segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

Poesia

Alguma arte: A porta aberta (prosa-poética natalina)25/12/2011 Posted by Ana Helena Tavares - QTMD? under -, Poesia, Prosa, Sociedade Nenhum Comentário

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É noite de Natal. E a porta do vizinho está aberta.
Entrar? Desejar-lhe bons votos? Ficar no desejo?
Ah, tem a internet. Já desejei mil alegrias a milhares.
Alegrias? Mas sorri pra eles? Vi seus sorrisos?
A porta aberta e o coração inseguro. Pra que serve minha mão?
Pra bater em teclas ou pra apertar outras mãos?
Fogos lá fora. Ah, tem vídeo. Mas e o olhar?
O olhar brilhando ao se erguer pro céu? Não se compara.
Pára. É noite de reflexão. Um ano passou e pra que serviu?
Pra bater cabeça ou pra melhorá-la?
A porta aberta. A criança ranzinza. Ganhou presente e não gostou.
E quem não ganhou? O que sobrou?
Chorou. Aquele que não tem porta. Nem pra abrir nem pra fechar.
E pra amar? Nem porta separa.
E quem te ampara? O bom velhinho ou o nazareno?
O presente ou ausente? Ah, que ladainha…
A campainha! Mas a porta tá aberta. Pra que tocar? Vou entrar!
E se ele não gostar? Ele, o dono.
Ih, fiquei com sono. Mas tem missa. Já deu preguiça.
Não vou nunca, por que ir hoje? Não faz sentido.
O meu vestido. Aquele bonito. Vou usar. Mas por que só hoje?
Os outros dias não o merecem? O sol também nasceu.
A porta aberta. Entrar hoje e virar a cara amanhã.
Não parece boa atitude. E sem virtude.
Fiz o que pude. Felicitei a todos. E como curtiram!
Mas não me viram. É o novo mundo. Bem moribundo.
Mas nascerá outro. Paz, união, essas coisas bonitas?
Sim, as luzes piscam. Mas há algo por trás delas.
Novas janelas. É a promessa de todo o Natal.
Mas não era comida? Peru, rabanadas, bacalhau…
Isso é normal. Mas a porta fechou. E ninguém entrou.
Não tem problema. O futuro se faz agora.
É essa a hora. Vou abrir a porta.
Aberta não tinha graça. Feliz Natal, vizinho.
Vamos confraternizar nossas famílias. Ainda há vinho.

24 de Dezembro de 2011,

Ana Helena Tavares

(QTMD)

Natal

Laurindo Lalo Leal Filho: Por um Natal sem neve na TV


Quem mantém as TVs comerciais são os anunciantes. Mas, apesar disso, as emissoras poderiam ter um pouco mais de criatividade. Não há Natal na TV brasileira sem a milésima reprise do filme “Esqueceram de mim”, com neve em quase todas as cenas ou sem o indefectível “especial”, sempre com o mesmo cantor.

Por Laurindo Lalo Leal Filho, na Carta Maior*


O final de ano na TV é sempre previsível. A propaganda cresce e os programas se repetem. São filmes com muita neve, os mesmos musicais e as infalíveis resenhas jornalísticas.

A televisão no Brasil não dita apenas hábitos, costumes e valores mas também o ritmo de vida da maioria da população. Nos dias úteis com seus horários para “donas de casa”, crianças e adultos e nos fins de semana, com uma programação diferenciada, supostamente mais adaptada ao lazer.

Mas não fica ai. A TV organiza também as comemorações das efemérides ao longo do ano, das quais o ponto alto é o Natal. Com muita antecedência saltam da tela canções da época e muita propaganda, criando clima para o “espírito natalino”.

As crianças são o alvo principal da publicidade. Se já são bombardeadas com apelos de compra o ano todo, no Natal a pressão cresce.

Apresentadoras joviais e alegres conquistam a confiança dos pequenos telespectadores com seus dotes artísticos para, em seguida, atraí-los para as compras, no mais das vezes, desnecessárias. Da classe média para cima é comum ver crianças com brinquedos pouco ou nada usados, comprados apenas como resposta aos apelos publicitários.

Mas a TV não está só nas casas de quem pode comprar. Hoje ela é um bem universalizado no Brasil, advindo dai a sensação de exclusão sofrida por crianças cujas famílias estão impossibilitadas de satisfazer seus desejos. Esse desconforto resulta da crença de que o consumo é um valor em si, substituto da cidadania. Só é cidadão quem consome.

“O que singulariza a grande corporação da mídia é que ela realiza limpidamente a metamorfose da mercadoria em ideologia, do mercado em democracia, do consumismo em cidadania” diz o professor Octávio Ianni no “Príncipe Eletrônico”, artigo que se tornou referência para a discussão do papel político da comunicação nas sociedade modernas.

No Natal a metamorfose atinge o auge e segue até a virada do ano. As mercadorias ganham vida na TV e estão à disposição para satisfazer todos os nossos desejos, o mercado oferece democraticamente a todos os mesmos produtos e ao consumi-los exerceríamos nossos direitos de cidadãos. São falácias muito bem embaladas em luz, cores e sons sedutores.

As regras do jogo são essas. Quem mantém as TVs comerciais são os anunciantes. Mas, apesar disso, as emissoras poderiam ter um pouco mais de criatividade. Não há Natal na TV brasileira sem a milésima reprise do filme “Esqueceram de mim”, com neve em quase todas as cenas ou sem o indefectível “especial”, sempre com o mesmo cantor.

Dessa mesmice nem o jornalismo escapa. As chamadas resenhas de final de ano não são mais do que colagens em forma de “clips”, usadas mais para reviver sustos já sofridos pelo telespectador do que para informar. Em determinado ano, que pode ser qualquer um, o apresentador famoso abria a resenha na principal rede de TV exclamando: “um ano de arrepiar em todo o planeta. Incêndios, terremotos, furacões”. E dá-lhe imagens espetaculares que, de notícia, pouco tem.

Podia ser diferente? Claro que sim. Poderíamos ter na TV um Natal mais brasileiro e um final de ano criativo (com a publicidade mais controlada). Realizadores não faltam, o que faltam são oportunidades para mostrarem seus trabalhos. Mais de 200 deles apresentaram pilotos de programas no Festival Internacional de Televisão, realizado em novembro no Rio. Não haveria ai gente capaz de tirar a televisão da rotina desta época?

Criatividade é o que não falta na produção audiovisual brasileira. Precisamos é de ousadia para mostrá-la ao público oferecendo bens culturais capazes de enriquecê-lo espiritualmente. Ou como dizia um diretor da BBC, a melhor TV do mundo: “temos a obrigação de despertar o público para idéias e gostos culturais menos familiares, ampliando mentes e horizontes, e talvez desafiando suposições existentes acerca da vida, da moralidade e da sociedade. A televisão pode, também, elevar a qualidade de vida do telespectador, em vez de meramente puxá-lo para o rotineiro”.

Belo desafio, não? Feliz Natal.

(*) Artigo públicado originalmente na edição de dezembro da Revista do Brasil.

*Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP. É autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão” (Summus Editorial). Twitter: @lalolealfilho.

Fonte: Carta Maior

domingo, 25 de dezembro de 2011

Pensamentando

APLAUSOS PARA O ESPETÁCULO DO TROPEÇO!

Carlos Correia Santos

Chegue-se. Tome seu lugar nessa vã e imensa casa de espetáculos que sãos os tempos atuais. Valha-se de seus doces porque o açúcar sempre atenua a dor. Acomode-se plenamente a contento e prepare-se para aplaudir, pois o espetáculo vai começar.

Espetáculo?

Qual?

O tropeço.

Sim, o tropeço. Eis o grande espetáculo que tanto ganha ovações, aplausos e fãs nos dias de hoje. O tropeço.

Prostram-se as massas diante de seus famigerados twitters e facebooks para ver quem caiu, quem desabou, quem ruir. E assim se ri. O que se quer é rir. Gritar aos ventos todos dessa nau insanidade chamada internet. Gritar: aquele imbecil ali tropeçou. Caiamos como abutres sobre ele. Sim, façamos do clique bico de corvo para furar a carne daquela calma, afligir aquela alma. Lancemos o mouse sobre aquele que tropeçou e, qual ratos a despedaçar lixo (Ave, Chico Buarque), espalhemos tristeza e crueldade.

Em pensar que houve um tempo no qual compartilhar era apenas etimologia: partilhar com. Dividir o que de bom, o que de bem. Agora... Num compartilhar, compraz-se a infâmia. Compra-se intolerância. Vende-se a dignidade. Acha-se o pouco caso. Perde-se a paz de espírito.

Na plateia, o ávido espectador do tropeço, quando não encontra, caça. O fantoche da sanha geral, que baila sobre o fio da navalha diante da turba coberta pela burca do anonimato, tem que se estatelar, tem que se esborrachar. Ah, ele não fará seu número? Pois a turba o leva à lona. Assim, feito perdigueiros das bordas do apocalipse, os espectadores do tropeço dedicam-se a criar dramaturgias que derrubem.

E, nos meios dias, que se retuite a canalhice. Vivas. Milhões de vivas ao RT da bestialidade.

No entanto...

Tão no entanto...

Dos saltos ninguém fala. Para os saltos aplausos tão poucos... Não interessa festejar o que põe para frente. Aos acorrentados à mediocridade, pouco interessa celebrar o ir adiante.

E segue, desta feita, em cartaz o show do tropeço. O irônico é que as plateias se esquecem de algo divinamente poético. O espetáculo da vida é democrático. Você está aí nessa fétida plateia aplaudindo quem cai? Caindo na gargalhada? Aplausos para você. Amanhã o papel de protagonista, bebê, certamente há de ser seu.

CARLOS CORREIA SANTOS (CONTATOS)
Poeta, dramaturgo, romancista
MSN: cacopoeta@hotmail.com
TWITTER: @cacopoeta
BLOG 01: http://nadasantostudoalma.blogspot
(De um emeio recebido)

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Beth Carvalho

Beth Carvalho: "CIA quer acabar com a cultura brasileira"

Em entrevista ao jornalista Valmir Moratelli, do iG por ocasião do lançamento do CD de músicas inéditas “Nosso samba tá na rua” - dedicado a dona Ivone Lara, com canções sobre a negritude, o amor e o feminismo - a cantora Beth Carvalho é mordaz : “a CIA quer acabar com o samba. É uma luta contra a cultura brasileira. Os Estados Unidos querem dominar o mundo através da cultura”, diz a cantora, presidente de honra do PDT.


George Magaraia

"Só acredito no modelo socialista, é o único que pode salvar a humanidade"
iG: Em seu novo CD, a letra “Chega” é visivelmente feminista. Por que é raro o samba dar voz a mulheres?
Beth Carvalho: O mundo, não só o samba, é machista. Melhorou bastante devido à luta das mulheres, mas a cada cinco minutos uma mulher apanha no Brasil. É um absurdo. Parece que está tudo bem, mas não é bem assim. Sempre fui ligada a movimentos libertários.

iG: De que forma o samba é machista?
Beth Carvalho: A maioria dos sambistas é homem. Depois de mim, Clara Nunes e Alcione, as coisas melhoraram. O samba é machista, mas o papel da mulher é forte. O samba é matriarcal, na medida que dona Vicentina, dona Neuma, dona Zica comandam os bastidores da história. Eu, por exemplo, sou madrinha de muitos homens (risos).

iG: A senhora é vizinha da favela da Rocinha. Como vê o processo de pacificação?
Beth Carvalho: Faltou, por muitos anos, a força do estado nestas comunidades. Agora estão fazendo isso de maneira brutal e, de certa forma, necessária. Mas se não tiver o lado social junto, dando a posse de terreno para quem mora lá há tanto tempo, as pessoas vão continuar inseguras. E os morros virarão uma especulação imobiliária.

iG: Alguns culpam o governo Leonel Brizola (1983-1987/1991-1994) pelo fortalecimento do tráfico nos morros. A senhora, que era amiga do ex-governador, concorda?
Beth Carvalho: Isso é muito injusto. É absurdo (diz em tom áspero). Se tivessem respeitado os Cieps, a atual geração não seria de viciados em crack, mas de pessoas bem informadas. Brizola discutia por que não metem o pé na porta nos condomínios da Avenida Viera Souto (em Ipanema) como metem nos barracos. Ele não podia fazer milagre.

iG: Defende a permanência de Carlos Lupi no Ministério do Trabalho?
Beth Carvalho: Olha, sou presidente de honra do PDT porque é um título carinhoso que Brizola me deu, mas não sou filiada ao PDT. Não tenho uma opinião formada sobre isso, porque não sei detalhes. Existe uma grande rigidez a partidos de esquerda. Fizeram isso com o PCdoB do Orlando Silva, e agora fazem com o PDT. O que conheço do Lupi é uma pessoa muito correta. Eles deveriam ser menos perseguidos pela mídia.

iG: Aqui na sua casa há várias imagens de Che Guevara e de Fidel Castro. Acredita no modelo socialista?
Beth Carvalho: Eu só acredito no modelo socialista, é o único que pode salvar a humanidade. Não tem outro (fala de forma enfática). Cuba diz ‘me deixem em paz’. Os Estados Unidos, com o bloqueio econômico, fazem sacanagem com um país pobre que só tem cana de açúcar e tabaco.

iG: Mas e a falta de liberdade de expressão em Cuba?
Beth Carvalho: Eu não me sinto com liberdade de expressão no Brasil.

iG: Por quê?
Beth Carvalho: Porque existe uma ditadura civil no Brasil. Você não pode falar mal de muita coisa.

iG: Como quais?
Beth Carvalho: Não falo. Tem uma mídia aí que acaba com você. Existe uma censura. Não tem quase nenhum programa de TV ao vivo que nos permita ir lá falar o que pensamos. São todos gravados. Você não sabe que vai sair o que você falou, tudo tem edição. A censura está no ar.

