quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Bergman


"A Vergonha" de Bergman

publicado em cinema por São Reino


Bergman Cinema Filmes Guerra Vergonha Há duas semanas a Cinemateca passou “A Vergonha” de Bergman, que mesmo na sua escala admirável é um filme extraordinário. Trata da guerra. Com muita nudez. E como não se sabe que guerra, onde, quando, porquê, que regimes e ou exércitos se enfrentam, “A Vergonha” é um filme sobre todas as guerras. Sendo de 1968, foi por vezes visto, na altura, como um filme sobre e contra todas as guerras, oposição, à época, muito focada na contestação contra a guerra do Vietname.

“A Vergonha” não é, porém, essencialmente um filme sobre a guerra ou não é só um filme sobre a guerra. Há um casal de músicos, Eva (Liv Ullmann) e Jan (Max von Sydow, que jogou xadrez com a Morte no “Sétimo Selo” e 16 anos depois foi o padre hollywoodesco do “Exorcista”), ela violoncelista e ele violinista, que vivem numa casa de campo numa ilha desde que a guerra obrigou ao desmantelamento da orquestra em que tocavam. São jovens. Cultivam frutas e legumes que vendem no mercado mais próximo, criam alguns animais, subsistem.

Bergman Cinema Filmes Guerra Vergonha A guerra dura há aproximadamente cinco ou seis anos quando o filme começa e afectou-os até aí na medida em que os obrigou a sair da cidade e a procurar outra forma de ganhar a vida. Para quem vive em paz parece muito mas é pouco, muito pouco em comparação com o que vem a seguir. Mesmo Eva e Jan vivem, no início do filme, numa vaga consciência da guerra: mudaram-se mas continuaram, pode até dizer-se que gostam da vida que levam e das suas rotinas de ritmos largos, e a influência maior que sentem liga-se com a impossibilidade de terem filhos enquanto as coisas não acalmarem.

Bergman Cinema Filmes Guerra Vergonha Bergman queixa-se, em “Imagens” (Martins Fontes, São Paulo, 1ª edição-1996, 2ª tiragem-2001 – pp. 296-301), porque a primeira parte do filme, a que nos diz de onde partimos com Eva e Jan, é demorada e péssima, “um prólogo que se prolonga indefinidamente”. Não comparei ainda os tempos dessa parte e daquela em que a guerra se mostra e tudo muda, mas esta última pareceu-me muitíssimo maior; num momento até, quando a lógica me fez adivinhar o que ainda teria de acontecer, senti que iria ver o filme durante séculos e que não conseguiria, que me custava demasiado. O que começa com o filme, o que é novo, é pois a violência mais extrema da guerra, a violência directa contra Eva e Jan, e de seguida a corrupção e a decadência de ambos. Quer vejamos dois indivíduos, quer vejamos um casal, a destruição será presente e corrosiva a partir desse momento. Não nos é dito muito sobre as razões pelas quais a guerra entra numa fase mais feroz – o rádio e o telefone de Eva e Jan estão avariados e as suas idas à localidade mais próxima, fora da ilha, para vender o que produzem são espaçadas e breves. Severos bombardeamentos matam a maioria da população e levam a uma série de prisões arbitrárias, com tortura, algumas mortes e, no final, uma reviravolta do mais politicamente manipulador que há: depois de convencer e montar um cenário em que tudo levava a crer que os prisioneiros – poucas dezenas de pessoas que são a totalidade do povo da ilha e da região adjacente após os ataques – seriam fuzilados, as autoridades fazem saber que, embora estivessem previstos os fuzilamentos, o governo, misericordioso, resolveu perdoar as ofensas – que ofensas, exactamente, não se sabe. Bergman Cinema Filmes Guerra Vergonha Esta reviravolta surte os seus efeitos no casal e marca o princípio da derrocada moral de Eva e Jan. Presos nessa manhã, tinham primeiro sido interrogados sobre uma entrevista que Eva dera, coagida e assustada, após um bombardeamento, a um grupo de rebeldes. Na entrevista Eva afirmara de si e de Jan que eram apolíticos, mas as imagens haviam sido montadas com o som falso da voz de outra mulher a encorajar o inimigo, o que incriminava Eva como traidora. Tentara defender-se - "mas essa não é a minha voz"- e em resposta fora agredida e expulsa da sala, onde Jan ficara para ser espancado. À noite, famintos, assustadíssimos, foram perdoados.

Bergman Cinema Filmes Guerra Vergonha Jacobi (Gunnar Björnstrand) personifica o pequeno poderoso local que, em nome do governo clemente, liberta os prisioneiros e que nessa mesma noite ordena a um subalterno que Eva e Jan sejam levados imediatamente a casa. Passa a ser visita assídua do casal e torna-se amante de Eva, o que talvez nunca tivesse acontecido sem o fascínio exercido sobre eles na noite do perdão. O entendimento das razões pelas quais foram acusados e absolvidos no mesmo dia, pelas mesmas pessoas, é vedado a Eva e Jan; mas o esquema, o esquema do medo e do alívio – juntos e inexplicáveis – faz com que no momento em que são enviados para casa, fisicamente livres e íntegros, se sintam especiais, o que os coloca tacitamente ao lado do poder. Bergman Cinema Filmes Guerra Vergonha Embora surja em Bergman nas pessoas de Eva e Jan, este falso sentimento de especialidade é universal nas guerras e nas ditaduras e é aquilo que explica que os homens fiquem ao lado do poder que esmaga, que mata, que oprime os seus vizinhos, os seus amigos, os seus irmãos. Sendo apolíticos, Eva e Jan eram mais fáceis de corromper, mas ainda que possuíssem apuradas consciências políticas não deixariam por isso de ser vulneráveis: o medo, no limite e aliado aos mais básicos instintos de preservação, opera revoluções interiores capazes de grandes e nem sempre bonitas revelações. É isto que a história desenvolve. Nesta perspectiva a guerra é um bom mote, mas não seria o único.



São Reino
é uma colaboradora multifacetada do obvious, verdadeira malabarista que tanto escreve sobre arte como aparos de canetas.
Saiba como escrever na obvious.

Inquisição



  
Como o Tribunal da Inquisição, sediado em Lisboa, conseguiu se fazer presente até mesmo nos confins do Brasil colonial, coletando denúncias, prendendo pessoas e levando-as para serem julgadas em Portugal? Com quais instituições a Inquisição se relacionava? Que setores sociais cooperaram com ela? Essas foram as perguntas que inspiraram a tese "Poder eclesiástico e Inquisição no século XVIII luso-brasileiro: agentes, carreiras e mecanismos de promoção social”, apresentada por Aldair Carlos Rodrigues no Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para a obtenção do título de doutor.


O estudo – orientado por Laura de Mello e Souza, como parte do Projeto Temático "Dimensões do Império Português”– recebeu o Prêmio Capes 2013 (área de História) e o Grande Prêmio Capes de Tese Darcy Ribeiro (que abrange as grandes áreas de Ciências Humanas, Ciências Sociais Aplicadas, Linguística, Letras e Artes e Multidisciplinar-Ensino e Interdisciplinar), oferecidos pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), do Ministério da Educação (MEC).

"A principal conclusão foi que a Inquisição conseguiu atuar no Brasil porque possuía mecanismos eficazes e oferecia cargos que atraíam as elites da sociedade colonial. O tribunal não tinha uma sede aqui, mas sua atuação se ramificava por meio de uma rede de agentes criada na colônia”, disse Rodrigues à Agência FAPESP.

Segundo o pesquisador, os atrativos para a formação dessa rede eram a distinção social e os privilégios que seus membros passavam a ter. "Não era fácil se tornar um quadro da Inquisição, porque essa instituição possuía vários dispositivos bastante excludentes. Então, quem conseguia passar pelos filtros, adquiria um status social destacado”, afirmou.

Para os integrantes das elites da época, tanto na Península Ibérica quanto nas colônias da América, era muito importante provar a "limpeza de sangue”. Isto é, provar que não se pertencia às "raças” consideradas "infectas” (judeus, muçulmanos, negros, indígenas).

E a Inquisição era tida como a instituição mais rigorosa na apuração da "limpeza de sangue”. Entrar para seus quadros equivalia a apresentar a toda a sociedade um atestado de "sangue puro”. "Isso tornava o pertencimento à Inquisição muito atraente. Por meio do ‘estatuto de limpeza de sangue’, a Inquisição desempenhou um papel importantíssimo no processo de formação e estruturação da elite social do Brasil durante o século XVIII”, informou Rodrigues.

Ele considera esta a grande novidade de seu estudo. "A maioria das pesquisas já feitas sobre a Inquisição teve por foco as vítimas. A minha pesquisa procurou investigar esse outro aspecto, o da inserção social da Inquisição, do seu papel na estruturação da sociedade brasileira, na constituição das hierarquias. São duas abordagens complementares. Estudar a Inquisição sob o ângulo da inserção social me permitiu entender como essa instituição pôde durar tanto tempo. A Inquisição portuguesa foi estabelecida em 1536 e só foi abolida em 1821, no contexto da chamada Revolução Liberal do Porto”, disse.

O início da atuação da Inquisição na Península Ibérica pode ser mais bem compreendido quando se considera que os Estados que estavam se estruturando nesse período se fundamentavam na unidade da fé. Constituídos no contexto da luta de cristãos contra muçulmanos, identificavam-se profundamente com a fé católica. A sobrevivência de outras confissões religiosas no mesmo território punha em xeque essa unidade da fé, e, por extensão, a unidade política.

"A criação de instituições encarregadas da repressão violenta às dissidências religiosas, como foram os tribunais da Inquisição espanhola e portuguesa, se inseriram nesse contexto”, explicou Rodrigues.

Já a sobrevivência desses mesmos tribunais e de seus aparatos em épocas tão tardias quanto a primeira metade do século XIX – e não apenas nas metrópoles ibéricas, mas também nas colônias americanas – exige outro tipo de explicação. E, neste caso, o atrativo social decorrente da aplicação dos "estatutos de limpeza de sangue” e uma série de privilégios, como a isenção fiscal, ajudam a entender como essa instituição pode estruturar uma vasta rede de agentes que perpetuou sua atuação.

"A chancela de ‘limpeza de sangue’ que o pertencimento aos quadros da Inquisição proporcionava exercia enorme atração sobre as elites coloniais – tanto aquelas que já estavam consolidadas quanto as emergentes. Para se ter ideia, segundo o meu levantamento para o século XVIII, havia, em toda a colônia, aproximadamente 200 comissários da Inquisição no setor eclesiástico. Na mesma época, o número de agentes civis ligados à instituição chegava a cerca de 2 mil – 457 deles apenas em Minas Gerais”, sublinhou Rodrigues.

Conforme ele, esses agentes civis, chamados de "familiares do Santo Ofício”, eram, principalmente, pessoas que estavam enriquecendo a partir de atividades comerciais, mas ainda não dispunham de status social. Para tais pessoas, entrar para a Inquisição era uma forma rápida e eficaz de ascender socialmente.

"Quando focamos a análise apenas no número de pessoas sentenciadas, esses mecanismos de inserção profunda da Inquisição na trama social tendem a passar despercebidos. Minha pesquisa me fez perceber que essa instituição estava muito mais enraizada na sociedade colonial do que se supunha”, disse.

Rodrigues passou cerca de nove meses estudando a vasta documentação existente no arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa – primeiro com o apoio do Instituto Camões (Cátedra Jaime Cortesão), depois com o apoio da FAPESP. Um dos focos desse estudo foi o sistema de comunicação estabelecido entre o Tribunal da Inquisição, em Lisboa, e a rede eclesiástica instalada no Brasil.

"Estudei 1165 registros de correspondência expedida no século XVIII. E pude observar que havia um sistema de comunicação eficiente ligando o Tribunal de Lisboa ao território do Brasil, um sistema profundamente assentado na hierarquia institucional das dioceses”, disse.

"Cada diocese dividia-se em várias comarcas eclesiásticas, que não necessariamente coincidiam com as comarcas civis; as comarcas, por sua vez, dividiam-se em paróquias; as paróquias, em capelas. Quando a Inquisição distribuía um edital impresso com o objetivo de coletar denúncias, esse edital tinha que ser lido no final da missa e, depois, afixado na porta da igreja ou na porta da sacristia, permanecendo ali até a chegada de um novo edital”, detalhou.

