Necrológico da Biblioteca
Viegas Fernandes da Costa
"Durante décadas meu pai viveu trancado na biblioteca que toma todos os cômodos da casa. Por causa dos livros nos abandonou, como se um monte de papel mal cheiroso pudesse substituir o mais irrelevante afeto de uma família. O velho arredio que jamais me fez um carinho era cheio de cuidados com livros em frangalhos, numa perversão que me repugnava." É assim que Miguel Sanches Neto dá início ao conto "A segunda morte de meu pai", no qual narra a investida de um filho contra a biblioteca paterna de vinte e cinco mil exemplares por ele herdada.
Outro dia a repórter de um jornal diário perguntou-me se acaso eu saberia lhe indicar duas ou três pessoas que abrigassem em suas casas uma biblioteca modesta. Não me ocorreu ninguém. Daqueles que lembrei, constatei estarem mortos. Percebi então, claro, que os tempos são outros, diferentes daqueles em que ostentar estantes abarrotadas de cartapácios era sinal de distinção social e intelectual. Na década de 1970, por exemplo, diretores de pornochanchadas recorriam às estantes com livros para figurarem em seus filmes, estrategicamente posicionadas ao lado do bar doméstico com suas garrafas de whisky, absinto e vinhos exóticos, outro elemento distintivo. Tratava-se, claro, de tentar burlar os vigilantes da moral. Afinal, sacanagem regada a Camões e um legítimo Porto não podia receber o destrato de uma censura acostumada com Carlos Zéfiro e Caninha 51. De qualquer modo, não é mais assim. Nem as pornochanchadas seriam censuradas hoje, nem as bibliotecas particulares encantam as novas gerações. Na pretensa assepsia dos dias que correm, o papel cheira mal, abriga toda sorte de pragas e fungos e ocupa espaço imenso. Uma biblioteca particular entoa os ecos de um limbo para seus prováveis futuros herdeiros (filhos, netos ou sobrinhos de algum vetusto bibliófilo). Está lá para ser destruída tão logo morto seu proprietário, e até a maior parte dos bibliotecários teme ante o anúncio da chegada de uma grande doação de livros pertencentes a alguma coleção particular, isto quando não a rejeitam, impiedosamente. Falta espaço, pessoal especializado para triagem e higienização, e os materiais para o restauro são caros. Enfim, bibliotecas particulares, apesar de cada vez mais raras, transformaram-se em enormes elefantes brancos.
No conto de Miguel Sanches Neto lemos o ódio de um filho aos livros do pai morto. Eliminar a biblioteca herdada equivale a uma espécie de acerto de contas. Afinal, se toda biblioteca particular carrega consigo uma personalidade, destruí-la corresponde a algo como que um assassinato. Entretanto, o ato extremo do personagem do conto em questão não se constitui em regra, e a maioria das pessoas procura dar destino mais nobre aos livros órfãos do seu bibliófilo e descabidos na nova realidade. Quando não conseguem vendê-los a algum sebo que os compra a quilo, procuram a biblioteca mais próxima para então doá-los, cercados de memória e pompa. Nestes casos, tomamos os doadores com certa compaixão, pois estes tentam preservar o tênue legado de uma vida dedicada aos livros. Acorrem às bibliotecas transbordando entusiasmo e alívio. Entusiasmo porque acreditam sinceramente na importância inesgotável e no valor inestimável do material que disponibilizam, e alívio porque poderão usufruir do espaço desocupado da maneira que julgarem mais adequado, sem ofender a memória do falecido (o que certamente aconteceria se destinassem tudo para usinas de reciclagem de papel). É assim que chegam às prateleiras públicas alguns volumes dedicados com ternura, como se espalhássemos ao vento os sussurros de uma noite de amor. Páginas vincadas e rascunhadas, números de telefone cuidadosamente anotados a um canto da margem, uma nódoa de história particular. Isto, claro, quando aceitos assim impuros por algum bibliotecário excepcional zeloso de seu ofício. Na maioria das vezes, porém, estes livros sofrem duplo assassinato: indesejados pelos herdeiros e descartados pelo pragmatismo das bibliotecas contemporâneas, são transformados em tiras de papel picado ou, na melhor das hipóteses, são limpos do seu passado, brutalmente devolvidos a uma espécie de virgindade inócua. Penso, às vezes, que o espírito de Filippo Marinetti habita as intenções da maioria dos bibliotecários que conheço, e que a biblioteconomia contemporânea é a sucessora legítima dos futuristas do início do século XX. Isto, claro, não se trata de um elogio, já que Marinetti e os demais futuristas propunham apagar o passado destruindo suas marcas.
O personagem de Miguel Sanches Neto compreende como um ato de perversão a relação que o pai mantinha com seus livros. O próprio pai, em outra passagem do conto, confessa sua promiscuidade com os livros já experimentados, encontrados nas livrarias de obras usadas, aos quais cheirava, tocava, invadia as intimidades. De fato, para se manter uma biblioteca particular, há de se amar os livros, há de se construir uma relação bibliogâmica. Afinal, os livros de uma biblioteca particular não são apenas livros, no sentido daquilo que são capazes de dizer os textos e imagens impressos em suas páginas, mas objeto de fetiche. O praticante da bibliogamia, por exemplo, passa horas diante das estantes, imóvel, namorando os volumes em diálogo mudo, intenso, como que se um sentido obscuro emanasse das capas fechadas. Por isso, toda destruição de uma biblioteca particular corresponde à destruição de uma relação de amor.