iG: Mas em países como Cuba a censura é institucionalizada, não?
Beth Carvalho: Não existe isso que você está falando, para começo de conversa. Cuba não precisa ter mais que um partido. É um partido contra todo o imperialismo dos Estados Unidos. Aqui a gente está acostumada a ter vários partidos e acha que isso é democracia.

iG: Este não seria um pensamento ultrapassado?
Beth Carvalho: Meu Deus do céu! Estados Unidos têm ódio mortal da derrota para oito homens, incluindo Fidel e Che, que expulsaram os americanos usando apenas o idealismo cubano. Os americanos dormem e acordam pensando o dia inteiro em como acabar com Cuba. É muito difícil ter outro Fidel, outro Brizola, outro Lula. A cada cem anos você tem um Pixinguinha, um Cartola, um Vinicius de Moraes... A mesma coisa na liderança política. Não é questão de ditadura, é dificuldade de encontrar outro melhor para ocupar o cargo. É difícil encontrar outro Hugo Chávez.

iG: Chávez é acusado por muitos de ter acabado com a democracia na Venezuela.
Beth Carvalho: Acabou com o quê? Com o quê? (indaga com voz alta)

iG: Com a democracia...
Beth Carvalho: Chávez é um grande líder, é uma maravilha aquele homem. Ele acabou com a exploração dos Estados Unidos. Onde tem petróleo estão os Estados Unidos. Chávez acabou com o analfabetismo na Venezuela, que é o foco dos Estados Unidos porque surgiu um líder eleito pelo povo. Houve uma tentativa de golpe dos americanos apoiada por uma rede de TV.

iG: A emissora que fazia oposição ao governo e que foi tirada do ar por Chávez...
Beth Carvalho: Não tirou do ar (fala em tom áspero). Não deu mais a concessão. É diferente. Aqui no Brasil o governo pode fazer a mesma coisa, televisão aberta é concessão pública. Por que vou dar concessão a quem deu um golpe sujo em mim? Tem todo direito de não dar.

iG: A senhora defende que o governo brasileiro deveria cassar TV que faz oposição?
Beth Carvalho: Acho que se estiver devendo, deve cassar sim. Tem que ser o bonzinho eternamente? Isso não é liberdade de expressão, é falta de respeito com o presidente da República. Quem cassava direitos era a ditadura militar, é de direito não dar concessão. Isso eu apoio.

iG: Por ser oriundo dos morros, o samba foi conivente com o poder paralelo dos traficantes?
Beth Carvalho: Não, o samba teve prejuízo enorme. Hoje dificilmente se consegue senhoras para a ala das baianas nas escolas de samba. Elas estão nas igrejas evangélicas, proibidas de sambar. Não se vê mais garoto com tamborim na mão, vê com fuzil. O samba perdeu espaço para o funk.

iG: Quem é o culpado?
Beth Carvalho: Isso tem tudo a ver com a CIA (Agência Central de Inteligência dos EUA), que quer acabar com o samba. É uma luta contra a cultura brasileira. Os Estados Unidos querem dominar o mundo através da cultura. Estas armas dos morros vêm de onde? Vem tudo de fora. Os Estados Unidos colocam armas aqui dentro para acabar com a cultura dos morros, nos fazendo achar que é paranoia da esquerda. Mas não é, não.

iG: O samba vai resistir a esta “guerra” que a senhora diz existir?
Beth Carvalho: Samba é resistência. Meu disco é uma resistência, não deixa de ser uma passeata: “Nosso samba tá na rua”.

Fonte: iG

Rebeldia

Rebeldes, mas sem filosofia

Nei Alberto Pies
Professor e ativista de direitos humanos
Adital
"A rebeldia nos jovens não é um crime. Pelo contrário: é o fogo da alma que se recusa a conformar-se, que está insatisfeito com o status quo, que proclama querer mudar o mundo e está frustrado por não saber como" (http://www.chabad.org.br)
Controlar ou emancipar a juventude é um dos dilemas de nossos tempos. Como escreveu Moisés Mendes, em artigo Esses jovens: "O jovem com vontades é uma invenção recente da humanidade. E o jovem capaz de influenciar os outros com suas vontades é uma invenção com pouco mais de 40 anos”. (ZH 13/11/11). Ao longo dos tempos, os jovens resistem e mantém acesa a ideia de mudar o mundo. Desejam, profundamente, que ideais e mundo sejam uma nota só. Seus sonhos projetam ideias em teimosia. Eles têm consciência que precisam controlar o seu "fogo ardente”, mas desejariam que este controle fosse deles, não daqueles que representam qualquer autoridade (pais, professores, psicólogos, legisladores, juízes, polícia). Rejeitam serem pensados pelos outros.
Os jovens sempre gostaram de desafiar os adultos, embora nunca tenham dispensado o apoio sincero e franco, a escuta compreensiva e a orientação bem intencionada dos mais velhos. A novidade de agora é que se apoderaram, como antes nunca visto na história, de uma poderosa ferramenta de comunicação e interação: a internet e as redes sociais. Parece, no entanto, que sua fragilidade está no fato de que ainda não terem vislumbrado uma filosofia capaz de dar envergadura para sustentar as causas de sua rebeldia. Faltam-lhes frases, bordões; falta-lhes filosofia.
O inconformismo que caracteriza os jovens é a força renovadora que move o mundo, mas também algo que incomoda os já acomodados. Acomodados, despreparados ou desconhecendo a realidade do universo juvenil, muitos desqualificam a juventude, vendo-a como um incômodo ou como uma fase de passageira rebeldia. Ao invés de emancipar, desejam controlar, dominar, moralizar. A rebeldia é o sinal de que a juventude continua sadia, cumprindo com o seu papel de provocadora de mudanças. A rebeldia, aos olhos da filosofia, é atitude de quem quer ser sujeito de sua história, não seu coadjuvante. A filosofia, como o inconformismo, motiva cada um na busca de seus próprios caminhos. Se os jovens mantiverem senso de direção, terão o poder de mover mundos.
O filósofo Sócrates, na Grécia Antiga, acreditando na emancipação humana, desenvolveu a maiêutica. Concebeu o papel dos sábios a um trabalho de parteira (que ajudam a dar a luz). Ele acreditava que a verdade e o conhecimento estão com cada um e cada uma de nós, e cada indivíduo pode descobrir as razões e verdades que motivam seu viver. Não por acaso, fora considerado um incômodo para Atenas. Uma das razões de sua condenação à morte foi insuflar a juventude a pensar por sua conta.
O fato é que os jovens de hoje vivem o seu tempo a partir de suas percepções, vivências e leituras. Seremos capazes de compreendê-los em nosso momento histórico? Teremos disposição para o diálogo e a escuta, buscando entender os desejos, sonhos, medos e angústias que os movem?
Neste mês em que comemoramos o dia mundial da Filosofia vale pensar que filosofia e rebeldia desencadeiam atitudes altivas e saudáveis, próprios daqueles que decidem pensar. Jovens e adultos, no entanto, precisam discernir que causas valem uma vida. A violência e a agressão, em forma de rebeldia, não podem ser toleradas. Mas, acima de tudo, a opção é da sociedade: apostar e empenhar-se na emancipação e inclusão da juventude ou considerá-la como constante ameaça contra a ordem social. Cada opção, com seu preço.
(Adital)

Pensamentando

A vida na Nação Prisão

Mark Engler
Analista principal de Foreign Policy In Focus
Adital
Tradução: ADITAL
Nesse verão, Richard James Verone, um homem de 59 anos, residente em Gastonia, Carolina do Norte, entrou em um banco, entregou uma nota a uma caixa, indicando que estava realizando um assalto e exigiu que esta lhe entregasse o dinheiro. Estranhamente, não queria muito dinheiro. Pediu 1 dólar e disse à caixa que esperaria desarmado, sentado no sofá do vestíbulo, que a polícia chegasse.
Verone, que está desempregado, tem um tumor no peito e hérnias de disco na coluna; porém, tinha sido impossível obter um seguro de saúde. Não estava roubando o banco por dinheiro. Em realidade, o que buscava era a atenção médica gratuita na prisão.
O ladrão se equivocava ao pensar que, uma vez encarcerado, obteria uma boa atenção médica. Há muito que privar os prisioneiros de um tratamento adequado tem sido um fato tácito do castigo criminal nos Estados Unidos; tema de reclamações judiciais e de relatórios de direitos humanos. Porém, ele tem razão em que, inclusive, em uma época de austeridade, as prisões continuam sendo um centro de crescimento e financiamento governamentais.
Se Verone for condenado à prisão, fará parte de uns 2,3 milhões de estadunidenses atrás das grades, uma cifra que ofusca o número de presidiários em qualquer outro país do mundo. Isso inclui a China, que tem quatro vezes a população dos Estados Unidos. Segundo o Centro Internacional para Estudos de Prisão, os EUA encerram seus residentes com uma taxa de 743 por cada 100.000 – muito mais alta que as do Reino Unido (152), Canadá )117) ou Japão (58).
O paradigma do "livre mercado” neoliberal prescreve que o Estado abandone suas responsabilidades em áreas tais como educação, habitação, saúde pública e cuidado de anciãos. No entanto, em nome de defender o "império da lei”, o Estado neoliberal mantém –e, inclusive, expande- seus instrumentos mais coercitivos: as forças armadas e as penitenciárias.
A população penal norte-americana tem crescido mais de quatro vezes desde a década de 1970, principalmente devido à sua fracassada "guerra às drogas” e a requerimentos obrigatórios de sentença, que eliminam a capacidade dos juízes de impor castigos razoáveis. Os estudos indicam que os brancos e os afro-norte-americanos usam e vendem drogas em taxas similares. No entanto, em 2003, os negros tinham 10 vezes mais possibilidades de ser encarcerados por delitos relacionados com as drogas.
É certo que sempre o dinheiro gasto em prisões poderia ser usado com propósitos mais humanitários e produtivos. Porém, agora que os orçamentos estatais estão diminuindo e que o gasto no encarceramento alcançou quase 70 bilhões de dólares, a mudança se faz sentir mais diretamente.
Durante seu último ano no cargo, até o herói de filmes de ação convertido em governador republicano da Califórnia, Arnold Schwarzenegger, se queixou de uma mudança histórica inversa: três décadas antes, 10,1% dos gastos do fundo geral do Estado eram dedicados à educação superior e 3,4% às prisões. Em 2010, as prisões consumiam 11% do orçamento; as universidades, somente 7,5%.
As prisões têm demonstrado o fracasso do governo em prover tratamento de problemas de saúde mental, com mais da metade dos prisioneiros dos Estados Unidos padecendo de graves problemas psicológicos. Como assinalou recentemente The Christian Science Monitor, a cárcere do condado de Los Ángeles foi qualificada como "o maior hospital psiquiátrico dos Estados Unidos”.
Se o roubo de banco de Verone é uma parábola adequada para a vida na Nação Prisão, outra história de Wisconsin é igualmente impressionante: no início de 2011, quando o governador antissindicalista, Scott Walker, eliminou as negociações coletivas para os empregados públicos, permitiu o incremento do uso de trabalho forçado. Como resultado, no condado Racine, prisioneiros realizaram trabalhos não pagos de jardinagem e manutenção que antes eram feitos por empregados públicos sindicalizados.
Grupos conservadores, como o Conselho Norte-americano de Intercâmbio Legislativo (Alec, por suas siglas em inglês) estão pressionando a favor de medidas similares em todo o país, argumentando a favor de eliminar as restrições ao trabalho de prisioneiros e para os demitidos do setor público.
Com certeza, não querem diminuir o número de guardas nem os soldados. Grande parte do mundo já vive a experiência do governo norte-americano fundamentalmente por meio de seus militares. Se triunfam os ideólogos e se eliminam outras instituições públicas, os que vivemos no país também enfrentaremos um Estado curtido. Só restará a prisão.
[Autor de ‘Cómo dominar el mundo: la próxima batalla por la economía global' (Nation Books). Contato através dehttp://www.DemocracyUprising.com. Twitter (@Engler_demup) - Facebook en: https://www.facebook.com/pages/Mark-Engler-Democracy-Uprising/117982368212095].
(Adital)

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Dilminha

A foto de Dilma Rousseff sendo interrogada por funcionários da ditadura tem se prestado a várias leituras. A cena dos dois homens escondendo o rosto com a mão assemelha-se muito à imagem de criminosos escondendo a face para não serem reconhecidos. Eles são autores de crimes que definem a verdadeira impunidade que ainda precisa ser enfrentada no Brasil.

Por Katarina Peixoto


No dia 3 de dezembro, a revista Época publicou uma foto de Dilma Rousseff sendo interrogada por delinquentes oficiais depois de 22 dias de tortura. A foto é extraordinária sob muitos aspectos e um deles é a sua expressividade como história, como fato histórico. Uma jovem altiva mira o ou os interrogadores e dois dos delinquentes que participavam da barbárie esconderam o rosto para o fotógrafo (a história desse ato fotográfico mereceria por si só uma análise detida, não tanto da intenção do fotógrafo, mas da função desse tipo de foto, numa ditadura, em sessões de interrogatório). Dilma, como todos podem saber, foi torturada. Os torturadores de Dilma, não.

Essa foto tem sido objeto de algumas reflexões na imprensa brasileira. Uma delas, assinada pelo jornalista Moisés Mendes, do jornal Zero Hora (edição de 11/12/2011) chama a atenção por uma curiosa escolha de palavras. Estabelecendo uma relação entre o período histórico da ditadura e a foto de Dilma, o jornalista escreve:

“Éramos alienados, seu Mino. Jovens com o perfil de Dilma, comunistas, democratas ou anarquistas, que provocaram o confronto com o regime com suas próprias vergonhas, eram quase todos da minoria da militância estudantil. Só leve a sério quem aparecer contando vantagem, com histórias de resistência e bravura naquele 1970, se conhecer sua trajetória.