No caso do Centro-Sul, os editais chegavam ao Rio de Janeiro. E, dali, eram distribuídos para toda a região. A partir da sede de cada diocese, os impressos chegavam às comarcas eclesiásticas. O "vigário da vara”, que era o principal agente da comarca, os encaminhava às paróquias. E os párocos os repassavam às capelas. Quando o capelão lia o edital, ele tinha que assinar um recibo, informando a data, e em alguns casos até mesmo o horário da leitura do documento.

"Esse mecanismo permitia que, desde Lisboa, a Inquisição tivesse pleno conhecimento de todo o caminho seguido pela correspondência. E, ao longo do tempo, esse fluxo foi sendo otimizado”, afirmou Rodrigues.

Além disso, havia a cooperação da justiça episcopal. Os agentes dos bispos não se encarregavam da perseguição aos "delitos de heresia”, apenas aos "delitos morais”. Mas, quando deparavam com alguma suspeita de heresia nas instâncias do tribunal episcopal, transmitiam a denúncia a Lisboa. E os prelados dispunham de um mecanismo suplementar de imposição da ortodoxia católica: as "visitas diocesanas”.

"O bispo saía em viagem, percorrendo toda a sua diocese, de freguesia em freguesia, e inspecionando o comportamento do clero e da população. Uma de suas funções era conferir as portas das igrejas ou das sacristias para verificar se os editais da Inquisição estavam ali afixados. Caso não estivessem, havia penas para punir o responsável por essa "falta”. Isso permitia que o inquisidor, em Lisboa, tivesse controle até sobre as portas das igrejas do Brasil”, enfatizou Rodrigues.

Esse mecanismo, antes pouco conhecido, foi agora desvelado pela tese de Rodrigues. "Espero que o meu trabalho contribua para a reformulação dos livros didáticos, eliminando a falsa ideia de que a Inquisição praticamente não esteve presente no Brasil”, afirmou.
(Adital)

Anticomunismo

   
Contra a imbecilidade do atual anticomunismo
Leonardo Boff
Adital






Mauro Santayana é um dos jornalistas mais eruditos do jornalismo brasileiro. Sempre comprometido com causas humanitárias, contundente e dotado de um estilo de grande elegância. Somos colegas como colunistas do Jornal do Brasil-online.

Recentemente, no dia 17/12/2013, publicou um artigo sob o título HAMEUS PAPAM com o qual me identifiquei imediatamente. Sofro ataques imbecis de que sou comunista e marxista, como se para um teólogo com 50 anos de atividade, fosse uma banalidade fazer esta acusação. Sou cristão, teólogo e escritor. Marx nunca foi pai nem padrinho da Teologia da Libertação que ajudei a formular. O atual anticomunismo revela a anemia de espírito e a pobreza de pensamento que estão prevalecendo como disfarce para esconder o desastre que significa a economia de mercado, altamente predadora da natureza e agressora de todo tipo de direitos humanos e agora numa crise da qual não sabem como sair. Há tempos o Zürcher Zeitung, o maior jornal suíço e pouco depois o Times diziam que o autor mais lido hoje é Marx. Não só por estudiosos, mas por banqueiros e financistas conscientes que querem saber por que seu sistema foi a falência e por que tem tantas dificuldades em sair dele, se é que encontram uma saída que não signifique mais sacrifício para a natureza (injustiça ecológica) e para a humanidade já sofredora (injustiça social). Hoje mais e mais se percebe que este sistema é antivida, antidemocracia e antiTerra. Se não cuidarmos poderá nos levar a um abismo fatal. É uma reflexão que faço contra meus acusadores gratuitos e faltos de razão. Penso às vezes que Einstein tinha razão quando disse: "Existem dois infinitos: um do universo e outro dos estultos; do primeiro tenho dúvidas, do segundo, absoluta certeza”. Estimo que muitos dos anticomunistas atuais se inscrevem nesse segundo infinito. É fácil serrar árvore caída e covardia chutar cachorro morto. Pensemos, antes, no presente com sentido de responsabilidade, unidos face a um feixe de crises que nos poderá levar a uma tragédia ecológico-social. Como fazer tudo para evitá-la e garantir um futuro comum para todos, inclusive para a nossa civilização e para nossa Casa Comum. Essa é a questão maior a ser pensada e sobre ela inaugurar práticas salvadoras e não distrair-se com discutir um comunismo inexistente, morto e sepultado. LBoff

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Habemus Papam

Acusado por um conservador norte-americano de ser marxista, Jorge Mario Bergoglio, o papa Francisco, negou sê-lo, mas disse que não se sentia ofendido, por ter conhecido ao longo de sua vida muitos marxistas que eram boas pessoas.

A declaração do papa, evitando atacar ou demonizar os marxistas, e atribuindo-lhes a condição de comuns mortais, com direito a ter sua visão de mundo e a defendê-la, é extremamente importante, no momento que estamos vivendo agora.

A ascensão irracional do anticomunismo mais obtuso e retrógrado, em todo o mundo — no Brasil, particularmente, está ficando chique ser de extrema direita — baseia-se em manipulação canalha, com que se tenta, por todos os meios, inverter e distorcer a história, a ponto de se estar criando uma absurda realidade paralela.

Estabelecem-se, financiados com dinheiro da direita fundamentalista, "museus do comunismo”; surgem por todo mundo, como nos piores tempos da Guerra Fria, redes de organizações anticomunistas, com a desculpa de se defender a democracia; atribuem-se, alucinadamente, de forma absolutamente fantasiosa, 100 milhões de mortos ao comunismo.

Busca-se associar, até do ponto de vista iconográfico, o marxismo ao nacional-socialismo, quando, se não fossem a Batalha de Stalingrado, em que os alemães e seus aliados perderam 850 mil homens, e a Batalha de Berlim, vencidas pelas tropas do Exército Vermelho — que cercaram e ocuparam a capital alemã e obrigaram Hitler a se matar, como um rato, em seu covil — a Alemanha nazista teria tido tempo de desenvolver sua própria bomba atômica e não teria sido derrotada.

Quem compara o socialismo ao nazismo, por uma questão de semântica, se esquece de que, sem a heroica resistência, o complexo industrial-militar, e o sacrifício dos povos da União Soviética — que perdeu na Segunda Guerra Mundial 30 milhões de habitantes — boa parte dos anticomunistas de hoje, incluídos católicos não arianos e sionistas, teriam virado sabão nas câmaras de gás e nos fornos crematórios de Auschwitz, Birkenau e outros campos de extermínio.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Mulheres


Quem tem medo de mulher pelada?
Por
José Geraldo Couto


Rico em trama e criações estéticas, filme de Abdellatif  Kechiche é atacado por suposto estímulo ao voyerismo. Alegação é tola

Por José Geraldo Couto, do blog do IMS

Assim como O último tango em Paris ficou famoso – e estigmatizado – por causa da “cena da manteiga”, Azul é a cor mais quente está ganhando fama e estigma por causa de uma longa cena de sexo entre as duas protagonistas, Adèle (Adèle Exarchopoulos) e Emma (Léa Seydoux). Falaremos dessa passagem mais adiante. Por enquanto, cabe dizer que o filme de Abdellatif  Kechiche é muito maior do que os tão falados minutos de sexo sáfico, mas não pode ser compreendido plenamente sem eles.



Reduzido ao entrecho mais básico, Azul é a cor mais quente conta uma história de amor quase trivial, do tipo “boy meets girl etc.”, só que mudada para “girl meets girl etc.”, o que faz toda a diferença. Mas não é só essa mudança de gênero, ou de orientação sexual, que torna o filme mais rico e interessante que um drama amoroso convencional. É, principalmente, o modo como ele observa os personagens e suas transformações – em particular Adèle, que começa a narrativa como uma menina e termina como uma mulher.

Romance de formação

Esse processo de transformação se dá em paralelo – ou amalgamado – com a busca de identidade da protagonista. Identidade sexual, claro (pois ela encontra o primeiro grande amor numa mulher alguns anos mais velha, e muito mais vivida, depois de um experimento insatisfatório com um rapaz), mas também social, intelectual, político. Nesse sentido, é mais um “romance de formação”, ou uma “educação sentimental”, do que meramente uma história de amor.

O título original francês (La vie d’Adèle) é uma referência evidente ao livro que a protagonista lê na escola no início do filme (La vie de Marianne, de Pierre de Marivaux). E não deixa de ser interessante o paralelo subterrâneo que se estabelece entre a ascendência intelectual de Emma sobre Adèle e a ascendência intelectual desta sobre seu namoradinho de adolescência.

O bonito, no modo como Kechiche perscruta o desenvolvimento de Adèle, é deixar que ela mantenha suas zonas de sombra, sua opacidade irredutível. Apesar de ela estar em cena durante as três horas de filme, saímos da sessão não apenas com a impressão de não conhecê-la plenamente, mas também com a sensação de que ela própria não se conhece. Parece estar o tempo todo procurando sua turma, sem chegar a encontrá-la de verdade – e vai se construindo nesse processo de busca. Nos momentos em que Adèle se sente plena (como no parque, no primeiro encontro com Emma), uma luz estourada inunda tudo, ofuscando os contornos da personagem.

Igualmente notável é o frescor com que entra na tela o entorno da protagonista, quase à maneira de um documentário: a sala de aula, as boates GLS, a passeata política, a parada gay, os jantares em família, a escola maternal, a festa de artistas, tudo flui, tudo respira com uma naturalidade impressionante.

Sem cerimônia

Voltamos então às comentadas cenas de sexo entre Adèle e Emma. Militantes feministas e ativistas lésbicas protestaram, acusando o diretor de explorar os corpos das atrizes, oferecendo-os ao voyeurismo (supostamente masculino). Confesso que não entendo. Numa encenação em que tudo é filmado de muito perto e sem cerimônia – a ponto de os corpos dos atores quase sempre serem vistos parcialmente –, o que há de errado em mostrar as duas protagonistas se amando apaixonadamente na cama?

Em outros momentos Adèle aparece: limpando a boca com a mão ao comer um lanche; dormindo de boca aberta; chorando como uma criança, com catarro escorrendo do nariz; erguendo as calças pela cintura, feito uma menina caipira. Por que não poderia aparecer fazendo sexo com a mulher que ama? Omitir isso seria o cúmulo da hipocrisia. Edulcorar a cena com contraluzes, fusões, câmera lenta e música romântica seria, além de hipócrita, de péssimo gosto.

O incômodo causado pelas cenas de sexo de Azul é a cor mais quente, em particular pela mais longa, é análogo às reações suscitadas pela trepada quase explícita entre dois homens que está no centro de Tatuagem, de Hilton Lacerda. Nos dois casos, muita gente disse: “Isso não era necessário”. Ora, o que é “necessário” num filme?

Há algo errado num mundo que considera natural ver na tela corpos perfurados, mutilados, torturados, mas julga “desnecessária” uma cena de amor homoerótico.

Truffaut costumava dizer, talvez não totalmente de brincadeira, que o papel do diretor de cinema é “mostrar uma mulher bonita fazendo coisas bonitas”. Pois bem: Kechiche mostrou logo duas, fazendo a coisa mais linda que elas poderiam fazer. Quem não quiser ver, que mude de canal, ou melhor, de sala.
(Outras Palavras)

Internacional


2013: o que mudou de fato no mundo?
O mais importante foi a mudança de clima no cenário mundial. Desde o triunfo na guerra fria, os EUA militarizavam os conflitos. Não foi assim com Síria e Irã.
 Emir Sader





Como sempre, se acumulam uma quantidade de fatos – entre mortes, eleições, sublevações, etc. – que se destacam jornalisticamente no mundo, mas dificultam a compreensão das alterações nas relações de poder, as que efetivamente contam na evolução da situação internacional.
  
No emaranhado de acontecimentos, o mais importante foi a mudança de clima no cenário internacional. Desde que triunfou na guerra fria, os EUA tem tido como postura diante dos conflitos internacionais, sua militarização. Transferir para o campo em que sua superioridade é manifesta, tem sido a característica principal da ação imperial dos EUA. Foi assim no Afeganistão, no Iraque, por forças intermedias na Líbia. E se encaminhava para ser assim nos casos da Síria e do Irã.
  
De repente, pegando ao Secretario de Estado norteamericano, John Kerry, pela palavra, o governo russo propôs ao da Síria um acordo, que desconcertou o governo norteamericano, até que não pôde deixar de aceitar. Isto foi possível porque Obama não conseguiu criar as condições políticas para mais uma ofensiva militar dos EUA. Primeiro o Parlamento britânico negou o apoio a Washington.
Depois, foi ficando claro que nem a opinião publica, nem o Congresso noreamericano, nem os militares dos EUA, estavam a favor da ofensiva anunciada ou do tipo de ofensiva proposta.

