domingo, 10 de julho de 2011

Ressurreição

Ressurreição deixou de ser um encantamento quando entendi que era uma avó de noventa e três anos com um milagre diário preso à sua esperança.
Quando voltei a morar numa batalha repleta de sacrifícios que conhecia desde a infância, Vovó pediu que as filhas comprassem uma caixa de foguetes para que os explodissem quando eu entrasse em casa. Estranhei porque ela detesta barulho e desassossego, mas dentro de sua ordem cautelosa, há o momento exato do caos comedido, quando felicidade e medo se misturam e se apresentam como sua nova realidade que precisa de um pouco mais de ajustamento.

Vovó ama com o barulho incômodo que só anos de silêncio são capazes de provocar.

Antes, eu não entendia a atenção piedosa que vovó dirigia ao passado, uma história de música, família e amores vencidos, mas sem pesar. Sem carregar o mundo do impossível nas costas. Não havia a quem odiar ou menosprezar; e se, hoje, os toques de carinho são sutis, é apenas por cansaço de amar com desmesura, como se o próximo abraço fosse facilitar a laceração de suas articulações.

Vovó não tem medo de existir; apenas de ser aquilo que os outros esperam que ela seja. Não se apresenta à sociedade com simpatia fingida, e usa a verdade para explicar que seu mundo é cheio de decisões recheadas de amor e de negações que a afastam da maldade sem amargura.

Ela leva a sério sua fé no próximo passo e nas suas orações a Deus; algo necessário, um ato essencial e com gestos espontâneos, como beber água. O próximo passo a aproxima apenas do momento seguinte, e não a deixa esperando pelo futuro. Suas expectativas parecem vir apenas de dez em dez anos, e isso parece ajudá-la a envelhecer apenas por conta do tempo e não por desejos não atendidos.

As horas que ela experimenta estão presas a orações sussurradas em assobios cantados de quem não tem muita força nos lábios. Antes lia a bíblia com firmeza; hoje, os olhos usam uma cortina translúcida que a torna inquieta, um chuvisco fino e cauteloso acumulando gotas que fazem brotar compaixão em que a observa. Vovó não troveja desde que sua mãe morreu nos anos 90.

Gosto de presenciar o seu sorriso surgir devagar, como o sol espreguiçando-se lento depois de um passeio pelo mundo que o deixou cansado. Torna o dia mais suportável. Então, depois do sorriso, vem uma história, às vezes repetida, de todos os passos de dança que ela ensaiava quando seu pai e a banda que possuía alegravam festas em comunidades do interior: As moças da época nem saíam de casa e eu já acompanhava papai. Poucas dançavam como eu, diz Vovó em sua modéstia digna.

Com poucos amores, Vovó foi mais escolhida do que escolheu. E aprendeu a ser feliz acreditando que amanhã a vida pode ser menos dolorida.

Conseguiu viver por todos esses anos (e diz que noventa e três anos não são suficientes) porque escolheu amar defeitos, erros e incertezas. Ela vê atos e escolhas em perspectivas. Quando escolhi pela Psicologia, tentei buscar Vovó para entender aquela estranha e adequada capacidade de se abster de julgamentos, como se fosse apenas dom e nenhum sacrifício, tão fácil como agradecer a Deus por uma dor amarga ou uma tristeza lamacenta. Não era fácil para ela, mas era o que precisava ser feito.

Maria da Ressurreição ainda tem consciência para todas as suas verdades e para discordar de filhas e netos que não a tem como prioridade. Mas vive esquecendo os dias. O tempo está preso ao corpo num prateado tic-tac de quem é vaidosa e não sai de casa sem pentear os cabelos, permitindo também que os lábios tornem-se discretamente coloridos.

Seu tempo parece ser medido em abraços que articulam suas alegrias. Se estiver calma, a alegria é um botão de rosa murchando, e seus dias são mais longos. Dois netos que a beijam e declaram amor, e qualquer segunda-feira se torna a cor de uma sexta descansada. Outros netos que a esqueceram sem perceber, e seus dias ficam sufocantes, secos e pegajosos. Vovó transformou seu dia-a-dia numa xícara de chá de camomila que acalma a raiva que ela nunca teve; suas horas são agora a filha lavando pratos na cozinha que ela não ocupa; seus segundos são canções antigas que nunca terminam.

Ela vive um mundo lúcido, mas que nunca foi inteiramente apenas seu.

Ressuscita sua esperança todos os dias quando, lenta e silenciosa, toma seu banho de compreensão sozinha, segurando-se na nas paredes lisas do banheiro, evitando que suas certezas sobre o amor despenquem, e arruma em seguida sua alegria em sorrisos curtos para que a vida recomece amanhã.

Muitas pessoas se questionam sobre que missão lhes foi designada neste mundo, e fazem disso sua própria razão de existir. A missa de Vovó é ser bonança antes de intempéries, eu pensava; mas aquele exato período, úmido e frágil, que antecede uma catástrofe, quando uma calma aparentemente imperturbável sobre a consciência e faz com que se esqueça qualquer proteção. Só depois, fui entender que a quietude condescendente de Vovó é uma terra pós-apocalíptica em que sorrir já é por si só um ato glorioso. É a terra encharcada de uma resistência que foi inundada de escolhas adequadas, mas que convivia com outras escolhas desérticas diferentes das suas.

(Mesmo entre espinhos, vivemos num mar de rosas. Vovó reage a qualquer carinho, e retribui com intensidade. Ela é uma surpresa cheia de reservas de esperança. Amor em estado de ressurreição.)

Qualquer desagrado ou sofrimentos sempre escorre para lugares distantes de seu coração, como se existisse nela um esconderijo programado para dores estranhas. Como se qualquer tempestade fosse apenas em um copo d’água: Não é tão ruim assim.

- Vó, você prefere ser tempestade ou copo d’água?

- Prefiro ser o que vem depois.

Ela está firme, mas quebradiça, como um veleiro e seus quase cem anos, sendo levado por um vento fino para o mistério de um mar plácido, que nunca recebe a noite com receio, apenas navegando livremente o momento presente como algo extraordinário em sua simplicidade sem desesperos.

Porque amanhã também pode ser dia de Ressurreição.
(O Pensador Selvagem)

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