidade de abri-los. Quando vamos distribuir i-pads nas escolas, as crianças aprendem basicamente a ficar mexendo nos aplicativos e baixá-los na Apple Store. Com isso, estamos formando bons consumidores de produtos da Apple, e não sujeitos que podem pensar novos processos tecnológicos e informacionais. Essa dinâmica dos objetos que nos perpassam e nos definem, se não pudermos mexer dentro deles, repensar os seus usos, não criaremos inovação. Na estética punk, o do it yourself era isso: pegavam um pedal de guitarra, juntavam uma coisa na outra, e em vez de ter uma distorção limpinha se criava uma distorção pesadona. Isso gera uma sonoridade, gera uma estética, um modo de vida e forja uma geração. É nossa obrigação chegar a esse nível de investimento na capacidade crítica do cidadão, e não manter uma estrutura de estado que simplesmente reproduz as dinâmicas de consumo. É preciso fomentar os espaços de invenção reais, e que já estão acontecendo, a despeito dos governos e governantes. Não é o estado achar que vai criá-los, mas identificar e dizer que apoia os processos da sociedade.

Lá no porão da Casa da Cultura Digital, um grupo de engenheiros ligados ao software livre construiu um hackerspace. Por que a gente não pode partir da experiência desses caras e criar laboratórios de garagens espalhados por toda a cidade, onde crianças e aficionados por tecnologia terão acesso aos excedentes do nosso consumo digital, e aprenderão a desmontar e remontar os equipamentos e criar sobre essa base material, que é uma das características mais importantes do nosso tempo? E a partir daí poder desenvolver tecnologias adequadas às realidades sociais específicas. Isso precisa do Estado para se popularizar, para se tornar amplo e generalizado. Da outra ponta, partindo das iniciativas individuais, isso já acontece, mas numa escala menor. Se o governo estiver comprometido com isso, é possível pegar as experiências da sociedade civil, processar e amplificar. Aí o desafio é como adequar as instituições para serem capazes de se relacionar de forma qualificada com esses processos, sem matar a experiência original.

Para isso as formas de controle estatal têm que ser muito mais livres.

Muito mais. As formas regulatórias precisam ser muito mais claras. E também é preciso pensar em institucionalidades mais flexíveis, que estejam em comum acordo com o nosso tempo. O efêmero, que é umas das características mais fortes da nossa época, onde as coisas começam e acabam com grande facilidade, tem que ser contemplado. E temos as estruturas monolíticas e históricas que não mudam nunca, o que gera uma contradição profunda. Por exemplo, a obsolescência tecnológica que temos dentro do Estado. A maior parte das pessoas operando com equipamentos de dez anos atrás. No mundo da tecnologia, viver há dez anos é como viver na pré-história. Temos coletivos, grupos, jovens trabalhando com ultraconexão, mundial, global, e um Estado absolutamente apartado de tudo isso. Resolver isso é fundamental, senão não é possível acompanhar, fica obsoleto, fica desnecessário, e a sensação da população é de que aquilo não funciona. E não funciona mesmo! Porque está numa situação de tal sucateamento que não foi feito para funcionar. E aí há um choque muito pesado, que é a relação entre as estruturas centralizadas e as estruturas horizontais. E existem grandes corporações que processaram essa cultura para dentro delas e conseguiram estabelecer seus diferenciais justamente ao criar simulacros de liberdade. No fundo, sabemos, são grandes gaiolas, mas criam uma sensação de que somos livres e podemos tudo.

Em função da experiência da Casa da Cultura Digital, e isso foi extensivo também ao Fora do Eixo, fomos “denunciados” por alguns grupos da esquerda radical como raptores de capital cultural, de fazermos o mesmo que faz a Google e outras grandes empresas. Chega a ser engraçado. Justo nós, que nunca tivemos capital, sempre vendemos janta para pagar o almoço, trabalhando com produção cultural, sermos comparados a gigantes da internet global. O que nós produzimos sempre foi aberto, livre, apropriável, os códigos-fonte disponíveis em sua integralidade. Muitas vezes por conta dessa condição nossos projetos nem sequer puderam ter continuidade, porque foram tão assimilados e desenvolvidos pelos pares que perderam o valor de troca. A gente queria anular a condição de mercadoria, e de repente somos comparados com ao Google e ao Facebook, megacorporações que dominam o mercado global funcionando como dragas de propriedade simbólica, portanto de recursos da sociedade do conhecimento. Essa crítica de um pequeno grupo, organizado e importante, que nos coloca no mesmo lugar dessas grandes empresas, levou-me à seguinte reflexão: “Será que se tivéssemos investido um pouquinho mais, nós realmente estaríamos em condições de criar algo da proporção de uma Google?” Não seria mau. Mas não é isso que buscamos.

Vocês foram observados por grandes empresas como sabedores de construção de rede.

Sim. Isso ocorreu e ocorre. Na Casa da Cultura Digital, que é uma multiplicidade, houve, por exemplo, reunião com a Pepsi. Eles levaram a diretoria inteira lá. Pararam um ônibus em frente da casa, levados por uma agência de tendências chamada Box 1824, numa excursão para conhecer os nossos pufes sujos, que ocupavam o espaço de convivência. Os diretores queriam ver como vive e trabalha a juventude de hoje. Eles queriam saber como associar a marca a esse “lifestyle”, para ganharem mais dinheiro vendendo Pepsi Cola. Nós não nos furtamos a esse diálogo, e isso foi uma das coisas que fez com que os outros se perguntassem: “Mas esses caras são mesmo de esquerda? Pois a diretoria da Coca-Cola, da Pepsi vai conversar com eles, a diretoria da Vale vai conversar e eles se expõem a isso?” Nunca foi algo totalmente naturalizado. Internamente, na lista de discussão, sempre nos batemos sobre isso. Mas eu acredito que dessa fricção você começa a estabelecer outros fluxos de entendimento. Nós passamos a nos entender melhor a partir daquilo, e aqueles que tinham algum sonho de que talvez a vida corporativa pudesse redimi-los viram que as pessoas presas dentro de um contexto corporativo estavam em busca de uma flexibilidade para os seus negócios que nós já tínhamos. Olhávamos uns para os outros e percebíamos que faltava dinheiro no dia a dia, mas que de repente estávamos vivendo bem. De repente, parte da nossa luta passou a ser criar condições de viver de forma flexível.

Essa posição, obviamente, gera conflitos. Passamos a ter acesso a textos em que somos tidos como arautos de uma renovação do capital, escritos por pessoas como Bruno Cava, Giuseppe Cocco, caras que obviamente não leram o que eu escrevi e me criticaram sem ter lido. Em janeiro de 2012, apresentei em inglês um texto num seminário chamado Marxism and New Media, organizado pelo Michael Hardt, na Universidade de Duke. O pessoal da Universidade Nômade criticou o artigo sem nem sequer ter lido. Tudo bem, entendo que eles possam discordar, achar que conceitualmente eu possa estar sendo equivocado, mas eu fui aceito para apresentar um texto num seminário organizado pelo Hardt, que supostamente junto com Toni Negri é o ídolo-mor de todos eles, então alguma coisa correta devo ter feito para os caras terem aceito meu artigo e permitido que eu apresentasse lá. Também não fui pedir permissão para eles para poder apresentar o artigo, talvez tenha sido isso que tenha incomodado. Ao fazerem essa crítica, localizarem nosso trabalho como um rapto, não me sinto mal. Tento compreender. Gosto do embate, de pensar. Passei a me perguntar: bom, o que será que tem de razão nisso que estão apontando? Vamos lá buscar na essência.