Sim, na pretensa assepsia dos dias que correm, o papel cheira mal, abriga toda sorte de pragas e fungos e ocupa espaço imenso. O mesmo ocorre com o amor, este amor de namorados que desfecham tiros no peito, como na poesia de Carlos Drummond de Andrade. Amor que também ocupa espaço e muitas vezes pode cheirar mal. Na assepsia do mundo moderno não há mais espaço para o amor, muito menos para uma biblioteca particular que representa o amor distribuído pelas estantes.
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no blog Alpharrábio. Leia também "Decompondo uma biblioteca".
(Digest. Cultural)
domingo, 31 de março de 2013
Homossexualidade e Igreja
Católica e da cristandade sobre a homossexualidade na Idade Média? “Visto que o sexo, segundo os ensinamentos cristãos, foi dado ao homem unicamente para os propósitos da reprodução e por nenhuma outra razão, qualquer outra forma de atividade que não levasse ou não pudesse levar à procriação era um pecado contra a natureza. Os pecados contra a natureza incluíam especificamente a bestialidade, a homossexualidade e a masturbação”, escreve Jeffrey Richards.[1]
Já no século IV, Santo Agostinho, uma das mais importantes autoridades da Igreja, foi taxativo:
“Pecados contra a natureza, por conseguinte, assim como o pecado de Sodoma, são abomináveis e merecem punição sempre que forem cometidos, em qualquer lugar que sejam cometidos. Se todas as nações os cometessem, todas igualmente seriam culpadas da mesma acusação na lei de Deus, pois nosso Criador não prescreveu que pudéssemos utilizar uns aos outros dessa maneira. Na realidade, a relação que devemos ter com Deus é ela mesma violada quando nossa natureza, da qual ele é o Autor, é profanada pela lascívia perversa”.[2]
Estas palavras, retiradas das Confissões de Santo Agostinho, são inspiradas por uma determinada leitura e interpretação bíblica, ainda presente[3], de Levítico:
“Não te deitarás com um homem como se deita com uma mulher. É uma abominação” (Lv., 18, 22).
“O homem que se deitar com outro homem como se fosse uma mulher, ambos cometeram uma abominação: deverão morrer, e o seu sangue cairá sobre eles” (Lv., 20, 13).[4]
Vemos o quanto é perigoso a leitura literal e fundamentalista da Bíblia. Se devem morrer, alguém deve ser o instrumento de Deus que cumpre a sentença condenatória. Afinal, homofóbicos e fanáticos religiosos imaginam-se imbuídos de uma missão purificadora. Mas, retornemos à Idade Média – muito embora persistam pensamentos e posturas medievais em pleno século XXI! Na medida em que o cristianismo medieval concebia o sexo apenas para procriar e considerava antinatural e pecaminoso tudo o que não se enquadrasse nesta perspectiva, qual é a sua posição diante dos pecadores? O Antigo Testamento não deixa dúvidas. Cristo, porém, teve uma atitude tolerante, compassiva e amorosa. Como assinala Richards:
“Cristo não havia delineado um conjunto abrangente de ética sexual, e não há registro de que tenha encontrado algum homossexual. Mas, quando se deparou com uma adúltera sendo apedrejada – e o adultério era, como a homossexualidade, uma ofensa capital na lei do Antigo Testamento – disse: “Aquele dentre vós que não tiver pecado, atire a primeira pedra”, e, para a mulher, “Vai, e não peques mais”. Perdão e compreensão, então, em vez de punição, era a mensagem de Cristo”.[5]
thumb
Outra foi a mensagem da cristandade medieval. Os primeiros padres da Igreja adotaram a linha condenatória. Suas opiniões foram sacramentadas em lei quando o império romano assumiu o catolicismo enquanto religião oficial. O imperador Justiniano (527-65), que se considerava o representante de Deus, impôs um rígido código moral e a homossexualidade passou a ser passível da pena de morte:
“Justiniano tinha uma visão dos atos homossexuais como sendo literalmente uma violação da natureza que provocava a retaliação da mesma: “por casa destes crimes ocorrem fomes coletivas, terremotos e pestes”, declarou. Este refrão deveria retornar no período posterior à Idade Média, quando uma sucessão de calamidades que surpreendeu a cristandade foi diretamente atribuída pelos pregadores populares e pelos teólogos à existência da sodomia”.[6]
Outro santo, Tomás de Aquino, na Summa Theologiae, concordava que o ato inatural, ou seja, todo ato sexual que não cumprisse o preceito de servir à reprodução da espécie, ainda que praticado sob consentimento mútuo ou individualmente, ou mesmo sem acarretar prejuízo a outrem, era caracterizado como o pior dos pecados, uma injúria a Deus:
