segunda-feira, 18 de julho de 2011

Desertos

Quando estive no deserto
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Por Atenea Acevedo




Aquellas pequenas cosas

Traduzido por
Cristina Santos
Em uma viagem ao Saara Ocidental, a descoberta de um povo que tem os olhos postos no futuro, os pés enraizados na história e asas a crescer nos braços.

Para J.O.

A sonoridade da palavra Saara tem a suavidade esponjosa das dunas, a tirania do sol, o azul profundo de um céu salpicado de estrelas, a visão fantástica do infinito. Nela também cabem a guerra, o espólio, a precariedade, o desterro e a injustiça. A força irreprimível de um povo faz com que há 33 anos dizer Saara também é dizer resistência, anseio, temperança.

Chegar a Dakhla, um dos acampamentos de refugiados saarauís na Argélia cujo nome corresponde a uma das suas cidades sob a ocupação militar marroquina, é uma grande odisseia. É como se as peripécias se conjugassem para pôr à prova a determinação e a dureza da pele da viajante, apenas para recompensá-la com imagens e emoções irrepetíveis. As horas num avião charter, que mais parece uma camioneta, alugado por um grupo de conhecidos e a massagem cruel que me oferece o transporte todo-o-terreno desde Tindouf são o preço a pagar para ver o primeiro amanhecer no deserto. Os meus olhos deixam de espreitar e abrem-se como leques, enfeitiçados diante do vigor do fogo que se levanta com o impulso de um deus absoluto. Não se fecharão por muito tempo, apenas para dormitar na jaima ou no gueton quando o corpo se nega a acompanhar a minha necessidade de recorrer e recordar tudo.

Como uma ordem a realidade dos acampamentos vem ao meu encontro. A reflexão imediata evoca o que aprendi a entender como “comodidades” ou “vida moderna”, eufemismos para uma torneira, uma tomada elétrica, uma rua asfaltada e uma porta cheia de trincos. Aqui, onde o tempo adotou a forma do horizonte ilimitado, basta um instante para reconhecer esses objetos peculiares como veículos de esbanjamento e desperdício. Precisamos de pouco e queremos tudo, e não importa se no caminho atropelamos ou arrebatamos. O povo saarauí, imerso na brutalidade da ocupação de um lado do maior muro do mundo ou no rigor do exílio do outro, sabe que a sua sobrevivência depende do sentido de coletividade. Os dias e as noites em Dajla levam a uma reflexão mais detalhada sobre aquilo que no meu mundo se perdeu e que não é pouco: a noção de comunidade, a motivação para nos reconhecermos em outras humanidades, o ânimo de rebeldia, a celebração da vida por si mesma.

Tal como as centenas de pessoas que estão de passagem, desfruto do ritual do chá, do abrigo de uma família, das bondades do turbante, da luz que pressagia o amanhecer, da sábia cadência dos dromedários. A tranquilidade de cada momento obsequia uma aprendizagem. Ouço atenta a saudação saarauí, um intercâmbio de perguntas sobre o bem-estar da família e do gado, sobre os caminhos percorridos e a desejada presença de água num terreno sem dono. Trata-se de algo mais do que uma tradição de errantes, aquele diálogo útil para traçar a própria rota e atenuar as probabilidades de perecer ou perder-se em caminhos avermelhados: ao preservar a saudação que distingue o seu espírito nômade, o povo saarauí assinala a sua convicção na vitória e persegue a teia da sua identidade legendária.

A imaginação reina no Saara, espaço ideal para a organização delirante de um festival internacional de cinema. Projetar filmes na imensidade de um mal chamado “nada” não só refresca os sentidos marcados por uma paciência que se esgota. Que melhor meio para se aproximar a outras realidades e apresentar a própria que a linguagem audiovisual, insígnia dos nossos tempos? Por isso o festival oferece seminários de documentário, fotografia, edição, som e rádio. Por isso se trabalha na construção da primeira escola de cinema e acaba de se inaugurar as transmissões da televisão saarauí. Tudo serve para fortalecer a trincheira da dignidade e defender o sorriso dessa gente que não pede permissão para ser e empunhar a sua bandeira.