Essa polêmica ficou no ar e nunca aconteceu de verdade. Seria importante que fosse aprofundada. Eles colocam a Casa da Cultura Digital e principalmente o Fora do Eixo como réplicas pouco transparentes do que seriam as grandes corporações, como se fossem uma empresa fingindo que é uma rede.

E que no fundo o nosso negócio seria reproduzir capital simbólico e capturar esse capital gerado em rede, torná-lo mais flexível e vendê-lo, seja por editais do Estado, seja para patrocínio de corporações, em projetos culturais.

Além disso, dizem que vocês são uma rede autoreprodutiva que nem gera capital simbólico…

Só deslocamos. Essa é a análise deles. E é um exercício retórico interessantíssimo. O que seria então o resultante dessa produção que nós trocaríamos, que estaríamos capturando, negociando, vendendo, extraindo do comum? Seria o compartilhamento, as produções em rede. Essa captura funcionaria como se apenas um pequeno grupo se apropriasse desses excedentes, por saber produzir relações cujo valor organiza a produção capitalista no mundo atual. Não digo que isso não exista. Mas não posso concordar que esse seja o foco da ação da Casa da Cultura Digital, que foi uma experiência que eu ajudei diretamente a construir, ou mesmo do Fora do Eixo, rede que estudo e da qual sou politicamente próximo. Aliás, algo que fica obliterado nesse processo são as diferenças entre, por exemplo, essas duas experiências, a CCD e o Fora do Eixo. Nos demais artigos deste livro eu falo bastante dos dois fenômenos. Talvez ajude a entendê-los melhor.

Para ir mais fundo nesse debate, acredito que precisamos entender que topologia as redes possuem. Existe um diagrama do Paul Baran, muito interessante, sobre modelos distintos de redes: descentralizadas, centralizadas e distribuídas. Vejo que existe uma convivência destes vários tipos de redes, em uma sociedade enredada. Aliás, não existe nenhuma rede “pura”. Vivemos um mundo de híbridos e inclusive de redes híbridas, que em momentos operam com maior ou menor centralização ou horizontalidade, e que operam entre si inclusive com dinâmicas distintas, e ao mesmo tempo com diferentes capacidades de incidência e de articulação.

Que tamanho queremos ter? Que tamanhos essas redes podem constituir e, consequentemente, dependendo do tamanho que elas assumem, que resultados elas podem gerar? O que assusta esse pessoal muitas vezes é o tamanho que o Fora do Eixo atingiu, pois conseguiu se constituir em todo o país, em todos os estados, em 200 cidades, mais de duas mil pessoas. Esse grupo está vivendo em comunidades de autoprodução, que são as casas onde as pessoas passam a viver, em um drop in, não mais em um drop out, uma entrada profunda em outro modelo de vida que não é fora da sociedade mas é dentro dessa rede, de maneira extremamente orgânica e que está acontecendo com a experiência específica do Fora do Eixo. A Casa da Cultura Digital é diferente. Inclusive, agora, são casas. A primeira que foi criada ainda está lá, na mesma vila, com algumas pessoas que participaram da primeira dentição, mas outro grupo já criou uma outra casa em São Paulo, e há experiências se organizando no Rio Grande do Sul e no Pará, por exemplo.

Para aprofundar o debate, é preciso alguns passos atrás, me parece. Começar pela seguinte indagação: o que é feito desse recurso acumulado? Quem se beneficia disso? Uma empresa existe para ser empresa, tudo que ela captura ou é para gerar lucro para seus sócios, ou é reinvestimento no seu próprio negócio. No caso do Google, a produção serve para que, por meio de publicidade. os cofres da empresa inchem e remunerem seus acionistas. E no caso do Fora do Eixo? O que é feito com o excedente e com os resultados dessa circulação gerada pelos trabalhos por eles articulados? Em parte, é reinvestido integralmente no financiamento dessa vida “alternativa” que ocorre nas casas, por meio dos caixas coletivos; outra parte fundamental é devolvida por meio de infra-estrutura organizada para ações de maximização das lutas político-culturais que estão ocorrendo; uma parte disso, menor, eu diria, ficaria para investimento em novos projetos, que possam fazer com que a rede aumente seu potencial de incidência. Se há lucro, ele é reutilizado, partilhado. E isso ocorre de forma totalmente transparente, com planilhas abertas e publicadas online, onde é possível saber o que ficou para cada um dos agentes dentro desse processo. Ou seja o processo de redistribuição dos recursos gerados, sejam eles calculados em dinheiro corrente ou moeda social, é de conhecimento comum.

Se fossem entidades que captam exclusivamente em benefício próprio, empresas que vivem para empreender seu próprio negócio permanentemente, haveria duas saídas desses recursos, claramente: uma seria a contabilização disso como lucro, para alguns, e a outra como investimento para gerar mais dentro do negócio, e não são essas as duas formas de saída. Há assimilação dos ganhos e transformação em meios de produção próprios que possam permitir que outros projetos sejam fomentados dentro dessa rede. Há, portanto, fragmentação desse ganho em novos projetos, de perfil semelhante. Eu vejo o Fora do Eixo explodindo-se permanentemente por dentro e pipocando outras frentes. E isso ocorria também dentro da Casa da Cultura Digital. Corta-se a cabeça e dez novas surgem. Esse movimento, que tem várias outros exemplos, está fomentando a ampliação de experiências comuns em todo território nacional. Mais que tudo é para financiar um modelo de vida, um modelo que inclusive passa por criar uma nova economia.

Onde está o desafio? É ampliar o tempo livre e o tempo destinado às relações, ao afeto, às trocas, diminuindo o tempo necessário à produção, o tempo do trabalho propriamente dito. Vai-se aos poucos anulando esse tempo do trabalho e fica um tempo que é a vida sendo vivida, aproveitando-se dessa produção que é capaz de ser distribuída para que se viva muito bem e que se tenha tempo para usufruir daquilo que nos constitui, que são as expressões culturais, estéticas, políticas, a vida na pólis, a vida da construção da coletividade e tudo mais. É o que acho que o Gorz escreve em Adeus o proletariado, em 1980, dizendo que a luta dos movimentos de esquerda não deveria mais ser a distribuição do excedente de produção na relação do trabalho, mas pelo tempo livre, pela redução das jornadas, pelo aumento do tempo livre, e consequentemente pela sua oportunidade de educação, de cultura, de lazer. Porque a distribuição feita corretamente, a partir de outra visão de sociedade, nos garantiria vida qualificada para todos. Não sei se a CCD ou o Fora do Eixo são exatamente isso, mas eu diria que é o que nós devemos perseguir.