“Eles violavam a ordem natural determinada por Deus. Por ordem crescente de gravidade, os pecados contra a natureza eram: masturbação, relação inatural com o sexo oposto[7], relação homossexual e bestialidade. Estas concepções eram amplamente determinadas, e se, em alguma medida, a literatura foi um reflexo da opinião popular, elas predominaram na sociedade secular”.[8]
faixa-contra-homossexuais-vitor-sorano
Nos séculos XII e XII, a política eclesiástica e civil contra a homossexualidade tornou-se ainda mais rigorosa. O Concílio de Nablus (1120), determinou que “o adulto sodomita persistente e do sexo masculino seria queimado pelas autoridades civis”.[9] Esta medida colocava os homossexuais “no mesmo patamar que os assassinos, hereges e traidores”. O passo seguinte foi a penalização cada vez mais crescente pela lei secular. De um lado, o puritanismo moralista mobilizou-se para reprimir a homossexualidade. Por outro, a “inquisição e as irmandades leigas associadas com as ordens mendicantes tornaram-se instrumentos de perseguição aos hereges e sodomitas”. O Concílio de Siena (1234) passou a designar homens cuja função era caçar sodomitas. O objetivo desses ancestrais medievos dos homofóbicos e fanáticos religiosos modernos era “honrar ao Senhor, assegurar a paz verdadeira e manter os bons costumes e uma vida louvável para o povo de Siena”.[10]
“O vício que não pode ser nomeado”[11] passou a ser cada vez mais perseguido. A sodomia deveria ser extirpada da sociedade, os sodomitas deveriam ser excluídos social e fisicamente. A homossexualidade foi equiparada a uma doença contagiosa, às impurezas que contaminavam a pureza cristã e social:
“Assim como o lixo é retirado das casas, de modo a que não as infecte, os depravados devem ser afastados do comércio humano pela prisão ou pela morte.” O pecado tem que ser destruído pelo fogo e extirpado da sociedade. “Ao fogo!” esbravejava são Bernardino em sua assembléia. “Eles são todos sodomitas! E vós estareis em pecado mortal se tentardes ajudá-los.”[12]
Em conclusão, nas palavras de Jeffrey Richards:
“O cristianismo era fundamentalmente hostil à homossexualidade. A mudança na Idade Média não foi um deslocamento da tolerância para a intolerância por razões não-intrínsecas às crenças cristãs, mas uma alteração nos meios de lidar com a questão. No período inicial da Idade Média, a punição era a penitência; no período posterior, a fogueira. Mas nunca foi questão de permitir aos homossexuais prosseguir em sua atividade homossexual sem punição. Eles eram obrigados a desistir dela ou arriscar a danação”.[13]
Era? Deixou de sê-lo? Qual o peso e influência do ideário teológico medieval sobre os homens e mulheres do nosso século? É certo que não se acendem mais as fogueiras inquisitoriais, mas a inquisição, sob outras formas, incluindo as mais sutis, persiste. Imagine o pai e a mãe de um filho homossexual diante dos são Bernardinos do nosso tempo! É curioso como os inquisidores se candidatam a santos e como muitos terminaram por ser canonizados! De qualquer forma, o preconceito contra a homossexualidade tem raízes profundas e milenares. Os mortos dominam o cérebro dos vivos e, apesar do passar do tempo, são renitentes! De certa maneira, a cada pensamento e gesto preconceituoso em relação à homossexualidade ressuscitamos os inquisidores medievais! Talvez devêssemos nos espelhar mais em Cristo do que nos santos padres da Igreja ou no Antigo Testamento.
[1] RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p. 136.
[2] Apud in idem.
[3] Sugiro que assista ao documentário Como diz a Bíblia (For The Bible Tells Me So. Direção: Daniel G. Karslake. EUA, 2007, 95 min.).
[4] Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
[5] RICHARDS, 1993, p. 139.
[6] Idem.
[7] Ver Sexo, o mal dos males, disponível em http://antoniozai.wordpress.com/2013/03/23/sexo-o-mal-dos-males/.
(RAI)
Já no século IV, Santo Agostinho, uma das mais importantes autoridades da Igreja, foi taxativo:
“Pecados contra a natureza, por conseguinte, assim como o pecado de Sodoma, são abomináveis e merecem punição sempre que forem cometidos, em qualquer lugar que sejam cometidos. Se todas as nações os cometessem, todas igualmente seriam culpadas da mesma acusação na lei de Deus, pois nosso Criador não prescreveu que pudéssemos utilizar uns aos outros dessa maneira. Na realidade, a relação que devemos ter com Deus é ela mesma violada quando nossa natureza, da qual ele é o Autor, é profanada pela lascívia perversa”.[2]
Estas palavras, retiradas das Confissões de Santo Agostinho, são inspiradas por uma determinada leitura e interpretação bíblica, ainda presente[3], de Levítico:
“Não te deitarás com um homem como se deita com uma mulher. É uma abominação” (Lv., 18, 22).