A foto de Dilma no interrogatório não é a síntese da juventude brasileira de quatro décadas atrás. É apenas a foto de uma moça destemida diante de dois homens torturados pela desonra”. (ver íntegra do artigo no final)

Torturados pela desonra? A cena dos dois homens escondendo o rosto com a mão assemelha-se muito à imagem de criminosos escondendo a face diante das lentes de uma máquina fotográfica ou de uma câmera de televisão. Considerando o período histórico e o contexto da cena, parece muito mais plausível que a tentativa de esconder o rosto tenha pouco a ver com um “sentimento de desonra” e tudo a ver com um gesto com um objetivo bem definido: não ser identificado. Os criminosos, em geral, não gostam de ser identificados.

A possibilidade de os torturadores sentirem-se envergonhados obviamente não está descartada; seria nada mais que uma possibilidade e, enquanto tal caberia averiguar. Uma das dificuldades para que isso ocorra é que, no Brasil, os torturadores nunca se disseram envergonhados, sequer assumiram o que fizeram e menos ainda foram punidos. Como não bastasse, os arquivos em que seus delitos estão registrados foram ou destruídos ou sonegados da cidadania brasileira e assim seguem, mesmo quase trinta anos após o fim da ditadura. A ocultação dos torturadores, dos seus atos e de suas personalidades de direito torna impossível averiguar a sua vergonha.

De fato, em termos jurídicos, um crime imprescritível (como o são os crimes contra a humanidade, dentre eles a tortura), uma vez não investigado, processado e punido se constitui como crime continuado. Assim, não há qualquer obstáculo jurídico ou lógico para se atribuir aos delinquentes que torturaram, entre outros, a atual presidente democraticamente eleita do Brasil o adjetivo que lhes é devido: criminosos contra a humanidade.

Aqui aparece um ponto que parece ser decisivo para as leituras da foto em questão. O Estado brasileiro, até hoje, não reconheceu que foi autor de crimes no período da ditadura. Não se trata apenas de reconhecer crimes contra o marco constitucional da época. Um governo eleito foi derrubado por alguns setores civis e militares, num movimento autoritário que feriu de morte o marco constitucional da época. Além desse crime, outros foram praticados: prisões arbitrárias e ilegais, demissões arbitrárias do serviço público e de empresas, perseguições, sequestros, torturas, assassinatos...Crimes cometidos por agentes de um estado de exceção.

Neste contexto, os interrogadores de Dilma escondem o rosto não porque estão “torturados pela desonra”, mas porque, objetivamente, pertencem a uma organização criminosa que tomou de assalto o Estado brasileiro. O fato de isso não ser reconhecido por um jornalista sério mostra o quanto o Brasil precisa acertar as contas com sua própria história.

Os crimes praticados por criminosos que até hoje insistem em esconder seus rostos continuam sem inquérito, sem processo, sem acusação, sem defesa, sem julgamento. Os torturadores não têm vergonha alguma pelo simples fato de que eles, institucionalmente, isto é, como membros do aparato de segurança e das forças armadas, jamais confessaram seus crimes.

E se o Brasil tivesse aberto os arquivos da ditadura civil-militar que se seguiu ao golpe de estado de 1964? E se as famílias dos supliciados e desaparecidos tivessem tido acesso aos corpos de seus entes familiares, bem como às condições de seu assassinato?

Os delinquentes que participaram do interrogatório da jovem Dilma Rousseff, depois de esta passar por 22 dias de tortura, por acaso foram investigados e padeceram como acusados sem inquérito, tiveram os seus corpos supliciados e as suas subjetividades invadidas pela brutalidade da violação física e mental de que se faz a tortura? Há alguma confissão inconfessa ao público, em que algum torturador teria incorrido?

As dificuldades e resistências em reconhecer que o Estado foi autor de crimes só reforçam a importância de uma Comissão da Verdade, que traga à luz os rostos que até hoje tentam se esconder e os fatos que até hoje permanecem escondidos. Há um jargão (distorcido) que costuma ser repetido à exaustão que consiste em dizer que “o Brasil é o país da impunidade”. As nossas prisões estão abarrotadas e todos sabem qual é o perfil de seus habitantes. A impunidade no Brasil aplica-se, sobretudo, aos chamados crimes de colarinho branco, mas a mãe de todas as impunidades é a que até hoje está encravada no coração do Estado. Os crimes cometidos pelo Estado brasileiro, como o da tortura, permanecem impunes e, mais do que isso, sendo reproduzidos em peças policiais obscuras que também escondem o rosto.

Por isso, também, seria importante que Dilma determinasse a abertura dos arquivos da ditadura militar. Mais do que pela autoridade moral de ter sido vítima da ação dos delinquentes torturadores e assassinos; mais do que pela sua subjetividade e decência, mais do que pelo respeito que ela tem pelos que ficaram pelo caminho, pelos que foram subtraídos, até em seus restos mortais, de seus familiares, ela pode abrir os arquivos. Para além da confusão gerada e reproduzida pela lei da anistia, é importante abrir esses arquivos para acabar com as mentiras históricas, até quando cometidas por gente séria, em conotações equívocas e que dão guarida à falsidade na descrição do que se passou.

(*) O jornal Zero Hora só disponibiliza os links dos textos de sua edição impressa para assinantes. Segue abaixo o artigo em questão:

11 de dezembro de 2011 | N° 16914

A foto de Dilma

Por Moisés Mendes

Enquanto alguém fotograva Dilma Rousseff naquele interrogatório da Auditoria Militar do Rio, você fazia o quê? Você que era jovem, com idade para duelar com a ditadura e cometer loucuras em nome da democracia ou de uma revolução, o que você fazia naquele novembro de 1970 enquanto Dilma encarava os militares com o nariz empinado e você nem sabia que Dilma existia?

Admita: você, seus irmãos, seus colegas, seus vizinhos não faziam quase nada. Eu confesso: tinha 17 anos, dormia escutando as baladas da Rádio El Mundo de Buenos Aires e acordava pensando no milagre que eliminaria minhas espinhas da cara. Como nos empurraram para a alienação naquele 1970, em Alegrete ou em Porto Alegre!

E agora você, que tem hoje a idade de Dilma em 1970, que tem 22 aninhos, que já postou mais de mil fotos suas no Facebook: você já tem uma foto síntese como aquela de Dilma? Tem a imagem que revele sua alma, que dispense legendas, que esteja para você como a Mona Lisa está para todas as mulheres e como a Guernica de Picasso está para todas as guerras? Você tem uma imagem que tenha condensado tudo de você?

Se ainda não produziu a foto reveladora de sua presença neste mundo, não se penitencie. A foto de Dilma é única. Não acredite na conversa de que todos os jovens daquele 1970 enfrentavam a ditadura com o olhar de laser de Dilma. Os jovens de 1970 estavam anestesiados por quatro anos de regime militar, pelo Tri no México, pela censura.

A edição número 115 de Veja, de 18 de novembro daquele 1970, trazia esta capa: Em quem os jovens votaram. A reportagem tratava de uma pesquisa com mil jovens de 18 a 22 anos, de São Paulo, Rio, Porto Alegre e Recife, que votavam pela primeira vez no dia 15 daquele mês para eleger senadores e deputados.

Algumas revelações da pesquisa: 52% não sabiam por que os militares fizeram o golpe de 64; outros 25% disseram que o golpe evitara o comunismo; 71% achavam que o povo estava feliz com a situação do país; 51% dos jovens gaúchos votariam na Arena (o partido do governo) e 44% no MDB (da oposição); e 55% de todos os pesquisados no país votavam “por obrigação” (só 10% entendiam que votar era um direito). E quem tinha sido Oswaldo Aranha? 83% não tinha a menor noção. E qual seria a nota para o presidente Médici? Um 8,4. E assim por diante.

Na eleição, de 70, o MDB levou uma lambada de dois votos por um da Arena. A Arena elegeu 41 senadores e 223 deputados federais. O MDB, apenas seis senadores e 87 deputados. No Estado, Daniel Krieger e Tarso Dutra, arenistas, foram eleitos senadores com o dobro de votos dos emedebistas Paulo Brossard e Geraldo Brochado da Rocha.

Foi uma goleada do partido do governo, com o voto faceiro dos jovens. Vão dizer que havia a campanha do voto nulo, que o país ainda estava confuso, que faltava coesão ao MDB, aos democratas e às esquerdas. Nessa confusão, os jovens eram, como escreveu Mino Carta, o diretor de Veja, “pouco politizados, muito práticos e eventualmente ingênuos”.

Éramos alienados, seu Mino. Jovens com o perfil de Dilma, comunistas, democratas ou anarquistas, que provocaram o confronto do regime com suas próprias vergonhas, eram quase todos da minoria da militância estudantil. Só leve a sério quem aparecer contando vantagem, com histórias de resistência e bravura naquele 1970, se conhecer sua trajetória.

A foto de Dilma no interrogatório não é a síntese da juventude brasileira de quatro décadas atrás. É apenas a foto de uma moça destemida diante de dois homens torturados pela desonra.


Fonte: CartaMaior

Marx

Hobsbawm, o profeta de Marx Não há nenhum deus além de Karl Marx, e Eric Hobsbawm é seu profeta. Maior historiador marxista ainda em atividade, aos 94 anos, o inglês Hobsbawm dedica sua última obra - Como Mudar o Mundo - Marx e o Marxismo - a mostrar que o filósofo alemão, tido como soterrado pelos escombros do Muro de Berlim, continua a ser a chave para o entendimento do capitalismo e para sua superação, agora em tempos de aquecimento global.

O comentário é de Marcos Guterman e publicado pelo jornal O Estado de S.Paulo, 17-12-2011.

Já em seu livro A Era dos Extremos, Hobsbawm colocou a Revolução Bolchevique como o principal evento do "breve século XX" - que em sua visão acaba, justamente, na implosão da URSS. "O mundo que se esfacelou no fim da década de 1980 foi o mundo formado pelo impacto da Revolução Russa de 1917", escreveu ele, para elaborar a teoria segundo a qual todos os processos históricos do período - das alianças diplomáticas aos desdobramentos econômicos globais - tiveram como eixo a instalação do comunismo na Rússia. Trata-se, obviamente, de um exagero. Mas o Marx que Hobsbawm tenta resgatar em seu novo livro não é o de Lenin e de Stalin, nem o dos marxistas contemporâneos, e sim a essência de seu pensamento.

Em Como Mudar o Mundo, reedição de textos escritos entre 1956 e 2009, Hobsbawm trata de diferenciar Marx do marxismo e de sua aplicação extrema, o comunismo - o que é conveniente, ao se observar as atrocidades cometidas em nome da igualdade. Para ele, dizer que o marxismo é responsável por essas tragédias "é o mesmo que afirmar que o cristianismo levou ao absolutismo papal".

Hobsbawm se localiza entre aqueles que veem Marx como um mapa do caminho para a revolução e os que o encaram simplesmente como teoria. Mostra a ruptura dele com os socialistas utópicos, mas deixa claro o tributo que Marx lhes paga na forma da ideia de que é "inevitável" mudança não apenas de regime de governo, mas de todo o modo de vida sobre a Terra. Nos últimos 130 anos, diz o historiador, Marx foi o tema central da paisagem intelectual e, graças à sua capacidade de mobilizar forças sociais, foi uma presença crucial na história. No entanto, o desgaste provocado pelo colapso da URSS expôs, nas palavras de Hobsbawm, o "fracasso das predições" das teorias marxistas.

De tempos em tempos, anuncia-se que o capitalismo está no fim. Como a história mostra, porém, o moribundo arruma um jeito de se recuperar, entre outras razões porque a classe trabalhadora, que seria o esteio da revolução, sofreu mudanças dramáticas no último meio século, ao ponto de se tornar irreconhecível como "proletariado". Mas Hobsbawm, em meio à crise global deflagrada em 2008, não resistiu à tentação e escreveu que, desta vez, vai: "Não podemos prever as soluções dos problemas com que se defronta o mundo no século XXI, mas quem quiser solucioná-los deverá fazer as perguntas de Marx, mesmo que não queira aceitar as respostas dadas por seus vários discípulos". Para ele, o futuro do marxismo e da humanidade estão intimamente vinculados.

No entanto, convém relevar o entusiasmo de Hobsbawm. A história mostra que é prudente ler Marx mais como uma forma de entender o mundo do que de mudá-lo.
(Inst. Humanias Usinino)

Literatura

Livro desfila o Brasil do sertão e a vida do sertanejo


Segundo romance de Paulo César Pinheiro narra a dura vida dos trabalhadores do campo na época dos coronéis. O protagonista foge de um crime que cometeu e em sua fuga mostra as agruras do homem do campo.

Por Marcos Aurélio Ruy*

O livro “Matinta, o Bruxo” (1) tem como gancho principal duas parcerias do autor em músicas baseadas em obras do escritor João Guimarães Rosa (1908-1967), uma “Matita-perê”, em parceria com Tom Jobim e outra, com João de Aquino, batizada com o nome da obra homônima do escritor “Sagarana”. É o carioca urbano inspirando-se no sertão do país com todas as suas vicissitudes.

Em seu primeiro romance “Pontal do Pilar” (2008), Pinheiro já mostra a influência da obra do grande escritor mineiro, agora ressaltada. Paulo César Pinheiro narra a vida de João, um trabalhador do campo que flagra sua mulher na cama com o filho do patrão. Capa o sujeito e mata a companheira Doralinda, como se lavasse sua honra em sangue, fato muito comum ainda hoje em que a violência contra as mulheres campeia Brasil afora, muitas vezes sem punição.

Na fuga de João - o protagonista - para escapar dos capangas do coronel, com sede vingança, surge o Brasil do sertão com sua pobreza e submissão aos donos da terra e dos meios de produção, onde os direitos são decididos na bala. Haja vista tantos assassinatos de representantes dos trabalhadores do campo no país, que permanecem impunes. Nisso reside a atualidade e a grande qualidade da obra de Paulo César Pinheiro.