A outra crítica é que alguns nomes seriam lançados como poderes nessas redes enquanto outros nomes se manteriam no anonimato. Haveria uma catapulta política para alguns em detrimento de outros.

Pode ser que isso ocorra. No caso da Casa da Cultura Digital, nós reunimos algumas lideranças que já tinham uma trajetória antes de sua existência, como é o caso do professor Sergio Amadeu da Silveira, dos grandes defensores do software livre no Brasil, ou de Cláudio Prado, que articulou os projetos de políticas de cultura digital na gestão de Gil no Ministério da Cultura. Ao mesmo tempo, outras lideranças foram emergindo, gente importante, que é referência desse debate no Brasil, como Daniela Silva e Pedro Markun, do Transparência Hacker; Lia Rangel, André Deak, Bianca Santana, destaque no debate sobre recursos educacionais abertos; Gabriela Agustini, Georgia Nicolau, Dalva Santos, à frente do Festival CulturaDigital.Br; Lucas Pretti, Andressa Viana, Thiago Carrapatoso, entre tantos outros, que pariram inicialmente o Baixo Centro. No caso do Fora do Eixo, eles também foram criando inúmeras lideranças, como Pablo Capilé, Felipe Altenfelder, Talles Lopes, Carol Tokuyo, Lenissa Lenza, Bruno Torturra, isso mais recentemente, mas tem aí o Daniel Zen, o Ricardo Rodrigues, gente do Brasil inteiro. Há muitas lideranças surgindo, gente qualificada que foi formada nessa luta. Pessoas extremamente capazes de desenvolver projetos ultraqualificados, de atuar com maturidade emocional, cultural, política. Vemos quadros na boa tradição dos processos políticos sendo formados, gente muito boa surgindo de dentro. Muita gente reinvestigando sua formação e percebendo como pode viver uma vida inteiramente distinta. O papel de liderança, dentro de processos políticos vigorosos, se forma não pela sua capacidade de ser você mesmo, mas pela capacidade de localizar desejo para muito mais pessoas além de você. Vejo como um ato generoso, de se colocar, muitas vezes, como o instrumento de um processo. Erro é esquecer que, por trás de um nome, de um porta-voz, há todo um processo que o constitui.

Pensei no Gilberto Gil falando do Lula. Gil faz a metáfora do cavalo de santo, aquele que vai para a linha de frente e se coloca à disposição, coloca a sua individualidade guiada por coletivos, não guiada pela sua necessidade de satisfazer o seu ego. A grande liderança é forjada dessa maneira. Lula é um cavalo de santo, incorpora-se nele o povo brasileiro. Pode parecer uma análise complicada, que apontaria para o populismo, porque fica parecendo que um homem é o povo. Mas isso toca muito fundo no nosso tipo de sociedade, que sempre busca alguém que seja o responsável, o representante. E precisamos lidar com isso. Mesmo agora, entre os coletivos aunomistas, como o Passe Livre, eles elegem um porta-voz para lidar com a sociedade tal como ela está organizada, porque não é possível, a cada vez que se precisar negociar com uma empresa, com a mídia ou com o Estado, que se envie uma pessoa diferente. É necessária uma continuidade na conversa. Essa é a questão: qual é a relação que se quer ter com a sociedade tal como ela é? Porque às vezes o que parte da maioria das críticas é que querem que façamos da política um exercício abstrato, que não dialogue com a realidade e o contexto social ao qual nós estamos inseridos. Dentro das estruturas, há horizontalidade, tarefas, responsabilidades partilhadas. Para fora, muitas vezes, isso não fica claro, e o que aparece é a verticalidade.

O que se anuncia quando nos propomos a pensar novas estruturas políticas e culturais?

Essa pergunta é fundamental, porque eu realmente acredito que estamos construindo uma nova cultura política. Estávamos falando um pouco antes da política cultural, agora entramos na dimensão da cultura política. Ou seja, nas relações de convivência, das maneiras como nós podemos vivenciar essa experiência terrestre – e digo isso inclusive em relação à dimensão espiritual, que é algo que a gente exclui em geral das nossas reflexões sobre o desafio do nosso tempo, em uma separação entre corpo, mente e espírito. Eu diria que a mudança da cultura política é um dos aspectos que deveríamos observar mais atentamente, porque sem isso acabamos não conseguindo promover a transformação individual tão necessária para que geremos de fato uma nova sociedade.
Pode-se fazer toda a crítica que for a mim, mas não a minha disposição de tentar compreender a relação com o outro. Penso muito nisso: que tipo de generosidade cada um de nós deve guardar consigo, quanto nós devemos ser capazes de ir além de nossas vontades, quanto temos que ser capazes de lidar com nossos processos de formação, com nossas decepções, incapacidades, incoerências, nossas inseguranças, dentro de um contexto em que a vida em coletividade nos exige?

E o que se vê muitas vezes, dentro desses contextos de rede, é o oposto do altruísmo, da generosidade, da entrega, da anulação do ego exacerbado. Você vê gente falando em colaboração e disputando espaço permanentemente, não sendo capaz de dividir com o outro o mínimo para que a gente possa dizer que de fato estamos vivendo uma relação política de outra natureza.

Como normatizar a experiência da colaboração? O que cada um deve e pode oferecer, e o que cada um deve e pode retirar? O Fora do Eixo, por exemplo, por meio dos Cards, faz em parte essa normatização. E isso incomoda muita gente, por consequentemente parecer que existe uma doutrina nos seus processos, e talvez até exista mesmo. Há uma centralização interna, que parece reproduzir os modelos de organizações leninistas, onde temos uma cúpula e a base. Mas essa foi a forma que encontraram para que a ação de um não dilua a força coletiva. Essa é a experiência deles. Outras que vivi não chegaram a um acordo, eram mais descentralizadas, pareciam mais oxigenadas e, ao fim e ao cabo, produziram insatisfação generalizada, por não proporcionarem um lugar comum de solução das divergências e dos conflitos, que a vida em coletividade fatalmente produz. Estou dizendo tudo isso para dizer o seguinte: o que experienciamos nesses contextos são toda a precariedade e complexidade humanas. Alguns estão estabelecendo um desafio político no macro, de constituir novas políticas culturais, sociais, ambientais, e se debruçando sobre a dinâmica do micro, a cultura política, comportamental, das formas de relações e de sociabilidade que se pretendem gerar dentro desses espaços.

É possível partilhar muitas dimensões da vida. Talvez a mais delicada que se possa partilhar é a de sonhar em conjunto; partilhar nossa capacidade de produzir linguagem em conjunto, criar em conjunto, coisa que os coletivos artísticos vêm fazendo ao longo do último século. Não necessariamente você precisa ir para uma comuna de caixa coletivo, mas você vai viver a criação conjunta, colaborativamente, dividir esse ato humano por excelência, aquilo que nos diferencia e ao mesmo tempo nos toca mais profundamente. Essa troca talvez seja a mais profunda e é extremamente fortuita. Quando se vai para um coletivo que propõe e experimenta isso, como eu experimentei na Casa de Cultura Digital com vários parceiros, toca-se numa dimensão de compartilhamento e colaboração que faz repensar as relações, repensar como vivemos nossas vidas. Isso é muito potente.