É normal que a perspectiva se apure depois de viajar a um acampamento saarauí, um lugar onde o inepto pulso humano supera adversidades inimagináveis, uma paisagem singular num planeta onde o pensamento único eliminou todos os sinais de originalidade e as cidades e as pessoas são cada vez mais fastidiosamente parecidas.

Talvez assim se explique o sorriso que nasce nos meus lábios quando falo do Saara e de um povo que tem os olhos postos no futuro, os pés enraizados na história e asas a crescer nos braços. Mas a minha fascinação não vale a ferida deles. Por muito que aqueles que chegam de longe precisem de um tratamento contra o consumismo e a superficialidade, por mais intensa que seja a experiência, ninguém deveria ter de viver a inventar maneiras de gritar ao mundo a sua tristeza e o seu direito à justiça. Junto a minha voz ao coro que exige liberdade para o Saara Ocidental JÁ.

Fonte: ViaPolítica/Tlaxcala

www.tlaxcala.es

URL: http://www.tlaxcala.es/...

Título do original em espanhol: “Cuando estuve en el desierto”

http://my.opera.com/mujerypalabra/blog/

Tradução para o português de Cristina Santos, colaboradora de Tlaxcala, a rede de tradutores pela diversidade lingüística. Esta tradução pode ser reproduzida livremente na condição de que sua integridade seja respeitada, bem como a menção à autora, à tradutora, e à fonte.

Mais sobre a autora:
Atenea Acevedo nasceu e vive no mundo que é a Cidade do México, e todas as suas recordações estão invariavelmente vinculadas às palavras. É graduada em Relações Internacionais, especializada em estudos da Europa Central, diplomada em interpretação e tradução Inglês/Espanhol, e em relações de gênero e equidade entre homens e mulheres. Trabalhou três anos no Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, foi professora de história universal, política mundial contemporânea, organismos internacionais e geopolítica.

Também ministra workshops de escrita criativa e reflexão feminista para mulheres e homens. Tem oito anos de experiência como tradutora e intérprete independente com ênfase em temas vinculados ao feminismo e ao gênero, às relações internacionais, ao meio ambiente, às ciências política e às finanças. Teve o privilégio de traduzir conferências de personalidades como Herb Cohen, Klaus Toepfer, Baron Wolman, Marta Lamas, Gustavo Esteva e Dom Samuel Ruiz. O seu portfólio inclui trabalhos de tradução para instituições como a Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (Flacso), o Centro de Investigación y Docencia Económicas (CIDE), o Centro de Estudios Monetarios Latinoamericanos (CEMLA), o Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social (CIESAS), a Ford Foundation, o Consejo Nacional para la Cultura y las Artes (Conaculta), a Organização das Nações Unidas (ONU), a Oficina de la Superintendencia de Instituciones Financieras de Canadá (OSFI) e a consultoria ambiental canadense FiveWinds International, além de organizações não governamentais e do setor privado. Atenea Acevedo encontrou na tradução e na interpretação os meios idôneos para estruturar o seu ativismo pelos direitos humanos, a equidade de gênero e a mudança social.
Deu voz a grupos tais como as Madres de las Muertas de Juárez, o Movimento dos Sem Terra e a Coordinación de Apoyo al Pueblo Saharaui. Pertence à rede de intérpretes voluntários Babels e faz parte da equipe fundadora de Babels México. Participou no Forum Social Mundial e coordenou o voluntariado de intérpretes nos workshops “Mulheres e globalização” e “Outro mundo é necessário”, organizado pelo Centro para la Justicia Global. Participou como oradora convidada na Quarta Conferência de Tradutores e Intérpretes, organizada por ProZ.com em Buenos Aires, Argentina, com o tema “Tradução e gênero”, e como oradora convidada na Conferência Interpreta2007, organizada por José Luis Villanueva Senchuk e Lucille Barnes em julho de 2007, em Buenos Aires, Argentina, com o tema “Ativismo e interpretação”.
Confessa-se escritora com pudor e feminista descarada. Viajou a 24 países e viveu no México, Estados Unidos da América e República Checa.












(Via Política)

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