“O homem que se deitar com outro homem como se fosse uma mulher, ambos cometeram uma abominação: deverão morrer, e o seu sangue cairá sobre eles” (Lv., 20, 13).[4]
Vemos o quanto é perigoso a leitura literal e fundamentalista da Bíblia. Se devem morrer, alguém deve ser o instrumento de Deus que cumpre a sentença condenatória. Afinal, homofóbicos e fanáticos religiosos imaginam-se imbuídos de uma missão purificadora. Mas, retornemos à Idade Média – muito embora persistam pensamentos e posturas medievais em pleno século XXI! Na medida em que o cristianismo medieval concebia o sexo apenas para procriar e considerava antinatural e pecaminoso tudo o que não se enquadrasse nesta perspectiva, qual é a sua posição diante dos pecadores? O Antigo Testamento não deixa dúvidas. Cristo, porém, teve uma atitude tolerante, compassiva e amorosa. Como assinala Richards:
“Cristo não havia delineado um conjunto abrangente de ética sexual, e não há registro de que tenha encontrado algum homossexual. Mas, quando se deparou com uma adúltera sendo apedrejada – e o adultério era, como a homossexualidade, uma ofensa capital na lei do Antigo Testamento – disse: “Aquele dentre vós que não tiver pecado, atire a primeira pedra”, e, para a mulher, “Vai, e não peques mais”. Perdão e compreensão, então, em vez de punição, era a mensagem de Cristo”.[5]
thumb
Outra foi a mensagem da cristandade medieval. Os primeiros padres da Igreja adotaram a linha condenatória. Suas opiniões foram sacramentadas em lei quando o império romano assumiu o catolicismo enquanto religião oficial. O imperador Justiniano (527-65), que se considerava o representante de Deus, impôs um rígido código moral e a homossexualidade passou a ser passível da pena de morte:
“Justiniano tinha uma visão dos atos homossexuais como sendo literalmente uma violação da natureza que provocava a retaliação da mesma: “por casa destes crimes ocorrem fomes coletivas, terremotos e pestes”, declarou. Este refrão deveria retornar no período posterior à Idade Média, quando uma sucessão de calamidades que surpreendeu a cristandade foi diretamente atribuída pelos pregadores populares e pelos teólogos à existência da sodomia”.[6]
Outro santo, Tomás de Aquino, na Summa Theologiae, concordava que o ato inatural, ou seja, todo ato sexual que não cumprisse o preceito de servir à reprodução da espécie, ainda que praticado sob consentimento mútuo ou individualmente, ou mesmo sem acarretar prejuízo a outrem, era caracterizado como o pior dos pecados, uma injúria a Deus:
“Eles violavam a ordem natural determinada por Deus. Por ordem crescente de gravidade, os pecados contra a natureza eram: masturbação, relação inatural com o sexo oposto[7], relação homossexual e bestialidade. Estas concepções eram amplamente determinadas, e se, em alguma medida, a literatura foi um reflexo da opinião popular, elas predominaram na sociedade secular”.[8]
faixa-contra-homossexuais-vitor-sorano
Nos séculos XII e XII, a política eclesiástica e civil contra a homossexualidade tornou-se ainda mais rigorosa. O Concílio de Nablus (1120), determinou que “o adulto sodomita persistente e do sexo masculino seria queimado pelas autoridades civis”.[9] Esta medida colocava os homossexuais “no mesmo patamar que os assassinos, hereges e traidores”. O passo seguinte foi a penalização cada vez mais crescente pela lei secular. De um lado, o puritanismo moralista mobilizou-se para reprimir a homossexualidade. Por outro, a “inquisição e as irmandades leigas associadas com as ordens mendicantes tornaram-se instrumentos de perseguição aos hereges e sodomitas”. O Concílio de Siena (1234) passou a designar homens cuja função era caçar sodomitas. O objetivo desses ancestrais medievos dos homofóbicos e fanáticos religiosos modernos era “honrar ao Senhor, assegurar a paz verdadeira e manter os bons costumes e uma vida louvável para o povo de Siena”.[10]
“O vício que não pode ser nomeado”[11] passou a ser cada vez mais perseguido. A sodomia deveria ser extirpada da sociedade, os sodomitas deveriam ser excluídos social e fisicamente. A homossexualidade foi equiparada a uma doença contagiosa, às impurezas que contaminavam a pureza cristã e social:
“Assim como o lixo é retirado das casas, de modo a que não as infecte, os depravados devem ser afastados do comércio humano pela prisão ou pela morte.” O pecado tem que ser destruído pelo fogo e extirpado da sociedade. “Ao fogo!” esbravejava são Bernardino em sua assembléia. “Eles são todos sodomitas! E vós estareis em pecado mortal se tentardes ajudá-los.”[12]
Em conclusão, nas palavras de Jeffrey Richards:
“O cristianismo era fundamentalmente hostil à homossexualidade. A mudança na Idade Média não foi um deslocamento da tolerância para a intolerância por razões não-intrínsecas às crenças cristãs, mas uma alteração nos meios de lidar com a questão. No período inicial da Idade Média, a punição era a penitência; no período posterior, a fogueira. Mas nunca foi questão de permitir aos homossexuais prosseguir em sua atividade homossexual sem punição. Eles eram obrigados a desistir dela ou arriscar a danação”.[13]
Era? Deixou de sê-lo? Qual o peso e influência do ideário teológico medieval sobre os homens e mulheres do nosso século? É certo que não se acendem mais as fogueiras inquisitoriais, mas a inquisição, sob outras formas, incluindo as mais sutis, persiste. Imagine o pai e a mãe de um filho homossexual diante dos são Bernardinos do nosso tempo! É curioso como os inquisidores se candidatam a santos e como muitos terminaram por ser canonizados! De qualquer forma, o preconceito contra a homossexualidade tem raízes profundas e milenares. Os mortos dominam o cérebro dos vivos e, apesar do passar do tempo, são renitentes! De certa maneira, a cada pensamento e gesto preconceituoso em relação à homossexualidade ressuscitamos os inquisidores medievais! Talvez devêssemos nos espelhar mais em Cristo do que nos santos padres da Igreja ou no Antigo Testamento.