Infelizmente, nem todo mundo, porém, sai dessas experiências melhorado. Um monte de gente fica pelo caminho. Ou não consegue chegar ao ponto em que os demais se encontravam, e aí volta, retrocede. Muitos viram críticos radicais daquele processo. Ou porque não entendeu, ou porque teve uma experiência ruim, por muitos fatores. Tem um lado casuístico nisso tudo. Muito erro. E um lado caótico, porque não é um diagrama exato, bem pensado, onde cada uma das funções é pré-determinada. As variáveis são dinâmicas.

Tenho visto tudo isso como um grande laboratório, e nos laboratórios sabemos que vamos fazer um experimento, mas não sabemos qual será o resultado. No máximo, temos uma hipótese. Algo que gostaríamos que ocorresse. Mas o erro está à espreita. Não sabemos se o produto gerado será único ou poderá ser reproduzido em escala. Essas experiências me interessam. Temos de buscar as saídas. No fundo é isso, estamos laboratoriando a existência, a vida, o que viemos fazer nesse plano em várias camadas. E se expor a isso exige de nós um tipo de preparo emocional que nem todos possuem.

Mas acho que devemos reconher que essas experiências são importantes. Não sabemos se elas vão durar. Nem se elas precisam durar. Talvez sobrevivam, mas certamente diferentes, com outras características. Pode ser que vejamos a sociedade se transformar de tal forma que, por exemplo, o Fora do Eixo não precise mais existir. Talvez a utopia venha daí. Viver comunitariamente, como você falava outro dia a respeito das arquiteturas coletivas dentro das cidades. De repente daqui a vinte anos teremos centro urbanos como o de São Paulo, com vários quarteirões de arquiteturas coletivas, com as juventudes e as pessoas da nossa geração, já seremos velhinhos, ou pré-velhinhos, ou middle age, porque as pessoas vivem até os 90 anos, convivendo. E nós estaremos ali no meio do caminho, mas como já viemos forjados dessa experiência, também cairemos para dentro dessas arquiteturas coletivas. E de repente o Centro de São Paulo vai ser um grande caixa coletivo, por que não? Aí não fará mais sentido discutir o Fora do Eixo, mas sim por que a sociedade caminhou nessa direção de ser um embrião de uma coisa que se realizou, e teremos outros modelos para experimentar. Estou brincando um pouco, porque outro dia estava conversando com a Ivana Bentes sobre não conseguirmos hoje fabular e criar ficções positivas a respeito do que vivenciamos. E um desafio é começar a refazer as ficções, porque se pegamos as ficções científicas, as coisas que foram feitas nas últimas décadas, muitas delas são distópicas.

O Colin Wilson, que escreveu O Outsider, fala muito sobre isso. Ele remete ao biólogo Rupert Sheldrake, e diz: “Se Sheldrake estiver certo – e os biólogos estão brigando com ele a cada passo do caminho –, as consequências serão óbvias e extraordinárias. Inicialmente, teríamos que reconhecer que nossos escritores e artistas têm grande parte da culpa pelo estado caótico da sociedade. A maior característica de um vencedor do Prêmio Nobel parece ser acreditar que a vida é fútil e sem sentido, e dizer isso em livros e peças que terminam com a derrota do herói. Nós empurramos esse lixo para nossas crianças na escola e na universidade e acreditamos estar preparando-os para encarar a vida. Se existir mesmo uma verdade na teoria da ressonância mórfica, isso é o equivalente a despejar germes no reservatório de água da cidade.” Ou seja, ele está falando de um inconsciente coletivo forjado por universos distópicos e isso estaria alimentando as novas gerações de forma absolutamente negativa. É meio místico, mas tem algo interessante aí.

De certa maneira, o Cláudio Prado com o pós-rancor também entra um pouco por aí. Esse peso que parte da esquerda se impõe. A estratégia da vitimização. Não acho que temos de esquecer. Tem sim de lembrar, disputar a memória, não dá para passar uma régua no passado, mas acho que tem uma carga de negatividade que é imposta para alguns grupos e que mobiliza a juventude, mas não nos permite ver outros caminhos, outras possibilidades de vida. É interessante pensar sobre um movimento que prega o amor, a diversidade, outras relações possíveis, se veste de rosa choque… Por que incomoda tanto? O otimismo é violento.

O otimismo e a felicidade são mais violentos do que a violência cotidiana que já está assegurada pela grande mídia.

E “a alegria é a prova nos nove”, não é? De alguma maneira, não houve na política nada semelhante ao que foi a Semana de Arte Moderna para as artes, e muito menos tivemos na nossa política uma experiência na nossa política tão radical como o neoconcretismo, o tropicalismo, derivações da antropofagia oswaldiana.

Estão entre o moderno e o contemporâneo, esse jogo é interessante.

E se nos anos 1980 o PT representou a renovação, o moderno, tem que vir o contemporâneo agora. E acho que ele vem de outro PT, que pode nascer de dentro do próprio PT. Ou não. Tenho para mim que não existe saída fora do acordo lulista para o Brasil nos próximos anos. Acho que o acordo que o Lula construiu trará de dentro dele o próximo salto. Mas é esse outro PT, esse Partido Tropicalista que existe aqui ebulindo dentro dessas estruturas, que pode trazer a política para o contemporâneo. Isso sem recusar a experiência acumulada, pois a resposta não vai sair de fora. E aí quando eu falo lulista, não falo necessariamente do Partido dos Trabalhadores. No caso das políticas culturais, Lula foi muito mais longe do que o PT foi capaz. Dentro do Lulismo cabe esse campo que se constituiu incorporando Gilberto Gil e Juca Ferreira em um primeiro momento e cabe, por exemplo, o surgimento de uma nova liderança proveniente da universidade e do pensamento crítico uspiano como Fernando Haddad. Tenho me colocado à disposição, como vários de nós, para fazer emergir esse contemporâneo de dentro da experiência moderna. Ela se atualiza por aí.

O contemporâneo trouxe nas artes visuais a inserção do corpo, assim como a contracultura para a política. O que ainda precisa ser institucionalizado.

