quinta-feira, 30 de agosto de 2012
Soviéticos
O STF E O MASSACRE DE KATHYN
Posted: 29 Aug 2012 11:32 PM PDT
No Tribunal de Nuremberg, o Exército Vermelho atribuiu ao exército alemão o Massacre de Kathyn ou Massacre da Floresta de Kathyn (execução em massa de cerca de 5.550 poloneses prisioneiros de guerra, cidadãos comuns [civis integrantes da intelectualidade polonesa - professores, artistas, pesquisadores etc.], policiais e oficiais, entre abril e maio de 1940, após rendição da Polônia à Alemanha Nazista).
Os alemães convocaram especialistas de países neutros e esses comprovaram que os autores foram os soviéticos. Porém, durante o julgamento dos alemães em Nuremberg, o laudo pericial neutro foi recusado e a culpa recaiu sobre os nazistas.
A União Soviética continuou a negar responsabilidade sobre os massacres até 1990, quando o governo Gorbachev oficialmente reconheceu e condenou esse e outros crimes assemelhados (mais de 22.000 prisioneiros poloneses foram executados - 21.768 já foram identificados) . Em 1991 Boris Yeltsin trouxe a público os documentos datados de meio século antes que autorizavam o genocídio.
O que vale aqui não é redimir o Nazismo de seus crimes, mas demonstrar como se comportam, mesmo sendo às vezes divergentes (no caso soviéticos e americanos) composições predominantes constituindo Tribunais de Exceção. Como os nazistas eram mesmo os 'bodes expiatórios' de toda a Segunda Guerra, nada mais fácil do que imputar quaisquer crimes a eles, mesmo que não houvessem provas ou, pior, com laudos inocentando-os.
De fato, o dito Massacre de Katyn foi perpretado na floresta de Katyn na Rússia e em prisões de Kalinin, Kharkov e lugares próximos pela organização soviética NKVD (Comissariado do Povo para Assuntos Internos), comandada por Lavrently Beria sendo o genocídio aprovado em documento oficial pelo líder soviético Josef Stalin e o Politburo.
(Blog do Nassif)
PT
PT, um partido rico? Imprimir E-mail
Escrito por Gilvan Rocha
Quarta, 29 de Agosto de 2012
Quando o PT surgiu, era um partido pobre. Mas logo esse quadro começou a mudar, quando houve a conquista de algumas prefeituras, destacando-se as de Ribeirão Preto e Santo André. Na primeira cidade, houve a eleição do esperto Antonio Palocci, que logrou ficar muito rico, em prazo muito curto. Em Santo André, chegou a haver denúncias de corrupção e o ex-prefeito petista, Celso Daniel, foi assassinado num episódio bastante nebuloso. Outro fato obscuro foi o assassinato do Toninho do PT, ex-prefeito da cidade paulista de Campinas. Prova de que o passado de pobreza era página virada ficou clara quando o ex-presidente Lula da Silva e José Dirceu tiveram que pagar o montante de dez milhões de reais para ter o industrial José Alencar compondo a sua chapa como vice. Haveremos de convir que dez milhões de reais é muito dinheiro para qualquer partido, imagine só para um partido de trabalhadores. Isso dá muito que pensar.
Quando o Partido dos Trabalhadores, depois de algumas tentativas, finalmente chegou ao governo federal por conta de concessões tamanhas em que se desfigurou completamente, essa agremiação, pelos fatos demonstrados, deixou de ser apenas rica para se tornar um partido dos ricos. Sim. É isso mesmo! Segmentos esclarecidos da burguesia passaram a enxergar o lulismo como um bom negócio para os seus interesses. Isso foi fartamente comprovado.
Lula, no governo, garantiu aos banqueiros, aos grandes industriais, aos agropecuaristas a tranquilidade social necessária para o capitalismo voar em “céus de brigadeiro”. Lucrar sem que haja transtornos, livre de contestações, era tudo o que a burguesia desejava, e esse desejo foi atendido plenamente pelo governo petista.
A baixo custo, o lulismo empreendeu um programa de assistência social dirigida aos miseráveis, através do Bolsa Família, criando um vasto colégio eleitoral. Procedeu, a seguir, um trabalho de corrupção e cooptação das centrais sindicais e estudantis ultra-burocratizadas, além de cooptar também os movimentos populares. Por sua vez, as grandes empreiteiras se fartaram abusivamente, vendendo serviços superfaturados aos ministérios e às autarquias do governo petista.
Por todas essas razões, sobrava e sobra dinheiro nos seus cofres. Tanto isso é verdade que eles se encontraram em condições de fornecer vultosas quantias a vários partidos explicitamente fisiológicos, em troca de apoio no Congresso Nacional, como o episódio do mensalão deixou tão claro. Partido rico e partido dos ricos, o PT não passa de uma agremiação a serviço do sistema capitalista. Essa é uma lamentável verdade e dela não devemos fugir. Pelo contrário, devemos envidar esforços para que toda a população possa enxergar os fatos.
Gilvan Rocha é militante socialista e membro do Centro de Atividades e Estudos Políticos. Blog: www.gilvanrocha.blogspot.com
Última atualização em Quarta, 29 de Agosto de 2012
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Drogas
Drogas: crianças e adolescentes tratados como em manicômios
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admin
– 27 de agosto de 2012
Problemas como isolamento, encarceramento e medicalização descontrolada são denunciados por comunidade terapêutica e grupo de direitos humanosPor Carolina Gonçalves, na Agência Brasil
Brasília – A assistência prestada a crianças e adolescentes usuários de drogas tem sido alvo de preocupação entre especialistas em saúde mental. O temor é que esteja ocorrendo um retorno aos antigos manicômios, proibidos pela Lei de Saúde Mental (10.216), sancionada em 2001. Para profissionais da área, o “retrocesso” acabou por ganhar respaldo com o anúncio, no ano passado, do financiamento governamental das chamadas comunidades terapêuticas.
A pesquisadora da organização não governamental Justiça Global, Isabel Lima, alerta que o modelo adotado pelo governo vai contra as diretrizes consolidadas para o tratamento da saúde mental. “O financiamento público para comunidades é o financiamento da lógica manicomial, porque as comunidades funcionam com o isolamento. Isto é contrário às diretrizes do SUS [Sistema Único de Saúde], da Reforma Psiquiátrica e da Política de Atenção Integral ao Usuário de Drogas. Estas unidades especializadas são criadas para prestar cuidados aos dependentes de drogas, com internação, eliminando o contato da pessoa com o meio onde vivia antes de ser abrigada.”
Para repassar dinheiro público para um amplo leque de comunidades terapêuticas, o governo decidiu, no ano passado, revogar a Resolução 101/2001 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que estabelecia regras mínimas a serem seguidas pelas unidades de tratamento. Na época, a secretária nacional de Políticas sobre Drogas, Paulina Duarte, disse que a decisão de cassar a resolução, anunciada em reunião pela presidenta Dilma Rousseff, visava “atender à nova perspectiva de acolhimento das comunidades” e incluir no rol de entidades financiadas com recursos do governo aquelas que tinham “dificuldades” de infraestrutura e de equipe técnica.
Dias depois, a Anvisa publicou uma nova norma na qual impõe a presença de um profissional de nível superior como responsável técnico, sem que ele seja necessariamente da área de saúde. O órgão explicou, na época, que a medida tinha por objetivo ajudar na organização das comunidades terapêuticas, grande parte delas mantida por voluntários.
O movimento da Reforma Psiquiátrica, iniciado no final dos anos de 1970, resultou na aprovação da Lei de Saúde Mental, que há dez anos prevê o tratamento aberto, com convívio comunitário, sem o isolamento.
Recentemente, resultado de fiscalização em abrigos reacendeu o debate sobre o tratamento de usuários de drogas. O relatório Visitas aos Abrigos Especializados para Crianças e Adolescentes denunciou que crianças e adolescentes estariam sendo dopados em abrigos inadequados situados no Rio de Janeiro.
O relatório foi elaborado pelos conselhos regionais de Psicologia e Serviço Social, o Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica), o Grupo Tortura Nunca Mais e a ONG Projeto Legal, além da Comissão de Direitos Humanos e de organismos de prevenção e combate à tortura da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj).
O grupo multidisciplinar, formado por 27 profissionais, visitou quatro abrigos especializados, em Campo Grande e Guaratiba, na zona oeste do Rio de Janeiro, em maio deste ano. As quatro unidades são geridas pela ONG Casa Espírita Tesloo, que é presidida por um policial militar reformado, conforme o relatório.
Com as visitas, os integrantes do grupo identificaram inúmeros problemas, como isolamento e encarceramento dos internos, medicalização descontrolada, falta de informação sobre os efeitos do tratamento e alto número de reincidências no tratamento, relatado pelos atendentes dessas instituições. O relatório também alerta para o retorno aos manicômios.
Desde maio do ano passado, a internação compulsória de crianças e adolescentes que vivem nas ruas, fazem uso de drogas ou não, está autorizada pela prefeitura da capital fluminense. Além do Rio de Janeiro, capitais como São Paulo e Belo Horizonte também adotam a mesma política.
Para Alice De Marchi, psicóloga do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro e que participou das fiscalizações e da elaboração do relatório, a concentração desses diferentes aspectos em um único local representa um retrocesso nas políticas de assistência social e de saúde mental.
“Essa é a própria lógica da instituição total, encontrada em manicômios, na antiga Febem [Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor], em presídios”, afirmou a psicóloga, em nota divulgada pelo Conselho Federal de Psicologia por ocasião da divulgação do relatório.
A psicóloga destacou o caráter de privação de liberdade encontrado nos estabelecimentos fiscalizados. “A política de recolhimento compulsório flerta perigosamente com o modelo manicomial de institucionalização e exclusão do convívio social”, disse.
* Colaborou Luciana Lima
Edição: Carolina Pimentel
(Outras Palavras)
Periferia
Periferia: tão longe, tão perto
Posted in: Arte e Literatura, Cultura, Destaques
Por: Antonio Eleílson Leite - 28/08/2012.
Ponte é metáfora de encontro e separação. Mostra “Estéticas das Periferias” quer a travessia. Só arte pode ser tão subversiva
Por Antonio Eleilson Leite*
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MAIS: Confira aqui a cobertura compartilhada da mostra, articulado por Outras Palavras e Ação Educativa
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A Cidade de São Paulo segrega a periferia socialmente, economicamente, esteticamente.
Em São Paulo, a força da grana destrói muito mais do que ergue coisas belas, mano Caetano.
Por mais que o povo não queira, a cidade muitas vezes dá razão a Criolo: “Não existe amor em SP”.
“A periferia nos une pela cor, pela dor e pelo amor”, conclama o poeta Sérgio Vaz, no seu Manifesto da Antropofagia Periférica.
Apesar das 34 pontes existentes sobre os rios Tietê e Pinheiros , os lados da cidade não se comunicam, justificando o nome da via que corre paralela aos seus leitos: Marginal.
“A vida é diferente da ponte pra cá”, diz os Racionais MC’s.
“Nóis é ponte e atravessa qualquer rio”, desafia o poeta Marco Pezão.
A ponte é ao mesmo tempo metáfora do encontro e da separação. A mostra Estéticas das Periferias quer a travessia, de lá para cá, de cá para lá; depende de onde se está.
Buscaremos o fluxo, o encontro, o diálogo. Queremos explorar conexões e conflitos, armar tramas urbanas. Artistas do Centro e da Periferia: Uni-vos!
Reiteramos o Manifesto Oswaldiano: “A alegria é a prova dos nove”.
Oswald pregava em seu manifesto antroprofágico: “é preciso partir de uma profundo ateísmo para se chegar à ideia de Deus”. Entendemos que é preciso um profundo sentido periférico para se chegar a uma ideia de Centro.
Sem a Periferia não existe o Centro.
Pretendemos deslocar o Centro para a Periferia e a Periferia para o Centro. Inverter a lógica urbana desagregadora. Questionar esteriótipos. Judas perderá as botas nos bairros nobres. Os Jardins terão uma nova trilogia: Jardim Irene, Jardim Miriam, Jardim Angela.
Assim como as três vilas: Mariana, Olímpia e Madalena cederão lugar para Vila Albertina, Vila Brasilândia e Vila Zilda.
