terça-feira, 14 de agosto de 2012

Vencedores

Fernando Soares Campos As histórias de batalhas e guerras (assim como as da política, das sociedades, das religiões, das revoluções, das civilizações, enfim, as histórias da humanidade) contadas pelos vencedores têm quase sempre um falso brilho, em que se entremeiam ações supostamente heroicas com um aspirado moral superior e pretendida moral alicerçada em consagrados princípios éticos. Quando eventualmente os vitoriosos tratam dos seus próprios erros, dão sempre um jeito de atribuir a responsabilidade de seus “equívocos” aos derrotados inimigos, que, segundo eles, os teriam “ardilosamente” induzido a cometê-los. Também quando um dos seus pares pratica ilicitude, e o fato escapa a um providencial abafamento e cai no conhecimento geral, os “bem-intencionados” contadores de suas histórias creditam a si próprios a justa correção de conduta, simplesmente condenando o “pecador” ao ostracismo e fazendo crer que aquilo não passou de caso isolado, comportamento “inabitual” entre os seus. A maioria dos soldados nem sabe por que foi mandado para a guerra nem conhece os verdadeiros motivos que deram origem a ela. No caso da Guerra do Paraguai, ou Guerra da Tríplice Aliança, os “Voluntários da Pátria” eram brancos e mestiços pobres, pegos a laço, arrancados à força de baixo da cama, ou negros escravos a quem se prometeu carta de alforria. Nas últimas guerras empreendidas de forma direta pelos EUA contra o Afeganistão e o Iraque, os novos escravos, latino-americanos que vivem semiclandestinamente no “paraíso”, embarcaram para o front com a esperança de que, se voltassem, ganhariam a cidadania plena. Muitos voltaram e permanecerão para sempre em território estadunidense: no cemitério. E aqueles que sobrevivem aos combates mano a mano, ou aos massacres, geralmente contam suas histórias de forma atabalhoada, em vista das graves condições psicológicas que, em muitos caos, se traduzem em irreversíveis estados patológicos. Cabe, então, aos contadores oficiais de história dar forma aos seus relatos. E quem são esses contadores das histórias dos “vitoriosos”? São basicamente os historiadores “oficiais”, gente que adquiriu “autoridade” estudando os considerados “fatos históricos”, e podem ser contemporâneos, ou não, dos acontecimentos. Eles podem ter tido participações ativas nos fatos e registrado suas atividades e opiniões, ou os tenha apenas testemunhado; porém, em sua maioria, são especialistas em áreas diversas e acabam compondo a história de um povo, de uma nação, de uma sociedade, baseados nos chamados documentos históricos. Mas... quem produz esses tais documentos históricos? Para ficarmos apenas nas histórias contadas a partir de quando Gutenberg aperfeiçoou a técnica de impressão de textos usando tipos móveis até os dias atuais, passando pelas várias revoluções tecnológicas que dinamizaram a produção de textos jornalísticos, literários, acadêmicos, científicos e publicitários, podemos observar que a maior parte dos historiadores fundamenta seus trabalhos no acervo documental produzido pelo oficialismo burocrático, ou nas veiculações jornalísticas. A oralidade popular, principalmente a dos povos indígenas, é relegada ao esquecimento, ou, pior, transformada em chistes folclóricos. Os historiadores precisam pesquisar com maior seriedade, dar ouvido ao que o povo fala, analisar criteriosamente as falas e saberes populares, subentender relatos oficiais e assim compor versões verossímeis. Nas instituições oficiais de ensino, os livros adotados para os estudantes não costumam tratar das guerras sob os aspectos das batalhas, exceto em referências esporádicas em que se destacam ações de heroísmo; tratam menos ainda das questões pessoais, humanas, dos soldados que participam das batalhas ou das vítimas civis. Os livros oficiais de História enfocam as guerras pelo ângulo macrovisual das conjunturas nos âmbitos político, econômico e social das nações. Citam os alegados motivos das declarações de guerra ou aquilo que representou o “estopim” dessas declarações; em geral, baseados nos argumentos oficiais dos “vencedores”. Mas o que é mesmo uma guerra? O que determina se tal ou qual ação pode ser, ou não, considerada como ato de guerra? Estamos acostumados a ouvir referências ao combate ao narcotráfico como sendo “guerra ao tráfico”. Podemos concordar, pois se trata realmente de uma operação de guerra, empregando toda a parafernália bélica, a logística e as táticas idênticas àquelas utilizadas nos mais sanguinários embates beligerantes. Concordar nesses termos, os que revelam as formas de combate, mas nem sempre com as intenções e objetivos dos que deflagram a “guerra”. Para compreender melhor essa questão, indico o artigo “Cia traficava drogas para financiar guerras”, no site da revista Brasil de Fato. E o golpe militar de 1964 aqui no Brasil, quando setores das Forças Armadas investiram contra um governo democraticamente constituído e defenestraram o presidente da República, pode ser considerado um ato de guerra? E os acontecimentos sucessivos, com a consolidação do golpe em 1968 através do Ato Institucional Nº 5, que fechou o Congresso Nacional, deu plenos poderes ao ditador de plantão e a partir daí massacrou os focos de resistência ao despotismo, com os órgãos de repressão prendendo, torturando, arrebentando e assassinando, podem ser tomados como uma verdadeira “guerra civil”? Pelo menos para o povo simples dos mocambos recifenses, sim. Pois, em 1987, trabalhando em um projeto de pesquisa bancado pela Universidade de Amsterdam, observei que era como aquela gente humilde se referia ao período dos governos militares: “No tempo da guerra”. Isso mesmo, “no tempo da guerra”. Aí relatavam as angústias vividas, com a polícia, milícias e até mesmo militares do Exército impondo toque de recolher, silêncio, obediência, sequestro de bens e de pessoas que nada tinham a ver com o processo político nem expressavam preferências ou tendências ideológicas. Gente que viveu o terror produzido pelo sadismo dos terroristas que agiam sob o manto da “legalidade”. E ainda hoje existem contadores de história, ou “historiadores”, que sustentam a tese de que aquele golpe militar e seu desenrolar revelam-se uma “revolução social”. Quando quem realmente pretendia revolucionar ou, pelo menos, reformar as estruturas sociais de forma progressista era o governo que foi golpeado. (Blog do Nassif)

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