É a bioluta. As lutas pela vida. Está na análise foucaultiana sobre o poder: o biopoder. O Deleuze traz isso para a sociedade do controle, o Negri reelabora e inverte o sentido do biopoder, já não mais como um diagnóstico, mas um processo ativo de disputa da sociedade, que passa a se organizar em torno de biolutas. Esses referenciais estão todos postos e de alguma maneira passamos por experiências semelhantes, de estéticas relacionais, de processos de pós-produção, de dinâmicas que incorporam o corpo para dentro, e de alguma maneira também a espiritualidade, que traz para dentro dessa dimensão as reflexões rituais. Nesse caldeirão há um contingente que não estava dado dentro da política tradicional. Acredito que pode aparecer outro caminho, um novo rumo, e dele pode vir a experiência de construir instituições e uma democracia baseada na nossa flexibilidade histórica e da nossa capacidade de deglutição das nossas próprias experiências, referências, não mais tentando reproduzir modelos eurocentricos, mas sim nos colocando o desafio de inventar novos caminhos. E aí talvez, sem ser arrogante, dar de fato respostas para o mundo. Talvez o século que virá seja não o da democracia americana, mas o dá democracia brasileira.
(Outras Palavras)

Paris


Chéri à Paris: Pílulas
Por
Daniel Cariello


Essa região do Rio, apelidei de “shopping da ziquizira”: com tantas farmácias, você se pergunta: é normal ter boa saúde?

Por Daniel Cariello, de Chéri à Paris

A menos de dez minutos a pé da minha casa tem seis livrarias e cento e vinte cafés (desde a última contagem, há quinze dias, mas é possível que já haja uns dois ou três novos). Isso é reflexo de um dos programas preferidos dos parisienses: abrir um livro em uma mesa de um café – de preferência na varanda, se o clima for favorável – e ficar ali horas a fio, lendo compenetradamente, pensando na vida.

Nesse mesmo perímetro tem também três farmácias, que são pequenas, fecham aos domingos e vendem… medicamentos. E apenas medicamentos.

Tô contando isso porque na semana passada visitei o Rio de Janeiro e, precisando comprar dois livros, dirigi-me à minha livraria preferida, a Letras & Expressões, em Ipanema. Um lugar que me acostumei a frequentar, pois era também um ponto de encontro, com uma casa de shows e um restaurante simpático.

Era. Porque agora virou farmácia. Ou melhor, vai virar, já que está em obras.

A drogaria que vai abrir no lugar da Letras & Expressões fica exatamente em frente a uma outra, enorme, e a cinco minutos a pé de outras noventa e três (ou já seriam noventa e quatro?). Essa região, eu apelidei de “shopping da ziquizira”, pois com tantas farmácias você começa a se perguntar se é normal estar em boa saúde. Aí conclui que não. E entra em uma delas pra comprar um “remedinho pra curar essa coisa estranha que tá me dando hoje, sabe?”.

Então sai com um carregamento que “vai te fazer sentir melhor, seja lá o que você tenha, bastando tomar duas cápsulas desse aqui e três glóbulos daquele ali antes do jantar”. E já que está em uma farmácia brasileira, você aproveita para levar para casa duas coca-colas, uma lata de sorvete e três pacotes de biscoito de polvilho. Afinal, os shoppings da ziquizira espalhados por aí te vendem a cura, mas também a garantia da sua breve volta ao estabelecimento.

Ao dar de cara com a enorme placa que dizia “Em breve, para a sua comodidade, mais uma farmácia do grupo X”, fiquei pensando que ao invés de tantos comprimidos deveríamos era tomar mais pílulas literárias, de preferência sentados em um café por longas horas. Talvez assim desocupemos a cabeça desse tanto de doença que a gente adora inventar.



Daniel Cariello, editor da revista Brazuca, é colaborador regular daBiblioteca Diplô/Outras Palavras. Escreve a coluna Chéri à Paris, uma crônica semanal que vê a cidade com olhar brasileiro. Os textos publicados entre março de 2008 e março de 2009 podem ser acessados aqui.
(Outras Palavras)

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Energia

A América do Sul em busca da riqueza energética
Por
Igor Fuser


Gasoduto boliviano: em 2006, país nacionalizou uma de suas riquezas naturais mais importantes

Como países da região reconquistaram, a partir da virada do século, petróleo, gás e eletricidade antes controlados por empresas estrangeiras

Por Igor Fuser


Este texto, cujo título original é “O nacionalismo de recursos no século 21”1, corresponde ao capítulo 10 do livro “Energia e Relações Internacionais” (Editora Saraiva, 2013), de Igor Fuser. O autor, que ofereceu o texto aos leitores de “Outras Palavras”, convida para debate sobre a obra, nesta quinta-feira, às 18h, no curso de Relações Internacionais da PUC de São Paulo, Sala 117-A Prédio Novo (Rua Ministro Godói, 969 – Perdizes – São Paulo – veja mapa).


O papel do Estado na gestão dos recursos energéticos

No período que se inicia em 2000, a tendência de alta dos preços da energia inverteu a prolongada depreciação dos recursos energéticos ao longo das décadas de 1980 e 1990. No mundo inteiro, fortaleceu-se a posição das empresas estatais de hidrocarbonetos em sua relação com as transnacionais. Conforme já foi relatado no Capítulo 5, atualmente 77% das reservas mundiais de petróleo se encontram sob o controle de estatais ou semiestatais. Essas empresas – conhecidas pelo acrônimo em inglês NOCs, de National Oil Companies – administram seus recursos energéticos a partir de interesses que nem sempre coincidem com as prioridades do mercado internacional e dos países mais desenvolvidos2. As NOCs, como agentes das políticas públicas traçadas pelos respectivos governos, geralmente buscam outros objetivos além de maximizar a extração e os lucros, tais como a redistribuição da renda nacional, a geração de receitas fiscais e a promoção do desenvolvimento. Estimulados pela alta dos preços, os governos em todos os países produtores de hidrocarbonetos têm procurado reforçar o controle sobre esses recursos, adotando medidas voltadas para ampliar a sua participação na renda petroleira, ou seja, nos excedentes gerados pelas exportações de petróleo e gás natural.

No plano político, essa postura se traduz no chamado nacionalismo de recursos, ou seja, a gestão dos recursos energéticos – especialmente os hidrocarbonetos – pelos Estados proprietários das reservas a partir de critérios de “interesse nacional”, o que geralmente inclui a elevação das receitas fiscais até o máximo possível, o foco no desenvolvimento econômico e social e a preservação das reservas com vistas ao benefício das gerações futuras. A Rússia, para citar apenas um exemplo, adotou a partir da posse do presidente Vladimir Putin, em 2000, uma política de reestatização parcial das empresas de petróleo e gás que haviam sido privatizadas após a dissolução da União Soviética. Entre outras iniciativas que desagradaram os governantes ocidentais, Putin obrigou empresas estrangeiras, como a Shell e a BP, a vender à companhia semiestatal Gazprom grande parte das suas ações nos projetos de exploração de petróleo e gás na Sibéria3. Os críticos ocidentais argumentam que, ao agir dessa maneira, o governo russo bloqueia os investimentos necessários para ampliar a sua produção de combustíveis. A resposta de Moscou é que, enquanto os preços mundiais da energia estiverem em alta, não é preciso ter pressa em explorar as reservas do país.

Uma faceta importante na mudança do paradigma de governança energética diz respeito ao marco regulatório da exploração dos hidrocarbonetos. O modelo tradicional de concessão da propriedade das reservas está em declínio e só sobrevive nos EUA e em alguns países europeus, como Reino Unido e Noruega4. Para substituir as concessões, a fórmula adotada atualmente no mundo inteiro é do contrato de produção partilhada (Production Sharing Agreement, em inglês), pelo qual o Estado se associa a uma empresa estrangeira nos termos de um acordo que define as condições de prospecção, exploração e produção.