Só a arte é capaz dessa subversão. ”No universo da cultura, o centro está em toda parte” ensinou o jurista Miguel Reale, em frase lapidar que está imortalizada na Praça do Relógio do Campus da USP no Butantã, do outro lado da ponte da Cidade Universitária.
A Mostra Estéticas da Periferia revelará que o circuito das artes da cidade de São Paulo vai muito além do que sugerem os guias culturais da “grande” imprensa, para os quais a cena cultural se restringe a pouco mais de vinte, dos 96 distritos da Capital.
A arte estará em toda parte, principalmente na Periferia, onde o agito cultural é permanente, nas ruas, bares, galpões, praças, sacolões.
* Antonio Eleilson Leite edita Estéticas das Periferias. Para ler edições anteriores da coluna, clique aqui. (fazer menção também ao Diplô)
(Outras Palavras)
Israel
Os abusos do exército israelense
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admin
– 27 de agosto de 2012
Crianças palestinas passam por corredor na cidade de Hebron, localizada na Cisjordânia, vigiadas por soldados israelenses em 13/06/12. Foto: ActiveStills.org
Relatório da organização Breaking The Silence compilou dezenas de depoimentos que expõem prisões, espancamentos e maltratos praticados contra crianças
Por Marina Mattar, no Opera Mundi
Durante uma madrugada em 2009, todas as casas da cidade palestina de Salfit, localizada na Cisjordânia, foram invadidas por soldados israelenses. A ordem do Comando Central era prender todos que tivessem de 15 a 50 anos e levá-los para uma escola que havia se tornado provisoriamente um centro de detenção. Isso porque a Agência de Segurança de Israel, que realiza o serviço de segurança interna, queria coletar informações sobre as pedras que eram jogadas contra jipes militares nas estradas e ruas ao redor da cidade.
Os militares colocaram vendas e algemas de plástico, muitas vezes apertando-as, nos jovens e adultos. Por sete horas, os palestinos permaneceram sentados sem poder nem se mexer, sem acesso à água e comida, em um sol escaldante. Eles não sabiam por que estavam lá e nem o que seria feito pelos militares — um dos jovens urinou nas calças. Muitos ficaram com as mãos roxas pela falta de circulação sanguínea e outros com os braços dormentes por causa das algemas. Um dos garotos, de apenas 15 anos, pediu para ir ao banheiro e, antes de ser levado por um soldado, foi espancado ainda no chão.
Essa é apenas uma das muitas histórias publicadas neste domingo (26/08) pela “Breaking the Silence” (“Quebrando o Silêncio” em tradução livre), uma organização de antigos oficiais do Exército de Israel dedicada à divulgação das ações militares nos territórios palestinos ocupados. Mais de 30 ex-soldados revelaram como trataram crianças e jovens palestinos durante as operações militares e prisões de 2005 a 2011, revelando um padrão de abuso.
O documento está repleto de descrições de intimidações, humilhações, violência verbal e física e de prisões arbitrárias por parte dos militares israelenses em circunstâncias cotidianas na Cisjordânia e na Faixa de Gaza. Os casos tratam de jovens e crianças que atiraram pedras ou outros objetos contra jipes militares, que participaram de protestos ou que simplesmente sorriram para um soldado, deixando-o irritado. Não faltam histórias também de palestinos presos e agredidos arbitrariamente: “O garoto não foi mal-educado e nem tinha feito nada para irritar. Ele era árabe”, se justifica um antigo sargento do Exército de Israel no relatório.
O argumento central da maioria das histórias é que, com as prisões e agressões, esses jovens aprenderiam que não podem jogar pedras contra os militares ou se manifestar de alguma forma entendida pelos israelenses como violenta. “Muitos dizem que os palestinos devem ser espancados, porque esta é a única forma que podem aprender”, conta um antigo militar não identificado.
Apesar de alguns ex-soldados repetirem essa justificativa, a maioria admite que as ações não tiveram resultados. Pedras continuaram a ser atiradas, pneus foram queimados e protestos realizados, mas as ações militares permaneceram as mesmas. “Muitas vezes me senti muito ambivalente, incerta do que estava fazendo e em que lado eu estava nisso tudo”, diz uma sargenta.
Arrependimento
A imagem de crianças espancadas, feridas por tiros de bala de borracha e de pólvora, humilhadas e apavoradas, marcou muitos dos militares envolvidos nas ações e hoje, eles decidiram relatar a indiferença adquirida dentro do Exército. “Ele cagou nas calças, eu escutei, presenciei a humilhação. Eu também senti o cheiro. Mas, eu não me importava”, lembra um ex-sargento sobre a detenção de uma criança.
“O que nós fazíamos não era nada em comparação com o que eles faziam”, conta um militar, em referência ao batalhão de patrulha das fronteiras. “Eles não davam a mínima. Saíam quebrando o joelho das pessoas como se não fosse nada. Sem piedade”, lembra, indignado.
“Você nunca sabe os seus nomes, você nunca fala com eles, eles sempre choram, cagam em suas próprias calças … Há aqueles momentos incômodos, quando você está em uma missão de prisão, e não há espaço na delegacia de polícia, então você pega a criança de volta, coloca uma venda nela, joga ela em uma sala e espera a polícia para vir buscá-lo na parte da manhã. Ele fica ali como um cachorro”, descreve um ex-militar.
O documento abrange também casos em que os próprios militares provocavam palestinos para poderem revidar. Eles estariam “entediados”. O ex-primeiro sargento de um batalhão em Hebron revela que seu grupo jogava granadas dentro de mesquitas durante cerimônias e que um comandante impedia as pessoas de saírem da reza por horas até alguém jogar um coquetel molotov ou atirar pedras. Ele diz que usavam as crianças como escudos humanos e que apontavam armas em sua cabeça para os deixar apavorados. “Foi somente depois que comecei a pensar nessas coisas, nós perdemos todo o senso de compaixão”, conclui.
Ódio
Apesar de os soldados possuírem remorso e arrependimento, eles contam que muitos de seus companheiros e eles próprios odiavam os árabes e estavam convictos do que faziam. “Eles eram vermes e em algum ponto, eu lembro que eu os odiava [palestinos]. Eu era um racista. Estava tão zangado com eles pela sua sujeira, sua miséria, a porra toda”, afirma um sargento de Hebron.
O relatório revela que os militares tinham que seguir regras de procedimento em suas ações, mas que na experiência cotidiana isso não funcionava. Para prender um palestino, tinham que vendá-lo e algemá-lo; para conter uma manifestação ou impedir um palestino de fugir, deveriam atirar contra suas pernas a uma distância de 20 metros; para bater em um palestino com o cassetete, não podiam atingir a cabeça.
“Nos disseram para não usar o cassetete na cabeça das pessoas. Eu não lembro onde disseram que era para bater, mas assim que a pessoa está no chão e você está a espancando com um cassetete, é difícil de distinguir”, diz um ex-sargento de Ramallah, na Cisjordânia. Outro sargento lembra de um protesto: “O cara do meu lado atirou no chão para fazê-los correr e de repente, ele disse ‘Oops!’. Eu olho e vejo uma criança sangrando no chão. Quatro palestinos foram mortos naquela noite. Ninguém falou conosco sobre isso. Não houve nenhuma investigação”.
As declarações foram reunidas para mostrar a realidade do cotidiano dos soldados israelenses em relação ao povo palestino. “Lamentavelmente esta é a consequência moral de tantos anos de ocupação dos territórios palestinos”, explica Yehud Shaul da Breaking the Silence.
(Outras Palavras)
Virgindade
'Creme de virgindade' gera polêmica na Índia
Rajini Vaidyanathan
Da BBC News em Mumbai
Atualizado em 28 de agosto, 2012 - 06:47 (Brasília) 09:47 GMT
Comercial mostra mulher dançando e dizendo se sentir como uma virgem novamente
Uma companhia da Índia lançou o que afirma ser o primeiro creme para "estreitar a vagina", chamado 18 Again (18 de novo), que afirma fazer a mulher se sentir ''como uma virgem'' novamente.
A empresa Ultratech afirma que o produto oferece poder às mulheres, mas os críticos dizem que ele faz exatamente o contrário.
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O comercial do 18 Again mostra uma indiana trajando um vestido característico do país, cantando e dançando, como em um filme de Bollywood.
''Eu me sinto como uma virgem'', afirma a personagem da publicidade, ainda que o anúncio deixe claro que ela não o é.
Seus sogros, chocados, observam-na. Logo seu marido se junta a ela, dançando salsa.
''Me sinto como se fosse a primeiríssima vez'', ela afirma, enquanto dança.
A sogra faz uma expressão de nojo ao observá-la, mas ao final do anúncio até ela parece ceder, ao comprar o produto pela internet, diante do olhar de aprovação do marido.
'Produto revolucionário'
A Ultratech, fabricante do 18 Again baseada em Mumbai, diz que o produto é o o primeiro no gênero em toda a Índia (cremes semelhantes existem em outras partes do mundo, como os Estados Unidos).
O proprietário da Ultratech, Rishi Bhatia, afirma que o creme, que está sendo vendido por US$ 44 (cerca de R$ 90), contém ingredientes naturais, como pó de ouro, aloe vera, amêndoa e romã, e foi clinicamente testado.
''É um produto único e revolucionário, que também contribui para aumentar a autoconfiança de uma mulher e seu amor próprio'', afirma Bhatia, que acrescenta ainda que o objetivo do produto é dar mais poderes às mulheres.
Ele frisa que o produto não se diz uma restauração da virgindade de uma mulher, mas sim resgatar as emoções de ser uma virgem. ''Estamos apenas dizendo, 'sinta-se como uma virgem'. É uma metáfora. Ele tenta retomar a sensação que uma pessoa tem aos 18 anos de idade.''
Mas a estratégia de marketing da empresa gerou críticas de médicos, grupos feministas e usuários de redes sociais. Os criticos afirmam que o produto reforça a visão amplamente difundidade na Índia de que o sexo pré-nupcial é algo recriminável, um tabu considerado até pecaminoso por muitos.
'Complexo de inferioridade'
''Este tipo de pomada é um absurdo e pode gerar em mulheres um complexo de inferioridade'', afirma Annie Raja, da Federação Nacional de Mulheres Indianas, que luta pelos direitos femininos no país.
Ela opina que, em vez de fortalecer as mulheres, o creme tem o efeito oposto, ao reafirmar a visão patriarcal de muitos na Índia - a noção de que todas mulheres querem permanecer virgens até o dia do casamento.
''É o direito de uma mulher ter relações sexuais com um homem, mas a sociedade aqui diz que elas não devem fazê-lo até se tornarem noivas.''
Comercial do 18 Again (Divulgação)
No anúncio, sogros imitando jovem e compram o produto
''Ser virgem ainda é algo valorizado e não creio que as atitudes mudarão neste século'', afirma Mahinda Watsa, ginecologista que assina uma popular coluna de conselhos sexuais nos jornais Mumbai Mirror e Bangalore Mirror.
Watsa já respondeu a mais de 30 mil indianos que buscam conselhos sexuais e afirma que a pergunta mais frequente por parte de homens é se suas mulheres são virgens. Por parte das mulheres, a dúvida mais comum é como fazer para esconder de seus maridos que elas deixaram de ser virgens.
''Os homens ainda esperam se casar com uma virgem, mas mais e mais mulheres na Índia, ao menos nas grandes cidades, estão fazendo sexo antes do casamento. As mulheres me escrevem, perguntando, o que devo fazer, já fiz sexo, mas como posso convencer que eu ainda sou virgem?'', relata a ginecologista.
Modernidade x tradição
Nisreen Nakhoda, uma médica que assina uma coluna de conselhos sexuais para o site MDhil, se diz cética em relação aos efeitos do 18 Again.
''O estreitamento da vagina se dá por meio dos músculos vaginais, por isso eu não sei como um creme pode agir'', afirma. Mas ela acredita, no entanto, que a pomada poderá fazer sucesso na Índia, mesmo diante das rápidas mudanças de costumes, porque as pessoas ainda buscam maneiras de encobrir suas ações.
''Tudo é envolto em segredos e cercado de discrição. Ninguém realmente discute suas vidas sexuais com médicos ou namorados. A nova geração quer ser moderna e fazer sexo antes do casamento, mas ainda é criada de forma tradicional, segundo a qual é tabu fazer sexo antes do casamento. Isso gera muito confusão entre vários adolescentes'', comenta.
