sábado, 24 de agosto de 2013

Racionalidade

Dostoiévski no jornal Rascunho e 6 meses no portal Carta Maior
 Fiódor Dostoiévski por Ricardo Humberto

Meus amigos,



Há pouco mais de duas semanas, o jornal Rascunho, www.rascunho.gazetadopovo.com.br, publicou meu ensaio Nem tudo o que é sólido desmancha no ar, sobre as tensões e contradições da modernidade narradas pela obra do escritor russo Fiódor Dostoiévski. Eis o link: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/nem-tudo-o-que-e-solido-desmancha-no-ar/.



E aqui está um trecho do ensaio que talvez os instigue à leitura:



Uma personagem dostoievskiana que não foi concebida pelo escritor russo nos pode fornecer outra pista sobre o arrefecimento social da culpa: Rudolf Hoess, comandante de Auschwitz. Em sua autobiografia, escrita pouco antes de Hoess ser enforcado pelos poloneses em frente ao forno crematório que destinava às vítimas do Reich, o nazista descreveu alguns experimentos para otimizar a eficiência industrial do campo de concentração que administrava. Narra Hoess que, nos primórdios de Auschwitz, as execuções eram feitas por um pelotão de fuzilamento. Na natureza, nada se cria, nada se perde, tudo se transforma: os corpos e seus pertences forneciam os insumos para a economia do campo. Dentes de ouro para a Suíça, cabelos para fardas, pele para forrar os abajures dos oficiais de altas patentes, carne e ossos para adubo. O único problema era o escoamento industrial dos corpos. Soldados perfilados acabavam fuzilando milhares de pessoas em um só dia. Sangue jorrava aos borbotões. Gritos e mais gritos. Lamúrias, súplicas ajoelhadas, “pelo amor de Deus, por piedade!”. Segundo Hoess, o ser humano ainda não se tornou uma máquina imune ao superaquecimento. Após uma estressante jornada de trabalho, os carrascos iam beber nas tavernas ao redor de Auschwitz e, subitamente, começavam a delatar o que faziam. Muitos continuavam a fuzilar fora da jornada de trabalho, o que, sempre segundo Hoess, exorbitava indignamente as funções homicidas. Outros passaram a apontar as armas para a própria têmpora. Suicídios em massa. Que fazer?! — pergunta o comandante angustiado. Que fazer?! Hoess caminhava de um lado para o outro como a areia da ampulheta, até que um método bastante racional — vale dizer, profundamente utilitário — lhe veio à mente: e se empregarmos o gás Zyklon B, que vinha sendo utilizado em Berlim para asfixiar débeis mentais na carroceria de caminhões, para substituir os pelotões de fuzilamento em Auschwitz? Eureka! As câmeras de gás diminuem os custos de produção letal. O Zyklon B é mais barato do que as armas e sua munição. Uma câmera de gás comporta mais de quinhentos corpos, ao passo que um paredão de fuzilamento dificilmente perfila mais de vinte condenados. E aqui está o ganho mais evidente: o sofrimento é silenciado por portas hermeticamente vedadas. O carrasco desaparece com o gás. Quem matou as vítimas? Uma impossibilidade físico-química, uma limitação dos pulmões. Os antigos carrascos só precisam dizer aos prisioneiros: vocês tomarão banhos de desinfecção. Os algozes, a bem dizer, tornam-se meros supervisores com o implemento das câmaras de gás. O sangue deixa de jorrar. Quando entrávamos nas câmaras de gás após as contínuas sessões, encontrávamos corpos ilesos. Nenhum arranhão, nenhuma escara. Cadáveres como todos nós um dia seremos. E, afinal de contas, o Zyklon B lhes trouxe uma solução mais racional. Em Auschwitz, a morte deixa de ser uma temeridade. Em Auschwitz, a morte passa a ser uma redenção.


 (Autor?)

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