O contrato estabelece o prazo de duração da parceria e a área a ser explorada, definindo também um valor mínimo para os investimentos a serem feitos pela empresa estrangeira e o regime de cobrança de impostos e taxas. O investidor deposita uma quantia para ter acesso à área onde se imagina existirem hidrocarbonetos – o bônus. O investidor arca, sozinho, pelos riscos da empreitada, independentemente de encontrar ou não hidrocarbonetos a serem explorados. Em caso de sucesso, o valor da produção é dividido com o Estado, em termos previamente combinados. Todas as despesas com a exploração do campo ficam por conta da empresa contratante, que irá recuperar os seus gastos com os lucros da produção.

A reversão das políticas neoliberais na América Latina

Nos países latino-americanos, a alta dos preços no mercado global da energia trouxe um poderoso alento para a retomada da tendência histórica de políticas nacionalistas na exploração dos hidrocarbonetos. Ao longo de todo o século 20, a América Latina protagonizou episódios que se tornaram referência na disputa global entre os Estados nacionais e as empresas transnacionais pelo controle do petróleo. Na Argentina, em 1922, criou-se a primeira empresa estatal para a prospecção e produção de petróleo, a Yacimientos Petroliferos Fiscales (YPF). Em 1936, a Bolívia se tornou o primeiro país do mundo – depois da União Soviética – a expropriar uma empresa petrolífera estrangeira5. Dois anos depois, em 1938, o México deu um passo adiante e instaurou o monopólio estatal do petróleo pela primeira vez em um país capitalista, expropriando, a exemplo da Bolívia, as transnacionais que operavam em seu território. E a Venezuela, muito antes de nacionalizar o seu petróleo, em 1976, já exercia um papel de liderança na luta global pela apropriação da renda petroleira. Em 1948, inaugurou o movimento internacional pela repartição dos ganhos entre os Estados produtores e as empresas concessionárias na base de 50-50, adotando uma medida unilateral nesse sentido, imediatamente imitada pelos países do Oriente Médio6. Mais tarde, em 1960, o governo venezuelano voltou a se destacar como o autor da proposta de criação da Organização dos Países Exportadores de Petróleo, a OPEP. Este capítulo apresenta, a seguir, a retomada das políticas de nacionalismo de recursos em quatro países sul-americanos a partir do início da década de 2000.

Venezuela: recuperação da soberania petroleira

A Venezuela reassumiu seu papel de vanguarda no cenário global da energia no governo de Hugo Chávez, que chegou à presidência, em dezembro de 1998, com uma plataforma eleitoral em que se sobressaía a retomada do controle da riqueza petroleira pelo Estado a fim de utilizar as receitas dessa indústria em benefício da maioria da população, mergulhada na pobreza. Foi por iniciativa de Chávez que a OPEP, a partir de 2000, adotou uma política restritiva na oferta global de petróleo a fim de elevar os preços do produto. De fato, o preço do barril de petróleo, que era de US$ 16,2 no início de 1999, passou para pouco mais de US$ 20 às vésperas dos atentados de 11 de setembro de 20017. Essa mudança nas políticas da Opep deu o impulso inicial à tendência altista – por efeito de motivos estruturais e do crescimento acelerado da demanda – e se mantém até a atualidade. No plano doméstico, Chávez tomou uma série de medidas para recuperar o controle do Poder Executivo sobre a empresa estatal PdVSA, que passava por um processo de privatização indireta (a chamada “abertura petroleira”), e sobre as reservas petrolíferas do país, parcialmente entregues à exploração por empresas estrangeiras por meio de joint ventures com a PdVSA8.

Em novembro de 2001, um Congresso de maioria chavista aprovou a Ley Orgánica de Hidrocarburos, que aumentava os repasses de receitas da PdVSA para o orçamento federal e reduzia drasticamente a margem de autonomia da empresa estatal em relação ao poder público. Chávez passou a ser acusado pela grande mídia e pelos setores empresariais conservadores de dividir o país, de atentar contra a propriedade privada e de planejar a implantação de um regime político nos moldes cubanos. O descontentamento desses setores culminou com o golpe de Estado civil-militar de 11 de abril de 2002, que contou com a participação da maioria dos executivos da PdVSA. O golpe fracassou, mas os opositores de Chávez lançaram uma nova tentativa golpista com uma paralisação (locaute) deflagrada a partir da PdVSA, em dezembro de 2002, que levou a economia do país à beira do colapso. O movimento se desfez depois de três meses de intenso confronto social, sem atingir seu objetivo de depor o presidente. O governo demitiu 12 mil funcionários da PdVSA (o equivalente a 40% dos efetivos da estatal) por envolvimento na paralisação.

Fortalecido pelas desastradas tentativas golpistas e, mais ainda, pela vitória no referendo revogatório do mandato presidencial, realizado – por convocação das forças oposicionistas – em agosto de 2004, Chávez aprofundou o rumo nacionalista de sua política para os hidrocarbonetos. Em 2005, o governo venezuelano declarou ilegais os 32 convênios firmados com empresas petroleiras transnacionais, obrigando-as a migrar para empresas mistas sob o controle da PdVSA, que passou a ter uma participação mínima de 60% nas novas joint ventures. Os royalties cobrados sobre esses empreendimentos foram aumentados de 16,7% para 33,3%. A mudança na composição da receita fiscal, aumentando os royalties e reduzindo os impostos sobre os lucros, tinha o objetivo de restringir a margem para que as empresas pudessem evadir ou sonegar impostos por meio de manobras contábeis. Como explica o analista argentino Diego Mansilla, o governo venezuelano continuava a reconhecer a necessidade dos investimentos externos, mas passava a atribuir a eles um papel complementar aos aportes estatais – e instaurava a PdVSA como o ator dotado do poder de decisão9. No ano seguinte, 2006, as mesmas regras foram estendidas para as parcerias com as empresas estrangeiras na exploração do petróleo superpesado da Faixa do Orenoco. Em ambos os casos, a maioria das petroleiras transnacionais aceitou as novas condições do governo venezuelano. Das 22 transnacionais petroleiras que operavam no país, apenas quatro – a italiana ENI, a francesa Total e as estadunidenses ConocoPhillips e ExxonMobil – rejeitaram os novos contratos, encaminhando o litígio a tribunais internacionais.

As receitas adicionais obtidas graças à revisão das regras fiscais para o petróleo financiaram uma rede de programas sociais de amplo alcance, que permitiram ao governo venezuelano reduzir pela metade, em apenas cinco anos, a parcela da população vivendo em condições de pobreza – de 55,1% em 2002 para 27,5% em 200710. Os salários, a alimentação e o acesso ao estudo e aos serviços de saúde melhoraram intensamente, o que explica os altos índices de apoio popular obtidos por Chávez. Em contrapartida, a PdVSA diminuiu nesse período sua capacidade produtiva, em parte pela queda dos investimentos – já que a maior parte de sua receita passou a se destinar ao financiamento das políticas sociais do governo – e pela perda de um grande número de quadros qualificados em consequência dos conflitos do início da década.