O certo é que os EUA foram levados a aceitar a proposta russa, o que abriu as portas para outros desdobramentos, entre eles, combinado com as eleições no Irã, para a abertura de negociações políticas também com esse país por parte dos EUA. No seu conjunto, se desativava o foco mais perigoso de novos conflitos armados.

Como consequência, Israel, a Arábia Saudita, o Kuwait, ficaram isolados nas suas posições favoráveis a ações militares contra a Síria e até contra o Irã. Foi se instalando um clima de negociações, convocando-se de novo uma Conferência na segunda quizena de janeiro, em Genebra, para discutir um acordo de paz. Uma conferência que não coloca como condição a questão da saída do governo de Assad, como se fazia anteriormente.

A oposição teve que aceitar participar, mesmo nessas condições. E ainda teve a surpresa que os EUA e a Grã Bretanha suspenderam o fornecimento de apoio militar aos setores opositores considerados moderados, que foram totalmente superados pelos fundamentalistas, apoiados pela Arabia Saudita e pelo Kuwait.

Como dois pontos determinam um plano, as negociações sobre a Siria abriram campo para as negociações dos EUA com o Irã, aproveitando-se da eleição do novo presidente iraniano. Desenhou-se, em poucas semanas, um quadro totalmente diverso daquele que tinha imperado ao longo de quase todo o ano. Os EUA passaram da ofensiva à defensiva, a Rússia, de ator marginal, a agente central nas negociações de paz, a ponto que a Forbes, pela primeira vez, elegeu Vladimir Puttin como o homem mair forte do mundo, na frente de Obama. Isso se deve não ao poderio militar ou econômico da Russia, mas ao poder de iniciativa política e de negociação que o país passou a ter.


Pornô



Quem tem medo dos filmes de sacanagem?
Por
José Geraldo Couto


Vasta mostra no SESC-SP debate e exibe erotismo no cinema. Para ser ainda melhor, deveria ver sexo também como alegria

Por José Gerado Couto*, do blog IMS

Vamos falar de sexo? A ampla Mostra Cine Privê – O erotismo no cinema, que vai até 28 de julho no Sesc Vila Mariana, em São Paulo, é uma boa oportunidade para conhecer melhor o assunto e, ao mesmo tempo, ver ou rever alguns filmes extraordinários. O evento inclui a exibição de mais de vinte longas-metragens, além de exposição, debates, performances e shows de música. Veja aqui a programação completa.

Mas o que é o erotismo? O que o distingue da pornografia? Impossível responder essas questões no espaço exíguo de um blog. A própria mostra do Sesc as deixará inevitavelmente em aberto. Digamos provisoriamente, seguindo Georges Bataille e correndo o risco de traí-lo, que o erotismo não tem a ver com a mera satisfação da pulsão sexual (algo presente em todo o reino animal), mas sim com uma elaboração ociosa, especificamente humana, em torno desse desejo. Por isso, o escritor cubano Severo Sarduy relacionou o erotismo à escrita barroca: ambos representariam um gesto supérfluo, caprichoso, que nega ou subverte a tendência humana para o trabalho, a produção, a acumulação, a utilidade.

Essa ideia de desperdício, de dissipação, de consumo – em contraposição à produção – é o que move um dos destaques da mostra, A comilança (1973), de Marco Ferreri, em que um grupo de homens de meia-idade se fecha numa mansão durante um fim de semana para comer, beber e fazer sexo com prostitutas literalmente até morrer. Não por acaso, era um dos filmes favoritos de Buñuel, que o qualificou de “grande tragédia da carne”. Aqui, uma cena de sexo protagonizada por Marcello Mastroianni:

Já a pornografia, pelo menos tal como a entendo, reduz as relações eróticas a uma mecânica, e o corpo a uma anatomia virtualmente sem sujeito. No erotismo, o corpo existe em conexão com um espírito (ou anima, ou alma, dependendo da convicção de cada um) desejante, pessoal e intransferível.

Se há uma falha na Mostra Cine Privê, é o fato de ter selecionado quase só filmes em que prevalece o poder destrutivo de Eros: Laranja mecânica, O último tango em Paris, O império dos sentidos, Salòe Crash – estranhos prazeres, além do já citado A comilança.
  
O evento seria mais completo, a meu ver, se contemplasse também manifestações mais alegres, marotas e estimulantes do erotismo, como algumas das indevidamente chamadas pornochanchadas brasileiras (que serão abordadas numa palestra de Nuno César Abreu), comédias eróticas italianas, a “trilogia da vida” de Pasolini (Decameron, Contos de Canterbury, As mil e uma noites), os filmes de Almodóvar etc.

"Salò", de Pier Paolo Pasolini (1975)

Em compensação, a mostra do Sesc traz o interessante miniciclo “Amor e desejo na terceira idade”, com filmes como Amor, de Michael Haneke, e Saraband, o sublime último longa-metragem de Ingmar Bergman. Porque, afinal de contas, o sujeito não para de fazer amor porque fica velho, mas fica velho porque para de fazer amor.
(Outras Palavras)

Gauche


Sobre ser gauche

publicado em Literatura por Raul Albuquerque

 "A gente te entende, Drummond"


Numa entrevista que gravei há quase um ano, flagrei-me pensando sobre se há algo que une todos os poetas no mesmo território. Bem... não foi algo fácil, como devem imaginar, mas Drummond me respondeu a pergunta, em seu "Poema de Sete Faces":

"Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida."

Para alcançar a totalidade do sentido dos versos, deve-se saber que gauche significa "esquerdo" em francês - por "esquerdo", entenda-se "diferente", "incompatível" ou "deslocado". Daí passei a cogitar que o fato de sentir-se gauche une todos os poetas de verdade - o sentimento de não-pertencimento. O desespero pelo que não "se encaixa" une todos os poetas numa caverna e eles permanecem lá, o mesmo desespero que levou alguns à loucura e/ou suicídio é que incita a poesia viva e gritada. A expressão é tão grandiosa que o grande Manoel de Barros só fez traduzi-la quando escreveu "O menino que era esquerdo e tinha cacoete pra poeta".


Sobre esse sentimento de não-encaixe, escreve o poeta, maldito por excelência, Charles Baudelaire, em seu poema "L'albatros", do livro "Les Fleurs du Mal":

"O Poeta se compara ao príncipe das alturas

que enfrenta os vendavais e ri da seta no ar;

exilado no chão, em meio à turba obscura,

as asas de gigante impedem-no de andar."

Baudelaire escreve que o Poeta "ri da seta" das palavras, dos versos, das rimas, pois a língua e a poesia não lhe são problemas, causam-lhe até encanto, mas "exilado" na vida comum, no plano dos atos, das cobranças, dos horários, dos prazos de entrega, as mesmas asas (que o fazem voar) atrapalham-no no andar.


O múltiplo (e multiplamente gauche) Fernando Pessoa, em seu ortônimo "ele mesmo", escreve em seu poema "Andaime" sobre o que ele não é (e acaba concluindo que ele não é o que deveria ser):

"Gastei tudo que não tinha.

Sou mais velho do que sou.

A ilusão, que me mantinha,

Só no palco era rainha:

Despiu-se, e o reino acabou.

[...]

Sou já o morto futuro.

Só um sonho me liga a mim -

O sonho atrasado e obscuro

Do que eu devera ser - muro

Do meu deserto jardim."

cecilia-meireles.jpg

Meu argumento em favor de minha teoria vem da poetisa mais mais que eu conheço: Cecília Meireles. Ela escreve em tom de revelação óbvia que seu estado de "poeta" é tão incomum que nem pode se encaixar nas denominações "alegre" ou "triste", há algo mais gauche que não saber se é/está feliz ou triste?!

"Eu canto porque o instante existe

e a minha vida está completa.

Não sou alegre nem sou triste:




Raul Albuquerque
Estudante de Direito apaixonado por Letras. Apesar desse quadro, não acha que está no lugar errado, afinal, o amor às palavras demonstra-se de diversos modos. Poeta desde que nasceu, mas só começou a escrever poemas aos sete anos. Apaixonado por livros e música clássica. Sabe que nunca vai conseguir se definir, logo, fica descrevendo inutilidades da própria vida em perfis. .
Saiba como escrever na obvious.

Amor

Um elogio ao amor puro

publicado em artes e ideias por benjamin júnior

Amor Paixao Namoro Impossivel Saudade Beleza Miguel Esteves Cardoso The Kiss - Gustav Klimt

"Há coisas que não são para se perceberem. Esta é uma delas. Tenho uma coisa para dizer e não sei como hei-de dizê-la. Muito do que se segue pode ser, por isso, incompreensível. A culpa é minha. O que for incompreensível não é mesmo para se perceber. Não é por falta de clareza. Serei muito claro. Eu próprio percebo pouco do que tenho para dizer. Mas tenho de dizê-lo. O que quero é fazer o elogio do amor puro. Parece-me que já ninguém se apaixona de verdade. Já ninguém quer viver um amor impossível. Já ninguém aceita amar sem uma razão.

Hoje as pessoas apaixonam-se por uma questão de prática. Porque dá jeito. Porque são colegas e estão ali mesmo ao lado. Porque se dão bem e não se chateiam muito. Porque faz sentido. Porque é mais barato, por causa da casa. Por causa da cama. Por causa das cuecas e das calças e das contas da lavandaria. Hoje em dia as pessoas fazem contratos pré-nupciais, discutem tudo de antemão, fazem planos e à mínima merdinha entram logo em "diálogo". O amor passou a ser passível de ser combinado. Os amantes tornaram-se sócios. Reúnem-se, discutem problemas, tomam decisões. O amor transformou-se numa variante psico-sócio-bio-ecológica de camaradagem. A paixão, que devia ser desmedida, é na medida do possível. O amor tornou-se uma questão prática. O resultado é que as pessoas, em vez de se apaixonarem de verdade, ficam "praticamente" apaixonadas.

Eu quero fazer o elogio do amor puro, do amor cego, do amor estúpido, do amor doente, do único amor verdadeiro que há, estou farto de conversas, farto de compreensões, farto de conveniências de serviço. Nunca vi namorados tão embrutecidos, tão cobardes e tão comodistas como os de hoje. Incapazes de um gesto largo, de correr um risco, de um rasgo de ousadia, são uma raça de telefoneiros e capangas de cantina, malta do "tá bem, tudo bem", tomadores de bicas, alcançadores de compromissos, banancides, borra-botas, matadores do romance, romanticidas.

Já ninguém se apaixona? Já ninguém aceita a paixão pura, a saudade sem fim, a tristeza, o desequilíbrio, o medo, o custo, o amor, a doença que é como um cancro a comer-nos o coração e que nos canta no peito ao mesmo tempo? O amor é uma coisa, a vida é outra. O amor não é para ser uma ajudinha. Não é para ser o alívio, o repouso, o intervalo, a pancadinha nas costas, a pausa que refresca, o pronto-socorro da tortuosa estrada da vida, o nosso "dá lá um jeitinho sentimental".

Odeio esta mania contemporânea por sopas e descanso. Odeio os novos casalinhos. Para onde quer que se olhe, já não se vê romance, gritaria, maluquice, facada, abraços, flores. O amor fechou a loja. Foi trespassada ao pessoal da pantufa e da serenidade. Amor é amor. É essa beleza. É esse perigo. O nosso amor não é para nos compreender, não é para nos ajudar, não é para nos fazer felizes. Tanto pode como não pode. Tanto faz. é uma questão de azar. O nosso amor não é para nos amar, para nos levar de repente ao céu, a tempo ainda de apanhar um bocadinho de inferno aberto. O amor é uma coisa, a vida é outra.

A vida às vezes mata o amor. A "vidinha" é uma convivência assassina. O amor puro não é um meio, não é um fim, não é um princípio, não é um destino. O amor puro é uma condição. Tem tanto a ver com a vida de cada um como o clima. O amor não se percebe. Não é para perceber. O amor é um estado de quem se sente. O amor é a nossa alma. É a nossa alma a desatar. A desatar a correr atrás do que não sabe, não apanha, não larga, não compreende. O amor é uma verdade. É por isso que a ilusão é necessária. A ilusão é bonita, não faz mal. Que se invente e minta e sonhe o que quiser. O amor é uma coisa, a vida é outra. A realidade pode matar, o amor é mais bonito que a vida. A vida que se lixe. Num momento, num olhar, o coração apanha-se para sempre. Ama-se alguém. Por muito longe, por muito difícil, por muito desesperadamente. O coração guarda o que se nos escapa das mãos. E durante o dia e durante a vida, quando não esta lá quem se ama, não é ela que nos acompanha - é o nosso amor, o amor que se lhe tem.