A venda do 18 Again se dá pouco após a controvéria em torno de um creme para clarear a vagina. Ambos são exemplos de valores tradicionais se chocando com os costumes mais recentes na Índia.
O proprietário da Ultratech afirma que a polêmica em torno do 18 Again é sem sentido. "Os homens têm à sua disposição tantos produtos que eles podem usar para realçar o seu prazer sexual, isso representa apenas colocar a intensificação do prazer sexual nas mãos das mulheres'', comenta Rishi Bhatia.
(BBC)
quarta-feira, 29 de agosto de 2012
APML do B
REGINALDO BENEDITO DIAS**
Preâmbulo
O Brasil viveu, no início da década de 1960, um processo de renovação da esquerda, marcado pela fundação de organizações que se contrapunham à linha política do PCB. Entre essas novas organizações, a Ação Popular teve a origem mais singular. Enquanto o PC do B e a POLOP filiavam-se à herança marxista, a gênese da Ação Popular é relativamente heterodoxa. Fundada em 1963 como movimento político dotado de uma ideologia própria, a Ação Popular contou, em sua origem, com forte impulso de jovens egressos dos movimentos leigos católicos. Depois do golpe militar de 1964, entretanto, a AP caracterizou-se por buscar filiação na tradição marxista-leninista.
Apesar dessa ruptura, a experiência da Ação Popular tornou-se referência para a história da Igreja Católica do período. Primeiro, pelo fato de ser gerada uma organização de esquerda no seio de uma instituição que, até então, tinha uma trajetória essencialmente conservadora. [1] Segundo, porque sua gênese e práxis foram relacionadas com o processo do desenvolvimento da Igreja Popular e da Teologia da Libertação, influentes na década seguinte.
O presente trabalho investiga a forma como a experiência da Ação Popular foi interpretada na literatura que analisa aquele período da história do catolicismo. São analisados tanto documentos oficiais da Igreja Católica quanto obras de intelectuais ligados à instituição ou interessados em refletir sobre sua experiência histórica. Naturalmente, selecionou-se material relacionado com o desenvolvimento da esquerda católica, fenômeno com o qual a Ação Popular costuma estar associada. São investigadas duas tendências principais de interpretação. A primeira representa as posições conservadoras da Igreja Católica do período de emergência da AP. A segunda está em sintonia com as mudanças que o catolicismo brasileiro viveria na década de 1970, marcadas pelo advento da Igreja Popular e da Teologia da Libertação.
Da esquerda católica ao marxismo-leninismo
No final de 1961, a CNBB emitiu um documento de orientação às atividades da Juventude Universitária Católica, cujos líderes vinham assumindo posições de destaque no movimento estudantil nacional. Na época, esse movimento experimentava uma radicalização de perspectivas. O documento episcopal estabelecia:
1) Não é lícito apontar a cristão o socialismo como solução de problemas econômico-sociais e políticos, nem muito menos apontá-lo como solução única; 2) Não é lícito admitir-se que ao se formular a figura de uma Revolução Brasileira – em assembléias ou círculos de estudos da JUC, se afirme doutrina de violência, como válida e aceitável (CNBB, 1961, p. 947).
O documento identificava impasses ocorridos nas eleições para as entidades estudantis, quando os jucistas somavam-se aos comunistas para conquistar a direção de organismos estaduais ou nacionais. Diante disso, decreta: “A começar do ano de 1962, nenhum dirigente jucista poderá concorrer a cargos eletivos em organismos de política estudantil, nacional ou internacionais, sem deixar os seus postos de direção da JUC. O mesmo se diga, como é evidente, quando se trata de participação ativa em partidos políticos” (CNBB, 1961, p. 949-50). A JUC era um braço leigo da estrutura da Igreja, submetido, portanto, às regras disciplinares. Sua atuação estava circunscrita pelo mandato que lhe era delegado.
Esse impasse é um emblema das transformações que ocorriam na juventude católica daquele período. Desde o final da década anterior, a radicalização política se verificava nos movimentos leigos da Igreja, em particular na JUC. Setor especializado da Ação Católica Brasileira, a JUC tinha, em sua origem, um perfil conservador e clerical, visando cristianizar a futura elite do país. A guinada ocorreu no final da década de 1950, quando a JUC participava da movimentação e da política estudantil. Os jovens jucistas não ficaram alheios à influência desses movimentos. Progressivamente, a JUC ultrapassou suas preocupações estritamente religiosas e doutrinárias e engajou-se nas lutas pela reforma universitária e pela mudança das estruturas na sociedade brasileira.
Esse engajamento colocou a necessidade de definição de objetivos políticos mais amplos. No congresso de 10 anos da JUC, ocorrido em 1960, o horizonte para a guinada à esquerda foi sintetizado no documento Algumas diretrizes de um Ideal Histórico cristão para o povo brasileiro. No início da década de 1960, a ascensão da JUC no movimento estudantil traduziu-se na conquista do comando da UNE. Nesse momento, aliou-se com estudantes do PCB. Inaugurou-se uma hegemonia que se estenderia, por intermédio da AP, ao longo da década. Foi nessa conjuntura precisa que a práxis jucista, ultrapassando e entrando em choque com os limites tolerados, gerou a citada reação da hierarquia da Igreja Católica.
Pelos limites de atuação em uma estrutura eclesial e por conta dos atritos com a hierarquia, pautou-se a criação de uma organização laica, que, em vez de ter como elemento de coesão a confissão religiosa, aglutinasse por motivos políticos e constituísse, nas palavras de Herbert de Souza (1976), um movimento nacional alternativo ao PC. Em 1962, foi desencadeada uma série de reuniões com esse objetivo. Em menos de um ano, estaria constituída a Ação Popular. O congresso de fundação ocorreu em fevereiro de 1963, na Bahia. Aprofundando o caminho teórico que vinha sendo trilhado, aprovou-se o Documento base, que orientou a organização nesse período e que exerceu influência até a conjuntura imediatamente posterior ao golpe de Estado de 1964.
A JUC, sem dúvida, é o tronco principal no processo de origem da AP. Entretanto, considere-se que a organização, como era seu objetivo, atraiu militantes de outras origens, seja de vertente religiosa, seja de formação independente. Um estudo de caso sobre sua experiência no Paraná, por exemplo, apontou uma interface com a Juventude Democrata Cristã. [2] Outra vertente foi a do protestantismo, evidenciada pelo relevo da atuação de Paulo Wright, de formação presbiteriana, no final da década de 1960 e início da seguinte (WRIGHT, 1993).
Com a fundação da AP, como conseqüência da opção pessoal de seus integrantes, ocorreu o fenômeno da dupla militância dos estudantes jucistas que se incorporaram ao movimento recém-criado. A preferência pela AP decorria de seu “compromisso com o homem, com o homem brasileiro antes de tudo” (GOMES SOUZA, 1984, p.210). O efeito gravitacional exercido pela AP foi significativo, pois, a despeito da aparente divisão de atribuições, áreas de atuação da JUC sofreram declínio (GOMES SOUZA, 1984, p. 212).
Em sua origem, a AP distinguia-se das organizações de esquerda de sua geração por não reivindicar filiação marxista e pela busca de ideologia e de caminhos próprios. Sob influência do cristianismo, do existencialismo e do marxismo, tentava formular uma nova síntese política, à qual correspondia certo ecletismo. O conceito-chave era o de socialismo como humanismo. O Documento base era a expressão dessa tentativa de síntese.
A divisão de tarefas na elaboração do Documento base revelava a herança que a AP recebia das organizações leigas católicas. Na elaboração da perspectiva filosófica, sobressaiu a participação do Pe. Vaz, assessor da JUC, como reconhece Herbert de Souza, primeiro coordenador nacional da AP (SOUZA, 1996).
Na seção de fundamentação filosófica, o referido documento critica o materialismo e o idealismo. O primeiro promoveria a “consciência reflexo”. Ao anular a especificidade da consciência, negaria a condição de sujeito do homem. O segundo promoveria a “consciência abstrata”, que atraiçoaria as responsabilidades históricas concretas. O DB procura situar-se em uma terceira posição, proclamada como “realista”. Em sintonia com as encíclicas de João XXIII, adota o conceito de socialização como linha condutora de interpretação do processo civilizatório. Sob influência marxista, aponta o caráter contraditório do capitalismo, que remete a um desenlace socialista (AÇÃO POPULAR, 1979).
O conceito de “socialismo como humanismo” era uma crítica às ditaduras de esquerda e ao chamado socialismo real. O Documento Base salienta o fato de que, na superação do capitalismo, tenham surgido novas formas de dominação e alienação. Preconiza que, no complexo mundo socialista em gestação, poderiam existir experiências plurais e com orientações ideológicas distintas. A realidade comportava, em seu entender, a possibilidade de “diversas concepções de passagem ao socialismo”. Sobre o processo revolucionário, indica, com certo eufemismo, que “a história não registra quebra de estruturas sem violência gerada por essas mesmas estruturas, que produzem, em última análise, essa conseqüência” (AÇÃO POPULAR, 1979, p. 137).
Na conjuntura posterior ao golpe militar, a Ação Popular iniciou um processo de reavaliação de sua política, em face da derrota sofrida em 1964. Essa reavaliação culminaria na ruptura com a influência cristã presente em sua origem. Tal ruptura não ocorreu imediatamente, porém. Houve um período transitório.
Uma primeira resposta aos novos desafios foi condensada em 1965, no documento Resolução política. Preservou-se, nessa resolução, parte essencial do edifício conceitual do Documento Base, especialmente seus fundamentos filosóficos, os aspectos que abordavam o socialismo como humanismo e as críticas ao socialismo real. A grande marca da RP foi a adesão explícita ao objetivo de conquistar o poder pela via insurrecional, por meio da estratégia da Revolução Socialista da Libertação Nacional, conceito que sofria influência das revoluções cubana e chinesa. As permanências do período anterior foram colocadas em xeque em 1967, quando foi aberto o Debate Teórico e Ideológico. A convocação do debate acentua a ruptura com a formulação anterior: “Na etapa atual, para que se possa chegar a resultados coerentes e inclusive preparar etapas futuras, é necessário considerar o estudo crítico do marxismo como eixo e princípio ordenador da discussão” (AÇÃO POPULAR, 1967, p.14).
No curso desse debate, a influência das revoluções chinesa e cubana não correu de forma híbrida, como na RP. Essa influência se particularizou em cada uma das duas alas em que a AP se dividiu no processo, cada qual apresentando postulados sobre a caracterização da sociedade brasileira e sobre os caminhos para a revolução. Em 1968, prevaleceram as posições da “corrente 1”, de linhagem maoísta e adepta da estratégia da guerra popular prolongada. Os membros da “corrente 2”, próximos da influência da revolução cubana, foram expulsos. No que diz respeito à atualização da identidade da AP, as duas correntes, formalmente, romperam com suas origens e tentaram refundá-la, cada qual a seu modo, como uma organização marxista-leninista. As divergências diziam respeito a qual marxismo aderir. Ambas pretendiam superar a “velha” AP, tida como pequeno-burguesa, eclética e idealista, em nome do marxismo-leninismo.
Superada essa disputa interna, a ruptura com o passado se acentuou. Os documentos da organização dão conta do ritual, desenvolvido voluntariamente, de autodestruição da AP, para reconstrução em novas bases. Na seqüência, a AP formalizou tal ruptura. Na III Reunião Ampliada da Direção Nacional, ocorrida em 1971, a organização passou a denominar-se Ação Popular Marxista-Leninista. As fases de sua história foram assim demarcadas: “surgiu de um partido pequeno-burguês, fundado em 1962, que se transformou de um partido pequeno-burguês-reformista (1962-1964) num partido pequeno-burguês revolucionário (1965-1967) e depois, através de um árdua luta teórica e prática (1967-1969), numa organização marxista-leninista (a partir do segundo semestre de 1969)” (AÇÃO POPULAR, 1985, p. 293-294).
Novas fases de luta interna ocorreriam na vida da AP. Em 1973, número expressivo de militantes se incorporou ao Partido Comunista do Brasil, saudado como o partido de vanguarda do proletariado brasileiro. [3] Outra ala buscou reorganizar a Ação Popular e atualizou a pauta da construção do partido de vanguarda. No final da década, a AP esteve entre os agentes políticos que participaram do processo de fundação do PT.