Equador: o petróleo na “Revolução Cidadã”

Um dos principais exportadores regionais de petróleo, o Equador começou a aplicar medidas inspiradas pelo “nacionalismo de recursos” na gestão do presidente Alfredo Palacio, que assumiu o governo, em 2005, em substituição a Lucio Gutiérrez, derrubado em um levante popular de grandes proporções, conhecido como a “Revolução Cidadã”. Em maio de 2006, Palacio expulsou a empresa estadunidense Occidental Petroleum (Oxy), responsável por 20% da produção petroleira do Equador. A medida foi tomada porque a Oxy desrespeitou os termos do contrato assinado com o governo equatoriano ao vender 40% de suas ações à empresa canadense Encana, sem submeter essa transação à aprovação prévia das autoridades11. Em represália, o governo de George W. Bush suspendeu as conversações para a assinatura de um acordo bilateral de livre-comércio nos moldes da ALCA – uma medida de efeito punitivo discutível, já que o novo governo equatoriano vinha demonstrando pouco entusiasmo por esse projeto, iniciativa de seus antecessores. A Oxy, por sua vez, recorreu à arbitragem do Centro Internacional de Ajuste das Divergências sobre Investimentos (Ciadi), mas a decisão desse organismo foi favorável ao Equador.

Mais importante do que o confronto com os EUA no episódio da Oxy foi a decisão de Palacio, tomada um mês antes, em abril de 2006, de rever a repartição dos lucros do petróleo – o principal produto de exportação do país – entre o Estado equatoriano e as transnacionais petroleiras, de modo a ampliar significativamente a parcela arrecadada pelos cofres públicos. De acordo com a Lei de Hidrocarbonetos vigente na época, as empresas privadas que operam os campos petrolíferos equatorianos devem conceder ao Estado ao menos a metade dos chamados “ganhos extraordinários”, ou seja, aos ganhos obtidos pela diferença entre os preços efetivamente recebidos pelas exportações do petróleo e o preço da época da assinatura dos contratos. Ocorre que desde 2003, quando a maioria dos contratos foi assinada, os cálculos da repartição da renda vinham sendo feitos com base nos preços vigentes na ocasião, em torno de US$ 15 por barril de petróleo, quando em 2006 esses valores já ultrapassavam os US$ 70. Com isso, os ganhos das empresas estrangeiras se multiplicaram astronomicamente, enquanto a parcela destinada ao Equador tinha um aumento apenas marginal. A decisão de Palacio obrigou as empresas estrangeiras a ressarcir o Estado equatoriano no valor da diferença em relação aos preços reais, instituindo essa regra para os cálculos a serem feitos daquela data em diante12. Chávez elogiou a medida e, imediatamente depois, ofereceu ao governo de Palacio um acordo para refinar o petróleo equatoriano na Venezuela, com uma economia de US$ 300 milhões por ano13.

As políticas de “nacionalismo de recursos” no Equador se intensificaram a partir da posse, em janeiro de 2007, de Rafael Correa, eleito com o forte apoio dos movimentos sociais e dos setores de esquerda. Portador de um discurso crítico aos EUA e ao neoliberalismo, Correa defendeu em sua campanha um programa de transformações econômicas, políticas e sociais que o aproximou das perspectivas de Chávez e de Morales – com destaque para a proposta, comum aos três presidentes, de convocar uma Assembleia Constituinte encarregada de “refundar” a república. No campo petroleiro, deixou clara sua intenção de adotar um enfoque nacionalista, o que incluiria o regresso do Equador à OPEP, o que de fato se concretizou. Essas posições, que inevitavelmente alteraram o panorama petroleiro equatoriano em prejuízo do capital externo.

Bolívia: a defesa do gás natural

Ideias de soberania energética levaram centenas de milhares de bolivianos às ruas, na primeira década do século 21, para derrubar dois presidentes – Gonzalo Sánchez de Lozada, em 2003, e Carlos Mesa, quase dois anos depois – e eleger um terceiro, Evo Morales. Na Bolívia, a revisão das regras neoliberais para a indústria do petróleo e do gás natural tem seu marco inicial na primeira “guerra do gás”, de outubro de 2003, quando uma insurreição popular derrubou Sánchez de Lozada (principal arquiteto das privatizações na década de 1990) e colocou no topo da agenda política a nacionalização dos hidrocarbonetos, que vinham sendo explorados em condições extremamente favoráveis pelas empresas transnacionais. Entre essas empresas se destacava a Petrobras, na dupla condição de operadora das principais reservas gasíferas da Bolívia e do Gasoduto Bolívia-Brasil (Gasbol), por onde transitam as remessas de gás boliviano que abastecem importantes setores industriais no sudeste brasileiro. O presidente deposto foi substituído pelo seu vice, Carlos Mesa, que se manteve hesitante entre atender as demandas populares e se curvar às pressões das empresas estrangeiras, contrárias a qualquer alteração nas regras do jogo que garantiam a elas uma participação de até 82% na receita obtida com o gás natural. O impasse se resolveu com uma nova rebelião popular – a segunda “guerra do gás”, de julho de 2005 –, que provocou a renúncia de Mesa e a antecipação das eleições presidenciais, com a vitória do principal líder dos movimentos sociais bolivianos, Evo Morales, que assumiu o governo em janeiro de 2006.

Em cumprimento às suas promessas de campanha, Morales anunciou em 1º de maio de 2006 a nacionalização dos hidrocarbonetos, afetando os interesses da Petrobras e das demais transnacionais com negócios na Bolívia. A decisão do governo boliviano provocou uma crise diplomática com o Brasil, que recebia, na época, 50% do seu suprimento de gás natural por meio do Gasbol. A Petrobras protestou contra a “medida unilateral” dos bolivianos, mas o presidente Lula reconheceu a legitimidade de nacionalização com um “ato de soberania” e, contrariando os setores conservadores da sociedade brasileira que propunham represálias contra a Bolívia, trabalhou para desarmar as tensões e buscar uma solução negociada.

Diferentemente das experiências de nacionalização em outros países (e na própria Bolívia, onde medidas similares já tinham sido adotadas no passado), as novas regras adotadas pelo governo boliviano admitem a permanência das empresas estrangeiras na exploração do petróleo e do gás natural. O que mudou, no essencial, foi a divisão da receita obtida com esses recursos, com o aumento da parcela apropriada pelo Estado para até 70% do total, e a garantia do controle estatal sobre a cadeia produtiva dos hidrocarbonetos. Nesse episódio, os únicos ativos efetivamente nacionalizados foram as duas refinarias da Petrobras, que passaram para o governo boliviano, mediante o pagamento de uma indenização acertada entre as duas partes, depois que a empresa brasileira se recusou a permanecer no empreendimento como acionista minoritária. Os investidores estrangeiros acabaram por assinar novos contratos com as autoridades da Bolívia, assegurando assim a continuidade de seus negócios naquele país. Um fator que acabou contribuindo para um desenlace favorável à Bolívia foi a entrada em cena de um terceiro ator – o governo argentino, chefiado por Néstor Kirchner. No auge do conflito entre as autoridades bolivianas e a Petrobras, em setembro de 2006, Kirchner e Morales assinaram um contrato para o fornecimento de gás boliviano à Argentina em volumes similares aos remetidos ao Brasil, que perdeu assim sua condição de único cliente da Bolívia.