Não é para perceber. É sinal de amor puro não se perceber, amar e não se ter, querer e não guardar a esperança, doer sem ficar magoado, viver sozinho, triste, mas mais acompanhado de quem vive feliz. Não se pode ceder. Não se pode resistir. A vida é uma coisa, o amor é outra. A vida dura a Vida inteira, o amor não. Só um mundo de amor pode durar a vida inteira. E valê-la também."

Texto de Miguel Esteves Cardoso in Expresso

benjamin júnior
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revolución

 ¿Hacer la revolución en la revolución?
Alberto Maldonado (especial para ARGENPRESS.info)

En los años 60 del siglo pasado (del 20, por más señas) para ser revolucionario completo se necesitaba tener el visto bueno del Partido y pensar que una revolución es una revolución: que no debía quedar en pie ninguno de los esquilmaron a nuestras gentes y se enriquecieron con ellas. Es más, no había revolución sino se estatizaba el gran motor de lo que es el neo liberalismo (para su provecho) que tejió en el mundo entero y del que se nutrieron unos pocos “sabios” Por algo Lenín (el gran hacedor de las revoluciones bolcheviques del siglo 20) creó la nueva economía y dijo que del neoliberalismo (lo poco) que era útil había que pasarlo. Luego vino el señor Stalin e hizo lo que hizo. A fines de los años 90 del siglo 20, (casi en los años 90) desaparecieron la URSSS y los países europeos, que se decían socialistas.

Según el Diccionario de la Real Academia de la Lengua (edición No. 22) hay varias definiciones de revolución. Para efectos de lo que estamos diciendo, hay dos definiciones que se ciñen a lo que quiero decir: “cambio violento en las instituciones políticas, económicas y sociales de una nación” y “cambio rápido y profundo de cualquier cosa” En América Latina (AL) hay de todos los casos: fueron Cuba y los cambios que se produjeron hace más de 50 años; y otros, son los cambios que vienen operándose en Venezuela, Bolivia, Ecuador. Más tenue es la cosa en Brasil de Lula y la Digna, Argentina de la Cristina Fernández y en Nicaragua del Daniel Ortega. La pregunta que hay que formular: ¿Si son revolucionarios lo que están haciendo en algunos países? ¿Fue revolucionario lo que hizo el señor Velasco Alvarado en el Perú?

Estoy leyendo al peruano Alberto Adrianzén, que ha escrito el libro “Apogeo y Crisis de la Izquierda Peruana” en la cual entrevista a números políticos de la vieja data peruana. Y la pregunta que sigue sin responder Adrianzén y sus entrevistados es, si el General Velasco Alvarado y quienes le siguieron en el gobierno peruano, fueron revolucionarios; o si el Hugo Blanco y/o Sendero Luminoso (nombre de la supuesta guerrilla, que le sirvió a Fujimore para hacer lo que hizo y que le mandó la cárcel de por vida al señor Guzmán Abigail) fueron revolucionarios al estilo socialista. La primera pregunta es si Velasco Alvarado es tomado como un revolucionario a nombre de las Fuerzas Armadas peruanas. La respuesta es si/no o como quieran. Lo cierto es que los dos episodios dan mucho que hablar (y qué hacer) en el Vecino del Sur, con quién hicimos las paces allá por el 1998, cuando era Presidente del Ecuador el señor Jamil Mahuad. Que ahora dicta clases en Harvard (EE:UU.)

A nivel mundial están en discusión los hechos. Para los de más acá (incluidos algunos que fueron los jerarcas del Partido Comunista) son los hechos los que dicen que hay revolución. En Venezuela (la tierra de Simón Bolívar, de Sucre, de Hugo Chávez, y de unos cuantos revolucionarios) están las cosas que arden. Al señor Hugo Blanco (en el Perú) le tildan de “muy troskista” y destacan que no quiso hacer la revolución en su país porque prefirió la comodidad de un escaño en el parlamento peruano. De Sendero Luminoso dicen que quieren la paz y esto no se consigue sino con la guerra. Hay quienes tildan al señor Guzmán (o quien lo reemplace, que hace poco fue detenido en el Perú) como muy guerrerista y como un foco de la CIA (norteamericana) para hacerles caer a los legítimos revolucionarios peruanos. Solo nos queda el General Velasco Alvarado, que hizo la reforma agraria y entregó a los gremios peruanos los principales diarios de Lima. Los gremios no supieron aprovechar semejante coyuntura y terminaron entregando los diarios a sus antiguos dueños, los periódicos que Velasco les dio.

La pregunta del millón de dólares, sigue siendo: ¿es revolucionario lo que están haciendo el señor Nicolás Maduro y el señor Rafael Correa y el señor Evo Morales o no? No exagero si digo que las revoluciones en AL están a la orden del día. La pregunta: ¿pueden ser revolucionarios quienes no tienen antecedentes de izquierdistas en AL; o al contrario? Es una discusión a nivel mundial la que se está dando. Y dicen los estudiosos que la ex URSS, en los años 90 del siglo pasado, tuvo que renunciar a seguir ofreciendo, porque no le quedaba más remedio. Y dicen que a Cuba le iba a pasar lo mismo, solo que la Asamblea Nacional hizo las reformas que hizo. Esto sin contar con que Lenin tenía toda la razón; y las revoluciones al estilo de los viejos tiempos, tendrán que esperar.

A propósito de Cuba, recuerdo que un viejo militante del partido comunista ecuatoriano decía, cuando los barbudos bajaron de la Sierra Maestra, victoriosos, que era cosa de la pequeña burguesía cubana. Porque Fidel y sus muchachos no habían sido izquierdistas. Y vaya usted a ver y admirar la revolución que hicieron los cubanos. Hasta que Fidel dijo más o menos lo siguiente: “para ser revolucionario hay que ser honrado a carta cabal” Y aclaró que pueden ser conservadores, liberales o de la izquierda democrática, pero honrados al fin. Que eso es lo que importa. De manera que en esa estamos. Si nosotros preguntamos al ecuatoriano MPD (Movimiento Popular Democrático) o a lo que ha quedado de la otrora combativa cédula de los indios ecuatorianos, yo diría que mucho o muy poco. Las dos cosas a la vez.

Según el ecuatoriano MDP, no pueden ser revolucionarios sino aquellos que siguen sus reglas, o se afilian al Partido o están muy cerca de ellos. Don Rafael Correa les llama públicamente los “tira piedras” Así y todo, la revolución ciudadana avanza; como avanza el país. Yo diría que no hay una revolución como lo proponían los viejos partidos comunistas de antaño, sino los de hoy. Ni correa, ni Chávez, ni Morales tienen antecedentes de comunistas. Y no me dan “chirinchos” el ver a los miliares venezolanos hablando de la sociedad socialista. Antes era pecado. A los noveles “coshcos” (conscriptos de antaño) se les hacía trabajar en los cuarteles bajo la consigna de “matar a un comunista era lo de menos” Y tenían en este Ecuador “como meta” el matar comunistas en las prácticas militares. Pues según Hugo Chávez eso era del pasado. Hoy en día, en AL, matar es matar a un ciudadano, sea cual fuere su filiación política. Por lo menos eso se está dando en Venezuela. No sé, no conozco, en el Perú de Olllanta Humala (un exmilitar)

Según los motores del comunismo “in sito”, no deben ser comunistas los que hacen la revolución. Por eso no le reconocen al Velasco Alvarado, a pesar de que se adelantó en años a los que quieren hacer las revolución en estos días y en AL. ¿Ya habrá quiénes sigan diciendo que el Correa y el Evo y el señor Chávez (que en paz descanse) son o no revolucionarios, porque no han expropiado a nadie? Eso lo dejamos a la discusión mundial.

Argenpress

Plano Condor



Plano Condor: o que ainda resta a ser investigado
O melhor resumo do que ainda resta a ser feito foi feito pelo promotor argentino Miguel Ángel Osório. Tudo sempre gira em torno da verdade enterrada.




Paris - O Coletivo Argentino pela Memoria com o apoio ativo da embaixada argentina na França e do senador ecologista Jean Desessard organizaram em Paris um esplêndido colóquio internacional sobre o Plano Condor. Três décadas depois da recuperação da democracia na Argentina e ao se completarem 21 anos da descoberta dos chamados “Arquivos do Terror” por parte do ativista e defensor dos Direitos Humanos paraguaio Martín Almada, o colóquio realizado no Senado francês abordou a cadeia polifônica deste “eixo do mal” composto pelas ditaduras da América do Sul.

Os principais atores judiciais e os ativistas de Direitos Humanos que tentaram e tentam destravar os meandros ainda ocultos do Plano Condor estiveram presentes na capital francesa: desde o juiz espanhol Baltazar Garzón, Alicia Bonet-Krueger e Estela Belloni, respectivamente presidenta e co-fundadora do Coletivo Argentino pela Memória, o próprio Martin Almada, o jornalista norte-americano John Dinges, a Promotora da Audiência Nacional da Espanha, Dolores Delgado García, até a advogada francesa Sophie Thonon, o promotor argentino Miguel Ángel Osório e o advogado chileno Eduardo Conteras. Todos destacaram a transcendência que teve o Plano Condor, seu caráter multinacional e criminal, as vítimas que deixou e, de uma maneira paradoxal, o papel que desempenhou na reativação do conceito de justiça universal que desembocou na prisão do ditador Augusto Pinochet em Londres.

“O Plano Condor é parte de algo muito mais complexo”, disse o promotor Miguel Ángel Osorio, enquanto Eduardo Contreras, defensor das famílias das vítimas chilenas, destacou que “devemos ao Plano Condor a morte de muitas pessoas na América Latina”. Para Contreras, “este acordo sinistro urdido nos Estados Unidos e assumido pelos generais ditadores da época provocou muita dor, mas também nos uniu a todos na busca comum da recuperação da memória, da verdade, da justiça e da reparação”. Neste contexto preciso, o juiz espanhol Baltazar Garzón elogiou os avanços realizados na Argentina em matéria judicial: “a Argentina pode ter orgulho de ser um exemplo mundial”, disse.

Longe de ter terminado, o ciclo das investigações continua ao ritmo das novas descobertas. A este respeito, Martín Almada recordou que “inicialmente os arquivos do terror pesavam três toneladas. Hoje eles já são cinco toneladas”. Apesar das evidências, as justiças nem sempre estão dispostas a responsabilizar os culpados.
Almada disse à Carta Maior que “devido à impunidade que impera no Paraguai foi preciso recorrer à justiça argentina”. Almada também evocou o caso brasileiro e o atraso com que a justiça decidiu impulsionar uma comissão da verdade: “É lamentável que 50 anos depois o Brasil só agora tome uma decisão, e isso graças à intervenção de uma mulher muito valente como Dilma Rousseff. Ela assumiu a responsabilidade de conhecer a verdade”.

O jornalista norte-americano John Dinges, autor do livro “Os anos Condor, como Pinochet e seus aliados levaram o terrorismo a três continentes”, considerou que o “Brasil teve muito a ver com a metodologia e a estrutura do Plano Condor. O Brasil participou, junto com a Argentina e os outros países da região, de torturas e assassinatos”. Dinges ressaltou o caráter internacional do dispositivo repressor e as evidências que essa internacionalização permitiu resgatar. “O fato de o Plano Condor ter sido internacional fez com que ele escapasse do controle dos governos nacionais e isso propiciou os julgamentos internacionais”.

Esses julgamentos têm um ponto central de origem: o caso do ditador Augusto Pinochet assumido pelo juiz Baltazar Garzón. A promotora da Audiência Nacional da Espanha, Dolores Delgado García, lembrou com orgulho e nostalgia que essa intervenção de uma justiça exterior foi “um parêntesis que logo se fechou mas que marcou um antes e um depois”. Mas antes que esse parêntesis desaparecesse interveio um fato maior que o advogado Eduardo Contreras qualificou como transcendente: “a detenção de Pinochet em um país distinto consagrou o princípio da justiça universal”.

Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai, Brasil e Uruguai, as ditaduras daquela época se articularam para obter informação e deter adversários políticos, recordou Dolores Delgado García. “Essa coordenação os levou a atuar inclusive nos Estados Unidos”, assinalou Miguel Ángel Osorio se referindo ao assassinato do diplomata chileno Marcos Orlando Letelier, morto em Washington por agentes do regime militar de Pinochet em 1976. A promotora espanhola também lembrou o fato de que a detenção de Pinochet em Londres revelou em toda sua profundidade os aspectos mais escondidos da repressão ao mesmo tempo em que desferiu um golpe severo na imagem de Pinochet.