Logo no início ele escreve: “ Compadre Amâncio me dizia: - O mundo é no bem e no mal dividido. Ninguém pode ser demais em nada. Nem na felicidade. Sempre fora sábio o compadre, mas me soava equivocada aquela sentença. – É erroso quem tem o que quer que seja em demasia.”

O livro nos arremata ao Brasil que necessita de muitas mudanças, de um povo que “merece mais respeito”, com dizem Milton Nascimento e Fernando Brant. Mas apresenta a vida dos brasileiros do interior com suas crendices e suas maneiras de encarar o mundo do jeitinho do brasileiro forjado por anos de maus-tratos sofridos. Em outro trecho o autor escreve que o personagem “jiboiou sob a copa de um jequitibá real, nos fundos da igrejinha do outeiro, e sonhou. Sonhou com Doralinda, com os Gerais do olho de Doralinda, e com seu sorriso ardiloso de putana e conclui: “jeito de menina ingênua em corpo de meretriz. Alma gêmea de qualquer um”.

Vale a leitura deste romance do letrista de canções como “Lapinha” (com Baden Powell), “Lá Se Vão Meus Anéis” (com Eduardo Gudin) e “Menino Deus” (com Mauro Duarte), garantias da qualidade do autor. Paulo César Francisco Pinheiro nasceu no Rio de Janeiro, tem 62 anos e foi casado com a grande cantora Clara Nunes, morta prematuramente em 1983, aos 40 anos.

*Colaborador do Vermelho
(1) Paulo César Pinheiro. Matinta, o Bruxo. São Paulo, Editora Leya, 2011

Trecho do livro
“No aveludar do dia foi contabilizar o estrago. Com a frieza que adquiriu em campanha, despiu a jagunçaria, separando o que lhe era de préstimo. Avultou ucharia e arsenal par romaria forçada. Acondicionou tudo em dois balaios, agafanhados no lombo de cavalgadura. As armas dissimulou como pôde. Empilhou os corpos e ateou fogo. A fumaceira disseminou o fedor de carne torrada por todo o vale. A cremação funcionaria par outros como alerta de fúria. Talvez desistissem da missão de preagem os que se deparassem com os carbonizados. E seguiu em frente pra subseqüente estação.
Foi bater, com mais dia e meio de entremontes, em /cachoeira Santa, arraial espetado em desfiladeiro de cataratinhas. Manancial de regos escavando sangas, deslizando por escarpas, formando cortina d’água, branca como mantilha de nubente. Ao pé da cascata rendada, reentrância pedrenta na rocha, com imagem de milagrosa. Relicário sagrado dos cachoeirenses. Foi saber do enigma depois.
Arruado mimoso distribuído dos dois lados da corrente líquida. Florescências multicoloridas, imitando os ribeiros, se entornavam pelos telhados e paredes, em catadupa de arranjos desenhados pelas mãos do acaso, ao léu da primavera ali jubilosamente perenizada. Pareciam moradias de fadas e gnomos. Aldeola de varinha de condão. Encantamento regressou-lhe à alma. Enfeitiçado, sentou à margem do marulho e resolveu se maravilhar. Concentrado, não viu sinhazinha morena se chegando com cântaro de barro no braço, apoiado na curva da cintura. Surgia como materializada ninfa da fonte mágica. Redobrou o maravilhamento.

- Boa tarde – disse a entidade.

- Tarde - balbuciou o embruxado.

- Vi o moço tão entretido. Pensando na vida?

- Senhora, não. É a beleza do rio carregando flor. Tô admirado.

- Faz bem. É graça de Deus. Quem vem de fora aprecia. É abençoado. Nasci à beira dele. Deixa eu me apresentar. Sou Rosália.

- Me chamo Pedro. Prazer.

Doeu mentir pra aquela uiarazinha, mas Matias deixara de existir depois de Zeferino aprender-lhe a alcunha, e João transitava incógnito. Evitava, sendo Pedro, risco pra ele e possível apuro pra tão meiga pétala”.


(vermelho.org)

Vinicius

Domingo, Dezembro 11, 2011
Vinicius foi ao cinema assistir um drama e ficou atordoado com a comédia do casal impudico que se sentara atrás dele. Como?


Desde sempre

Na minha frente, no cinema escuro e silencioso
Eu vejo as imagens musicalmente rítmicas
Narrando a beleza suave de um drama de amor.
Atrás de mim, no cinema escuro e silencioso
Ouço vozes surdas, vividas
Vivendo a memória de uma comédia de carne.
Cada beijo longo e casto do drama
Corresponde a cada beijo ruidoso e sensual da comédia
Minha alma recolhe a carícia de um
E a minha carne a brutalidade do outro.
Eu me angustio.
Desespera-me não me perder da comédia ridícula e falsa
Para me integrar definitivamente no drama.
Sinto a minha carne curiosa prendendo-me às palavras implorantes
Que ambos se trocam na agitação do sexo.
Tento fugir para a imagem pura e melodiosa
Mas ouço terrivelmente tudo
Sem poder tapar os ouvidos.
Num impulso fujo, vou para longe do casal impudico
Para somente poder ver a imagem.
Mas é tarde. Olho o drama sem mais penetrar-lhe a beleza
Minha imaginação cria o fim da comédia que é sempre o mesmo fim
E me penetra a alma uma tristeza infinita
Como se para mim tudo tivesse morrido.



Vinicius de Moraes
(1913-1980)
(Poemblog)

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Mercado

O mercado “pensa”, o mercado “avalia”, o mercado “propõe”, o mercado “desconfia”, o mercado “sugere”, o mercado “reage”. E aí sim, de vez em quando, o tom de voz sobe e o mercado “exige”!! E, aos poucos, o que era antes um sujeito, o indivíduo “mercado” também vai ganhando ares de divindade.
Paulo Kliass

Uma das inúmeras lições que a atual crise econômica tem a nos oferecer é a possibilidade de compreender um pouco melhor os mecanismos de funcionamento da economia capitalista em sua fase de tão ampla e profunda internacionalização financeira. Depois de baixada a poeira e dado o devido distanciamento temporal, imagino a quantidade de teses que serão desenvolvidas para tentar entender e explicar aquilo que estamos vivendo a quente pelos quatro cantos do planeta.

As alternativas de enfoque são muitas. A relação conflituosa entre os interesses do capital produtivo e os do capital financeiro stricto sensu. A autonomia – na verdade, uma quase independência – do circuito monetário em relação ao chamado lado “real” da economia. A contradição entre o discurso liberal ortodoxo patrocinado pelos dirigentes dos países mais ricos até anteontem e a prática atual de medidas protecionistas de seus próprios interesses nacionais. A postura inequívoca e amplamente expandida de defesa das vontades das grandes instituições financeiras em primeiro lugar, sempre às custas de cortes nos gastos orçamentários na área social voltados à maioria da população de seus países. A dita solidez das estruturas do mercado financeiro, agora tão confiável quanto a de um castelo de cartas. A perda completa de credibilidade das instituições financeiras, a exemplo das chamadas agência de rating, que passam a escancarar a sua relação incestuosa com setores econômicos. O fim do mito da chamada “independência” dos Bancos Centrais, cujas políticas monetárias estariam sendo implementadas de forma neutra e isenta, uma vez que baseadas em critérios técnicos e científicos (sic...) do conhecimento econômico acumulado. A falência das correntes que se apegavam às teorias chamadas da “racionalidade dos agentes” para buscar assegurar que não haveria o que temer com o funcionamento das livres forças de mercado, pois o equilíbrio entre oferta e demanda sempre apontaria a solução mais racional possível. E por aí vai. A lista é quase infindável.

Mas um elemento, em especial, chama a atenção em meio a essa enormidade de aspectos. E trata-se de algo importante, pois diz respeito à tentativa de legitimação de toda e qualquer ação dos poderes públicos na busca da saída para a crise econômica. Com isso procura-se fugir da conseqüência mais próxima em caso de fracasso: colocar em risco a sua própria legitimidade política. Ainda que nos momentos de maior tensão seja perceptível uma contradição entre os desejos dos representantes do capital financeiro e as possibilidades oferecidas pelos agentes do governo, no final quase tudo acaba se resolvendo no conluio entre o público e o privado. Nos bastidores do poder, a ação do Estado é ditada, via de regra, pelos interesses do capital.

Mas nas conjunturas de crise profunda, como a atual, passa a operar também a chamada opinião pública. Os temas de economia e de finanças, antes restrito às páginas dos jornais especializados, ganham as manchetes de capa e se convertem em preocupação de amplos setores da sociedade. A população se assusta, exige mais explicações, quer entender melhor! Porém, não se consegue tornar tão claros os mecanismos de funcionamento da dinâmica econômica em tão pouco tempo e em tão poucas linhas. E nesse momento ganham importância os interlocutores chamados a explicar: os economistas dos grandes bancos, os analistas das instituições financeiras, os responsáveis pelas empresas de consultoria, enfim os chamados “especialistas”. Cabe a eles a tarefa de convencimento do grande público de que a crise é causada por este ou aquele fator, ou então de que as medidas anunciadas há pouco por um determinado Ministro da Economia são ou não adequadas para resolver os problemas a que se propõem.

E aqui entra em campo um elemento essencial na dinâmica do discurso. Uma entidade que passa a ser reverenciada em ampla escala, coisa que era antes reduzida a uma platéia restrita. Trata-se do famoso “mercado” – muito prazer!. Um dos grandes enigmas da história da humanidade, tanto estudado e ainda tão pouco desvendado em seus aspectos essenciais, passa a ser tratado como um ser humanizado, um quase indivíduo. Isso porque para justificar a necessidade das decisões duras e difíceis a serem tomadas - sempre às custas de muitos e para favorecer uns bem poucos – recorre-se às opiniões de “alguém” que conheça, que assegure que não há realmente outra solução. Tem-se a impressão de que o mercado vira gente, um dos nossos!

As matérias dos grandes jornais, as páginas das revistas de maior circulação, os sítios da internet, os programas na televisão e no rádio, enfim, por todos os meios de comunicação passamos a conhecer aquilo que nos é vendido como sendo a opinião dessa entidade, dessa quase pessoa. As frases e os estilos podem variar, mas no fundo, lá no fundo, tudo é sempre mais do mesmo. Recorrer a um mecanismo que beira a abstração para justificar as medidas mais do que concretas. Fazer um chamamento a uma entidade externa, com ares de messianismo e divindade, para convencer de que as proposições - expostas numa linguagem e numa lógica incompreensíveis para a maioria - são realmente necessárias. Sim, sim, é preciso também ter fé! Pois em caso contrário, aquilo que nos espera é ainda pior do que o péssimo do vivido agora. Será o caos!

É o que tem acontecido na atual crise da dívida norte-americana ou na seqüência dos diversos capítulos da crise dos países da União Européia. O mercado “pensa”, o mercado “avalia”, o mercado “propõe”, o mercado “desconfia”, o mercado “sugere”, o mercado “reage”. E aí sim, de vez em quando, o tom de voz sobe e o mercado “exige”!! E depois o mercado “ameaça”. O mercado “cai”, o mercado “sobe”, o mercado “se recompõe”. O mercado “se sente inseguro”, o mercado “fica satisfeito”, o mercado “comemora”. O mercado “não aceita” tal medida, o mercado “se rebela” contra tal decisão.

E assim, à força de repetir à exaustão essa fórmula aparentemente tão simples, o que se busca, na verdade, é fazer um movimento de aproximação. Tornar a convivência com um ser que conhece de forma tão profunda a dinâmica da economia um ato quase amical e familiar para cada um de nós. Mas o “mercado” - sujeito de tantos verbos de ação e de percepção - não tem nome! Ele não pode ser achado, pois o mercado não tem endereço. Ele não pode ser entrevistado, pois o mercado nunca comparece fisicamente nos compromissos. Ele tampouco pode ser fotografado, pois o mercado não tem rosto. O que há, de fato, são uns poucos indivíduos que fazem a transmissão de suas idéias, de seus pensamentos, de seus sentimentos. São verdadeiros profetas, que têm o poder de fazer a interlocução entre o “mercado” e o povo. Pois, não obstante a tentativa de torná-la íntima de todos nós, essa entidade não se revela para qualquer um.

Ele escolhe uns poucos iluminados para representá-lo aqui entre nós. Como se, estes sim, tivessem a procuração sagrada para falar em seu nome e representar aqui seus interesses. E aos poucos o que era antes um sujeito, o indivíduo “mercado” também vai ganhando ares de divindade. Tudo se passa como ele se manifestasse exclusivamente por meio de seus oráculos, os únicos capazes de captar e interpretar o desejo do deus mercado. Pois ele pensa, fala, acha, opina, mas não se apresenta para um aperto de mão, ou mesmo para uma prosinha que seja, para confirmar o que andam falando e fazendo em seu nome aqui pelos nossos lados.

Mas, apesar de toda evidente fragilidade da cena construída, não há como contestá-la. O mercado é legitimado por quem tem poder de legitimar. O discurso dos que não acreditam e dos que desconfiam não chega à maioria. Sim, pois aqui tampouco pode haver espaço para a dúvida. Nenhuma chance para o ato irresponsável que seria dar o espaço para o contraditório. A única certeza é de que o mercado sempre tem razão. E ponto final. Assim, todos passam horas na angústia e na agonia para saber como o mercado “reagirá” na abertura das bolsas de valores na manhã seguinte ou para tentar antecipar como o mercado “avaliará” hipotéticas medidas anunciadas para as transações de câmbio na noite da véspera.

