quarta-feira, 4 de julho de 2012

Pensamentando

Ao Sul da Liberdade Vicente Escudero Os passageiros examinavam com desinteresse o cubículo, esperando que a viagem com aquele sujeito desconhecido acabasse antes de descerem em seus andares. Nosso homem caminhou pelo corredor empurrando o carrinho dos pintores, depois de sair da cabine do elevador, que se fechou e sacudiu, partindo para o próximo andar. Entrou no escritório. Os passageiros ainda viajavam, tentando controlar a imaginação com as preocupações do dia. A solidão era dividida em partes iguais entre todos que trabalhavam naquele prédio cravado no centro de Pyongyang; uma pessoa poderia passar um dia inteiro em qualquer das salas sem perceber a chegada da noite. Os passageiros, aos poucos, desembarcaram. Logo descobririam que a incômoda presença repetiria-se uma última vez. Nosso homem caminhava entre os móveis do escritório abrindo gavetas e caixas, desarrumando papeis, procurando o arquivo com documentos contendo sua verdadeira identidade e de sua família, o conjunto de dados do governo que lhe atribuíam o status de criminoso pela prática de espionagem e traição na venda de informações para o governo da Coreia do Sul, sobre o posicionamento militar do exército na Linha de Demarcação Militar. Pernas e mãos movimentavam-se em todos os sentidos na tentativa de revelar qualquer compartimento escondido da sala. A porta da entrada abriu-se. Deitado sob uma das mesas da recepção, nosso homem assistiu um par feminino de pernas caminhar lentamente e com cuidado pelos dois ambientes do escritório, evitando pisar com os saltos nos papeis, desviando da mobília revirada e analisando cada centímetro da desorganização. Sua atenção parecia inesgotável e preocuparia nosso homem se ele não estivesse ocupado com a descoberta de um compartimento secreto embaixo da superfície da mesa, onde encontrou o arquivo e um disco rígido marcado com uma etiqueta contendo "Vigilância (abril de 2009 - janeiro 2010)". As pernas femininas se flexionaram de repente, um par de joelhos tocou o chão e o rosto de uma das recepcionistas do edifício revelou-se com intenso terror. Nosso homem foi descoberto vasculhando a sala. A funcionária, desesperada, arrastou-se no ritmo do desespero e fugiu em disparada pelo corredor, alcançando a escada de emergência depois de acionar o elevador. Nosso homem se desencaixou da mesa, tirou o pesado macacão de pintor que incomodou os passageiros do elevador nos meses enquanto durou seu disfarce, algemou-se à pasta com os documentos e correu para a escada, tentando alcançar a cobertura do edifício. O barulho de um helicóptero fazia trepidar as janelas. Nosso homem saltava os degraus carregando a garantia de um futuro anônimo. Mais quatro andares e voaria para fora da ilha. Um policial tentou interceptá-lo no último andar, provavelmente assustado pela figura do pintor vestido com um colete a prova de balas e preso a uma pasta, correndo pela escada de incêndio da sede do Serviço Secreto da Coreia do Norte. Nosso homem não tomou conhecimento do obstáculo, neutralizado com um chute mortífero. O barulho das hélices tornou-se insuportável. A céu aberto, correndo contra o vento artificial, sentiu que a felicidade era compartilhada pela sua família, do outro lado da fronteira. Antes de entrar no helicóptero, nosso homem avistou o horizonte e se recordou da imagem dos campos de trabalho forçado, seu irmão envelhecendo anos em segundos na sequência de cada golpe da enxada na terra árida. A poeira que se levantava misturou-se ao vento, formando uma cortina que separou a liberdade da fuga e a prisão imutável do passado. Kwang Ho encontrou-se com o presente quando seus olhos registraram o dia vinte e cinco de junho de 2012; estava dentro de um ônibus em movimento, sentado num banco ao lado da janela. O homem que havia desembarcado em Pyongyang chamava-se Kwang Ho e era funcionário aposentado da usina nuclear Kori Número Um, localizada no litoral da cidade de Busan, da Coreia do Sul. Fora empregado ao lado de seu irmão, Dae-Hyun, e outras crianças, na indústria siderúrgica que alimentou a Guerra da Coreia na década de 1950. Fugindo das privações e temores do período, seus pais tentaram escapar com a família para a China, atravessando o território da Coreia do Norte, mas acabaram presos na descoberta dos passaportes falsos, durante a estadia na casa de um primo. A memória de Kwang Ho, surda aos gritos do remorso, apagou as imagens da violência obrigatória praticada pelos soldados contra seus pais, mortos para dar lugar aos filhos no veículo destinado ao campo de concentração. E foi neste último dia da Guerra que o pior aconteceu. A ficção é impiedosa com as fraquezas do caráter. Transportados lado a lado num ônibus com pouca vigilância, Kwang Ho aproveitou-se de uma parada e fugiu correndo para uma floresta. Antes de desaparecer pelo labirinto desconhecido, as lágrimas de seu irmão acorrentado no interior do ônibus revelaram-se no negativo de sua consciência. Dias depois acabou resgatado por um comboio do exército americano que retornava à Coreia do Sul. Dae-Hyun desapareceu. Kwang Ho dormiu durante trinta anos até descobrir a resiliência de seu irmão em uma carta clandestina, enviada através da embaixada da China, em Seul. A juventude vivida a partir dos quinze anos na cultura da liberdade fez de Kwan Ho um homem confiante em atos heroicos. Não seria uma linha traçada no chão que o impediria de salvar seu irmão. O ônibus retornava a Seul. Kwang Ho tinha acabado de acordar quando sentiu duas coisas. Não seria capaz de mudar o passado do irmão sem justificar a própria morte, se tentasse libertá-lo, diante do poder dos soldados norte-coreanos que monitoraram seu reencontro depois de décadas, em Pyongyang. A segunda, que o sacrifício seria a reprodução dos erros do passado, o abandono definitivo da companhia do irmão. Olhando para as rugas nas mãos, sentiu o esgotamento da disposição em um pouco de sono. Adormeceu outras vezes durante a viagem de volta, esvaziando o ímpeto da virtude em lembranças de filmes de ação. Kwang Ho respirava com felicidade o perfume da liberdade e decidiu, ainda no ônibus, que aproveitaria os poucos anos que restavam da vida como o início de uma pequena aventura. Imaginou, um novo reencontro com Dae-Hyun, no ano seguinte. Vicente Escudero Campinas, 14/6/2012 (Digest. Cultural)

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