Na constituição do PT, convergiram agentes políticos egressos dos novos movimentos sindicais e populares, das Comunidades Eclesiais de Base, assim como organizações revolucionárias remanescentes do período da luta armada. Entre esses novos agentes políticos, destacavam-se militantes formados na Igreja Popular. Nessa confluência, a Ação Popular estava incluída, porém, no campo da chamada esquerda revolucionária, herdeira do marxismo-leninismo. Não tinha identidade com os setores ligados à Teologia da Libertação, cuja semente costuma ser buscada nos movimentos em que a AP teve origem, nos anos 1960 (DIAS, 2004).
Visões sobre um fenômeno singular
Ecos da cristandade
No final de 1963, para reagir ao fenômeno da dupla militância que a juventude católica promovia nos movimentos de leigos e na AP, a cúpula da Igreja Católica emitiu nova determinação. Considerava que a AP tinha uma orientação naturalista e não representava “o pensamento cristão autêntico”. Estabeleceu que era inoportuna a presença de estudantes da JEC em suas fileiras. Quanto aos membros da JUC, poder-se-ia aceitar que participassem da AP em duas circunstâncias: “a) a de um elemento com vocação para atividade dessa natureza e bem formado; b) a de entrar com a intenção de modificar substancialmente a Ação Popular para uma linha cristã autêntica” (In BEOZZO, 1984, p. 209). [4] No início de 1964, outro documento, veiculado pela Revista Eclesiástica Brasileira, retomou e desenvolveu o tema. Fundamentou as reservas à orientação política e filosófica da AP. Acusou que o Documento base pecava pelo naturalismo, sendo omisso ou vago nas questões morais que condicionam a questão social. Ancorado nas doutrinas constitutivas do magistério pontifício, sentenciou:
além do caráter econômico, o problema social encerra aspectos morais que condicionam qualquer solução positiva. Nas manifestações conhecidas da Ação Popular este fato ou fica de todo omisso ou apenas vagamente lembrado. E do naturalismo, que ignora os valores morais e religiosos, ao ateísmo, que os nega e combate ferozmente, vai distância muito pequena (In FLORIDI, 1973, p.166).
Condenou a perspectiva da luta de classes e a colaboração com forças políticas de orientação comunista. Vaticinou qual seria a natureza do regime que seria instaurado no país, caso vingassem a subversão da ordem e a conquista do poder por parte dessas forças. O atual capitalismo seria substituído pelo “capitalismo todo-poderoso e irrefreável do estado, mais cruel, mais opressor e mais injusto que o outro” (In FLORIDI, 1973, p. 168).
Derivações das posições expressas por esses documentos eclesiais podem ser encontradas em uma publicação, escrita pelo padre Eustaquio Gallejones em 1965, que fez um balanço precoce da curta trajetória da AP. A ideologia da AP teria três pontos vulneráveis: visão incompleta do homem; conceito falso de propriedade privada e crítica inconsistente do capitalismo; análise equivocada do processo histórico. A visão incompleta do homem decorreria do naturalismo da AP, cuja análise da dignidade humana não parte do transcendental. O falso conceito de propriedade privada e de capitalismo era conseqüência da influência marxista no DB. A justiça social deveria ser buscada na Doutrina Social da Igreja e não, como seria o caso da AP, em um socialismo ortodoxo, baseado na luta de classes e supressão da propriedade privada.
Gallejones considera uma contradição em termos falar de humanismo marxista e em socialismo humanista, como teria feito o Documento base da AP. Da premissa de que o verdadeiro fundamento do humanismo seria a transcendência, conclui que o materialismo marxista seria, intrinsecamente, anti-humanista. Se o ponto de partida da AP tinha sido o cristianismo, as características da doutrina social católica foram omitidas em seus documentos.
Em conjuntura próxima, foi elaborada, nos marcos da instituição eclesial, outra leitura conservadora da experiência da AP, de autoria do padre italiano Ulisse Alessio Floridi. Publicado em italiano em 1968, o livro circulou em português em 1973. De certo modo, é ainda mais contundente do que Gallejones na crítica à AP. Em relação ao que chama de concepção naturalista do Documento base, escreve: “O que admira, neste documento, é a absoluta falta de referência, não digo à doutrina social da Igreja, mas ao próprio Cristo e ao Evangelho” (FLORIDI, 1973, p. 163). Acusa a AP de aceitar, no fundamental, as posições do materialismo histórico, tentando introduzir nelas uma visão personalista. Prevaleceria, porém, a posição do materialismo. Por isso, indaga: “que garantias oferece a AP de respeitar a pessoa humana e de ser diferente dos outros socialismos?” (FLORIDI 1973, p. 164).
Se a leitura do Documento base já estabelecia suspeitas sobre o paradeiro do socialismo apista, Floridi escreve em uma conjuntura em que a AP, de forma deliberada, promovera rupturas com sua origem e aderira formalmente ao marxismo. Esse processo de redefinição é usado como comprovação de sua tese, já presente na interpretação do DB, acerca da incompatibilidade entre o cristianismo e a perspectiva socialista ou comunista. A experiência da AP, então, é descrita com tintas fatalistas:
Os católicos e os eclesiásticos radicais que (…) crêem salvar seu cristianismo aceitando o socialismo (comunismo) como ideal ou fenômeno histórico inevitável têm no caso da AP a prova de que isso não é possível. Os militantes da AP vêem hoje, e não há razão para pensar que sejam insinceros, que quem escolhe o socialismo deve necessariamente optar pelo comunismo concreto, ideológico, partidário, anti-humano e violento (FLORIDI, 1973, p. 183).
A interface com a Igreja Popular e com a Teologia da Libertação
No início da década de 1970, influenciado pelo advento do catolicismo popular, Márcio Moreira Alves produziu uma tese de doutorado, convertida em livro anos depois, em que investigou as relações entre a Igreja e a política (ALVES, 1979). Seu interesse pelo tema, porém, fora aguçado na conjuntura imediatamente posterior ao golpe de Estado de 1964, quando produziu o livro O Cristo do povo. Nessa obra, após detalhado relato da politização vivida pelos estudantes católicos, afirma: “a Ação Popular (AP) é um movimento revolucionário que surgiu como resposta política aos anseios e angústias dos jucistas” (ALVES, 1968, p. 233). O período pós-1964, analisado no calor da hora, foi visto como de radicalização premida pelas circunstâncias, que levou ao marxismo-leninismo. Em tom crítico, conclui: “O resultado da definição foi um violento expurgo em seus quadros, um grande desperdício de vocações revolucionárias” (ALVES, 1968, p. 235).
Em sua obra mais recente, reflete se a Igreja católica teria potencial para engajar-se em um projeto de transformação socialista. Depois de acusar a incompatibilidade entre a cadeia de comando da Igreja e projetos revolucionários, demonstra os impasses de organizações de elite, como a JUC, e aponta as potencialidades das Comunidades Eclesiais de Base, embora considerasse precoce qualquer julgamento definitivo a respeito. Sobre a AP, finalmente, faz uma observação lacônica: “A organização política resultante das descobertas revolucionárias da JUC foi a Ação Popular. Gradualmente, exigirá ela dos seus membros uma lealdade exclusiva, que os desligará da Igreja institucional até explicitar (…) a sua opção pelo marxismo-leninismo” (ALVES, 1979, p. 131). Nas duas intervenções de Márcio Moreira Alves, subjaz um olhar crítico sobre o desperdício das “descobertas revolucionárias” presentes em sua origem.
No final da década de 1970, período de consolidação da Teologia da Libertação, a experiência da Ação Popular e sua relação com a história do catolicismo voltariam a ser analisadas por intelectuais oriundos da JUC ou identificados com as mudanças de perspectivas da Igreja Católica. Nessa época, conhecia-se o fato de Gustavo Gutierrez, quando preparava seu clássico livro sobre a Teologia da Libertação, publicado em 1971, ter vindo ao Brasil para entrevistar cristãos militantes do período 1960-1963 e refletir sobre a práxis da esquerda católica daqueles anos, como apontou Luiz Alberto Gomes de Souza, autor de importante contribuição para os estudos a respeito da interface da AP com o catolicismo.
Ex-dirigente da JUC e fundador da AP, esse autor demarca as diferenças de projetos entre os dois movimentos. Em 1960, esclarece, falava-se de uma esquerda cristã, que pudesse abrigar jovens profissionais e jucistas. Em 1961 e em 1962, com a ampliação de horizontes, pautou-se a organização “de um movimento de esquerda onde os cristãos participassem” (GOMES SOUZA, 1984, p. 198). Por isso,
Essa geração foi chegando ao socialismo, mas não ao socialismo cristão, nem tampouco ao socialismo derivado do cristianismo. Ainda que a discussão tivesse começado no âmbito de movimentos cristãos da AC (Ação Católica), logo passou a ser uma caminhada em comum com pessoas de diferentes origens, analisando o processo histórico das lutas populares e os contornos de um futuro projeto político. Daí o surgimento da Ação Popular, impropriamente considerada por muitos analistas como um movimento de esquerda cristã, mas que pretendia ser, desde o início, um movimento pluralista, embora não se possa negar que a biografia da maioria de seus criadores estivesse condicionada por suas origens cristãs (GOMES SOUZA, 1987, p. 101).
Analisando o Documento Base, destaca que, em sua perspectiva histórica, a socialização e a personalização estão dialeticamente condicionadas. Na perspectiva filosófica, sobressai a relação entre a consciência e o mundo (GOMES SOUZA, 1984, p. 199). Quanto ao horizonte socialista, aponta a crítica às formas de alienação política geradas pelas experiências históricas (GOMES SOUZA, 1984, p. 200). Em intervenção posterior, é bastante direto quanto a esses temas, assinalando a recusa de uma consciência reflexo do mundo (determinismo das condições materiais) e a opção por um socialismo democrático, em coerência com a crítica às experiências autoritárias (GOMES SOUZA, 1987, p. 101).
Não havia, em seu entender, uma reflexão prévia e acabada como ponto de partida, mas uma experiência, até certo ponto hesitante, que se iniciara, para muitos militantes, ainda nos tempos da JUC. A “experimentação” e a “teorização” gradual demarcavam, “ao mesmo tempo, a originalidade e a aparente fragilidade do movimento, diante de outros grupos ideológicos que já têm naquele momento soluções preparadas e tiradas de seu baú de “posições corretas” (GOMES SOUZA, 1984, p. 200). A fragilidade, vista retrospectivamente, decorria do fato de que, até março de 1964, houve pouco tempo “para um debate aberto e público que permita compatibilizar, corrigir e melhorar a prática, com um pensamento cuja elaboração se faria aos poucos. Essa pelo menos era a intenção em 1963” (GOMES SOUZA, 1984, p. 201).
Entretanto, é com aquele período inicial que o autor se identifica. O período posterior ao golpe militar de 1964 é abordado com pouco interesse e linguagem ácida. Na segunda metade daquela década, “em tempos de clandestinidade e repressão, num salto em direção oposta, vários de seus dirigentes, com complexo de inferioridade, procuram a tranqüilidade nas águas do dogmatismo e uma clara ortodoxia leninista ou maoísta” (GOMES SOUZA, 1984, p. 200). Em outra intervenção, avalia que o movimento transformou-se “num rígido partido marxista-leninista sem originalidade” (GOMES SOUZA, 1987, p.102). Para concluir, observa que essa transformação do movimento mereceria um estudo cuidadoso, que analisasse tanto os condicionamentos externos, impostos pela clandestinidade, quanto os internos. Sem eufemismos, sugere que esse estudo seria “um pouco ‘uma patologia do político’, ou em linguagem mais irreverente, ‘de como um movimento político endoidou” (GOMES SOUZA, 1987, p.102). [5]
Ainda no final da década de 1970, Luiz Gonzaga Souza Lima divulgou um amplo estudo sobre os estudantes católicos, em que também aborda o fenômeno da formação da AP. O crescimento da AP teria sido impulsionado pelo fato de ter uma ideologia em formação. A despeito de faltarem diversos níveis de elaboração, essa ideologia exercia fascínio e justificava o engajamento político dos cristãos em um projeto de transformações socialistas. Valorizando a ação, esse projeto em construção aliava motivações humanistas cristãs com o materialismo histórico, sem deixar de fazer críticas às experiências socialistas. Tudo isso exercia fascínio sobre amplos setores católicos e “era funcional, naquele momento histórico, para explicar e justificar a prática social das classes e setores de classe aos quais pertenciam, na direção da Revolução Brasileira” (SOUZA LIMA, 1979, p. 44).