[1] RICHARDS, Jeffrey. Sexo, desvio e danação: as minorias na Idade média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993, p. 136.
[2] Apud in idem.
[3] Sugiro que assista ao documentário Como diz a Bíblia (For The Bible Tells Me So. Direção: Daniel G. Karslake. EUA, 2007, 95 min.).
[4] Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
[5] RICHARDS, 1993, p. 139.
[6] Idem.
[7] Ver Sexo, o mal dos males, disponível em http://antoniozai.wordpress.com/2013/03/23/sexo-o-mal-dos-males/.
(RAI)
Aves
Estudo refere que aves primitivas tinham quatro asas
Uma equipa de paleontólogos chineses encontrou fósseis bem conservados
2013-03-21
O 'Sapeornis' é um dos fósseis descritos no estudo
Segundo um artigo publicado na revista «Science», as aves primitivas teriam quatro asas. Uma equipa de paleontólogos chineses encontrou fósseis bem conservados de diferentes espécies que apresentam longas penas nos membros traseiros.
Xing Xu e os seus colegas apresentaram amostras de 11 espécimes de aves primitivas e defendem que o processo evolutivo deve ter feito com que os pares de asas traseiras dessem lugar a patas.
O estudo descreve 11 tipos de fósseis de pássaros primitivos, como o "Sapeornis". Já investigações anteriores indicavam que animais similares a dinossauros tinham penas nas extremidades traseiras, mas existiam poucos indícios de as asas traseiras fossem úteis para voo.
Os estudos sugerem que eram usadas para se deslocar no ar, para planar entre as árvores ou aterrar. As "asas traseiras" foram descobertas em fósseis que datam de 100 a 150 milhões de anos, que estavam guardados no Museu de História Natural Shandong Tianyu, na China.
Os 11 animais fossilizados são de cinco espécies de aves primitivas relativamente robustas, maiores do que um corvo, segundo Xing Xu, professor da Academia Chinesa de Ciências e líder do estudo. O "Sapeornis" é um espécime-chave, que possuía um leque de penas em cada calcanhar e chegavam a atingir cinco centímetros de comprimento.
Segundo o líder do estudo, não restam muitos exemplares fósseis de pássaros primitivos, com esqueletos delicados, em condições de serem estudados. Segundo a investigação, as asas traseiras podem ter ajudado estas aves a movimentar-se mais agilmente no ar, enquanto batiam as asas dianteiras para voar ou as esticavam para planar.
A disposição das penas e as asas traseiras mais rígidas sugerem que eram aerodinâmicas, proporcionando elevação ou melhorando a capacidade de manobra – permitindo um bom desempenho no voo.
Os cientistas procuram agora mais detalhes sobre a possível cor das penas das asas traseiras, recriando modelos para mostrar exactamente como teriam sido. No entanto, outros investigadores consideram que a função das enas traseiras poderia ter outra função, como atrair parceiras.
(Ciencia hoje)
Uma equipa de paleontólogos chineses encontrou fósseis bem conservados
2013-03-21
O 'Sapeornis' é um dos fósseis descritos no estudo
Segundo um artigo publicado na revista «Science», as aves primitivas teriam quatro asas. Uma equipa de paleontólogos chineses encontrou fósseis bem conservados de diferentes espécies que apresentam longas penas nos membros traseiros.
Xing Xu e os seus colegas apresentaram amostras de 11 espécimes de aves primitivas e defendem que o processo evolutivo deve ter feito com que os pares de asas traseiras dessem lugar a patas.
O estudo descreve 11 tipos de fósseis de pássaros primitivos, como o "Sapeornis". Já investigações anteriores indicavam que animais similares a dinossauros tinham penas nas extremidades traseiras, mas existiam poucos indícios de as asas traseiras fossem úteis para voo.
Os estudos sugerem que eram usadas para se deslocar no ar, para planar entre as árvores ou aterrar. As "asas traseiras" foram descobertas em fósseis que datam de 100 a 150 milhões de anos, que estavam guardados no Museu de História Natural Shandong Tianyu, na China.
Os 11 animais fossilizados são de cinco espécies de aves primitivas relativamente robustas, maiores do que um corvo, segundo Xing Xu, professor da Academia Chinesa de Ciências e líder do estudo. O "Sapeornis" é um espécime-chave, que possuía um leque de penas em cada calcanhar e chegavam a atingir cinco centímetros de comprimento.