O resultado de toda essa construção simbólica pode ser sintetizado na tentativa do convencimento político e ideológico dos caminhos escolhidos para a solução da crise. O mercado “alertou”, o mercado “ponderou”, o mercado “pressionou”, o mercado “exigiu”. E, finalmente, o mercado “conseguiu”. Por todo e qualquer lado que se procure, tentam nos convencer que não havia realmente outra forma possível de evitar o pior dos mundos. Como somos todos mesmo ignorantes em matéria de funcionamento dessa coisa tão complexa como a economia, somos chamados a delegar também as formas de solução para a crise. E, como sempre acontece em nossa tradição, estamos às suas ordens, Dotô Mercado...



Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.



(Carta Maior)

Petróleo

Barulho’ de Cabral em torno dos Royalties é ‘biombo’ pra proteger cartel do petróleo
Escrito por Valéria Nader, da Redação
Sexta, 25 de Novembro de 2011


A crise econômica mundial vem demonstrando de modo enfático os métodos a cada dia mais avassaladores, e menos dissimulados, de apropriação de riquezas por parte dos mais poderosos, sejam eles pessoas, grupos ou países. E os casos exemplares não estão tão longe quanto imaginamos, nas ‘longínquas’ guerras promovidas pelos EUA no Iraque, Irã e Afeganistão... Estão bem debaixo do nosso nariz.




A recente e acalorada discussão sobre a distribuição de royalties no país é um caso notório. Ao olhar mais distraído, pode parecer uma mera discussão burocrática patrocinada pelo governador do Rio, Sérgio Cabral, e seguida por outros estados, em sua briga pra ver quem fica com a maior parte do quinhão do petróleo. Mas, por trás dessa que tem ares de ser mais uma prosaica querela nacional, estão poderosas aves de rapina atrás de um recurso que se torna a cada dia mais raro mundialmente.




“O barulho do Sergio Cabral era para dificultar a aprovação do contrato de partilha. Como ele já foi votado e aprovado, Cabral agora quer evitar a supressão da emenda entreguista. Assim, o barulho serve de biombo para esconder o segredo mais bem guardado desta República: a emenda que devolve, em petróleo, às empresas, os royalties pagos em dinheiro”. É o que afirma com sua costumeira contundência e sagacidade o presidente da AEPET (Associação de Engenheiros da Petrobrás), Fernando Siqueira.




E não fica por aí: Cabral estaria também interessado em esconder os benefícios da Lei Kandir, uma lei antiqüíssima, mas que atua ainda hoje, e com vigor, em favor do cartel internacional e em detrimento do povo brasileiro, segundo avalia Siqueira.




Leia a seguir entrevista exclusiva.



Correio da Cidadania: Como o senhor tem analisado as polêmicas em torno da distribuição dos royalties do petróleo, opondo estados produtores e não produtores em exaustivas discussões parlamentares?



Fernando Siqueira: A lei 9478/97, elaborada pelo Fernando Henrique era péssima para o país, pois os produtores ficavam com 100% do petróleo produzido e só pagavam, em dinheiro, os royalties além de uma participação especial quando a produção fosse maior do que 94.000 barris por dia, por campo. Como só a Petrobrás tem uma produção maior do que este valor, só ela paga essa participação, mas apenas uma média de 11%. No mundo, os países produtores ficam com mais de 70% do petróleo produzido. Assim, quando o Pré-Sal foi descoberto, o presidente Lula enviou o projeto que muda o contrato de concessão (a propriedade do petróleo é do produtor) para partilha, em que a propriedade volta para a União.



A Petrobrás é a operadora de todos os campos, ou seja, propôs avanços consideráveis em favor da União. O cartel do petróleo não gostou. E foi pra cima dos parlamentares, apresentando 15 emendas. Uma delas colou: é aquela em que o produtor paga o royalty em reais, mas o recebe de volta em petróleo. Esse cartel tem um time de lobistas, inclusive citados nos telegramas do Wikileaks: O Instituto Brasileiro do Petróleo, a ONIP e a FIESP. Tem ainda o governador Sergio Cabral, seus secretários, o senador Dornelles, a Agência Nacional do Petróleo e Paulo Hartung (ES). Conta ainda com a grande mídia nacional. Cabral e Hartung provocaram a discussão dos royalties para dificultar a mudança, pois Lula não os incluíra na proposta. “Primeiro vamos retomar a propriedade do Petróleo, para depois distribuí-lo”, dizia Lula.



Denunciamos essa emenda/contrabando no Senado e a repercussão negativa foi grande. O relator Romero Jucá retirou-a, mas, sob a pressão do lobby, sub-repticiamente, a colocou de volta em quatro artigos: 2º, 10º, 15º e 29. Onde o Projeto de Lei falava em ressarcimento dos custos de produção (é normal, pois o produtor gasta dólares e recebe esses custos em petróleo), Jucá acrescentou: “e do volume da produção correspondente aos royalties pagos” (safadeza, pois o consórcio não paga nada). Assim, ele dificultou a supressão, pois era preciso um partido para cada artigo a suprimir. A nosso pedido, o senador Pedro Simon apresentou uma emenda (art. 64§ 3º) que impedia essa apropriação constante dos quatro artigos. Mas como ele também incluiu a distribuição equânime dos royalties, o lobby aproveitou e fez um grande barulho na mídia.



Resultado, Lula, assustado, vetou o antídoto e deixou o veneno. Como era certa a derrubada do veto e a base governista a considerava um desgaste, buscou-se uma saída. Assim, alguns parlamentares elaboraram um Projeto de Lei do Senado com as mesmas premissas de Simon - só que preservando os ganhos dos estados produtores em valor absoluto -, para evitar a derrubada do veto. Mas a grita/biombo continua para esconder o ressarcimento dos royalties.



Correio da Cidadania: O que pensa em particular do ‘barulho’ que faz o governador do Rio de Janeiro, Sergio Cabral, em tais discussões, inclusive convocando manifestações populares para defender uma renda que pertenceria por direito aos cariocas?



Fernando Siqueira: O barulho do Sergio Cabral, como dito acima, era para dificultar a aprovação do contrato de partilha. Como ele já foi votado e aprovado, Cabral agora quer evitar a supressão da emenda entreguista. Assim, o barulho serve de biombo para esconder o segredo mais bem guardado desta República: a emenda que devolve, em petróleo, os royalties pagos em dinheiro. Se Cabral estivesse interessado em defender o Rio de Janeiro, a atitude tinha que ser de negociação, não de confronto com os estados não produtores. Todos eles querem preservar o Rio. Para ilustrar essas informações, vejamos alguns dados:



I) Na Constituição de 88, o José Serra conseguiu mudar a incidência do ICMS do produtor para o consumidor. O Rio perdeu muito. E, para compensar, ganhou um percentual alto dos royalties. Só que, na época que os royalties começaram a ser cobrados, o montante anual era de R$ 1 bilhão. Hoje são cerca de 10 bilhões. Em 2020 pode ser o triplo. Não dá para o Rio virar um Abu Dhabi e os demais estados continuarem na miséria;



II) O Rio Perde por ano cerca de R$ 7 bilhões com a isenção de ICMS devido à Lei Kandir aplicada no petróleo, incorretamente, pois o bem mais cobiçado do planeta não precisa de incentivo para ser exportado. Em 2020 essa perda subirá para R$ 34 bilhões. É o Brasil subsidiando o cartel, os EUA e os demais países desenvolvidos. Não se tem buscado corrigir essa excrescência;



III) O Rio, hoje, perde cerca de R$ 8 bilhões por ano com a cobrança errada do ICMS. Pode ser um argumento forte para negociação, mas não está sendo usado. Ou seja, o Cabral e sua turma querem é esconder o benefício da devolução de royalties e da Lei Kandir em favor do cartel internacional e em detrimento do povo brasileiro.



Correio da Cidadania: A verdade é que o senhor vem denunciando há tempos estas emendas inseridas no projeto de lei sobre os Royalties elaborado pelo governo Lula, as quais, em um revés para tal projeto original, determinam, como dito, a devolução, em petróleo, dos royalties pagos pelas empresas exploradoras.



Fernando Siqueira: Esse ressarcimento é uma excrescência entreguista. É como se a Ford pagasse o IPI e o recebesse de volta em automóveis. O senador Jucá retirou-a em função da repercussão negativa após nossa denúncia através do senador Simon. Só que, sob pressão do lobby, a colocou de volta nos quatro artigos mencionados, para garantir a apropriação indébita do petróleo correspondente aos royalties pelo Consórcio Produtor, em detrimento do país. Seria um volume maior do que as atuais reservas brasileiras, descobertas pela Petrobrás. No mês de junho deste ano, a revista Época fez uma matéria onde diz que Jucá gastou R$ 15 milhões na sua campanha para a reeleição e declarou só R$ 1,5 milhão. Diz ainda que os US$ 13,5 milhões restantes foram pagos em dólar vivo. Mera coincidência? ”É, pode ser, com todo o respeito”, diria o Ancelmo Gois.



Correio da Cidadania: Estão sendo agora tentados vários arranjos para a distribuição dos royalties, após este revés no projeto original de Lula. Diante das atuais circunstâncias, qual seria o arranjo ideal, a seu ver?



Fernando Siqueira: O arranjo ideal tem que ser o fruto de uma boa negociação. O Rio tem trunfos bons como os citados acima e pode conseguir se sair bem, sem perdas, mas mantendo um ganho coerente. Como a produção de petróleo vai crescer muito e o preço do barril também, não dá para o Rio receber o percentual atual. O ideal é manter o valor absoluto do ganho atual com a devida correção monetária para que o Rio tenha supridos os seus compromissos a serem pagos com a renda dos royalties. O Rio ganha, hoje, cerca de R$ 7 bilhões entre royalties e participação especial, por ano. Pode manter esse ganho com juros e correção monetária.



Lembremos que o petróleo do Pré-Sal está a cerca de 300 km da costa. Pelo artigo 20 da Constituição ele é da União. Mas os estados, DF e municípios têm direito a participar dos royalties “de acordo com a Lei”, que pode ser negociada. Quem provê as facilidades de produção são as empresas produtoras e, se houver acidente, elas se encarregam de eliminar os seus efeitos. Há benefícios para os estados confrontantes como geração de empregos, desenvolvimento tecnológico e a instalação de empresas fornecedoras de bens e de prestadoras de serviços. Assim, os estados confrontantes podem se contentar em manter os ganhos atuais, enquanto os demais saem do zero até chegar a um montante próximo ao desses estados confrontantes, em médio e longo prazos.



Correio da Cidadania: Em entrevista ao Correio, no final de 2009, o senhor ressaltou que continuamos sem garantias de que “empresas asiáticas, européias, norte-americanas e o cartel internacional, por precisarem de petróleo para sobreviver, venham para cá ávidas para produzir o mais rápido possível para resolverem os problemas dos seus países”. Realmente, há um foco demasiado nessas discussões sobre os Royalties no atual momento, ao lado de um quase abandono das discussões essenciais sobre, por exemplo, esta questão dos leilões, tanto os que foram feitos antes do Pré-Sal como os que devem certamente prosseguir pela frente.




Fernando Siqueira: Como eu disse acima, os royalties são o biombo para esconder a discussão essencial. Quando o Pré-Sal foi descoberto, o presidente Bush reativou a quarta frota naval, argumentando que era para proteger o Atlântico Sul. Ora, no Atlântico Sul, só estão Brasil e Argentina e esta já entregou o seu petróleo para o cartel. Então, a quarta frota é para “proteger” o Pré-Sal. As invasões do Iraque, da Líbia, do Afeganistão e a atual pressão sobre o Irã nos dão uma pista, uma mensagem muito forte de que precisamos nos preparar para defender o Pré-Sal, que é uma reserva equivalente à do Iraque, só que na América Latina. O cartel internacional e os países desenvolvidos precisam de petróleo para sobreviver. Estamos entrando no pico de produção mundial e a oferta vai cair fortemente. Os países desenvolvidos da Europa, da Ásia e os EUA estão numa insegurança energética brutal. Querem petróleo a qualquer custo e o mais rapidamente possível. Como impedir a produção veloz e predatória? Portanto, as premissas que nortearam a sua pergunta continuam válidas.




Correio da Cidadania: Setores progressistas defendem a volta do monopólio estatal do petróleo, no lugar do modelo de exploração em que serão combinados concessão e partilha . Acredita que esta discussão ainda esteja ou possa voltar à pauta da nossa nação? Qual seria a importância da retomada deste debate para o nosso país?




Fernando Siqueira: Esta discussão está mais atual do que nunca. A Petrobrás, durante 40 anos, acreditou e pesquisou o Pré-Sal. Quando a tecnologia permitiu, ela perfurou e achou, correndo todos os riscos. Lembro que durante 13 anos a área do Pré-Sal esteve entregue às empresas estrangeiras detentoras dos contratos de risco. E elas não arriscaram nada. A Petrobrás é a empresa que mais conhece a tecnologia de águas profundas, visto que foi a primeira a acreditar na existência de reservas nessa profundidade. Portanto, fazer leilão não tem qualquer justificativa ou vantagem para o país.



Imaginemos que essa emenda da devolução dos royalties passe. Pela simulação que fizemos, com o petróleo a US$ 100 por barril e os custos de produção previstos em US$ 45 por barril, teríamos o seguinte absurdo: A União ficaria com 28% do petróleo produzido, a Petrobrás, como operadora, ficaria com 21,6% e o líder do Consórcio Produtor ficaria com 50,4%, sem fazer nada (a Petrobrás é quem opera, produz e corre todos os riscos) e sem correr qualquer risco. Por outro lado, se o royalty previsto de 15% for pago em petróleo, sem essa devolução, o Brasil ficará com 43%, livres, a Petrobras, com 17,1%, e o líder do consórcio, com 39,9%. Sendo que ele despendeu dólares com os custos de produção.



Dá para aceitar, a pior situação? Leilão é sinônimo de desnacionalização do petróleo, inclusive com elevada velocidade de extração, em detrimento dos interesses nacionais, como está ocorrendo em todos os países que privatizaram suas reservas. E o caso Chevron reforça bem essa tese.