John Dinges observou, a esse propósito, que “o Plano Condor foi o argumento jurídico mais forte que se podia desenvolver para que o caso tivesse validade internacional. E assim ocorreu com um caso específico chileno”. Outra justiça que também promoveu julgamentos e investigações foi a francesa. A advogada Sophie Thonon disse à Carta Maior que a “justiça francesa foi muito valiosa e tinha limitações de base jurídica. Não se atuava a partir do princípio de uma justiça universal, mas sim sobre categorias individuais do direito penal. Apesar disso, ela se mostrou muito ativa”.

O melhor resumo do que ainda resta a ser feito foi feito pelo argentino Miguel Ángel Osório. Tudo sempre gira em torno da verdade enterrada: “é o próprio Estado que segue pagando aposentadorias que tem que encontrar os meios para que seus agentes, militares e policiais entreguem a informação que tem e que não querem entregar. Isso aportaria um ponto de inflexão que é romper o pacto de impunidade, com o qual se produziria um ato pedagógico para as futuras promoções de policiais e militares. Se eles não reconhecem os atos criminosos que ocorreram, é difícil entregar-lhes armas e pagar salários para que, teoricamente, nos protejam”.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer
(Carta Maior)

Espionagem

 “Abandonar Snowden é uma causa indigna”. Entrevista especial com Sérgio Amadeu

“Apoiar Snowden representa colocar a dignidade, a privacidade, a liberdade e o direito à autonomia dos povos acima das razões do Estado”, afirma o cientista político.



Em carta aberta ao povo brasileiro, publicada nesta terça-feira (17), o ex-agente da Agência de Segurança Nacional - NSA, Edward Snowden, manifestou interesse em vir para o Brasil.

Perseguido pelo governo dos Estados Unidos e confinado em seu asilo na Rússia, Snowden se dispôs a colaborar com as investigações sobre os abusos cometidos pela vigilância massiva estadunidense, que teve como alvo diversas lideranças políticas, agências e empresas brasileiras.

Alertou: “Até que um país conceda asilo político permanente, o governo dos EUA vai continuar a interferir em minha capacidade de falar”. No mesmo dia o Itamaraty recusou o pretenso pedido, alegando não ter interesse em “dar o troco na NSA”. Na quarta-feira (18), a presidenta Dilma Rousseff também se manifestou negativamente. "Não me encaminharam nada, não me pediram nada, não interpreto nada. Não vou falar sobre isso", disse ela.

Para o cientista político Sérgio Amadeu, no entanto, o apoio a Snowden não indica uma postura revanchista, mas de solidariedade e valorização do papel histórico executado pelo ex-agente, da defesa do direito à privacidade, liberdade e autonomia dos povos. “As pessoas podem ter mil causas para defender o Snowden, mas todas elas são dignas. Abandonar Snowden é uma causa indigna”, defende ele. “As razões de não dar asilo a Snowden são racionalmente compreensíveis, mas eticamente inaceitáveis.” Mesmo que o ex-agente não seja capaz de efetivamente deixar o território russo, a simples reação positiva do Estado brasileiro representaria uma recusa simbólica às violações e abusos aos direitos do povo.

Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, Amadeu defende uma série de medidas possíveis para assegurar a segurança nacional. “Não precisamos do Snowden para saber que o sistema operacional da Presidência da República não deve ser o Windows.” Segundo ele, o Brasil tem a competência e a capacidade de desenvolver tecnologias de armazenamento e correspondência seguras, de código aberto e auditáveis, de modo a não nos tornarmos reféns de tecnologias e soluções estrangeiras sem qualquer comprometimento efetivo com o governo brasileiro. “Há muitas medidas concretas que podem ser tomadas dentro do Estado brasileiro. Segurança não é comprar produtos; segurança é um processo contínuo de inteligência na área de informações”, aponta.

Sérgio Amadeu, doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo – USP, participou da implementação dos Telecentros na América Latina e da criação do Comitê de Implementação de Software Livre – CISL. Também foi presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação – ITI da Casa Civil da Presidência da República. É professor na Universidade Federal do ABC – UFABC. É autor de, entre outros, Exclusão digital: a miséria na era da informação (São Paulo: Perseu Abramo, 2001); Software Livre: a luta pela liberdade do conhecimento (São Paulo: Perseu Abramo, 2004) e Comunicação Digital e a Construção dos Commons: redes virais, espectro aberto e as novas possibilidades de regulação (São Paulo: Perseu Abramo, 2007).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Apesar da carta aberta de Snowden, o Itamaraty afirmou que não tem interesse em “dar o troco” na NSA e dar asilo a Snowden em troca de informações. Como você enxerga essa decisão?

Sérgio Amadeu - É uma resposta muito triste esta do Itamaraty, especialmente porque a espionagem dos Estados Unidos não tinha interesse apenas em controle e dominação política, mas também em benefícios econômicos. Conceder asilo a Snowden não é uma questão de “dar o troco”, mas de solidariedade, de reconhecer seu papel histórico na sociedade mundial.

Acho que é uma posição completamente equivocada da diplomacia brasileira — que em geral tem posições boas. Mesmo em momentos autoritários o Brasil nunca foi uma mera corrente de transmissão norte-americana. Nós já coordenamos votações contra os Estados Unidos, já rompemos acordos prioritários, e é lamentável que não tenhamos mantido nossa posição agora, justamente em um momento em que tanto os Estados Unidos quanto a Inglaterra instituem uma diplomacia do cinismo.

Julian Assange, por exemplo, está preso em uma embaixada equatoriana não por ter denunciado assassinatos ocultados pelas tropas e pelo departamento de Estado americano, não por ter vazado informações, mas por acusações de crime sexual na Suécia. É o fim da picada. Se a opinião pública mundial dos países democráticos perderem Snowden para uma prisão norte-americana, eu diria que este seria um século XXI pior do que deveríamos ter. Teremos um século onde um Estado como o norte-americano se institui como a polícia do mundo; uma polícia autocrática que mente, assassina, interfere na vida das pessoas.

IHU On-Line - Em que medida a postura do Itamaraty contribui para uma sociedade mais livre, longe da espionagem e da vigilância de Estado?

Sérgio Amadeu - A medida do Itamaraty é equivocada. Uma resposta adequada seria simplesmente dizer que, em defesa da coerência do discurso da presidenta Dilma na ONU, que dava conta de um pacto contra o vigilantismo em massa do mundo, em defesa da autonomia dos povos e do respeito à dignidade e aos direitos humanos, estamos mostrando para a maior potência do mundo que somos solidários a Snowden. O Brasil tem de deixar claro que não vai permitir tamanho absurdo, que é a supremacia da violação massiva de direitos.

IHU On-Line - A primeira chefe de Estado a defender a internet livre e o respeito à privacidade na ONU foi a presidenta Dilma Roussef. O que há de contraditório entre a postura de Dilma na ONU e a postura do Itamaraty?

Sérgio Amadeu - O Itamaraty agiu em nome das ações do Estado brasileiro e da diplomacia em um mundo tenso. Ele decidiu não arriscar as relações econômicas com os Estados Unidos para fazer solidariedade a uma pessoa nitidamente contrária à política internacional americana. Então ele agiu com um pragmatismo completamente distante de uma política de paz, de diversidade cultural. A solidariedade a Snowden pode ser um sinal para esses estados mudarem a sua política. Pode igualmente ser um sinal positivo de um país que tem uma democracia muito mais estável do que a norte-americana, que vive em permanente estado de exceção.

IHU On-Line – Qual seria uma resposta à altura para a espionagem dos Estados Unidos?

Sérgio Amadeu - Uma das respostas à altura, na minha opinião, seria primeiro dar cobertura a Snowden e tentar trazê-lo da Rússia para o Brasil — coisa que não seria simples, pois a aeronave ou embarcação seria interceptada pelas forças norte-americanas. Uma segunda ação seria fazer uma denúncia contundente da política norte-americana de vigilantismo em massa, além do que a presidente fez. Externar claramente na assembleia geral da ONU os detalhes desta agressão que nós sofremos. Assim, a medida de propor um acordo internacional e trabalhar por esse acordo, junto com a medida de dar asilo, mostrar interesse em proteger e ser solidário a Snowden, seriam boas respostas. Os Estados Unidos têm muita força, mas temos que começar a inverter isso.

IHU On-Line – Você concorda que se o Brasil tivesse aceitado o pedido de asilo de Snowden, esse ato seria encarado nos EUA como revanchismo?

Sérgio Amadeu – Poderia, sim. Afinal, os Estados Unidos são o país que mais entende de revanche no mundo. Mas os EUA não teriam como repreender esse possível ato brasileiro. Eles não teriam condições de dizer que o Brasil faz parte do eixo do mal. O Brasil não dá guarida a terroristas, não tem em seu território operações militares antiamericanas, não tem interesse expansionista na América do Sul e em nenhum lugar do planeta. Logo, o Brasil não é um país que coloque em risco qualquer elemento do conceito de segurança norte-americano. A revanche brasileira ficaria difícil de ser sustentada como algo que requer uma retaliação, como foi o caso da perseguição do líder da Al-Qaeda. A cultura americana é belicista, isso nós entendemos, mas não podemos aceitar. Não podemos achar bonito que os americanos se vangloriem de atacar qualquer lugar do mundo. Isso não é normal e aceitável para uma cultura democrática que pretende ser pacífica e tolerante.

Snowden representa o que há de melhor na sociedade norte-americana. Porque esta sociedade não é feita só por esses grupos de crença puritana, que acham que estão predestinados a comandar o mundo. O Snowden vem de um espírito de tudo o que tem de mais rico nesta cultura.

A cultura americana é muito rica; lá nasceu o movimento hacker, o software livre, a internet, ojazz e várias situações de práticas recombinantes. Então, temos de entender que o Snowden representa essa parcela da população norte-americana.

IHU On-Line – No mesmo dia em que o asilo foi negado, foi criada uma petição pública no Avaaz que rapidamente atingiu milhares de assinaturas solicitando que o Brasil aceite a vinda de Snowden. Como encara esse tipo de manifestação de apoio? Ela representa a conscientização e atenção do povo brasileiro para este tipo de assunto ou é reflexo de uma onda estimulada pela internet?

Sérgio Amadeu – Se for uma onda, é uma onda extremamente importante no plano político nacional e internacional. É fundamental que a opinião pública se manifeste. As pessoas podem ter mil causas para defender o Snowden, mas todas elas são dignas. Abandonar Snowden é uma causa indigna. Ela vem do receio de enfrentar ou de criar uma situação inconveniente para com os Estados Unidos. As razões de não dar asilo a Snowden são racionalmente compreensíveis, mas eticamente inaceitáveis. Então, não importa por que um jovem, um adulto ou uma mulher assinem esta petição. O Snowden representa colocar a dignidade, a privacidade, a liberdade, o direito à autonomia dos povos acima das razões do Estado, e isso é extremamente relevante. Se existe uma onda, devemos incentivar.

IHU On-Line - Snowden afirma que poderia auxiliar o Brasil nas investigações sobre a suspeita de crimes cometidos pela NSA contra cidadãos brasileiros. Acredita que ele teria com o que colaborar ou o seu aceite seria muito mais de ordem simbólica?

Sérgio Amadeu - A vinda dele seria muito mais simbólica. É claro que ele poderia dar uma colaboração, mas eu não vejo como nosso interesse esse tipo de investigação. O Brasil não tem uma política imperialista, mas sim de defesa da liberdade democrática e de direitos. A medida mais adequada é voltar-se para a segurança nacional da informação, apesar de o governo ainda continuar tratando empresas americanas, como a Microsoft, como empresas quaisquer. Eu falo da Microsoft porque ela está querendo vender para os Estados Unidos uma nuvem de segurança, e é possível que o governo realmente adquira esse produto.

IHU On-Line - Você acredita que a Microsoft poderia enviar dados sigilosos para a NSA?