Segundo o líder do estudo, não restam muitos exemplares fósseis de pássaros primitivos, com esqueletos delicados, em condições de serem estudados. Segundo a investigação, as asas traseiras podem ter ajudado estas aves a movimentar-se mais agilmente no ar, enquanto batiam as asas dianteiras para voar ou as esticavam para planar.
A disposição das penas e as asas traseiras mais rígidas sugerem que eram aerodinâmicas, proporcionando elevação ou melhorando a capacidade de manobra – permitindo um bom desempenho no voo.
Os cientistas procuram agora mais detalhes sobre a possível cor das penas das asas traseiras, recriando modelos para mostrar exactamente como teriam sido. No entanto, outros investigadores consideram que a função das enas traseiras poderia ter outra função, como atrair parceiras.
(Ciencia hoje)
sexta-feira, 29 de março de 2013
Francisco
Dificilmente alguém consegue, em menos de dois minutos de fala, empolgar tantas pessoas. Mas Francisco não teve dificuldade nenhuma em conseguir esse feito na Praça São Pedro.
A eleição de um Papa não italiano foi uma surpresa. Surpresa maior ainda foi quando surgiu na sacada do Vaticano um sólido veterano de setenta e seis anos, vestindo-se sem os trajes principescos tradicionais dos papas, e começou a falar com simplicidade, provocando risos da multidão que se aglomerava para saudá-lo.
No dia seguinte e nos que se seguiram, a surpresa foi cada vez mais se confirmando.
O novo papa parece-se com um desses vigários que, após a benção final da missa, vão para a porta da Igreja conversar com os fiéis.
As aparências indicam que estamos diante de uma pessoa simples e cordial. Mas que ninguém se engane. Em poucos dias, ficou claro que essa pessoa assim simples e cordial é também um chefe enérgico e dotado de vontade própria.
A escolha do nome já é uma clara demonstração disso. Fugindo à tradição, o novo papa escolheu, pela primeira vez na história, o nome de Francisco.
São Francisco de Assiz, e Bergoglio explicitou que escolheu esse nome em homenagem ao “poverelo” da Umbria de Assiz, foi o grande reformador da Igreja do seu tempo. Pode haver, desse modo, todo um programa de reforma da Igreja do século XXI embutido nessa escolha.
Nada mais oportuno e necessário. A Igreja está mesmo precisando rever posições que não respondem mais (se é que alguma vez responderam) aos anseios da humanidade.
Questões como a do aborto, do celibato clerical, da ordenação de mulheres, do casamento de homossexuais são atuais, que reclamam uma definição mais clara da Igreja.
Consta que o novo papa, quando bispo de Buenos Aires, tinha posições conservadores. A expressão utilizada por boa parte de comentaristas, nacionais e estrangeiros, que fizeram essa observação é a de que se trata de um “conservador não extremado”.
O que isto quer dizer, ainda não se sabe bem, e de pouco vale para tanto a lembrança das posições que assumiu como bispo. Todos sabem que as posições dos bispos em relação a certas questões são mais a expressão de posições da Cúria Romana do que de pensamentos próprios. Como papa, podem ser outras as posturas de Francisco.
Aguardemos, portanto, na expectativa de que os sinais de alguma esperança dos primeiros dias possam se confirmar.
Para ajudar o Correio da Cidadania e a construção da mídia independente, você pode contribuir clicando abaixo.
A eleição de um Papa não italiano foi uma surpresa. Surpresa maior ainda foi quando surgiu na sacada do Vaticano um sólido veterano de setenta e seis anos, vestindo-se sem os trajes principescos tradicionais dos papas, e começou a falar com simplicidade, provocando risos da multidão que se aglomerava para saudá-lo.
No dia seguinte e nos que se seguiram, a surpresa foi cada vez mais se confirmando.
O novo papa parece-se com um desses vigários que, após a benção final da missa, vão para a porta da Igreja conversar com os fiéis.
As aparências indicam que estamos diante de uma pessoa simples e cordial. Mas que ninguém se engane. Em poucos dias, ficou claro que essa pessoa assim simples e cordial é também um chefe enérgico e dotado de vontade própria.
A escolha do nome já é uma clara demonstração disso. Fugindo à tradição, o novo papa escolheu, pela primeira vez na história, o nome de Francisco.
São Francisco de Assiz, e Bergoglio explicitou que escolheu esse nome em homenagem ao “poverelo” da Umbria de Assiz, foi o grande reformador da Igreja do seu tempo. Pode haver, desse modo, todo um programa de reforma da Igreja do século XXI embutido nessa escolha.
Nada mais oportuno e necessário. A Igreja está mesmo precisando rever posições que não respondem mais (se é que alguma vez responderam) aos anseios da humanidade.
Questões como a do aborto, do celibato clerical, da ordenação de mulheres, do casamento de homossexuais são atuais, que reclamam uma definição mais clara da Igreja.
Consta que o novo papa, quando bispo de Buenos Aires, tinha posições conservadores. A expressão utilizada por boa parte de comentaristas, nacionais e estrangeiros, que fizeram essa observação é a de que se trata de um “conservador não extremado”.