Lima também analisa a formação da AP a partir da radicalização de setores da ACB. Recusa, porém, a interpretação de que se trata de um fenômeno interno da Igreja Católica. Propõe que esse fenômeno de politização e radicalização seja entendido no contexto político do período e na conjuntura de luta de classes. Como ocorre com os intelectuais católicos, seu interesse pela fase posterior da AP é mínimo. Sistematiza, esquematicamente, as fases que a AP viveria no pós-1964: adesão à luta armada e ao marxismo de matiz maoísta, transformação em uma organização marxista-leninista e virtual extinção pela confluência da maioria de seus quadros em outras organizações clandestinas. Em linguagem sóbria, mas sem dispensar certa dose de ironia, anota:
Essa evolução político-ideológica, se de um lado deu aos seus dirigentes e quadros uma teoria revolucionária internacionalmente considerada como tal, afastou o movimento de suas bases sociais, que eram os cristãos progressistas. O abandono do humanismo cristão como ponto de partida, ao mesmo tempo em que se abandonavam suas bases sociais, haveria de transformar a AP em uma organização pequena e impaciente, que disputava verbalmente com outras organizações clandestinas a hegemonia na direção da classe operária e da Revolução Brasileira (SOUZA LIMA, 1979, p. 47).
Em 1984, o Pe. Beozzo divulgou suas reflexões sobre a práxis da AP, inseridas em um livro que aborda a radicalização dos estudantes católicos. Sua análise se detém, sobretudo, nos aspectos doutrinários da AP e em sua relação com a prática política do movimento, embora não faça propriamente uma investigação empírica das ações. No Documento base, sua maior identificação dirige-se à fundamentação filosófica: “O edifício filosófico, bem arquitetado, crítico e matizado parece não fecundar e penetrar as outras perspectivas e flutua um pouco entre a análise econômica, de um lado (como interpretação da história), e as opções concretas, de outro” (BEOZZO, 1984, p.129-30). Padecendo de um pronunciado corte da perspectiva teórica, a análise seria escrava de um postulado ativista e imediatista, que arriscava “afastar da luta sua raiz e seus objetivos mais universais e diluir a força das opções na pura tática, liberta de toda orientação normativa” (BEOZZO, 1984, p. 130).
Essas limitações tiveram, no entender de Beozzo, graves conseqüências políticas para a Ação Popular, na decisiva conjuntura de 1964:
Negligenciando sistematicamente os amplos setores da realidade que não entravam em seu horizonte de análise, o político por exemplo e a natureza do poder, ou o poder do Exército e da Igreja Católica, para não citar senão dois, eles basearam sua luta sobre um conhecimento estreito e incompleto da realidade, negligenciando a ação junto aos setores-chaves do controle social. A revolução de 1964 encontrou-os inteiramente desprevenidos e só lhes deixou a ingrata tarefa de procurar encontrar uma explicação para seu fracasso (BEOZZO, 1984, p.130).
Beozzo assinala que, no período posterior ao golpe militar, os debates sobre a estratégia e sua natureza organizativa monopolizaram a reflexão do movimento, mas não aprofunda a análise.
Em meados da década de 1980, o brasilianista Scott Mainwaring interveio no debate, em livro dedicado a estudar a relação entre a Igreja Católica e a política, cuja cronologia, abarcando o período de 1916 a 1985, desemboca na conjuntura de influência da Igreja Popular. Sobre as raízes católicas dos militantes da AP, anota: “É digno de nota que, dentro de uma instituição que ainda era mais ou menos conservadora e hierárquica, tenha surgido um movimento com posições tão progressistas quanto as da Ação Popular “(MAINWARING, 1989, p. 87). Entretanto, diante dos impasses que a juventude católica vivera com a estrutura eclesial, salienta que, livre das restrições que os bispos impunham ao apostolado leigo, a Ação Popular assumiu posições políticas à esquerda da JUC e criou uma possibilidade independente da hierarquia (MAINWARING, 1989).
O interesse de Mainwaring pela AP, tanto quanto o dos autores católicos citados acima, é por sua primeira fase, em que seu projeto mesclava o humanismo cristão com outras referências. Por isso, é lacônico e crítico ao indicar as mudanças que a AP viveria a partir do golpe militar de 1964:
A história da AP após o golpe foi trágica, como também o foi a história da maior parte da esquerda brasileira. O movimento tornou-se clandestino logo depois do golpe devido à repressão. Por isso, passou por uma rápida radicalização que o levou ao marxismo e à participação na luta armada (MAINWARING, 1989, p. 87).
Retomando o foco de sua análise, a relação entre a Igreja e a política, faz duas inferências sobre a trajetória da AP. Primeiro, constata que, nos pós-1964, a AP “abandonou suas origens cristãs e, nesse processo, deixou de ter influência dentro da Igreja. O movimento progressista dentro da Igreja passou por novos canais, embora se valesse do legado deixado pelos jovens católicos radicais “(MAINWARING, 1989, p. 87). Na segunda inferência, é enfático quanto ao legado da AP sobre o desenvolvimento da Igreja Popular, a despeito dos caminhos assumidos na segunda metade da década de 1960:
É (…) notável a presciência da Ação Popular em relação a um grande número de assuntos que vão desde os compromissos com a transformação social radical até uma perspectiva crítica do leninismo e do socialismo burocrático. Sob esses aspectos, a Ação Popular antecipou a ideologia dos intelectuais da Igreja Popular das décadas de 70 e 80. Não havia uma relação causal direta entre a AP e a Igreja Popular, mas a AP realmente estabeleceu uma tradição de humanismo radical dentro do catolicismo brasileiro que continuou depois de o próprio movimento ter abandonado suas origens católicas (MAINWARING, 1989, p. 87).
Na primeira metade da década de 1990, Giovanni Semeraro contribuiu com o debate, por intermédio do livro A primavera dos anos 60: a geração de Betinho. A conjuntura em que a obra foi gestada, caracterizada pela crise do socialismo e pelo avanço do neoliberalismo, é ressaltada pelo autor. Motivou-se a estudar o início da década de 1960 “para colher a concepção de mundo, a dinâmica social, o espírito de luta e a transparência ética que animaram os jovens politizados daqueles anos” (SEMERARO, 1994, p. 13). O caráter de resistência da obra é ainda dimensionado pelo fato de a Teologia da Libertação encontrar-se em franca perda de influência.
Para Semeraro, a Ação Popular era uma superação da controvertida idéia de “esquerda cristã”. Mas enfatiza que, apesar de proclamar-se não-confessional, a AP, em sua origem, apresentava “uma marca inconfundível de humanismo cristão e uma visão utópica de transformação de mundo” (SEMERARO, 1994, p. 60). Sua ideologia, mesclando o humanismo cristão com o materialismo histórico, justificava e propunha o engajamento dos cristãos no processo de transformação, especialmente pela renovação que propunha no projeto socialista. Sem deixar de destacar a influência do ideário cristão, insere a Ação Popular no leito das organizações de esquerda do período. Salienta, entretanto, sua originalidade e a renovação que promovia. A AP seria, naquela conjuntura, a organização mais revolucionária do Brasil, pois seu projeto representava um diálogo original:
Pela crítica de conceitos marxista-leninistas, pela rejeição do economicismo vulgar, pela condenação dos regimes socialistas autoritários e burocráticos, os cristãos superavam as deformações da esquerda tradicional. Voltavam a instaurar a dinâmica da dialética no melhor pensamento de Marx, ao se baterem pela criação de um socialismo humanista que tinha a democracia como valor universal e o pluralismo na participação de múltiplos sujeitos coletivos (SEMERARO, 1994, p. 181-182).
Sobre o caminho percorrido pela AP depois de 1964, reproduz a noção de que “o movimento endoidou”. Entretanto, o balanço da primeira fase é amplamente favorável. Entre 1959 e 1964, os cristãos de esquerda, incluídos os que enveredaram pela AP, “deixaram traços inconfundíveis e lançaram as premissas de um processo que assumirá proporções impressionantes nos anos 70 e 80, quando despontará a Teologia da Libertação e serão esboçadas as linhas de um novo partido da classe trabalhadora” (SEMERARO, 1994, p. 197).
Considerações finais
Conquanto fosse uma organização laica e tivesse, após o golpe militar, aderido ao marxismo-leninismo, a trajetória da Ação Popular mantém pontos de interseção com a história do catolicismo, como salientaram as duas tendências de interpretação, no que diz respeito ao capítulo da esquerda católica.
Traduzindo uma posição conservadora, as análises de Gallejones e Floridi são convergentes e complementares. Ambos procuram se ancorar nos documentos da hierarquia da Igreja e defender a doutrina oficial, tal como então se apresentava. Há, quando muito, nuanças entre um e outro. Gallejones identifica a tendência de extrema esquerda no período anterior a 1964. Ao afirmar que a AP não era uma organização de católicos, submetida à hierarquia e orientada pela doutrina social, situa-se nos marcos de uma visão de nova cristandade. Ele exige que a AP, um movimento laico, seja algo que não quer ser, uma organização eclesial. Floridi segue essa linha e a radicaliza, pois exige referências ao Evangelho. Uma nuança é sua visão de que o ecletismo da primeira fase penderia para o marxismo. Como escreve alguns anos após Gallejones, assiste à conclusão da transformação ideológica da AP e a descreve com tintas fatalistas.
Autores identificados com as transformações que a Igreja experimentou ressaltam o caráter renovador da esquerda católica em geral e da Ação Popular em particular. Movimento laico e independente, a AP é vista como desdobramento da esquerda católica. Tanto se beneficia de seu legado quanto mantém incidência sobre seu curso. Ela também foi um canal pelo qual os cristãos puderam influenciar, para além dos marcos da instituição eclesial, a práxis política mais ampla e o ideário socialista. Salientam-se, assim, as críticas ao socialismo real e às formas de alienação geradas em sua experiência. Em todos os autores que analisam a interface com a Igreja Popular, prevalece uma visão crítica às transformações que a AP viveria no pós-1964.
Na verdade, para as duas vertentes destacadas, o interesse pela história da AP se encerra quando se faz a opção pelo marxismo-leninismo. Por razões distintas, ambas são críticas dessa opção. Rejeitando toda a experiência, os intelectuais conservadores consideram que esse era o desfecho natural para a incompatível convivência de orientações díspares. Por seu turno, os intelectuais identificados com o catolicismo popular, com ou sem vínculos com a Igreja, interpretam essa definição como o encerramento dos aspectos criativos da práxis da AP. Por isso, procuram na primeira fase da AP o impulso renovador para a Igreja ou para a esquerda, malgrado certa dose de ingenuidade ou de imprecisão de formulação. É naquele período que procuram a centelha de esperança para avivar as lutas de seu tempo.
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* Trabalho originalmente apresentado no I ENCONTRO DO GT NACIONAL DE HISTÓRIA DAS RELIGIÕES E RELIGIOSIDADES: ANPUH. 2007.
** REGINALDO BENEDITO DIAS é professor do Departamento de História, Universidade Estadual de Maringá (DHI/UEM) e Doutor em História Social pela UNESP. Publicado na REA, nº 88, setembro de 2008, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/088/88dias.htm
[1] Segundo Edgard Carone (1984, p. 16), a AP “é um fenômeno estranho na nossa história, pois, na nossa história, o catolicismo sempre se identificou com o reacionarismo”.
[2] Os vínculos orgânicos não eram fortes, mas a JDC, hegemônica na União Paranaense dos Estudantes, alinhava-se com a AP nas questões nacionais do movimento estudantil (DIAS, 2003).
[3] Em outro artigo, analisei como a experiência da AP foi interpretada pela ótica do PC do B (DIAS, 2006).
[4] Nesta relativa abertura, que aceita a participação sob determinadas condições, pode-se perceber a influência da atualização do magistério pontifício. Na encíclica Pacem in terris, editada em 1963, João XXIII enfoca, de forma pragmática, a colaboração entre católicos e não-cristãos no seio dos movimentos, com vistas à promoção do bem comum. Para tal, estabelece uma distinção entre doutrinas e movimentos, que permite colaboração em torno de objetivos práticos, sem compromissos quanto aos fundamentos.
[5] Herbert de Souza expressou ponto de vista análogo acerca dos períodos de vida da AP, apesar de ter rompido seus vínculos com a Igreja e com as religiões (SOUZA, 1976 e 1996).