Correio da Cidadania: O que tem ocorrido de relevante no setor, que não costuma ser noticiado na mídia, especialmente no que se refere aos leilões favoráveis às empresas, nacionais ou multinacionais, e lesivos à sociedade? Quem têm sido os maiores beneficiários desse atual estado de coisas?



Fernando Siqueira: Certamente o cartel internacional do Petróleo é sempre o beneficiado. Foi ele que induziu o presidente FHC a fazer a absurda lei 9478/97 que dá 100% do petróleo a quem produz e o direito de pagar somente os royalties e a participação especial, em dinheiro, numa média de 21% no total. No mundo, os países exportadores ficam com uma média superior a 70%, em petróleo, do volume produzido, que é a riqueza real que move as grandes economias e a produção de novas riquezas. O valor pago em dólar é irrelevante para quem imprime dólar sem qualquer lastro.



Vou relatar um episódio recente que ilustra bem a ação dos lobbies, e que só sai no Wikileaks: Uma semana antes de o senador Vital do Rego apresentar o PLS 448 (alternativa à derrubada do veto de Lula), no Senado, eu estava em reunião na AEPET quando recebi uma ligação de um dos parlamentares da comissão que elaborou o projeto. Ele me perguntou a situação dos artigos e como teria que fazer para suprimir esses contrabandos. Quando eu comecei a responder, ele passou o telefone para o assessor legislativo que iria ajudá-los a elaborar o projeto. Ele foi dizendo: “engenheiro, quem pediu essa emenda de devolução dos royalties foi a Petrobrás”. Respondi, irritado: “Isto é conversa dos lobistas do IBP. Eu conversei com os diretores da Petrobrás e eles jamais discutiram esse assunto”. Ele insistiu: “não, foi o representante da empresa aqui em Brasília”. “Outra mentira. O representante em Brasília nunca faria isto sem autorização da Petrobrás. Conheço-o bem”, eu retruquei. Então ele passou o fone para o deputado, a quem eu adverti sobre a conversa.



Na semana seguinte, preocupado, fui para Brasília. No gabinete do senador Pedro Simon, vimos a leitura da proposta pelo senador Vital do Rego e consegui uma cópia do projeto. Passei a noite lendo o calhamaço do projeto. E descobri duas cascas de banana: o assessor incluíra um artigo que quebrava a espinha dorsal da Lei de partilha. O artigo dizia: “A União poderá fazer ‘joint ventures’ com empresas mediante licitação”. Ora, na nova Lei o ponto alto era a Petrobrás ser a operadora de todos os campos e a nova proposta derrubava isto. Outra safadeza era mudar a configuração do IBGE fazendo com que o Rio deixasse de ser o estado confrontante no Pré-Sal. A maioria desses assessores tem casa no Lago Sul, não por coincidência.




Correio da Cidadania: Como enxerga, finalmente, o último vazamento de petróleo na Bacia de Campos, envolvendo a empresa Chevron, à luz de toda esta discussão?



Fernando Siqueira: Como uma rotina da atuação dessas empresas. Elas produzem devastação no mundo todo. A Shell fez um estrago na Nigéria. A Chevron está num processo no Equador com multa da ordem de US$ 20 bilhões. É comum ocorrerem estas coisas. Agora, em Frade, ocorreu uma série de erros da Chevron.



Primeiro, ela alugou uma plataforma improvisada. Segundo o Wall Street Journal, essa plataforma, obsoleta, funcionava como hotel flutuante no Mar do Norte. Foi adaptada para esse trabalho e cobra uma diária de US$ 315mil, contra cerca de US$ 700 mil das plataformas tecnicamente preparadas para esse trabalho. Segundo, há algum tempo tendo alguns poços produtores, ela tinha condições de conhecer a pressão do reservatório. Mesmo assim seus engenheiros erraram no cálculo da densidade da lama de perfuração, onde uma das suas funções é equilibrar a pressão do reservatório. Com uma lama mais leve, quando atingiram o reservatório, um “Kick” de pressão ameaçou a perda de controle do poço. Afobados, os técnicos injetaram lama mais pesada, mas com uma pressão acima da tolerada pelo reservatório. Assim fraturaram o invólucro selador do reservatório.



Depois foi uma sucessão de desinformações, mentiras, falácias, uma saraivada de inverdades, que a grande mídia brasileira recebeu passivamente, sem questionamentos e verificações. Imagina se uma ocorrência desse tipo fosse com a PETROBRAS! Qual seria o tratamento?



Portanto, essa ocorrência em frade reforça a nossa tese do FIM dos leilões. O país nada ganha com eles.


Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania; colaborou Gabriel Brito.

Correio da Cidadania

Raimundo R. Pereira

‘Imprensa de idéias tem que buscar sua vanguarda entre os trabalhadores, os estudantes, o povo’
Escrito por Valéria Nader e Gabriel Brito, da Redação
Quarta, 23 de Novembro de 2011



Conversar com o jornalista Raimundo Rodrigues Pereira é como reviver os tempos de um outro jornalismo, autêntico e, ao mesmo tempo, efervescente, primordialmente movido pelo espírito investigativo e corajoso, e cujo objetivo essencial era buscar uma informação relevante para o público. Quesitos que estão a cada dia mais distantes das redações, em um mundo em que a função social do jornalismo parece já ocupar um lugar remoto.




Nesta entrevista exclusiva para o Correio da Cidadania, também reproduzida em vídeo em nossa página (em O jornal Movimento e a Mídia Alternativa), Raimundo discorre sobre a experiência do Jornal Movimento, do qual foi editor à época da ditadura (experiência agora retratada em livro organizado pelo jornalista Carlos Azevedo); sobre a mídia alternativa, de ontem e de hoje; a relação dessa mídia com o poder; a regulamentação social da mídia pelo Estado; e as perspectivas que se abrem com a crise do neoliberalismo e com o atual governo.



O jornalista acredita que o governo Lula criou oportunidades ao movimento popular, mas declara que não teve grandes ilusões com este governo, e tampouco as cultiva com relação ao governo Dilma. Neste sentido, para ampliar as possibilidades da mídia alternativa e progressista, Raimundo vê como grandes responsáveis as lideranças do movimento popular, os progressistas, os jornalistas. “Uma imprensa que tem uma circulação um pouco maior terá uma publicidade da parte desse governo, coisa que não existia na época da ditadura (...) Além do mais, formas de transmitir o que se pensa, do ponto de vista jornalístico, se multiplicaram com esses recursos novos, a internet, blogs, redes sociais...”, ressalta.




Veja abaixo entrevista completa.





Correio da Cidadania: Primeiramente, como o senhor situaria historicamente a experiência do Jornal Movimento, agora retratada em livro, na trajetória da imprensa brasileira, especialmente a imprensa conhecida como alternativa?



Raimundo Rodrigues Pereira: O jornal Movimento nasceu no contexto da distensão do regime militar, que acumulava problemas, como mostrou a eleição de 1974, um grande descontentamento, levando o governo Geisel a fazer a chamada distensão lenta, gradual e segura. Isso teve repercussão na oposição, que começou a se dividir. Nesse contexto, surge o Movimento. Éramos a equipe que fazia o Opinião, onde tivemos um desentendimento que culminou na saída de todo mundo. E também havia um grupo no MDB, autêntico, que embarcou de corpo e alma no projeto. Ele foi fundamentalmente de jornalistas e políticos. Dentro do movimento de massa também havia divisão. Tinha gente que achava que a abertura devia ser aproveitada para avançar, enquanto outros entendiam tal atitude como provocação. Nosso grupo entendeu que dava pra avançar um pouco e fizemos um jornal mais ligado às lutas sociais. O Movimento foi isso.



Correio da Cidadania: Que quadro comparativo seria possível estabelecer entre a imprensa alternativa à época do jornal Movimento e a atual? A mídia mais engajada social e politicamente, supostamente mais democrática, progressista e à esquerda do espectro político, caminhou de modo evolutivo ao longo dos anos?



Raimundo Rodrigues Pereira: Ela teve grandes mudanças. Inclusive, no lançamento do livro sobre o jornal Movimento, em uma espécie de apresentação que fazemos do livro - a diretoria do nosso projeto -, salientamos ser necessário reexaminar o quadro hoje para criar uma publicação com mais alcance e que representasse as necessidades do movimento popular.



Ao lado de inúmeras correntes que essa imprensa representa, devia se tentar o esforço de ter uma imprensa profissional do campo popular, com mais recursos, outra tarefa mais específica, resultante da união dos programas desses diversos órgãos.



O Movimento era um semanário que juntava um monte de correntes que ainda existem, como o MR-8, que hoje vai constituindo o Partido Pátria Livre. Vários movimentos e correntes do PT também eram do jornal, como, por exemplo, a Democracia Socialista, que editou o Em Tempo; tinha gente do Partidão, da Polop, democratas, empresários progressistas que apoiaram o jornal etc. Isso nos deu uma força muito grande.



Pra se ter uma idéia, o orçamento da nossa editora (da revista Retrato do Brasil), a Manifesto, é de cerca de 150 mil reais por mês. O Movimento tinha umas três vezes mais recursos, numa época que não havia praticamente nenhuma publicidade. Vivia do movimento de massas, vendas expressivas em bancas, assinaturas e também a venda mão a mão, uma vez que todos que se julgavam representados pelo jornal o vendiam.



Isso, a meu ver, reflete de certa forma o estágio de desenvolvimento do movimento popular. Muita gente, ao olhar o governo Lula e suas realizações sociais, não vê que questões cruciais ao avanço do país não são tocadas. É um governo que tem seus compromissos. Mas um ponto central de uma publicação ampla de tal tipo é a questão nacional. É preciso ver a questão nacional do ponto de vista dos trabalhadores.



Por exemplo: a última capa da Retrato do Brasil é sobre o Pré-Sal e o petróleo. O petróleo é extraído em águas profundas, precisa enfiar uma sonda a seis quilômetros em alto mar pra tirar óleo de lá. Uma sonda dessas é alugada a meio milhão de dólares por dia. Nós temos umas duas ou mais dezenas de sondas. E vamos precisar de outras. Se fizermos aqui só o casco, e toda a tecnologia mais alta vier de fora – de equilibrar a sonda em alto mar, analisar rochas por métodos avançados –, ficaremos com os empregos mais baratos e teremos enormes remessas de lucros por parte das multinacionais que se instalam aqui com tal finalidade. No final, o Brasil exportará petróleo e fabricará bens primários, de baixo valor tecnológico. Um tipo de desenvolvimento que reproduz, em outro nível, a dominação colonial, a dominação imperialista.



Um dado espantoso do governo FHC é que as remessas ao exterior não passaram de 5 bilhões de dólares anuais. A estimativa do BC para este ano é de 38 bilhões de dólares, só de lucros e dividendos. Portanto, a publicação precisaria de recursos para falar disso, não discursivamente, em palanque, mas mostrando os fatos com convencimento de um público amplo de que se trata de uma verdade de grande repercussão. Tal como nós fizemos, investindo três meses na matéria. Mas não temos recursos mais amplos, pra tocar isso e mais uma série de temas da atualidade. Não é como um semanário, muito mais eficiente no sentido de acompanhar conjuntura e movimentos sociais.



Correio da Cidadania: Como enxerga a mídia alternativa no Brasil de hoje, no qual vivemos formalmente uma democracia, pensando nas relações de poder?


Raimundo Rodrigues Pereira: Acho que está desempenhando um papel menor. Claro que tem de se levar em conta que a luta hoje é mais complicada, mais difícil. Não é uma luta por liberdade política, no sentido amplo, que pode juntar um monte de correntes. Como dizíamos, e muita gente não acreditava, o Movimento juntou setores da própria burguesia, do próprio latifúndio, grandes proprietários de terra e empresários que foram contra a ditadura.



Hoje não é assim. Trata-se de juntar as correntes populares para um tipo diferente de desenvolvimento, já com liberdades políticas amplas. E disputando com a imprensa burguesa, forte, que possui recursos muito maiores do que teríamos normalmente. Portanto, seria necessário um esforço intelectual e jornalístico de maior criação para fazer uma publicação que atendesse tal propósito, um semanário que congregasse essas forças todas.



Correio da Cidadania: De acordo com sua fala anterior, pode-se pensar que o governo Lula, com sua magia e simbolismo, acabou por desmobilizar os movimentos sociais e, na mesma medida, acabou por fazer o mesmo com a mídia alternativa, ofuscando um entendimento maior da conjuntura?



Raimundo Rodrigues Pereira: Eu sou de opinião de que o governo Lula criou oportunidades ao movimento popular, e que ele é o menos culpado. Quem tem grandes ilusões com o governo Lula (e Dilma) tem porque quer. Eu não tinha e não tenho. É um governo que desempenha um papel. Defendemos o governo Lula na questão do mensalão, dos aloprados, mostrando que existia um esforço pra desmoralizá-lo com uma história fantasiosa, de que o PT é o partido mais corrupto da história do país, aquela coisa que a revista Veja transformou num bordão e num jornalismo da pior espécie.



Correio da Cidadania: Mas não falta compreensão dos próprios movimentos populares da importância da comunicação na luta de classes, voltada a seus interesses, com esse mencionado poder de disseminação de idéias, pra competir, de fato, com o espaço ocupado por Vejas e afins? Não falta essa preocupação maior na pauta dos movimentos e populares?



Raimundo Rodrigues Pereira: Há questões que são da nossa responsabilidade, da responsabilidade das lideranças do movimento popular, os progressistas, os jornalistas, que devem aproveitar as condições dadas. Uma imprensa que tem uma circulação um pouco maior terá uma publicidade da parte desse governo, coisa que não existia na época da ditadura. Se somar à publicidade uma publicação que desperta um interesse maior, por contemplar de forma mais ampla o interesse do público, pode-se ter mais sucesso.