A substituição do modelo neoliberal na indústria dos hidrocarbonetos da Bolívia por uma política de soberania energética trouxe benefícios concretos ao país. Com o aumento da arrecadação fiscal sobre as exportações de petróleo e – principalmente – gás natural, a receita do Estado boliviano com esses recursos saltou de uma média de US$ 300 milhões no período anterior à nacionalização para US$ 1,6 bilhão em 2008, depois que os novos contratos já estavam em vigor. A participação da renda dos hidrocarbonetos no Produto Interno Bruto passou de 5,6% em 2004 para 21,9% em 2009, um avanço que se mostra ainda mais impressionante quanto se constata que, nesse mesmo período, o PIB boliviano duplicou, atingindo US$ 19 bilhões em 2009 – um aumento que se deve, em grande medida, aos efeitos do Decreto de Nacionalização14. Mais importante ainda é verificar que o bom desempenho econômico da Bolívia foi acompanhado por melhorias significativas na distribuição de renda, na redução da pobreza e na elevação do padrão de vida da população em geral.

Paraguai: o contencioso de Itaipu

Outro conflito energético entre o Brasil e um vizinho sul-americano — neste caso, o Paraguai – é o que o envolve a energia gerada pela usina hidrelétrica de Itaipu, a segunda maior do mundo, inaugurada 1983, na fronteira entre os dois países. Embora o empreendimento seja compartilhado, formalmente, em partes iguais, por meio da Binacional Itaipu, as regras vigentes durante quase três décadas para o aproveitamento da eletricidade gerada pela usina beneficiavam claramente o Brasil, que até 2011 comprava a baixo preço a quase totalidade da energia destinada ao Paraguai, sem dar ao parceiro a possibilidade de vendê-la livremente no mercado.

O Tratado de Itaipu – assinado em 1973, quando o Brasil e o Paraguai se encontravam sob ditaduras militares – estabelece que cada um dos países tem direito a 50% da energia, sendo que a parte não utilizada deve ser vendida ao outro a preço de custo. Como o Paraguai abastece quase todas as suas necessidades com apenas 5% da eletricidade gerada por Itaipu, os 45% restantes são automaticamente comprados pela estatal brasileira Eletrobrás, que paga por essa energia apenas uma pequena fração dos preços no mercado global15.

A correção dos termos desiguais da parceria energética em Itaipu é uma antiga reivindicação da sociedade paraguaia, que alcançou o primeiro plano da agenda bilateral após a eleição de Fernando Lugo como presidente do Paraguai, em abril de 2008. Apoiado por uma aliança de movimentos sociais e de partidos de esquerda, Lugo apresentou a revisão do Tratado de Itaipu como um dos principais tópicos de sua plataforma eleitoral. Em julho do mesmo ano, Lugo e o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva fecharam um acordo pelo qual o Brasil praticamente triplica – de US$ 125 milhões anuais para US$ 360 milhões, em média – o valor do pagamento feito ao Paraguai por abrir mão de sua parte na energia de Itaipu. O acordo estabelece, ainda, que o Paraguai poderá comercializar livremente a sua parcela de energia no mercado elétrico brasileiro ou, ainda, vendê-la a um terceiro país.

Depois de aprovado pelos Congressos dos dois países, o acordo entrou em vigência em agosto de 2011, quando o Brasil efetuou a primeira parcela do pagamento calculado segundo as novas regras. Mas a discussão prossegue, agora em torno da reivindicação paraguaia de que seja feita uma auditoria da dívida do Paraguai para com o Brasil por conta do financiamento da obra.
1 Capítulo 10 do livro Energia e Relações Internacionais, Igor Fuser, Editora Saraiva, 2013.
2 MYERS, Amy; SOLIGO, Ronald. Militarization of Energy: Geopolitical Threats to the Global Energy System, Energy Forum – James A. Baker III Institute for Public Policy of Rice University, Houston (TX), 2008, p.44.
3 KLARE, Michael T.. Rising Powers, Shrinking Planet – The New Geopolitics of Energy. New York: Metropolitan Books, Henry Holt, 2008.
4 SÉRÉNI, Jean-Pierre. “Les Etats s’emparent de l’arme pétrolière”, Le Monde Diplomatique, Paris, Mars 2007, nº 636, p. 18-19.
5 PHILIP, George. Oil and Politics in Latin America: Nacionalist Movements and State Companies. Cambridge (Reino Unido): Cambridge University Press, 1982, p.193-198.
6 YERGIN, Daniel. O Petróleo, São Paulo: Scritta, 1993, p. 444-448.
7 BARROS, Pedro Silva. Venezuela: mudança e perspectivas – A razão chavista. In: CARMO, C.A.; BARROS, P.S.; MONTEIRO, L.V., Venezuela: Mudanças e Perspectiva. Brasília: Fundação Alexandre de Gusmão, 2007, p.88.
8 MOMMER, Bernard. Subversive Oil. In: ELLNER, Steve; HELLINGER, Daniel (eds.), Venezuelan Politics in the Chávez Era. Boulder (EUA), London: Lynne Rienner Publishers, 2003, p. 141.
9 MANSILLA, Diego. Petroleras Estatales en América Latina: entre la transnacionalización y la integración. La revista del CCC [revista virtual]. Enero/abril 2008, nº2. 2008.
10 WEISBROT, Mark. An Empty Research Agenda: The Creation of Myths About Contemporary Venezuela, Center for Economic and Policy Research (CEPR), Washington, Março 2008,
11 LE CALVEZ, Marc. El rediseño de los sistemas de governanza petrolera en el Ecuador y Venezuela. In: FONTAINE, Guillaume; PUYANA, Alicia. (coords.), La Guerra del Fuego – Políticas petroleras y crisis energética en América Latina. Quito: Flacso, 2008, p.61.
12 FONTAINE, Guillaume. Petropolítica – Una teoria de la gobernanza energética. Quito, Lima: Flacso, Abya Yala, Instituto de Estudios Peruanos (IEP), 2010, p.199.
13 WEISBROT, Mark. “Latin America: The End of An Era”. International Journal of Health Services, Vol. 36, No.4, 2006.
14 BARROS, Pedro Silva. “O êxito boliviano durante a crise mundial de 2008-2009”. Boletim de Economia & Política Internacional. Brasília: Instituto de Política Econômica Aplicada, 2010.
15 CANESE, Ricardo. A recuperação da soberania hidrelétrica do Paraguai. In: CODAS, Gustavo (org.), O Direito do Paraguai à Soberania – A questão da energia hidrelétrica, pp. 23-142. São Paulo: Expressão Popular, 2008.
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