(Blog da Revista esp. Academico)
terça-feira, 28 de agosto de 2012
Marighella
27.08.12 - Brasil
A fase marighelliana de Mano Brown
Nota de Rodapé
Começou em 2005 como uma página pessoal do jornalista Thiago Domenici, 30 anos, que trabalhou na Revista Caros Amigos, Revista do Brasil; atualmente na Retrato do Brasil. A partir de 2008, no entanto, a proposta se tornou colaborativa.
Adital
Clara Charf, viúva de Marighella, com Mano Brown, nacasa dela, em junho de 2011 (Foto: Isa Grispum Ferraz)
Há cerca de três anos, quando minha mãe (Isa Grinspum Ferraz) começou a produção do documentário "Marighella” (sobre o líder comunista e guerrilheiro assassinado em 1969 pela ditadura), ela me perguntou quem seria o rapper mais interessante para fazer uma música para a trilha do filme. A ideia era dialogar também com as novas gerações e com a população de um modo mais amplo, e o rap parecia um bom caminho.
Não precisei pensar muito para responder: "O cara é o Mano Brown. Sem nenhum pingo de dúvida”. Para mim, Brown é não só o maior rapper brasileiro, mas também uns dos maiores gênios da música nacional das últimas décadas. Eu já tinha mostrado para minha mãe, desde a adolescência, faixas como "Homem na Estrada”, "Fim de Semana no Parque”, "Diário de Um Detento” e "Negro Drama”. Lembrando disso, ela topou na hora.
Mas e para ele topar? Todos sabemos que o acesso a Mano Brown não é fácil. E dessa vez não foi diferente. Demorou um ano e meio para conseguirmos fazer ele aceitar a empreitada. A produção do filme já estava bem adiantada. De cara ele pediu para assistir o primeiro corte, de cerca de quatro horas. A partir daí se encantou com a história de Marighella, começou a pesquisar mais e pediu para conhecer Clara Charf, viúva do líder.
As coisas começaram a fluir, até desembocar na música "Marighella: Mil Faces de Um Homem Leal” – que fecha o filme e ganhou clipe.
"ESSE NOME FICOU: MARIGHELLA"
Brown: "Uma vez falaram que eu parecia com o Marighella"
Recentemente, pouco antes da estreia do filme, foi pedido para que eu fizesse uma entrevista com o Brown para ser usada pela assessoria. Não tive muito tempo de preparar, mas não dava para perder a oportunidade. Algumas perguntas tinham mais a ver com a divulgação do trabalho, e as cortei da versão que publico aqui. Minha intenção, neste NR, não é divulgar filme nenhum, mas sim colocar no mundo essa entrevista em que Brown fala coisas tão interessantes sobre sua identificação com Marighella.
Quando cheguei na casa em que fui encontrá-lo (sede da produtora do clipe), o cumprimentei e tentei puxar assunto. Comentei que estava ouvindo bastante as músicas do começo dos Racionais, como "Voz Ativa” e "Negro Limitado”. Ele me olhou meio estranho e falou: "É mesmo? Você não acha muito radical?”. Fiquei um pouco tenso, e achei que a partir daí a entrevista seria difícil. Mas não, o papo fluiu muito bem, como você verá a seguir.
NR – Como você tomou contato com a história do Marighella?
Brown – Uma vez falaram pra mim que eu parecia com o Marighella. Depois, há uns 8 anos encontrei a Clara (Charf) e ela me falou sobre ele. Aí esse nome ficou: Marighella. Eu sabia que era um cara dos nossos, mas ainda não tinha me aprofundado nas ideias dele. Eu também já tinha ouvido rap’s que citavam ele, e um pouco antes de eu ser chamado pra fazer a música, um amigo meu tinha pichado o nome do Marighella em um muro lá na minha quebrada, junto com outros como Che Guevara, Malcom X, Sabotage... Então eu já estava tendo contato aos poucos.
NR – E o convite para o filme?
Brown – Me disseram que era o filme da sobrinha do Marighella, aí eu falei que topava fazer. Eu, então, pedi pra ver o filme, porque queria ver como era a obra da diretora, eu queria entrar no contexto. Eu tinha que fazer uma música que combinasse com o filme, não simplesmente um rap sobre o Marighella. Tinha que combinar no som, no jeito de cantar, de falar...
NR – E conhecendo melhor a história do Marighella, você concordou que vocês se pareciam? Como foi essa identificação?
Brown – Parece mesmo. A origem dele é a mesma que a minha, baiano com italiano. Preto com branco. O nariz parece... E a adrenalina, ele gostava disso, era sonhador, visionário também. Quase um santo, eu diria. Se você for ver, os grandes heróis da humanidade também tiveram que pegar em armas pra lutar por suas causas. Se matou muito em vão, se matou muito em nome deCristo também.E o Marighella lutava por uma causa até bem mais justa do que o cristianismo, que era justiça, liberdade de religião, e tantas outras liberdades.
NR – Quando aceitou fazer a música você falou para a diretora: "Eu vou fazer porque não é o seu povo que precisa de heróis, mas o meu povo”. Para quais brasileiros você acha que a história do Marighella serve como lição de resistência, como exemplo?
Brown – O brasileiro no geral. É bom saber que você teve um cara que acreditava na justiça, acreditava no país. Era um cara do povo que acreditava no povo dele. Ele via condições de o Brasil ser grande já naquela época. E via que o que não deixava o país ser grande era a corrupção, a desinformação, a alienação. E ele lutou contra isso de todas as formas, ensinando, sendo político... E num certo momento chegou a conclusão de que contra a força, só usando a força. Contra a força, a força.
"A minha maior inspiração foi aproximar o Marighella da periferia, mostrar que é um cara como nós (...)"
NR – E a história do Marighella ainda é pouco conhecida de modo geral, principalmente nas periferias, entre as classes baixas... Então o seu rap leva essa história pra muita gente que nunca teve acesso a ela...
Brown – Foi essa a minha maior inspiração, aproximar o Marighella da periferia, mostrar que é um cara como nós. Um cara de um valor inestimável, gigante para a história do Brasil e para a raça negra também.
NR – E sobre o processo de composição do rap, ouvi você dizer que não queria apenas contar uma história, mas "somar”, contribuir com algo novo. Como foi isso?
Brown – Para dialogar com o filme, eu não podia copiar o estilo da diretora. Eu tinha que entender a forma de ver dela, mas fazer a minha, pra somar mesmo. Como se eu colocasse um bonezinho ali em cima do fraque, bem no meu estilo. Então assisti o filme umas quatro vezes, pra ver o caminho que a autora seguiu e seguir um outro complementar, mas diferente. Porque é arte. Música é arte e cinema é arte. São duas artes, elas não podem se copiar. E tem ali no rap a minha visão, claro, mas eu também não quis "entortar” a história do Marighella pro lado que eu quisesse. Quis levar ele pra periferia, mas não "entortar” a história dele pra fazer com que os caras gostassem. Existe uma verdade. Era um cara que gostava de samba, carnaval, de fazer poesia, mas também pegava uma arma e assaltava um banco. É um herói mesmo, que deu a vida por uma causa.
NR – Em "Voz Ativa”, lá no começo dos Racionais, vocês falam que o Brasil precisava de um líder, um herói como Malcom X foi na América...
Brown – Marighella! Se fosse fazer essa música Parte 2 seria o Marighella, com certeza. É um herói brasileiro, mas foi bloqueado ao povo saber da história dele. Porque quando os caras ouvem se identificam rápido. Pensam: porra, era um cara comum, que jogava bola, se fantasiava no carnaval... mas era um monstro, de inteligência e de disposição, de foco. Eu queria ter um cara desses na minha família!
NR – Naquela época (ditadura) havia uma clareza maior de quem era o inimigo, contra o que lutar. Como é a resistência hoje? Contra o que?
Brown – Resistência contra qualquer forma de injustiça. Injustiças cotidianas, pequenas ou grandes. Pequenos racismos, grandes racismos. A luta é fazer a teoria virar prática. Não ficar só falando, mas fazer mais. Às vezes, sair da música e ir pra escola, por exemplo. Nos anos 1990 tudo foi muito cantado, nos anos 2000 tá sendo vivido. Talvez a música tenha dado mais espaço à prática. Se faz o que se cantava nos 90.
Tem muita coisa pra melhorar ainda. No Brasil todo. O país tá mais antenado com o mundo, mas falta muita coisa. Falta escola, universidade gratuita pra todos. Tem muita repressão ainda. Tem ainda uma guerra de poderes no novo Brasil, tem ainda uma esquerda e uma direita. De vez em quando eles convivem, negociam. Mas quando não dá certo quem paga é o povo.
"Marighella é pesado, fui mexer com o cara... foi uma fase marighelliana. Parei tudo pra fazer a música, não tinha como fazer mais nada"
NR – Por que os brasileiros devem ver um filme como "Marighella”?
Brown – Porque o país está em um momento novo e o brasileiro precisa saber que tem gente com a cara dele que faz tempo que é grande. Tem Zumbi, tem Marighella.
NR – E entre várias músicas do Racionais compostas depois do último CD, por que vocês escolheram fazer um clipe justamente de "Marighella”?
Brown – O Marighella precisava de um clipe, de uma apresentação, mostrar a figura dele. E é uma música compacta, que já dava um caminho pro clipe. Foi uma música que foi impactante de fazer. Acima da média. Bati três carros... fiquei doente (risos). Marighella é pesado, fui mexer com o cara... foi uma fase, essa fase marighelliana. Parei tudo pra fazer a música, não tinha como fazer mais nada. É uma puta responsa. Falar de mim é uma coisa, falar de outros é foda.
*Marcos Grinspum Ferraz, jornalista e saxofonista da banda Trupe Chá de Boldo estreia hoje a coluna mensal Verbo Sonoro, sobre cultura e música.
(Adital)
Woodstock
BAÚ DO CELSÃO: ÉRAMOS CRIANÇAS, BRINCANDO NO PARAÍSO
Um dos acontecimentos mais emblemáticos e alentadores do século passado, o Festival de Música e Artes de Woodstock só é lembrado pela grande imprensa nas efemérides.
E mesmo quando isto acontece, de 10 em 10 anos, os enfoques da indústria cultural oscilam entre o nostálgico e o pitoresco, como inimiga que foi e é dos ideais que se corporificaram nesse magnífico evento.
Indo na contramão, como sempre, costumo destacar a vitalidade de Woodstock e os caminhos que ainda nos aponta, hoje e agora, para a construção de um mundo melhor.
Para começar, uma constatação óbvia: Woodstock foi uma moeda que caiu em pé. Os deuses de todos os povos e de todos os tempos parecem ter-se mobilizado para que tudo desse certo durante três dias mágicos, maravilhosos, que seriam para sempre lembrados como uma amostra da perfeição possível neste sofrido planeta.
Sem favor nenhum, posso afirmar que Woodstock foi o evento musical que mais influenciou as artes e os costumes na história da humanidade. E a conjunção de fatores que o transformou em marco e lenda dificilmente se repetirá.
Mas, não precisamos acreditar piamente na esnobada de Gilberto Gil: "quem não dormiu no sleeping bag nem sequer sonhou". Apenas, levar em conta o que houve de específico nesse festival. Outros sonhos virão, com certeza. A História não tem fim, queiram ou não os Fukuyamas agourentos.
"SOME FLOWERS IN YOUR HAIR"
Para começar, o Festival de Woodstock foi o ponto de chegada e a culminância de vários fenômenos e acontecimentos marcantes.
A escalada norte-americana no Vietnã, ao longo da década de 60, engendrara um movimento pacifista de crescente influência entre os jovens dos EUA, com direito a manifestações de protesto, queimas de cartas de recrutamento, choques com a polícia e a uma manifestação-monstro de cerco ao Pentágono
.Em 1965, um estudante de química chamado Owsley Stanley aprendeu como fabricar ácido lisérgico no porão de sua casa e logo inundou San Francisco com o LSD, impulsionando o surgimento da geração das flores, imortalizada pela bela canção de Scott McKenzie: “Se você vier para San Francisco,/ não se esqueça de colocar/ algumas flores no seu cabelo...”
Foi aí que o movimento hippie nasceu, aglutinando jovens que recusavam o american way of life e caíam na estrada, em busca de aventuras e novas experiências.