Sérgio Amadeu - Pode e, de acordo com as denúncias do Snowden e as notícias divulgadas em vários jornais, é o que acontece. A empresa atua em diversos projetos junto com a NSA. É claro que as empresas que fornecem equipamentos de comunicação têm que colaborar com o governo americano, porque a lei manda. Não precisamos do Snowden para saber que o sistema operacional da Presidência da República não deve ser o Windows. Agora nós estamos em um momento em que é possível desenvolver tecnologias auditáveis, que são abertas e que podemos ter domínio completo sobre elas — ou, pelo menos, um domínio maior. No caso do armazenamento em nuvem e e-mail seguro, também temos condição de fazer isso. Então qual é o problema? O problema é que lamentavelmente existe um lobby pesado que penetra na burocracia brasileira.

IHU On-Line - Quais medidas podem ser tomadas para maior segurança da informação caso haja um planejamento adequado?

Sérgio Amadeu – Primeiro, temos que buscar utilizar softwares nas máquinas das autoridades mais visadas, que trabalham com informações sensíveis, que possam ser auditadas por técnicos da nossa inteira confiança. A segunda medida é apoiar, inclusive com o BNDES e outras estruturas de financiamento, o desenvolvimento de soluções abertas ou soluções que sejam nacionais e que não tenham condições de ser cooptadas e capturadas pelas agências de inteligência americana. Então, do ponto de vista de segurança de informações de nossas empresas estratégicas da política internacional brasileira e de nossas autoridades, temos condições de adotar essas medidas, que passam por softwares abertos e auditáveis, por começar a desenvolver plataformas de tecnologia seguras. Temos hoje uma capacidade de desenvolvimento tecnológico, mas é preciso identificar quem são os lobistas que só querem ganhar dinheiro à custa da defesa da liberdade, como o da Microsoft. Esse lobista não deveria nem ser respeitado dentro do governo, porque está mais do que nítido que ele está defendendo um interesse econômico, vendendo não o software, mas backdoors, instruções que permitam vazar as informações do Estado brasileiro.

Só para você ter uma ideia, antes da denúncia do Snowden eu assisti a uma apresentação no comitê gestor do Centro de Defesa Cibernética Brasileira (CDCiber). A segunda tela que foi apresentada mostrava as empresas que estavam ajudando a montar o centro, e uma delas era a Microsoft. Quando terminou a apresentação, perguntei para o general: “Como o senhor garante que vai conseguir se defender caso o inimigo sejam os Estados Unidos ou os interesses norte-americanos, se o senhor não domina a tecnologia da Microsoft, já que ela é de código fonte fechada?”. Ele respondeu somente: “Eles são nossos aliados”. Então, veja, isso aconteceu um ano antes da denúncia do Snowden. Esse tipo de concepção vai nos levar aonde? Tal concepção é ingênua, mas tem pessoas que levam essas propostas para o centro de Cibernética.

Há muitas medidas concretas que podem ser tomadas dentro do Estado brasileiro. Segurança não é comprar produtos; segurança é um processo contínuo de inteligência na área de informações.

Em relação às chamadas tecnologias da informação, a segurança é uma luta de inteligência, de criatividade, de tentar estar sempre um passo à frente daquele que quer isolar o seu sistema.

Então, não dá para aceitar determinadas posturas do Estado brasileiro. É claro que eu não desconheço as dificuldades migradas para o sistema, mas também não desconheço o potencial brasileiro e sua capacidade de propor soluções a curto, médio e longo prazos para uma série de problemas.

Por Andriolli Costa

 (I.H.U.)

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Marxismo



   
Um espectro que ronda o Brasil?
Neste ano ocorreram pelo menos três episódios públicos envolvendo denúncias de "doutrinação marxista" no ambiente universitário brasileiro.

Neste ano ocorreram pelo menos três episódios públicos envolvendo denúncias de “doutrinação marxista” no ambiente universitário brasileiro: a recusa de um estudante em realizar um trabalho sobre Karl Marx, a pedido de seu professor (SC); a ação popular movida por um advogado contra um projeto de extensão de difusão do marxismo (MG), que acarretou em sua suspensão pela Justiça Federal do Maranhão e a acusação de um filósofo sobre a contaminação do marxismo nas Ciências Humanas e Sociais (SP). As três notícias tiveram cobertura em veículos midiáticos, cujas posições ideológicas são historicamente conhecidas do público.

O espraiamento nacional de uma suposição sobre o avanço do comunismo e do marxismo no Brasil, às vésperas do cinquentenário do Golpe civil-militar, convida a todos os cidadãos e cidadãs para a seguinte reflexão: o que estes discursos e ideias representam no Brasil após 25 anos da promulgação da Constituição de 1988? Gostaríamos de sugerir que isso reflete uma paranoia, compartilhada por pessoas e grupos capazes de formar guetos de opinião e que a despeito do alcance restrito, ganham destaque desproporcional na mídia hegemônica.

O conceito de paranoia, em termos psiquiátricos, possui sua própria história, como todos os conceitos mais ou menos compartilhados pelo campo científico. A despeito das controvérsias particulares inerentes a este campo - no caso, o da psicanálise - é possível sustentar com baixo custo de prejuízo que a ideia de paranoia envolve basicamente um delírio persecutório baseado em uma desconfiança descolada da realidade, razão ou empiria.


Defensivas ou preventivas, as consequências políticas da proliferação do discurso paranoico anticomunista e antimarxista ferem, paradoxalmente, dois princípios liberais básicos: liberdade de expressão e tolerância. Ao mesmo tempo, reedita a paranoia clássica alimentada pela Guerra Fria, cuja conjuntura internacional fora cúmplice do segundo período ditatorial brasileiro.

Foi justamente neste contexto que ocorreu a institucionalização das Ciências Sociais no Brasil, amplamente apoiada pela estadunidense e liberal Fundação Ford.
Neste período, várias brasileiras e brasileiros pagaram com a dor, o exílio e a vida, o preço pela defesa de suas ideias comunistas e marxistas, bem como quaisquer outros que contrariassem à lógica da Ditatura Civil-Militar. Hoje, qual é o preço a pagar por essa retórica da intransigência? Como responder a uma paranoia revestida de intelectualidade, a um despautério anacrônico e a um disparate sem fundamento?

Seria um tanto contraproducente esboçar nessas linhas argumentos e razões que tentem comprovar que o Brasil não é governado por comunistas e que a universidade brasileira não está intoxicada pelo marxismo. Inútil, de igual forma, pensar na originalidade histórica dos escritos marxianos e na importância das várias correntes do marxismo - do vulgar e ortodoxo para o crítico e arejado - para os campos das Ciências Sociais Aplicadas ou não. Da mesma maneira estéril, argumentar que o eurocentrismo, o colonialismo e o progresso moderno não são completamente afastados do marxismo e que justamente por isso, ele encontra resistência nos movimentos decoloniais latino-americanos.

Produtivo, talvez, seja observar o nascimento de um novo tipo de direita no Brasil.
Mesmo os velhos e os contemporâneos clássicos do liberalismo político moderado são capazes de aceitar a tolerância, a diferença, a liberdade de expressão, a existência do Estado e o respeito ao outro. Não estamos falando, portanto, da adversária histórica direita liberal. Ela é nova justamente porque ultrapassa a própria moral e a própria ética do liberalismo e acontece neste exato momento histórico. Ela é nova justamente porque também se apropria dos discursos da esquerda e da democracia para combater a própria esquerda e a própria democracia.

Se, cada vez mais, a esquerda não tem se restringindo à alternativa marxista, criando um repertório de resistência, emancipação e libertação próprias, a direita não tem se restringido à alternativa liberal, criando um repertório de ignorância, esquecimento e ódio próprios. Certamente, o espectro que ronda a primeira já não é mais o do comunismo. Mas, o espectro que ronda a segunda ainda desagua no seu totalitarismo oposto, o fascismo. Ou será que estamos, simplesmente, paranoicos?

(*) Professora Adjunta de Ciência Política, Coordenadora do Curso de Relações Internacionais - Centro de Integração do Mercosul Programa de Pós-Graduação em Ciência Política - Instituto de Filosofia, Sociologia e Política, da Universidade Federal de Pelotas.


(Carta maior)

Médicos Cubanos


Opera Mundi

Apoio logístico de comunidades pobres foi fundamental para sucesso de médicos cubanos na Venezuela
Mesmo nas parcelas mais carentes da sociedade venezuelana, porém, houve resistência aos profissionais estrangeiros

“Não queremos cubanos aqui.” Assim justificavam alguns moradores de setores de baixa renda ao não abrirem a porta de suas casas a médicos cubanos recém-chegados à Venezuela, em 2003. Segundo Luis Vásquez, um mensageiro de 65 anos que vive no bairro 23 de Enero, não demorou, no entanto, para que a percepção dos resistentes à presença dos profissionais estrangeiros mudasse. “Hoje essas pessoas se atendem aqui e gostam deles”, conta.

Leia mais:
Classe média venezuelana mantém críticas, mas busca atendimento de médicos cubanos

Vásquez foi um dos venezuelanos de setores pobres que abrigaram em suas casas médicos cubanos naquele ano. Com uma reorganização dos filhos nos quartos da casa e a sala adaptada, com uma maca emprestada para que servisse como consultório, a médica cubana passou a morar com a família e a receber moradores que buscavam atendimento. “Foi um processo muito bonito. Era a primeira vez que tínhamos um médico aqui dentro do bairro, atendendo nas casas”, relata.

Luciana Taddeo/Opera Mundi
Voluntários como Luis Vásquez ajudaram muito na chegada dos profissionais cubanos à Venezuela

Às vezes, alguém ligava passando mal no meio da madrugada e ele acompanhava a médica até a casa do paciente para mais uma consulta. “E ela ia mesmo quando chovia”, conta Vásquez, lembrando que a doutora dizia que o bairro tinha muita necessidade de médicos. A esposa do mensageiro, Jean Theodora, conta que cozinhava, lavava e passava as roupas para a médica. “Ela atendia as pessoas aqui em casa até de noite, trabalhava muito, inclusive aos domingos”, explica.

Leia mais:
Médicos cubanos não são suficientes para melhorar estrutura do sistema de saúde, diz pesquisadora

A chegada de médicos cubanos à Venezuela remete a 1999, quando fortes chuvas provocaram inundações, deslizamentos de terra e deixaram milhares de pessoas afetadas no estado de Vargas. Posteriormente, brigadas atuaram em zonas rurais do país. Em 2000, um convênio de cooperação integral entre Cuba e Venezuela foi assinado.

Em 2003, a prefeitura de Libertador, principal município da capital venezuelana, e a embaixada de Cuba assinaram um convênio para que médicos desta nacionalidade prestassem atenção primária em comunidades de forma provisória. Um concurso foi aberto para que médicos venezuelanos preenchessem as 948 vagas do programa, mas somente 52 candidatos se inscreveram, segundo uma sentença do TSJ (Tribunal Supremo de Justiça) de setembro daquele ano.

Ao longo dos meses, o programa municipal ganharia caráter nacional, com o nome de Missão Barrio Adentro. Ao longo dos anos, foram criados CDIs (Centros de Diagnóstico Integral), SRIs (Salas de Reabilitação Integral), CATs (Centros de Alta Tecnologia) e centros oftalmológicos para o atendimento de casos mais complexos. Atualmente, 11,6 mil médicos da ilha caribenha atuam na Venezuela, de acordo com dados da embaixada cubana.

Apoio

Além da doutora recebida por Vásquez, outros médicos da brigada de 53 profissionais que chegou à Venezuela em 2003 foram acolhidos em casas familiares de comunidades pobres. “As pessoas ofereceram suas casas voluntariamente. Para os moradores da região, era como ter uma clínica dentro da comunidade. Eles se dedicaram muito a nós”, lembra Mariela Márquez Montoya, especialista em medicina geral integral, que foi recebida em uma moradia na região de El Cementerio. “Até hoje essas pessoas são como se fossem minha própria família”, diz.


Luciana Taddeo/Opera Mundi

Cubana Mariela Márquez Montoya diz ter sido muito bem recebida na Venezuela

De acordo com o trabalho “As Missões Sociais na Venezuela: uma aproximação a sua compreensão e análise”, realizado pelo Ildis (Instituto Latino-americano de Investigações Sociais), em 2006, com coordenação da socióloga Joli D’Elia, o início do programa Barrio Adentro requereu intensa atividade para alojamento dos médicos cubanos nas próprias comunidades.

As casas para abrigo dos médicos deveriam ter um “chefe do lar” empregado, uma cama, um guarda-roupa, um ventilador e acesso a banheiro, sem que as famílias recebessem apoio econômico. “Isso foi sinalizado com muita clareza para as comunidades, as quais aceitaram, de todos os modos, se encarregarem da hospedagem, da manutenção e da segurança pessoal dos médicos”, expressa o trabalho.