O que isto quer dizer, ainda não se sabe bem, e de pouco vale para tanto a lembrança das posições que assumiu como bispo. Todos sabem que as posições dos bispos em relação a certas questões são mais a expressão de posições da Cúria Romana do que de pensamentos próprios. Como papa, podem ser outras as posturas de Francisco.
Aguardemos, portanto, na expectativa de que os sinais de alguma esperança dos primeiros dias possam se confirmar.
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Filmes
O filme “A pele que habito”, de Pedro Almodóvar, rompe deliberadamente com expectativas de gêneros ao explorar o tema da construção sociocultural dos papéis masculino e feminino por meio da situação-limite da transexualidade forçada, que se origina de uma trama de vingança – em si mesma equivocada enquanto trama de vingança – de um pai/cientista que, tropologicamente, sobrepõe Pigmaleão e Frankenstein em sua caracterização dramática.
O filme se mantém numa zona liminar ao sobrepor uma trama de ficção científica – em chave biotecnológica – ao tema da transexualidade. Os dois gêneros (literário e sexual) não se realizam de fato, embora o roteiro tenha sido engenhosamente concebido para criar tal expectativa ao não seguir uma linearidade cronológica. Somente ao final percebemos que Vicente/Vera (transexualidade forçada) não realiza o que seria previsível no gênero de ficção científica de chave biotecnológica: o mutante não assume efetivamente as pressupostas características psicológicas do novo ‘corpo’ (em si mesmo, uma ilusão montada por meio da castração cirúrgico-psicológica e de ‘pele de porco’), ou o assume estrategicamente, conforme uma expectativa estereotipada de papéis sexuais, como meio de sobreviver frente ao mundo de confinamento criado pelo cientista Robert e que provoca a sua vulnerabilidade momentânea, suportável porque aceita o ópio que Robert lhe oferece “para esquecer”.
No entanto, engenhosamente, as tópicas de Pigmaleão e Frankenstein se sobrepõem para, ao final, o drama de Frankenstein predominar: Robert se apaixona por Vera/Vicente (obra de arte/científica), mas é assassinado por Vicente/Vera (glória científica pretendida, mas não alcançada) que, valendo-se da técnica de Yoga durante o confinamento (aliás, o próprio confinamento preparatório de sua suposta nova identidade é análogo ao tipo de confinamento para aprendizado vivido pelo monstro de Victor Frankenstein), aprendeu a se refugiar em seu interior para não ser, de fato, tocado/penetrado por Robert. Portanto, a tópica de Pigmaleão é ilusória, havendo uma subversão das expectativas dos gêneros literário e sexual: a potência biotecnológica não transforma Vicente em Vera, pois Vicente apenas habita o corpo que lhe foi imposto pela mistura, em Robert, (1) de vingança pessoal pelo suicídio da filha, (2) de glória científica e (3) de obsessão com a esposa adúltera suicida.
A trama principal pode ser resumida da seguinte forma:
1- O cientista Robert vive o luto da esposa e da morte da filha. Ambas se suicidaram jogando-se de janelas, mas por motivações distintas. A esposa adúltera havia sofrido um acidente de automóvel, que a carbonizou, quando tentava fugir de Robert ao se apaixonar por Brutus (nome-emblema para o viés traiçoeiro e sangrento do personagem). Brutus e Robert eram irmãos, mas não sabiam disso, filhos da governanta de El Cigarral. A esposa de Robert sobrevive ao acidente, pois ele fica obcecado com a ideia de “devolver-lhe a vida” por meio de suas práticas científicas. Ela é reconstruída num ambiente privado de luz e beleza primaveris, tal como o monstro de Victor Frankenstein. Assim, ela sobrevive ao acidente, mas fica gravemente deformada. Numa manhã, ao ouvir a sua filha Norma cantando no quintal, aproxima-se da janela. Até então havia sido retirado da casa tudo que pudesse refletir imagem. No entanto, ao se aproximar da janela, viu sua imagem no vidro, ficou tomada pelo horror e se jogou da janela, morrendo perante a filha que, traumatizada, ficou por seis anos aos cuidados de uma clínica psiquiátrica.
2- Os médicos de Norma convencem Robert, seis anos depois, a tentar uma ressocialização da filha, assistida por muitos remédios. Então, Norma e Robert vão a uma festa de casamento, onde ela encontra Vicente, que se drogava. Robert se descuida de Norma, que vai para o jardim com Vicente. Norma está trajada num rosa pueril, que se estende da sandália ao casaco de crochê. Tudo isso sinaliza que ela ainda está retida numa redoma emocional infantil. Ambos têm uma conversa dissonante, pois Vicente pensa que Norma, tal como ele, estaria ‘alta’ devido ao uso de drogas por farra, não por razões clínica. Eles começam a se beijar e a excitação sexual os toma de forma diferente: Vicente quer o corpo daquela mulher e ensaia a penetração; ela não sabe o que quer, mas, no meio daquela excitação – uma novidade para uma menina emocional em corpo de mulher – sente a penetração e começa a gritar. Vicente não entende a reação, pois achava que havia consentimento. Drogado e exasperado pelos gritos de Norma, coloca a mão em sua boca para calá-la, mas não força o sexo. No entanto, institivamente, Norma o morde. Vicente reage, em reflexo, dando um tapa em seu rosto, que a deixa desacordada.