Em termos mais profundos, pode-se lembrar que era a fase em que a crescente mecanização da indústria mais e mais dispensava o uso da força física, demolindo algumas vigas-mestras da sociedade norte-americana, toda ela construída em cima do ascetismo puritano (a negação do prazer a fim de poupar energias para o trabalho). Na década de 60, o prazer reconquistava suas prerrogativas.
Grandes festivais de rock já haviam ocorrido em Monterey (1967) e na Ilha de Wight. Este último vinha se realizando desde 1968, embora o mais marcante e lembrado seja o de 1970, quando se deu uma das últimas apresentações de Jimi Hendrix.
Quanto a públicos expressivos, também não eram novidade: o festival inglês já reunira 250 mil pessoas.
Mas, foi no de Woodstock que a indústria cultural investiu pesado, pela primeira vez. É que, com algum atraso, os mercadores das artes se deram conta de que tinham um diamante bruto ao alcance das mãos. Prepararam-se, então, para explorar em grande estilo o evento seguinte.
Por último, vale notar que ainda se vivia a época dos compactos, em que eram singles e não elepês que corriam o mundo, com a repercussão dependendo, principalmente, da divulgação nas rádios.
Pouco se conhecia da segunda onda do rock (a primeira, nos anos 50, fora a dos pioneiros Elvis Presley, Chuck Berry, Little Richard, Bill Haley, etc.).
Muitos garotos, como eu, amavam os Beatles e os Rolling Stones. De resto, haviam escutado. “The House of Rising Sun” (Animals), “Sunny” (Johnny Rivers), “A Wither Shade of Pale” (Procol Harum) e quase nada mais.
Existia uma produção musical de grande qualidade represada, não atingindo circuitos mais amplos. Seria a irrupção dessa nova geração de importantes artistas ainda relativamente desconhecidos que asseguraria a surpresa e o enorme impacto causados pelo filme Woodstock e pelo álbum triplo com registros desse evento.
BRINCANDO NA CHUVA
Foram três dias de “paz, música e amor”, de 15 a 17 de agosto de 1969, levando 450 mil jovens até a fazenda do leiteiro Max Yasgur, a 80 quilômetros de Woodstock, estado de Nova York.
Logo no primeiro dia o festival foi declarado livre: quem não tinha comprado antecipadamente o ingresso, não precisou mais fazê-lo. Com isto, os promotores tiveram US$ 100 mil de prejuízo inicial, mas acabaram saindo no lucro: o filme lhes proporcionaria um retorno imediato de US$ 17 milhões.
O torrencial aguaceiro do segundo dia foi tirado de letra pela moçada, que aproveitou para relembrar a infância, chapinhando na lama. De início se tentou afastar a chuva com a força do pensamento positivo, todo mundo gritando “No rain! No rain!”. Depois, o jeito foi se amoldar a ela, brincando de tobogã e cantando. No álbum Woodstock há dois registros disto: no disco I, o improvisado “canto da chuva”; e no II, a multidão entoando em coro o refrão “deixa o sol brilhar!”, da peça Hair.
As boas vibrações não impediram a ocorrência de três mortes: uma overdose, um atropelamento por trator e um ataque de apendicite. O guitarrista e líder do The Who, Peter Townshend, não se limitou, como de hábito, a destruir o instrumento de trabalho no final apocalíptico de sua performance; levou a fúria para os bastidores, quebrando o pau com o líder hippie Abbie Hoffman.
O evento foi processado para o cinema por Michael Wadleigh, que fez uma magnífica edição de imagens e introduziu uma novidade: a bi ou tripartição da tela, oferecendo ao espectador tomadas simultâneas do mesmo grupo, de artistas isoladamente, do público, etc.
Há, além disto, nítido empenho em situar o evento sociologicamente, ao contrário do documentário sobre o Festival de Monterey, que se ateve quase exclusivamente à música. Daí a merecida reputação de Woodstock como o filme que inovou a arte de registrar espetáculos musicais.
NEM TUDO FOI MOSTRADO
Muitos artistas deixaram de ter um número exibido no filme e no álbum triplo. Ficaram de fora Melanie, Mountain e Butterfield Blues Band, com o consolo de aparecerem no segundo álbum Woodstock, duplo, que foi lançado algum tempo depois. O Jefferson Airplane não está no filme, mas sua “Volunteers” consta do álbum triplo e teve mais canções aproveitadas no álbum duplo.
A relação dos que lá estiveram mas ficaram de fora tanto do filme quanto dos álbuns é extensa: Janis Joplin, Grateful Dead, The Band, Blood Sweat & Tears, Creedence Clearwater Revival, Incredible String Band e Johnny Winter. Motivo: problemas contratuais.
[Agora, na onda do MP-3, tudo isso foi finalmente disponibilizado para os saudosistas dos velhos e bons tempos, bem como para os jovens que querem saber saber como era o som que os pais, tios e avós curtiram...]
Os cachês mais altos foram os de Jimi Hendrix (US$ 18 mil), Blood Sweat & Tears (US$ 15 mil), Joan Baez e Creedence Clearwater Revival (US$ 10 mil cada). Santana exibiu sua empolgante fusão de rock e sonoridades latinas, “Soul Sacrifice”, pela bagatela de 750 dólares.
O trovador John Sebastian tirou a sorte grande: não foi convidado, mas apareceu para dar uma olhada e acabou subindo ao palco quando a chuva recém-finda impedia a apresentação de bandas eletrificadas. Ganhou direito a constar do filme e do disco, além de receber mil dólares.
O Crosby, Stills, Nash & Young, que acabava de ser constituído, cativou a platéia com seu folk-rock contestador e obteve êxito instantâneo, lançando as bases da longa carreira de seus integrantes (pouco tempo como quarteto e muito mais como artistas-solo).
No extremo oposto, o Ten Years After foi a principal vítima da síndrome de Woodstock: nunca igualou os 11 esfuziantes minutos de “Goin’ Home”, que valeram para Alvin Lee a reputação de grande guitarrista.
Outra curiosidade: foi marcante a aparição de Arlo Guthrie (“Comin’ Into Los Angeles”), cuja trajetória acabaria sendo eclipsada pela de Bob Dylan. Os estilos vocais e temáticos eram semelhantes, tendo Dylan sido mais eficiente em afirmar-se como herdeiro da arte e da lenda de Woody Guthrie, o precursor dos mochileiros. Correndo na mesma faixa, ele sobrepujou o próprio filho de Woody.
A vertente negra do rock se destacou em duas performances memoráveis. Richie Havens, um talento que depois definharia, arrepiou a platéia com seu camisolão africano e a interpretação fulgurante de “Freedom”. E Jimi Hendrix, no auge de sua genialidade, puniu simbolicamente os militaristas com a implosão do hino nacional norte-americano.
Isto para não falar do herdeiro branco e britânico de Ray Charles, o chapadíssimo Joe Cocker, com sua voz poderosa e postura bizarra, sacudindo o corpo para a frente e para trás como um boneco de mola enquanto as mãos dedilhavam sem parar uma guitarra inexistente.
O rock erudito, que marcaria toda uma época, também se fez presente em Woodstock: o The Who interpretou uma compilação de faixas da ópera-rock Tommy, projetando mundialmente essa sua (para a época) extravagância: um álbum-duplo que, faixa a faixa, vai contando a história de um menino que flagra o adultério da mãe e o assassinato do pai, recebendo então a ordem de apagar aquele episódio da mente e nunca relatá-lo a ninguém. O trauma o torna cego, surdo e mudo, mas ele acaba se libertando e atingindo a iluminação.
SÍNTESE DA CONTRACULTURA
Com Woodstock ganhou repercussão ampla o movimento de paz e amor que fermentava na boêmia San Francisco desde meados daquela década, como um desdobramento lisérgico e roqueiro do antigo movimento beatnik
Suas características externas são ressaltadas no filme:
o amor livre e a desinibição corporal, com o nudismo sendo amplamente praticado, de forma inocente e até singela;
a convivência harmoniosa, sem nenhum resquício de preconceito, entre indivíduos de todas as raças, credos e orientações sexuais;
o consumo explícito e justificado (por alguns entrevistados, como Jerry Garcia) das drogas que, no entender daquela geração, abriam as portas da percepção;
o visual premeditadamente desarrumado do pessoal, com suas roupas coloridas, ponchos e cabeleiras imponentes;
a substituição dos laços familiares por uma comunidade grupal (ou, como se dizia então, tribal);
a volta à natureza e a redescoberta do lúdico (em vários momentos, veem-se marmanjos entregues a brincadeiras pueris, sem nenhum constrangimento);
a profusão de crianças, pois os hippies mandavam às favas o planejamento familiar, os anticoncepcionais e os abortos, assumindo plenamente o amor e suas conseqüências;
o solene desprezo pelas regras e valores dominantes na sociedade, que se evidencia até nas falas dos organizadores do festival, não ligando a mínima para os prejuízos que estavam ameaçados de sofrer.
De certa forma, este comportamento era inspirado por teóricos como Reich, Marcuse e Norman O. Brown, que vincularam o autoritarismo político à repressão instintiva, alegando que a liberdade era cerceada não só pelos mecanismos sociais que mantinham a estrutura de classes (visão da esquerda convencional), como também pelos condicionamentos que embotavam a imaginação e inibiam o desfrute pleno da sexualidade.
Essas teses inspiraram uma nova voga anarquista, que pregava o combate ao stablishment também no íntimo de cada pessoa. As drogas serviriam para o resgate de faculdades esquecidas devido ao desuso; e a liberalidade sexual, incluindo as práticas antes estigmatizadas como perversões (homossexualismo, sodomia, sexo oral, masturbação), seria a premissa de uma visão erótica do mundo, em substituição ao princípio da realidade freudiano.
BRASIL: COMUNIDADES E BICHOS-GRILOS
A influência de Woodstock em nosso país pode ser detectada na música (Raul Seixas, Made in Brazil, a última fase dos Mutantes), no teatro (Oficina, Tuca), na cinematografia (o chamado cinema marginal) e, sobretudo, nos costumes, com os bichos-grilos que percorriam as estradas como caronas, indo e vindo à meca de Arembepe (BA), além de criarem comunidades urbanas e rurais onde exercitavam um estilo alternativo de vida.
Essas tentativas, entretanto, esbarraram no ambiente repressivo dos anos de chumbo, o que levou, p. ex., a ser expulso do Brasil o elenco do Living Theatre de Julian Back, que supôs encontrar aqui seu paraíso tropical; e, em termos mais amplos, na própria impossibilidade de contingentes mais amplos, num país pobre como o nosso, garantirem indefinidamente seu sustento com artesanato, aulas de ioga e que tais.
A grande vitória da Geração Woodstock foi ter conseguido arrancar os Estados Unidos do Vietnã. E seu exemplo repercute até hoje no ativismo em defesa do meio ambiente e a favor de algumas causas justas.
Além disto, ela entronizou a imagem do jovem como centro do universo do consumo, em substituição ao modelo rígido do pai de família, daí derivando a descontração no vestir, no falar e no comportamento.
E ainda lançou alguns modismos que hoje estão em menor evidência, como o ioga, a macrobiótica, o ocultismo e a agricultura natural (sem defensivos e fertilizantes).
Não perduraria, entretanto, aquela militância política idealista e generosa: as gerações seguintes se desinteressaram de mudar o mundo, voltando a priorizar a ascensão profissional e social. O rock, depois de uma fase intensamente criativa e experimental, voltou aos caminhos seguros do marketing.
As drogas, ao invés de abrirem as portas da percepção, se tornaram instrumentos para a fuga à realidade e a ilusão de onipotência, cada vez mais pesadas, até que se chegou ao pesadelo do crack. E o amor livre degenerou em sexo casual, promiscuidade e Aids.
O sonho acabou? Talvez. Mas, quem o partilhou só lamenta que haja durado tão pouco e tenha sido substituído por uma realidade tão insossa.
Eu prefiro mesmo é a postura do inesquecível Raulzito: ele nunca deixou de acreditar que a roda da fortuna giraria de novo, trazendo de volta, desta vez para ficar, o paraíso-agora! que iluminou nossas vidas por um fugaz instante... e, mesmo assim, marcou-nos para sempre.
Oh, baby, a gente ainda nem começou!