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Em alguns casos, com médicos viveram em casas de moradores da comunidade por até três anos. “Não tinha nenhuma autoridade que se responsabilizasse por essa administração. Na prática, os comitês faziam tudo o que tinham que fazer, de segurança a acompanhar os médicos nas visitas de terreno, fazer os censos, programar as visitas com ele. Isso se manteve graças a estas pessoas das comunidades. Em caso de algum problema, eles faziam a ponte do médico com o ministério e exigiam os insumos para autoridades”, relata D´Elia.

Casa a casa

Segundo Vásquez, de fato, a comunidade se solidarizou para ajudar na adaptação dos médicos. “Davam comida, acompanhavam ela a todos os lugares”, relata sobre o caso de sua hóspede, contando que no consultório improvisado em sua casa, a profissional se dedicava ao tratamento de “casos simples”. Após cerca de 40 dias, a comunidade conseguiu um espaço para a realização das consultas.

Pequenos postos médicos de tijolos em formato octogonal foram sendo inaugurados gradualmente, a partir de dezembro de 2003. Com dois andares, os chamados “módulos” funcionam como consultório no térreo e moradia do médico no andar superior. Estes locais oferecem atenção primária. “É uma prevenção. Quando o caso é grave, os pacientes devem ser remetidos a CDIs ou a hospitais públicos”, explica Leila Lisemberg, de 59 anos, integrante de um Comitê de Saúde.

Luciana Taddeo/Opera Mundi

Um dos módulos construídos na Venezuela para que os médicos cubanos morem e trabalhem

A doutora cubana Anailys Alfalla Montenegro, que mora em uma dessas pequenas construções, hoje espalhadas pelo 23 de Enero, conta que é responsável pelo atendimento de 273 famílias e uma população de 985 habitantes. Apresentando uma série de estatísticas da região, que afirma ser atualizada por cada doutor que chega à comunidade, explica que o predomínio populacional é masculino e que a pirâmide etária é jovem. Entre os dados analisados pelos cubanos que atuam em módulos estão o nível de escolaridade da população local, condições de provisão de água potável, de coleta de resíduos líquidos e sólidos, níveis de prevenção sexual e estado de moradias.

“Aqui o primordial é que, para conhecer a comunidade, fazemos uma análise da situação de saúde do local. É um processo multidisciplinar e nos apoiamos nos Conselhos Comunais [organizações populares para decisões na comunidade] e nos Comitês de Saúde [organizações criadas para oferecer apoio comunitário aos médicos], com o objetivo de antecipar os principais problemas e, assim, poder ajudar a população”, explica.

De acordo com ela, em seu setor os principais problemas se devem a doenças crônicas não transmissíveis. “Hipertensão, diabete, doenças cerebrovasculares, bronquiais e hepatopatias crônicas são alguns dos casos que controlamos. Vamos às casas, medimos a pressão, damos medicamentos, vitaminas. Trabalhamos com o individuo, com a família e com a sociedade no que possamos ajudá-los. E muitas vezes em lugares onde nunca tinha chegado um médico”, relata.

Resistência

A doutora Montoya diz nunca ter sofrido hostilidades pelo fato de ser cubana. “A aceitação sempre foi muito boa”, explica. Os relatos de Vásquez e de integrantes de Comitês de Saúde consultados por Opera Mundi revelam, porém, que os profissionais estrangeiros sofreram resistência em algumas localidades. “Alguns ainda não se atendem com cubanos, mas agora respeitam, já não se metem com eles”, relata Aide Garrido, uma arrumadeira de 57 anos, que mora na região caraquenha de Chacaíto.

Segundo ela, alguns moradores de sua comunidade chegaram a se opor à construção de um módulo onde poderiam ser atendidos: “Diziam que o espaço seria para um parque, mas estava abandonado. Defendemos o projeto e eu disse para a doutora não se preocupar. Ela chegou a chorar, porque tinha gente que dizia ‘fora cubanos’, cuspia quando passávamos. Quando começou a ter consultas no módulo, lembro de ter visto algumas dessas pessoas na fila”.

“No começo as pessoas não aceitavam a ajuda, batiam a porta na nossa cara. Achavam que o médico cubano não era médico. Mas quando viram que o resultado era positivo, grande parte passou a se atender e agora gosta deles. Aqui não aconteceram agressões, porque sempre estávamos cuidando dos médicos, em todos os sentidos”, lembra Leila Lisemberg, integrante do comitê que apoia a doutora Montenegro.

“Foi duro” e “uma luta” são algumas das expressões usadas por moradores ao descreverem os primeiros meses dos médicos na Venezuela. Para Bernardino Albornoz, de 66 anos, que foi vigilante voluntário da obra de um CAT na região de El Recreo, onde trabalha atualmente, a dificuldade inicial se deve à “falta de mentalidade aberta”. “Os atendimentos nas comunidades são direitos adquiridos por nós”, avalia.

Luis Isturiz, candidato a vereador pelo chavista PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela) para o Distrito Metropolitano de Caracas, que participou da recepção dos cubanos no 23 de Enero, conta que a agressão contra os médicos foi “principalmente midiática”. “Eles precisavam de segurança porque a oposição não os queria aqui e alegavam que não eram médicos, que eram veterinários ou enfermeiros. A campanha foi brava”, lembra, concluindo: “Mas a própria comunidade os defendia”.

(Opera Mundi)

Médicos Cubanos


Opera Mundi

Apoio logístico de comunidades pobres foi fundamental para sucesso de médicos cubanos na Venezuela
Mesmo nas parcelas mais carentes da sociedade venezuelana, porém, houve resistência aos profissionais estrangeiros

“Não queremos cubanos aqui.” Assim justificavam alguns moradores de setores de baixa renda ao não abrirem a porta de suas casas a médicos cubanos recém-chegados à Venezuela, em 2003. Segundo Luis Vásquez, um mensageiro de 65 anos que vive no bairro 23 de Enero, não demorou, no entanto, para que a percepção dos resistentes à presença dos profissionais estrangeiros mudasse. “Hoje essas pessoas se atendem aqui e gostam deles”, conta.

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Vásquez foi um dos venezuelanos de setores pobres que abrigaram em suas casas médicos cubanos naquele ano. Com uma reorganização dos filhos nos quartos da casa e a sala adaptada, com uma maca emprestada para que servisse como consultório, a médica cubana passou a morar com a família e a receber moradores que buscavam atendimento. “Foi um processo muito bonito. Era a primeira vez que tínhamos um médico aqui dentro do bairro, atendendo nas casas”, relata.

Luciana Taddeo/Opera Mundi
Voluntários como Luis Vásquez ajudaram muito na chegada dos profissionais cubanos à Venezuela

Às vezes, alguém ligava passando mal no meio da madrugada e ele acompanhava a médica até a casa do paciente para mais uma consulta. “E ela ia mesmo quando chovia”, conta Vásquez, lembrando que a doutora dizia que o bairro tinha muita necessidade de médicos. A esposa do mensageiro, Jean Theodora, conta que cozinhava, lavava e passava as roupas para a médica. “Ela atendia as pessoas aqui em casa até de noite, trabalhava muito, inclusive aos domingos”, explica.

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A chegada de médicos cubanos à Venezuela remete a 1999, quando fortes chuvas provocaram inundações, deslizamentos de terra e deixaram milhares de pessoas afetadas no estado de Vargas. Posteriormente, brigadas atuaram em zonas rurais do país. Em 2000, um convênio de cooperação integral entre Cuba e Venezuela foi assinado.

Em 2003, a prefeitura de Libertador, principal município da capital venezuelana, e a embaixada de Cuba assinaram um convênio para que médicos desta nacionalidade prestassem atenção primária em comunidades de forma provisória. Um concurso foi aberto para que médicos venezuelanos preenchessem as 948 vagas do programa, mas somente 52 candidatos se inscreveram, segundo uma sentença do TSJ (Tribunal Supremo de Justiça) de setembro daquele ano.

Ao longo dos meses, o programa municipal ganharia caráter nacional, com o nome de Missão Barrio Adentro. Ao longo dos anos, foram criados CDIs (Centros de Diagnóstico Integral), SRIs (Salas de Reabilitação Integral), CATs (Centros de Alta Tecnologia) e centros oftalmológicos para o atendimento de casos mais complexos. Atualmente, 11,6 mil médicos da ilha caribenha atuam na Venezuela, de acordo com dados da embaixada cubana.

Apoio

Além da doutora recebida por Vásquez, outros médicos da brigada de 53 profissionais que chegou à Venezuela em 2003 foram acolhidos em casas familiares de comunidades pobres. “As pessoas ofereceram suas casas voluntariamente. Para os moradores da região, era como ter uma clínica dentro da comunidade. Eles se dedicaram muito a nós”, lembra Mariela Márquez Montoya, especialista em medicina geral integral, que foi recebida em uma moradia na região de El Cementerio. “Até hoje essas pessoas são como se fossem minha própria família”, diz.


Luciana Taddeo/Opera Mundi

Cubana Mariela Márquez Montoya diz ter sido muito bem recebida na Venezuela

De acordo com o trabalho “As Missões Sociais na Venezuela: uma aproximação a sua compreensão e análise”, realizado pelo Ildis (Instituto Latino-americano de Investigações Sociais), em 2006, com coordenação da socióloga Joli D’Elia, o início do programa Barrio Adentro requereu intensa atividade para alojamento dos médicos cubanos nas próprias comunidades.

As casas para abrigo dos médicos deveriam ter um “chefe do lar” empregado, uma cama, um guarda-roupa, um ventilador e acesso a banheiro, sem que as famílias recebessem apoio econômico. “Isso foi sinalizado com muita clareza para as comunidades, as quais aceitaram, de todos os modos, se encarregarem da hospedagem, da manutenção e da segurança pessoal dos médicos”, expressa o trabalho.

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Em alguns casos, com médicos viveram em casas de moradores da comunidade por até três anos. “Não tinha nenhuma autoridade que se responsabilizasse por essa administração. Na prática, os comitês faziam tudo o que tinham que fazer, de segurança a acompanhar os médicos nas visitas de terreno, fazer os censos, programar as visitas com ele. Isso se manteve graças a estas pessoas das comunidades. Em caso de algum problema, eles faziam a ponte do médico com o ministério e exigiam os insumos para autoridades”, relata D´Elia.

Casa a casa

Segundo Vásquez, de fato, a comunidade se solidarizou para ajudar na adaptação dos médicos. “Davam comida, acompanhavam ela a todos os lugares”, relata sobre o caso de sua hóspede, contando que no consultório improvisado em sua casa, a profissional se dedicava ao tratamento de “casos simples”. Após cerca de 40 dias, a comunidade conseguiu um espaço para a realização das consultas.

Pequenos postos médicos de tijolos em formato octogonal foram sendo inaugurados gradualmente, a partir de dezembro de 2003. Com dois andares, os chamados “módulos” funcionam como consultório no térreo e moradia do médico no andar superior. Estes locais oferecem atenção primária. “É uma prevenção. Quando o caso é grave, os pacientes devem ser remetidos a CDIs ou a hospitais públicos”, explica Leila Lisemberg, de 59 anos, integrante de um Comitê de Saúde.

Luciana Taddeo/Opera Mundi

Um dos módulos construídos na Venezuela para que os médicos cubanos morem e trabalhem

A doutora cubana Anailys Alfalla Montenegro, que mora em uma dessas pequenas construções, hoje espalhadas pelo 23 de Enero, conta que é responsável pelo atendimento de 273 famílias e uma população de 985 habitantes. Apresentando uma série de estatísticas da região, que afirma ser atualizada por cada doutor que chega à comunidade, explica que o predomínio populacional é masculino e que a pirâmide etária é jovem. Entre os dados analisados pelos cubanos que atuam em módulos estão o nível de escolaridade da população local, condições de provisão de água potável, de coleta de resíduos líquidos e sólidos, níveis de prevenção sexual e estado de moradias.

“Aqui o primordial é que, para conhecer a comunidade, fazemos uma análise da situação de saúde do local. É um processo multidisciplinar e nos apoiamos nos Conselhos Comunais [organizações populares para decisões na comunidade] e nos Comitês de Saúde [organizações criadas para oferecer apoio comunitário aos médicos], com o objetivo de antecipar os principais problemas e, assim, poder ajudar a população”, explica.