Assim, a questão é o modelo jornalístico, o que fazer para buscar esse público mais amplo, o que a meu ver subentende uma compreensão política da situação, a necessidade de criar mais massa em torno do movimento popular, o que não exclui a imprensa partidária e seus avanços, a imprensa temática, que tem suas preocupações específicas e também precisa continuar a existir.



Além do mais, formas de transmitir o que se pensa, do ponto de vista jornalístico, se multiplicaram com esses recursos novos, a internet, blogs, redes sociais...



Correio da Cidadania: O polêmico tema sobre a regulamentação da mídia ganhou força nos anos Lula. O que pensa da idéia de regulação social através do Estado, defendida por expressivos segmentos sociais, e as reações de repúdio da mídia tradicional?


Raimundo Rodrigues Pereira: Bom, existem questões que precisam ser tratadas pelo ponto de vista da lei. Com a revogação da antiga lei de imprensa, não existe mais regulamentação para uma série de questões. O direito de resposta: ele está assegurado a todos na Constituição. Não é brincadeira, mas acho que deveria existir uma lei como aquela que te permite reclamar da qualidade dos produtos. Te vendem um jornal mal acabado, mal revisado, com informações erradas... A qualidade de nossa imprensa também piorou neste aspecto, pois várias coisas foram feitas no sentido de reduzir o tempo de preparação da notícia, incentivar a busca pela última novidade etc. Esse é um aspecto.



O outro aspecto implica em tentar combater o controle claríssimo do grande capital sobre a grande mídia, regulando como eles vão usar o direito deles de se expressar livremente. Querer regular o que a Folha e o Estadão devem dizer é um esforço a meu ver inútil.



Se o governo quer se contrapor a isso, porque tem legitimidade política para tal, faça como o Getúlio Vargas. Getúlio fez o Última Hora, um dos melhores jornais que se inventou no Brasil. O Getúlio pegou um empresário de talento, Samuel Wainer, financiou, os bancos abriram crédito, e se fez um grande jornal. O Última Hora era um excelente veículo, em todas as áreas, política, cultural, um jornal animado, com colunistas brilhantes. Foi um enorme sucesso, com o surgimento de vários similares. E foi destruído pela ditadura. Por quê?



Porque tinha uma bandeira diferente. Não eram as elites tradicionais tentando jogar Vargas para trás do ponto para onde já tinha avançado. Em seu segundo mandato, era uma pessoa progressista, que estava vendo o problema da espoliação do país e seu desenvolvimento, com vínculos com a independência nacional.



Portanto, creio que regular essa mídia é malhar ferro frio. Não se vai conseguir fazer esses grandes jornais se comportarem de acordo com uma cartilha, com uma regulamentação pra eles. Nunca me sensibilizou muito essa idéia. Claro que deve existir lei pra concessão de rádios, TVs etc. Mas veja que os principais órgãos da imprensa, de modo geral, são os jornais escritos, porque é onde se reúne o maior aparato de intelectuais. Um jornal escrito, além de dezenas e dezenas de jornalistas, tem dezenas e dezenas de intelectuais, colaboradores, recursos. Tudo a serviço da investigação dos assuntos, apontando novidades, que viram assuntos do rádio, da televisão, que não possuem tal aparato.



Assim, é preciso ver a imprensa como um núcleo de intelectuais. Porque o jornalista é um tipo de intelectual também, de um certo nível, agregado a intelectuais que pensam as questões mais profundamente, menos ligados ao dia a dia, que vêm de uma visão da realidade. Não é uma coisa simples, mas é esse conjunto que deve ser criado, um conjunto amplo, principalmente quando nos vemos em época que não configura situação de isolamento do campo progressista, em nível global.



Vejamos que a União Soviética surgiu e se desenvolveu sob um cerco enorme, não tinha o acesso ao mercado que tem a China atualmente. Hoje, leio o Economist apostando no Yuan como moeda internacional dentro de dez anos. O Yuan no lugar do dólar em 10 anos! E eles entraram mundo afora com um regime que se diz “ditadura do proletariado”. Claro que se diz isso em relação a Cuba e, sempre que podem, em relação à China, mas não é por aí que se determina nada, a China está aí... Podemos comprar um carro de uma montadora chinesa estatal, para a qual o Faustão faz propaganda. A Jac Motors é estatal. E aqui no Brasil, quando se fala de criar uma estatal, dizem “que absurdo!”. O mundo está muito mudado e é preciso pensar nessa etapa que ainda enxergo como uma tentativa de construção do socialismo, que no Brasil possui inúmeras tarefas no sentido de mostrar o mundo tal como ele é hoje.



Correio da Cidadania: A atual crise do capitalismo, com o escancaramento dos desastres sociais e ambientais a partir do acirramento do neoliberalismo, poderá trazer parte do público cativo dos veículos mais tradicionais para novas fontes de informação, ainda mais com a internet cada vez mais ao alcance de todos?



Raimundo Rodrigues Pereira: Eu talvez seja excessivamente otimista, porque, em 1986, quando estes meios estavam mais ou menos delineados – o uso da computação para aprimorar o processamento da informação –, fizemos um jornal diário, que durou dois meses e nos deixou uma dívida monumental, porque achávamos que tinha chegado a hora de avançar, do ponto de vista da técnica. A world wide web ainda não existia, mas fizemos um projeto no FINEP, começando até a transmitir por rádios nossas comunicações...



Sempre torcemos pra realidade correr de acordo com nossos desejos. Fizemos esse jornal diário achando ser um momento de avanço com o fim da ditadura, com a idéia de usar tais recursos. No lançamento do projeto estavam Helio Bicudo, Ulysses Guimarães, num prédio do centro de São Paulo



Depois, mais recentemente, em 2000, achamos que a conjuntura tinha virado amplamente, quando da crise da Enron, a quebra das Pontocom, e fizemos uma edição da revista que tínhamos à época – Reportagem – intitulada “O vento virou”.



Mas a luta é difícil. Os americanos deram a volta por cima com o Bush, que fez aquela coisa escabrosa de aproveitar atentados da extrema-direita muçulmana contra as Torres Gêmeas pra promover duas guerras e ganhar a segunda eleição muito mais facilmente que a primeira. Depois, a crise veio em 2008, o Obama deixou a turma toda lá, pôs dinheiro em todos os bancos e a mesma crise voltou.



Já dizíamos em 1997, quando lançamos o projeto da revista Reportagem, que nesses termos o capitalismo não tem vida longa. Mas, às vezes, pensa-se que se trata de três, quatro anos, quando podem ser 15, 20. Os sinais hoje são de que realmente a crise tem esse desdobramento, de que foi se agravando a despeito das tentativas audaciosas de se manter o controle, a hegemonia. Acredito que o quadro futuro continuará se agravando no sentido de criar problemas a esse tipo de hegemonia política existente. Mas, para as idéias novas surgirem e frutificarem, demora tempo. O Iluminismo é anterior à Revolução Francesa, que veio bem depois.



Portanto, talvez não tenhamos achado as idéias novas. As pessoas acham que a novidade é o facebook! Nós temos de achar as nossas novidades, que entusiasmem o povo, que correspondam à solução dos problemas que temos pela frente.



Correio da Cidadania: Finalmente, mediante esta exposição de idéias, que tipo de postura política poderia, ou deveria, ter o poder público em prol de uma mídia com as características salientadas pelo senhor? Como enxerga as perspectivas do governo Dilma nessa trilha?



Raimundo Rodrigues Pereira: Deixa eu responder com um exemplo concreto. Nós, como estamos nessa estrada há muito tempo, ficamos pensando maneiras de obter apoio etc. Fizemos o projeto Retrato do Brasil, em 1984, para viabilizar esse jornal diário, de mesmo nome. Bolamos algo interessante, uma espécie de enciclopédia dos problemas brasileiros. Perguntávamos: “O que a ditadura militar resolveu dos problemas do país? E quais problemas criou?”. Fizemos verbetes, juntamos uma equipe grande. Para se ter idéia, o cartaz de propaganda tinha Lula, FHC, Maria Vitoria Benevides e Raimundo Faoro.



O que imaginamos recentemente? “Vamos reeditar o trabalho e vender para o governo”, porque existem mais de 30 mil exemplares nas escolas públicas e já houve Secretaria da Educação que pediu pra reeditarmos o trabalho antigo. Mas até agora não conseguimos vender para o governo. Bati portas, obtive pareceres ultra-favoráveis, porque a obra é realmente muito boa, e não conseguimos.



Eu estaria puxando os cabelos aqui se tivesse muita ilusão. Não tenho. Não é que não tentamos. Tentamos. Mas o governo não tem essa visão. Há amigos nossos que estão no poder que costumam dizer “essa mídia não desempenha um papel”, como se você fosse classificar as mídias pela quantidade de público que atinge. Teria que, obviamente, haver esse lado: se quer vender idéias e transformação, o governo deveria ajudar esse tipo de imprensa; se quer vender sabão OMO, vai ter que contratar o Faustão mesmo, porque nós não vamos ajudar nessa. Mas, como disse, esta não é a ótica que prevalece.



Continuamos buscando, mas o principal é buscar a unidade das correntes populares, dos jornalistas que trabalham nesses meios, pra ter mais recursos para a prática do jornalismo. Não se consegue, por outro lado, fazer uma publicação de amplo alcance se ela for muito ideológica, reduzida ao campo das idéias, pois os fatos ajudam a educar. A educação política do povo é freqüentemente baseada nos conhecimentos do dia a dia. Por isso a imprensa popular, no sentido burguês, digamos, está sempre em busca do crime mais espantoso, inédito, do herói, do grande atleta. A imprensa de idéias tem que buscar uma vanguarda entre os trabalhadores, os estudantes, o povo.



Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.

Última atualização em Sexta, 09 de Dezembro de 2011

Correio da Cidadania

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Mabelle M. ArrudammmmmmiM

Minha Bellzinha, meu amor!

Petróleo

Barulho’ de Cabral em torno dos Royalties é ‘biombo’ pra proteger cartel do petróleo
Escrito por Valéria Nader, da Redação
Sexta, 25 de Novembro de 2011


A crise econômica mundial vem demonstrando de modo enfático os métodos a cada dia mais avassaladores, e menos dissimulados, de apropriação de riquezas por parte dos mais poderosos, sejam eles pessoas, grupos ou países. E os casos exemplares não estão tão longe quanto imaginamos, nas ‘longínquas’ guerras promovidas pelos EUA no Iraque, Irã e Afeganistão... Estão bem debaixo do nosso nariz.




A recente e acalorada discussão sobre a distribuição de royalties no país é um caso notório. Ao olhar mais distraído, pode parecer uma mera discussão burocrática patrocinada pelo governador do Rio, Sérgio Cabral, e seguida por outros estados, em sua briga pra ver quem fica com a maior parte do quinhão do petróleo. Mas, por trás dessa que tem ares de ser mais uma prosaica querela nacional, estão poderosas aves de rapina atrás de um recurso que se torna a cada dia mais raro mundialmente.




“O barulho do Sergio Cabral era para dificultar a aprovação do contrato de partilha. Como ele já foi votado e aprovado, Cabral agora quer evitar a supressão da emenda entreguista. Assim, o barulho serve de biombo para esconder o segredo mais bem guardado desta República: a emenda que devolve, em petróleo, às empresas, os royalties pagos em dinheiro”. É o que afirma com sua costumeira contundência e sagacidade o presidente da AEPET (Associação de Engenheiros da Petrobrás), Fernando Siqueira.




E não fica por aí: Cabral estaria também interessado em esconder os benefícios da Lei Kandir, uma lei antiqüíssima, mas que atua ainda hoje, e com vigor, em favor do cartel internacional e em detrimento do povo brasileiro, segundo avalia Siqueira.




Leia a seguir entrevista exclusiva.



Correio da Cidadania: Como o senhor tem analisado as polêmicas em torno da distribuição dos royalties do petróleo, opondo estados produtores e não produtores em exaustivas discussões parlamentares?



Fernando Siqueira: A lei 9478/97, elaborada pelo Fernando Henrique era péssima para o país, pois os produtores ficavam com 100% do petróleo produzido e só pagavam, em dinheiro, os royalties além de uma participação especial quando a produção fosse maior do que 94.000 barris por dia, por campo. Como só a Petrobrás tem uma produção maior do que este valor, só ela paga essa participação, mas apenas uma média de 11%. No mundo, os países produtores ficam com mais de 70% do petróleo produzido. Assim, quando o Pré-Sal foi descoberto, o presidente Lula enviou o projeto que muda o contrato de concessão (a propriedade do petróleo é do produtor) para partilha, em que a propriedade volta para a União.



A Petrobrás é a operadora de todos os campos, ou seja, propôs avanços consideráveis em favor da União. O cartel do petróleo não gostou. E foi pra cima dos parlamentares, apresentando 15 emendas. Uma delas colou: é aquela em que o produtor paga o royalty em reais, mas o recebe de volta em petróleo. Esse cartel tem um time de lobistas, inclusive citados nos telegramas do Wikileaks: O Instituto Brasileiro do Petróleo, a ONIP e a FIESP. Tem ainda o governador Sergio Cabral, seus secretários, o senador Dornelles, a Agência Nacional do Petróleo e Paulo Hartung (ES). Conta ainda com a grande mídia nacional. Cabral e Hartung provocaram a discussão dos royalties para dificultar a mudança, pois Lula não os incluíra na proposta. “Primeiro vamos retomar a propriedade do Petróleo, para depois distribuí-lo”, dizia Lula.



Denunciamos essa emenda/contrabando no Senado e a repercussão negativa foi grande. O relator Romero Jucá retirou-a, mas, sob a pressão do lobby, sub-repticiamente, a colocou de volta em quatro artigos: 2º, 10º, 15º e 29. Onde o Projeto de Lei falava em ressarcimento dos custos de produção (é normal, pois o produtor gasta dólares e recebe esses custos em petróleo), Jucá acrescentou: “e do volume da produção correspondente aos royalties pagos” (safadeza, pois o consórcio não paga nada). Assim, ele dificultou a supressão, pois era preciso um partido para cada artigo a suprimir. A nosso pedido, o senador Pedro Simon apresentou uma emenda (art. 64§ 3º) que impedia essa apropriação constante dos quatro artigos. Mas como ele também incluiu a distribuição equânime dos royalties, o lobby aproveitou e fez um grande barulho na mídia.