(Náufrago da Utopia - Lungaretti)
domingo, 26 de agosto de 2012
Coca
DESMISTIFICANDO O CHÁ DE COCA
Posted: 25 Aug 2012 07:37 AM PDT
Urda Alice Klueger
Em 1993, minha amiga Sônia e eu fizemos os preparativos para uma viagem à Bolívia e ao Peru no meio de muita farra: voltaríamos casadas com traficantes de cocaína, voltaríamos viciadas em chá de coca. É claro que não queríamos casar e nem nos tornarmos viciadas, mas nossos amigos riam muito dos nossos planos.
Viajamos, enfim. A primeira cidade boliviana que conhecemos foi Santa Cruz de La Sierra, ainda na parte baixa da Bolívia, antes de se subir os Andes. Santa Cruz nos surpreendeu por ser uma cidade grande e bonita, plana e planejada, cujo centro, com uma antiga catedral espanhola, linda praça e casario espanhol, é cercado por moderna cidade de prédios modernos, agradável e aconchegante.
Chegamos de manhã a Santa Cruz, e gastamos o dia conhecendo a linda cidade (eu esperava uma cidadezinha de tugúrios, muito feia) e, de tardinha, passamos por um mercadinho, onde havia na vitrine ... chá de coca! Há que se lembrar que o chá de coca, na Bolívia, é tão legal e consumido quanto o cafezinho, no Brasil; mas ainda não sabíamos disso, e o chá famoso exercia uma grande atração sobre nós, dava uma idéia de proibido, de pecado, e quem não gosta de experimentar o proibido? Olhando para os lados, para ver se ninguém nos via, Sônia e eu entramos no mercadinho e compramos uma caixa de chá, com os mesmos cuidados que as pessoas têm quando compram pornografia.
A caixinha de chá que compramos era de famosa marca alemã, tinha linda embalagem envolta em papel celofane, e o chá vinha em saquinhos, como qualquer chá respeitável. Escondemos a caixa na bolsa e voltamos correndo para o hotel, onde mandamos preparar duas chávenas. Quando nos entregaram as xícaras, em nosso apartamento, Sônia e eu nos deitamos para tomá-lo, para que quando acontecesse o "barato", estivéssemos deitadas e nada nos acontecesse. Até hoje eu morro de rir ao lembrar como ficamos as duas deitadas, após tomar o chá, esperando o "barato". Dez minutos depois eu perguntei:
- Sônia ... tudo bem aí?
Estava tudo bem, assim como comigo, nada estava acontecendo com ela. Mais dez minutos, e Sônia pergunta:
- Urda ... tudo bem?
Era hilariante a cena, nós esperarmos o "barato" que não veio. Uma hora depois, morrendo de rir, resolvemos voltar aos nossos passeios. O chá de coca não dá barato nenhum.
Só fui entender a verdadeira função do chá de coca depois que subimos os Andes. Naquela altitude de 4.000 m, não sei como se viveria sem ele. O mal-estar da altitude é uma coisa terrível, que não se tem como fugir - mesmo deitada, mesmo dormindo, a altitude nos faz sentir muito mal - mesmo dentro do sono, tem-se a sensação de que se respira agulhas, ou navalhas, e a cabeça está sempre com a sensação que vai explodir. Qualquer pequeno esforço, como o de se subir uma escadinha de cinco degraus, deixa-nos sem forças, derreados, com o coração disparado, e é nessas horas que o chá de coca é bem vindo. Ele nos ajuda um monte a melhorar, dá-nos a sensação de que se vai conseguir sobreviver, é o melhor remédio que existe contra os males da altitude.
No Bolívia, toma-se chá de coca tanto no botequim da esquina, quanto no mais fino restaurante. Os mais refinados garçons do país, quando vêm chegarem turistas derreados, que jogam os braços e as cabeças sobre as mesas e não conseguem nem mais falar, sabem direitinho o que eles precisam. Polidamente, aproximam-se e perguntam :
- Mate de coca?
E a gente dá graças a Deus que o garçom perguntou, que não precisou gastar aquele tiquinho de energia necessário para pedir a infusão que vai devolver um pouco das forças, porque força a altitude tirou toda.
Eu sempre digo que Deus faz as coisas perfeitas, o Diabo é que as estraga depois. Num lugar alto como os Altiplanos andinos, onde é tão difícil viver, Deus colocou a coca e o seu chá terapêutico (o gosto não é bom, mas a gente o acha maravilhoso pelo bem que ele nos faz.). O Diabo, depois, fez com que o homem descobrisse a forma de, com aquelas folhas ingênuas e boas, produzir cocaína.
Blumenau, 25 de agosto de 1996
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*Urda Alice Klueger: Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR. Colabora com esta nossa Agência Assaz Atroz.
______________________________(Juntos somos fortes)_________________
sábado, 25 de agosto de 2012
Pensamentando
O tribunal da consciência e a corrupção
Leonardo Boff
Teólogo, filósofo e escritor
Adital
O corrupto ama a escuridão e abomina a luz. Ele sabe o quanto é condenável o que pratica. É nesse ponto que se anuncia a consciência. Fizeram-se inumeráveis interpretações do fato da consciência. Tentaram derivá-la da sociedade, dos superegos das tradições e das religiões, do ressentimento face aos fortes e outros. Os manuais de ética referem infindáveis discussões sobre a origem, a natureza e o estatuto da consciência. Entretanto, por mais que tentemos derivá-la de outras realidades, ela se mantém como instância irredutível e última.
Ela possui a natureza de uma voz interior que não consegue ser calada. Exemplifiquemos: em 310 o imperador romano Maximiano mandou dizimar uma unidade soldados cristãos porque, depois de uma batalha, se negaram a degolar inocentes. Antes de serem executados, deixaram uma carta ao imperador: "Somos teus soldados e temos as armas em nossas mãos. Entretanto, preferimos morrer a matar inocentes a ter que conviver com a voz da consciência nos acusando” (Passio Agaunensium). A 3 de fevereiro de 1944 escreve outro soldado alemão e cristão a seus pais: "fui condenado à morte porque me neguei a fuzilar prisioneiros russos indefesos. Prefiro morrer a levar pela vida afora a consciência carregada com o sangue de inocentes. Foi a senhora, minha mãe, que me ensinou a seguir sempre primeiro a voz da consciência e somente depois as ordens dos homens (Letzte Briefe zum Tode Veruteilter).
Que poder possui essa voz interior a ponto de vencer o medo natural de morrer e aceitar ser morto? Ela admoesta, julga, premia e castiga. Com razão Sócrates e Sêneca testemunhavam que a consciência "é Deus dentro de ti, junto de ti e contigo”. Kant, o grande mestre do pensamento ético, dizia que "a consciência é um tribunal interno diante do qual pensamentos e atos são julgados inapelavelmente”. Foi esse filósofo que introduziu claramente a distinção entre preço e dignidade. Aquilo que tem preço pode ser substituído por algo equivalente. Entretanto há uma instância em nós que está acima de todo preço e que, por isso, não admite nada que a substitua: essa é a dignidade humana”, fundada na consciência de que "o ser humano é um fim em si mesmo e que não pode jamais servir de meio para qualquer outra coisa”.
O mau e o corrupto se escondem sem que ninguém os procure e fogem sem que ninguém os persiga. Donde lhe vem esse medo e pavor? Quem é esse que vê os dinheiros escondidos e para os quais não existem cofres secretos nem senhas para abri-los? Para ela não há segredos em quatro paredes palacianas ou em obscuro quarto de hotel. O corrupto sabe e sente que a consciência é maior que ele mesmo. Não possui poder sobre ela. Não a criou. Nem pode destrui-la. Ele pode desobedecer ao seus imperativos. Negá-la. Violentá-la. Mas o que ele não pode é silenciá-la.
Por que aventamos esse clamor íntimo? Porque estamos interessados em conhecer os tormentos que a má consciência inflinge ao coração e à mente daquele corrupto que desviou dinheiro público, que se apropriou das poupanças dos trabalhadores e dos idosos e que, desmascarado, teve que inventar mentiras e mais mentiras para esconder o seu malfeito. Mas não há nada escondido que um dia não seja revelado.
Mesmo que saia absolvido em um tribunal, porque contratou advogados hábeis em fazer narrativas tão lógicas que encobriram seu crime e convenceram os magistrados, ele não consegue escapar do tribunal interior que o condena. Uma voz o persegue para onde for, acusando-o de indigno diante de si mesmo, incapaz de olhar com olhos límpidos para sua esposa e filhos e conversar com coração aberto com seus amigos. Uma sombra o acompanha e lhe rouba a irradiação que nasce da bondade originária de uma consciência serena e feliz. A vida o amaldiçoa porque traíu a verdade, violou sua própria dignidade e se fez desprezível diante de sua própria consciência.
(Adital)
Saccoe Vanzetti
26/06/2009"SACCO & VANZETTI - Um Erro Irreparável
por Pedro Luso de Carvalho
No dia 23 de agosto de 1927, nos Estados Unidos, Sacco e Vanzetti foram executados na cadeira elétrica, por um crime que não cometeram. Nos autos do processo, nenhuma prova da autoria do crime. Sete anos, foi o tempo que a justiça levou para condená-los, a contar do recebimento da denúncia do promotor de justiça pelo juiz. Nesse lapso de tempo, protestos da comunidade intelectual norte-americana se sucediam, inconformada com a sentença condenatória dos dois humildes italianos. Milhares pedidos de clemência foram encaminhados por eles, aos quais se somaram tantos outros pedidos do mundo inteiro. Mas, tudo foi inútil. A sentença condenatória teria de ser cumprida para servir de exemplo ao povo, para que se distanciasse do anarquismo e do comunismo.
Depois que foi publicada a sentença condenatória de Sacco e Vanzetti, que culminou com a morte de ambos na cadeira elétrica, o sonho americano de uma sociedade justa e igualitária encontrava-se por terra. Aí, começaria o desencanto de parte do povo sensível à justa aplicação da justiça e do tratamento igualitário de seus cidadãos.
Um reconhecido nome da literatura estadunidense, Katherine Anne Porter, autora de "A Nau dos Insensatos", livro que se tornou best-seller, entre outras obras, e que também foi publicado no Brasil, , fez parte de comitês de protestos, e escreveu "The Never Ending Wrong", que aqui recebeu o título de "Sacco e Vanzetti: Um Erro Irreparável," traduzido por Sebastião Uchoa Leite (Rio de Janeiro: Salamandra, 1978).
Katherine Anne Porter inicia assim o seu livro: “Durante alguns anos, no início da década de 1920, quando eu vivia parte do meu tempo no México, cada vez que voltava a New York eu retomava o fio da estranha história dos imigrantes italianos Nicola Sacco, um sapateiro, e Bartolomeo Vanzetti, um peixeiro, acusados de um assalto brutal a um caminhão de pagamentos, incluindo homicídio, em South Braintree, Massachuseetts, no começo da tarde do dia 15 de abril de 1920”.
O sofrimento desses dois italianos, que também eram vistos como anarquistas, começou no ano de 1921, quando, após a condenação de ambos nesse mesmo ano, foram levados para a cela da morte, de onde entravam e saiam, quando havia suspensão da pena, até o dia fatal, como conta Katherine Anne Porter, no seu livro:
“Foram levados para a morte na cadeira elétrica na prisão de Charleston à meia-noite do dia 23 de agosto de 1927. Uma meia-noite desolada e sombria, uma noite para a perpétua recordação e luto. Eu era uma das muitas centenas de pessoas que permaneceram em ansiosa vigília, observando a luz na torre da prisão, que nos tinham dito que se apagaria no momento da morte. Foi um momento de estranho e profundo abalo”.
E aí termina a triste história de Bartolomeo Vanzetti, que nasceu em Piemonte, Itália, em 1888, e de Nicola Sacco, que nasceu na província de Foggia, no sul da Itália, em 1891. Vanzetti morreu com 39 anos de idade, e Sacco com 36 anos.
E, para quem se interessar pela história completa deles, poderá ler esta obra de Katherine Anne Porter, "Sacco e Vanzetti: Um Erro Irreparável", ou assistir ao excelente filme: "Saco e Vanzetti", filmado na Itália, em 1971, e dirigido por Giuliano Montaldo, com interpretação de Gian Maria Volunté e Ricardo Cucciolla nos papéis-título; estes, ganharam o prêmio de melhor interpretação no Festival de Cannes. A canção título é interpretada por Joan Baez. O filme esteve proibido no Brasil, por vários anos, pela censura da Ditadura Militar.
(Fonte)
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