De acordo com ela, em seu setor os principais problemas se devem a doenças crônicas não transmissíveis. “Hipertensão, diabete, doenças cerebrovasculares, bronquiais e hepatopatias crônicas são alguns dos casos que controlamos. Vamos às casas, medimos a pressão, damos medicamentos, vitaminas. Trabalhamos com o individuo, com a família e com a sociedade no que possamos ajudá-los. E muitas vezes em lugares onde nunca tinha chegado um médico”, relata.

Resistência

A doutora Montoya diz nunca ter sofrido hostilidades pelo fato de ser cubana. “A aceitação sempre foi muito boa”, explica. Os relatos de Vásquez e de integrantes de Comitês de Saúde consultados por Opera Mundi revelam, porém, que os profissionais estrangeiros sofreram resistência em algumas localidades. “Alguns ainda não se atendem com cubanos, mas agora respeitam, já não se metem com eles”, relata Aide Garrido, uma arrumadeira de 57 anos, que mora na região caraquenha de Chacaíto.

Segundo ela, alguns moradores de sua comunidade chegaram a se opor à construção de um módulo onde poderiam ser atendidos: “Diziam que o espaço seria para um parque, mas estava abandonado. Defendemos o projeto e eu disse para a doutora não se preocupar. Ela chegou a chorar, porque tinha gente que dizia ‘fora cubanos’, cuspia quando passávamos. Quando começou a ter consultas no módulo, lembro de ter visto algumas dessas pessoas na fila”.

“No começo as pessoas não aceitavam a ajuda, batiam a porta na nossa cara. Achavam que o médico cubano não era médico. Mas quando viram que o resultado era positivo, grande parte passou a se atender e agora gosta deles. Aqui não aconteceram agressões, porque sempre estávamos cuidando dos médicos, em todos os sentidos”, lembra Leila Lisemberg, integrante do comitê que apoia a doutora Montenegro.

“Foi duro” e “uma luta” são algumas das expressões usadas por moradores ao descreverem os primeiros meses dos médicos na Venezuela. Para Bernardino Albornoz, de 66 anos, que foi vigilante voluntário da obra de um CAT na região de El Recreo, onde trabalha atualmente, a dificuldade inicial se deve à “falta de mentalidade aberta”. “Os atendimentos nas comunidades são direitos adquiridos por nós”, avalia.

Luis Isturiz, candidato a vereador pelo chavista PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela) para o Distrito Metropolitano de Caracas, que participou da recepção dos cubanos no 23 de Enero, conta que a agressão contra os médicos foi “principalmente midiática”. “Eles precisavam de segurança porque a oposição não os queria aqui e alegavam que não eram médicos, que eram veterinários ou enfermeiros. A campanha foi brava”, lembra, concluindo: “Mas a própria comunidade os defendia”.

(Opera Mundi)

Médicos Cubanos


Opera Mundi

Apoio logístico de comunidades pobres foi fundamental para sucesso de médicos cubanos na Venezuela
Mesmo nas parcelas mais carentes da sociedade venezuelana, porém, houve resistência aos profissionais estrangeiros

“Não queremos cubanos aqui.” Assim justificavam alguns moradores de setores de baixa renda ao não abrirem a porta de suas casas a médicos cubanos recém-chegados à Venezuela, em 2003. Segundo Luis Vásquez, um mensageiro de 65 anos que vive no bairro 23 de Enero, não demorou, no entanto, para que a percepção dos resistentes à presença dos profissionais estrangeiros mudasse. “Hoje essas pessoas se atendem aqui e gostam deles”, conta.

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Classe média venezuelana mantém críticas, mas busca atendimento de médicos cubanos

Vásquez foi um dos venezuelanos de setores pobres que abrigaram em suas casas médicos cubanos naquele ano. Com uma reorganização dos filhos nos quartos da casa e a sala adaptada, com uma maca emprestada para que servisse como consultório, a médica cubana passou a morar com a família e a receber moradores que buscavam atendimento. “Foi um processo muito bonito. Era a primeira vez que tínhamos um médico aqui dentro do bairro, atendendo nas casas”, relata.

Luciana Taddeo/Opera Mundi
Voluntários como Luis Vásquez ajudaram muito na chegada dos profissionais cubanos à Venezuela

Às vezes, alguém ligava passando mal no meio da madrugada e ele acompanhava a médica até a casa do paciente para mais uma consulta. “E ela ia mesmo quando chovia”, conta Vásquez, lembrando que a doutora dizia que o bairro tinha muita necessidade de médicos. A esposa do mensageiro, Jean Theodora, conta que cozinhava, lavava e passava as roupas para a médica. “Ela atendia as pessoas aqui em casa até de noite, trabalhava muito, inclusive aos domingos”, explica.

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A chegada de médicos cubanos à Venezuela remete a 1999, quando fortes chuvas provocaram inundações, deslizamentos de terra e deixaram milhares de pessoas afetadas no estado de Vargas. Posteriormente, brigadas atuaram em zonas rurais do país. Em 2000, um convênio de cooperação integral entre Cuba e Venezuela foi assinado.

Em 2003, a prefeitura de Libertador, principal município da capital venezuelana, e a embaixada de Cuba assinaram um convênio para que médicos desta nacionalidade prestassem atenção primária em comunidades de forma provisória. Um concurso foi aberto para que médicos venezuelanos preenchessem as 948 vagas do programa, mas somente 52 candidatos se inscreveram, segundo uma sentença do TSJ (Tribunal Supremo de Justiça) de setembro daquele ano.

Ao longo dos meses, o programa municipal ganharia caráter nacional, com o nome de Missão Barrio Adentro. Ao longo dos anos, foram criados CDIs (Centros de Diagnóstico Integral), SRIs (Salas de Reabilitação Integral), CATs (Centros de Alta Tecnologia) e centros oftalmológicos para o atendimento de casos mais complexos. Atualmente, 11,6 mil médicos da ilha caribenha atuam na Venezuela, de acordo com dados da embaixada cubana.

Apoio

Além da doutora recebida por Vásquez, outros médicos da brigada de 53 profissionais que chegou à Venezuela em 2003 foram acolhidos em casas familiares de comunidades pobres. “As pessoas ofereceram suas casas voluntariamente. Para os moradores da região, era como ter uma clínica dentro da comunidade. Eles se dedicaram muito a nós”, lembra Mariela Márquez Montoya, especialista em medicina geral integral, que foi recebida em uma moradia na região de El Cementerio. “Até hoje essas pessoas são como se fossem minha própria família”, diz.


Luciana Taddeo/Opera Mundi

Cubana Mariela Márquez Montoya diz ter sido muito bem recebida na Venezuela

De acordo com o trabalho “As Missões Sociais na Venezuela: uma aproximação a sua compreensão e análise”, realizado pelo Ildis (Instituto Latino-americano de Investigações Sociais), em 2006, com coordenação da socióloga Joli D’Elia, o início do programa Barrio Adentro requereu intensa atividade para alojamento dos médicos cubanos nas próprias comunidades.

As casas para abrigo dos médicos deveriam ter um “chefe do lar” empregado, uma cama, um guarda-roupa, um ventilador e acesso a banheiro, sem que as famílias recebessem apoio econômico. “Isso foi sinalizado com muita clareza para as comunidades, as quais aceitaram, de todos os modos, se encarregarem da hospedagem, da manutenção e da segurança pessoal dos médicos”, expressa o trabalho.

Leia mais

    Por que a Venezuela sumiu do noticiário?
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Em alguns casos, com médicos viveram em casas de moradores da comunidade por até três anos. “Não tinha nenhuma autoridade que se responsabilizasse por essa administração. Na prática, os comitês faziam tudo o que tinham que fazer, de segurança a acompanhar os médicos nas visitas de terreno, fazer os censos, programar as visitas com ele. Isso se manteve graças a estas pessoas das comunidades. Em caso de algum problema, eles faziam a ponte do médico com o ministério e exigiam os insumos para autoridades”, relata D´Elia.

Casa a casa

Segundo Vásquez, de fato, a comunidade se solidarizou para ajudar na adaptação dos médicos. “Davam comida, acompanhavam ela a todos os lugares”, relata sobre o caso de sua hóspede, contando que no consultório improvisado em sua casa, a profissional se dedicava ao tratamento de “casos simples”. Após cerca de 40 dias, a comunidade conseguiu um espaço para a realização das consultas.

Pequenos postos médicos de tijolos em formato octogonal foram sendo inaugurados gradualmente, a partir de dezembro de 2003. Com dois andares, os chamados “módulos” funcionam como consultório no térreo e moradia do médico no andar superior. Estes locais oferecem atenção primária. “É uma prevenção. Quando o caso é grave, os pacientes devem ser remetidos a CDIs ou a hospitais públicos”, explica Leila Lisemberg, de 59 anos, integrante de um Comitê de Saúde.

Luciana Taddeo/Opera Mundi

Um dos módulos construídos na Venezuela para que os médicos cubanos morem e trabalhem

A doutora cubana Anailys Alfalla Montenegro, que mora em uma dessas pequenas construções, hoje espalhadas pelo 23 de Enero, conta que é responsável pelo atendimento de 273 famílias e uma população de 985 habitantes. Apresentando uma série de estatísticas da região, que afirma ser atualizada por cada doutor que chega à comunidade, explica que o predomínio populacional é masculino e que a pirâmide etária é jovem. Entre os dados analisados pelos cubanos que atuam em módulos estão o nível de escolaridade da população local, condições de provisão de água potável, de coleta de resíduos líquidos e sólidos, níveis de prevenção sexual e estado de moradias.

“Aqui o primordial é que, para conhecer a comunidade, fazemos uma análise da situação de saúde do local. É um processo multidisciplinar e nos apoiamos nos Conselhos Comunais [organizações populares para decisões na comunidade] e nos Comitês de Saúde [organizações criadas para oferecer apoio comunitário aos médicos], com o objetivo de antecipar os principais problemas e, assim, poder ajudar a população”, explica.

De acordo com ela, em seu setor os principais problemas se devem a doenças crônicas não transmissíveis. “Hipertensão, diabete, doenças cerebrovasculares, bronquiais e hepatopatias crônicas são alguns dos casos que controlamos. Vamos às casas, medimos a pressão, damos medicamentos, vitaminas. Trabalhamos com o individuo, com a família e com a sociedade no que possamos ajudá-los. E muitas vezes em lugares onde nunca tinha chegado um médico”, relata.

Resistência

A doutora Montoya diz nunca ter sofrido hostilidades pelo fato de ser cubana. “A aceitação sempre foi muito boa”, explica. Os relatos de Vásquez e de integrantes de Comitês de Saúde consultados por Opera Mundi revelam, porém, que os profissionais estrangeiros sofreram resistência em algumas localidades. “Alguns ainda não se atendem com cubanos, mas agora respeitam, já não se metem com eles”, relata Aide Garrido, uma arrumadeira de 57 anos, que mora na região caraquenha de Chacaíto.

Segundo ela, alguns moradores de sua comunidade chegaram a se opor à construção de um módulo onde poderiam ser atendidos: “Diziam que o espaço seria para um parque, mas estava abandonado. Defendemos o projeto e eu disse para a doutora não se preocupar. Ela chegou a chorar, porque tinha gente que dizia ‘fora cubanos’, cuspia quando passávamos. Quando começou a ter consultas no módulo, lembro de ter visto algumas dessas pessoas na fila”.

“No começo as pessoas não aceitavam a ajuda, batiam a porta na nossa cara. Achavam que o médico cubano não era médico. Mas quando viram que o resultado era positivo, grande parte passou a se atender e agora gosta deles. Aqui não aconteceram agressões, porque sempre estávamos cuidando dos médicos, em todos os sentidos”, lembra Leila Lisemberg, integrante do comitê que apoia a doutora Montenegro.

“Foi duro” e “uma luta” são algumas das expressões usadas por moradores ao descreverem os primeiros meses dos médicos na Venezuela. Para Bernardino Albornoz, de 66 anos, que foi vigilante voluntário da obra de um CAT na região de El Recreo, onde trabalha atualmente, a dificuldade inicial se deve à “falta de mentalidade aberta”. “Os atendimentos nas comunidades são direitos adquiridos por nós”, avalia.

Luis Isturiz, candidato a vereador pelo chavista PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela) para o Distrito Metropolitano de Caracas, que participou da recepção dos cubanos no 23 de Enero, conta que a agressão contra os médicos foi “principalmente midiática”. “Eles precisavam de segurança porque a oposição não os queria aqui e alegavam que não eram médicos, que eram veterinários ou enfermeiros. A campanha foi brava”, lembra, concluindo: “Mas a própria comunidade os defendia”.

(Opera Mundi)