Resultado, Lula, assustado, vetou o antídoto e deixou o veneno. Como era certa a derrubada do veto e a base governista a considerava um desgaste, buscou-se uma saída. Assim, alguns parlamentares elaboraram um Projeto de Lei do Senado com as mesmas premissas de Simon - só que preservando os ganhos dos estados produtores em valor absoluto -, para evitar a derrubada do veto. Mas a grita/biombo continua para esconder o ressarcimento dos royalties.



Correio da Cidadania: O que pensa em particular do ‘barulho’ que faz o governador do Rio de Janeiro, Sergio Cabral, em tais discussões, inclusive convocando manifestações populares para defender uma renda que pertenceria por direito aos cariocas?



Fernando Siqueira: O barulho do Sergio Cabral, como dito acima, era para dificultar a aprovação do contrato de partilha. Como ele já foi votado e aprovado, Cabral agora quer evitar a supressão da emenda entreguista. Assim, o barulho serve de biombo para esconder o segredo mais bem guardado desta República: a emenda que devolve, em petróleo, os royalties pagos em dinheiro. Se Cabral estivesse interessado em defender o Rio de Janeiro, a atitude tinha que ser de negociação, não de confronto com os estados não produtores. Todos eles querem preservar o Rio. Para ilustrar essas informações, vejamos alguns dados:



I) Na Constituição de 88, o José Serra conseguiu mudar a incidência do ICMS do produtor para o consumidor. O Rio perdeu muito. E, para compensar, ganhou um percentual alto dos royalties. Só que, na época que os royalties começaram a ser cobrados, o montante anual era de R$ 1 bilhão. Hoje são cerca de 10 bilhões. Em 2020 pode ser o triplo. Não dá para o Rio virar um Abu Dhabi e os demais estados continuarem na miséria;



II) O Rio Perde por ano cerca de R$ 7 bilhões com a isenção de ICMS devido à Lei Kandir aplicada no petróleo, incorretamente, pois o bem mais cobiçado do planeta não precisa de incentivo para ser exportado. Em 2020 essa perda subirá para R$ 34 bilhões. É o Brasil subsidiando o cartel, os EUA e os demais países desenvolvidos. Não se tem buscado corrigir essa excrescência;



III) O Rio, hoje, perde cerca de R$ 8 bilhões por ano com a cobrança errada do ICMS. Pode ser um argumento forte para negociação, mas não está sendo usado. Ou seja, o Cabral e sua turma querem é esconder o benefício da devolução de royalties e da Lei Kandir em favor do cartel internacional e em detrimento do povo brasileiro.



Correio da Cidadania: A verdade é que o senhor vem denunciando há tempos estas emendas inseridas no projeto de lei sobre os Royalties elaborado pelo governo Lula, as quais, em um revés para tal projeto original, determinam, como dito, a devolução, em petróleo, dos royalties pagos pelas empresas exploradoras.



Fernando Siqueira: Esse ressarcimento é uma excrescência entreguista. É como se a Ford pagasse o IPI e o recebesse de volta em automóveis. O senador Jucá retirou-a em função da repercussão negativa após nossa denúncia através do senador Simon. Só que, sob pressão do lobby, a colocou de volta nos quatro artigos mencionados, para garantir a apropriação indébita do petróleo correspondente aos royalties pelo Consórcio Produtor, em detrimento do país. Seria um volume maior do que as atuais reservas brasileiras, descobertas pela Petrobrás. No mês de junho deste ano, a revista Época fez uma matéria onde diz que Jucá gastou R$ 15 milhões na sua campanha para a reeleição e declarou só R$ 1,5 milhão. Diz ainda que os US$ 13,5 milhões restantes foram pagos em dólar vivo. Mera coincidência? ”É, pode ser, com todo o respeito”, diria o Ancelmo Gois.



Correio da Cidadania: Estão sendo agora tentados vários arranjos para a distribuição dos royalties, após este revés no projeto original de Lula. Diante das atuais circunstâncias, qual seria o arranjo ideal, a seu ver?



Fernando Siqueira: O arranjo ideal tem que ser o fruto de uma boa negociação. O Rio tem trunfos bons como os citados acima e pode conseguir se sair bem, sem perdas, mas mantendo um ganho coerente. Como a produção de petróleo vai crescer muito e o preço do barril também, não dá para o Rio receber o percentual atual. O ideal é manter o valor absoluto do ganho atual com a devida correção monetária para que o Rio tenha supridos os seus compromissos a serem pagos com a renda dos royalties. O Rio ganha, hoje, cerca de R$ 7 bilhões entre royalties e participação especial, por ano. Pode manter esse ganho com juros e correção monetária.



Lembremos que o petróleo do Pré-Sal está a cerca de 300 km da costa. Pelo artigo 20 da Constituição ele é da União. Mas os estados, DF e municípios têm direito a participar dos royalties “de acordo com a Lei”, que pode ser negociada. Quem provê as facilidades de produção são as empresas produtoras e, se houver acidente, elas se encarregam de eliminar os seus efeitos. Há benefícios para os estados confrontantes como geração de empregos, desenvolvimento tecnológico e a instalação de empresas fornecedoras de bens e de prestadoras de serviços. Assim, os estados confrontantes podem se contentar em manter os ganhos atuais, enquanto os demais saem do zero até chegar a um montante próximo ao desses estados confrontantes, em médio e longo prazos.



Correio da Cidadania: Em entrevista ao Correio, no final de 2009, o senhor ressaltou que continuamos sem garantias de que “empresas asiáticas, européias, norte-americanas e o cartel internacional, por precisarem de petróleo para sobreviver, venham para cá ávidas para produzir o mais rápido possível para resolverem os problemas dos seus países”. Realmente, há um foco demasiado nessas discussões sobre os Royalties no atual momento, ao lado de um quase abandono das discussões essenciais sobre, por exemplo, esta questão dos leilões, tanto os que foram feitos antes do Pré-Sal como os que devem certamente prosseguir pela frente.




Fernando Siqueira: Como eu disse acima, os royalties são o biombo para esconder a discussão essencial. Quando o Pré-Sal foi descoberto, o presidente Bush reativou a quarta frota naval, argumentando que era para proteger o Atlântico Sul. Ora, no Atlântico Sul, só estão Brasil e Argentina e esta já entregou o seu petróleo para o cartel. Então, a quarta frota é para “proteger” o Pré-Sal. As invasões do Iraque, da Líbia, do Afeganistão e a atual pressão sobre o Irã nos dão uma pista, uma mensagem muito forte de que precisamos nos preparar para defender o Pré-Sal, que é uma reserva equivalente à do Iraque, só que na América Latina. O cartel internacional e os países desenvolvidos precisam de petróleo para sobreviver. Estamos entrando no pico de produção mundial e a oferta vai cair fortemente. Os países desenvolvidos da Europa, da Ásia e os EUA estão numa insegurança energética brutal. Querem petróleo a qualquer custo e o mais rapidamente possível. Como impedir a produção veloz e predatória? Portanto, as premissas que nortearam a sua pergunta continuam válidas.




Correio da Cidadania: Setores progressistas defendem a volta do monopólio estatal do petróleo, no lugar do modelo de exploração em que serão combinados concessão e partilha . Acredita que esta discussão ainda esteja ou possa voltar à pauta da nossa nação? Qual seria a importância da retomada deste debate para o nosso país?




Fernando Siqueira: Esta discussão está mais atual do que nunca. A Petrobrás, durante 40 anos, acreditou e pesquisou o Pré-Sal. Quando a tecnologia permitiu, ela perfurou e achou, correndo todos os riscos. Lembro que durante 13 anos a área do Pré-Sal esteve entregue às empresas estrangeiras detentoras dos contratos de risco. E elas não arriscaram nada. A Petrobrás é a empresa que mais conhece a tecnologia de águas profundas, visto que foi a primeira a acreditar na existência de reservas nessa profundidade. Portanto, fazer leilão não tem qualquer justificativa ou vantagem para o país.



Imaginemos que essa emenda da devolução dos royalties passe. Pela simulação que fizemos, com o petróleo a US$ 100 por barril e os custos de produção previstos em US$ 45 por barril, teríamos o seguinte absurdo: A União ficaria com 28% do petróleo produzido, a Petrobrás, como operadora, ficaria com 21,6% e o líder do Consórcio Produtor ficaria com 50,4%, sem fazer nada (a Petrobrás é quem opera, produz e corre todos os riscos) e sem correr qualquer risco. Por outro lado, se o royalty previsto de 15% for pago em petróleo, sem essa devolução, o Brasil ficará com 43%, livres, a Petrobras, com 17,1%, e o líder do consórcio, com 39,9%. Sendo que ele despendeu dólares com os custos de produção.



Dá para aceitar, a pior situação? Leilão é sinônimo de desnacionalização do petróleo, inclusive com elevada velocidade de extração, em detrimento dos interesses nacionais, como está ocorrendo em todos os países que privatizaram suas reservas. E o caso Chevron reforça bem essa tese.



Correio da Cidadania: O que tem ocorrido de relevante no setor, que não costuma ser noticiado na mídia, especialmente no que se refere aos leilões favoráveis às empresas, nacionais ou multinacionais, e lesivos à sociedade? Quem têm sido os maiores beneficiários desse atual estado de coisas?



Fernando Siqueira: Certamente o cartel internacional do Petróleo é sempre o beneficiado. Foi ele que induziu o presidente FHC a fazer a absurda lei 9478/97 que dá 100% do petróleo a quem produz e o direito de pagar somente os royalties e a participação especial, em dinheiro, numa média de 21% no total. No mundo, os países exportadores ficam com uma média superior a 70%, em petróleo, do volume produzido, que é a riqueza real que move as grandes economias e a produção de novas riquezas. O valor pago em dólar é irrelevante para quem imprime dólar sem qualquer lastro.



Vou relatar um episódio recente que ilustra bem a ação dos lobbies, e que só sai no Wikileaks: Uma semana antes de o senador Vital do Rego apresentar o PLS 448 (alternativa à derrubada do veto de Lula), no Senado, eu estava em reunião na AEPET quando recebi uma ligação de um dos parlamentares da comissão que elaborou o projeto. Ele me perguntou a situação dos artigos e como teria que fazer para suprimir esses contrabandos. Quando eu comecei a responder, ele passou o telefone para o assessor legislativo que iria ajudá-los a elaborar o projeto. Ele foi dizendo: “engenheiro, quem pediu essa emenda de devolução dos royalties foi a Petrobrás”. Respondi, irritado: “Isto é conversa dos lobistas do IBP. Eu conversei com os diretores da Petrobrás e eles jamais discutiram esse assunto”. Ele insistiu: “não, foi o representante da empresa aqui em Brasília”. “Outra mentira. O representante em Brasília nunca faria isto sem autorização da Petrobrás. Conheço-o bem”, eu retruquei. Então ele passou o fone para o deputado, a quem eu adverti sobre a conversa.



Na semana seguinte, preocupado, fui para Brasília. No gabinete do senador Pedro Simon, vimos a leitura da proposta pelo senador Vital do Rego e consegui uma cópia do projeto. Passei a noite lendo o calhamaço do projeto. E descobri duas cascas de banana: o assessor incluíra um artigo que quebrava a espinha dorsal da Lei de partilha. O artigo dizia: “A União poderá fazer ‘joint ventures’ com empresas mediante licitação”. Ora, na nova Lei o ponto alto era a Petrobrás ser a operadora de todos os campos e a nova proposta derrubava isto. Outra safadeza era mudar a configuração do IBGE fazendo com que o Rio deixasse de ser o estado confrontante no Pré-Sal. A maioria desses assessores tem casa no Lago Sul, não por coincidência.




Correio da Cidadania: Como enxerga, finalmente, o último vazamento de petróleo na Bacia de Campos, envolvendo a empresa Chevron, à luz de toda esta discussão?



Fernando Siqueira: Como uma rotina da atuação dessas empresas. Elas produzem devastação no mundo todo. A Shell fez um estrago na Nigéria. A Chevron está num processo no Equador com multa da ordem de US$ 20 bilhões. É comum ocorrerem estas coisas. Agora, em Frade, ocorreu uma série de erros da Chevron.



Primeiro, ela alugou uma plataforma improvisada. Segundo o Wall Street Journal, essa plataforma, obsoleta, funcionava como hotel flutuante no Mar do Norte. Foi adaptada para esse trabalho e cobra uma diária de US$ 315mil, contra cerca de US$ 700 mil das plataformas tecnicamente preparadas para esse trabalho. Segundo, há algum tempo tendo alguns poços produtores, ela tinha condições de conhecer a pressão do reservatório. Mesmo assim seus engenheiros erraram no cálculo da densidade da lama de perfuração, onde uma das suas funções é equilibrar a pressão do reservatório. Com uma lama mais leve, quando atingiram o reservatório, um “Kick” de pressão ameaçou a perda de controle do poço. Afobados, os técnicos injetaram lama mais pesada, mas com uma pressão acima da tolerada pelo reservatório. Assim fraturaram o invólucro selador do reservatório.



Depois foi uma sucessão de desinformações, mentiras, falácias, uma saraivada de inverdades, que a grande mídia brasileira recebeu passivamente, sem questionamentos e verificações. Imagina se uma ocorrência desse tipo fosse com a PETROBRAS! Qual seria o tratamento?



Portanto, essa ocorrência em frade reforça a nossa tese do FIM dos leilões. O país nada ganha com eles.


Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania; colaborou Gabriel Brito.

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