3- A situação entre Vicente e Norma é liminar, como várias outras ao longo do filme, mas esta se evidencia como uma cena que não foi de estupro: ao vê-la desacordada, Vicente não se aproveita da situação e, com delicada erotização, veste o corpo de Norma, o que evoca a cena na loja de sua mãe, quando veste um manequim de palha com equivalente erotização. Vicente ‘foge’ com sua moto e Robert chega. Ao encontrar a filha, esta acorda em surto psicótico e passa a associar a imagem do pai àquela do ‘estuprador’. Por conta disso, os próprios médicos de Norma aconselham Robert a não ver a filha no hospital com tanta frequência, o que é mais uma situação liminar, pois os médicos não estão completamente seguros da inocência de Robert em relação ao suposto ‘estupro’ da filha. Dias depois, sabemos que Norma se matou, jogando-se da janela da clínica. Tudo isso vai alimentar o ódio vingativo de Robert contra Vicente.
4- Robert rapta Vicente, tenta manipular sua mente por meio do confinamento e mistura sua ânsia de vingança contra o ‘estuprador’ de sua filha com a oportunidade de glória científica, ao foçar, por meio de cirurgias e transgenia, a transexualização do corpo de Vicente. Mais uma zona liminar é, portanto, construída no filme: a vingança contra o suposto ‘estuprador’ retira a barreira moral quanto ao uso de cobaias humanas para seus experimentos científicos. À medida que vai construindo a sua obra de arte – deliberadamente uma recuperação da imagem da esposa suicida –, Robert se apaixona por ela, mas o obra, de fato, não se molda afetivamente às suas expectativas pigmaleônicas. Robert somente descobre isso quando a obra se volta conta ele, destruindo-o. Depois que o filme faz a transição entre o ator (Jan Cornet) e a atriz (Elena Anaya) que encarnam Vicente/Vera, é Robert que rebatiza Vicente como Vera, para seu patente desconforto. Como sabemos, nas conquistas de ‘novos mundos’, nomear é um ato de domínio/posse: Robert passa a chamar, emblematicamente, Vicente de Vera Cruz.
Vera Cruz não é a única alusão situacional ao Brasil: quando canta a música no jardim de sua casa que atrai sua mãe, fatidicamente, para o suicídio, Norma usa prosódia brasileira, com leve sotaque espanhol; Brutus passou um tempo na Bahia, fazendo alusão focal ao seu carnaval, que é emblema cultural estereotípico de transexualidade/travestimento; compõe o cenário da casa de Robert um quadro de Tarcila do Amaral, intitulado “Paisagem com Ponte”, que se associa ao tema da liminaridade, ambivalência ou transitividade social, pessoal e espacial.
A situação de Vicente/Vera se torna ainda mais liminar à medida que Robert não tem o aval esperado da comunidade científica para continuar as suas experiências transgênicas com pessoas, o que significa que a existência de Vicente/Vera é um risco calculado do qual não quer abrir mão. À medida que, aos olhos de Robert, Vera é somente Vera, permite-se apaixonar por ela, pois é um simulacro de esposa renascida e, aos poucos, o ódio pelo que supostamente Vicente teria causado à sua filha vai ficando para trás. Vicente, por sua vez, faz uso estratégico de sua ‘vulnerabilidade feminina’ e entra no papel de Vera, tentando corresponder às expectativas de Robert e ganhar a sua confiança.
No entanto, o aparente laço de confiança entre Robert e Vera ocorre depois do encontro traumático com Brutus, que invade El Cigarral com a ajuda involuntária da mãe, que volta a ser governanta da casa. Vicente aproveita esta oportunidade e tenta fugir, mas é capturado por Brutus. Sem saída, Vicente usa seu corpo de Vera para sexo com Brutus (mais uma vez, o tema do ‘estupro’ fica numa zona liminar), vendo nisso um meio de fugir do cativeiro. No entanto, Brutus queria o corpo de Vera para sexo e sequestro, de modo a foçar Robert a fazer uma operação plástica que pudesse salvá-lo da perseguição da polícia depois de um roubo à joalheria. Robert chega em casa enquanto Brutus penetra fortemente em Vera/Vicente. Ao flagrá-lo sobre Vera, aponta a arma primeiramente para ela, que sinaliza com o olhar de desespero que aquilo não é ‘consentido’. Então, Robert mata Brutus.
A partir daí, por meio do relato da governanta, Vera fica sabendo das histórias de perdas familiares de Robert. Vicente permite-se alguma empatia pelo seu algoz, ensaiando psicologicamente o que poderia aparentar uma “síndrome de Estocolmo”, o que cria a ilusão no expectador de que a tópica de Pigmaleão vai predominar sobre a tópica de Frankenstein. No entanto, em nenhum momento a trilha sonora do filme moraliza positivamente a relação Robert/Vera. Vera não é “Uma Linda Mulher”. Vicente permanece vivo embaixo de sua pele e inacessível para Robert.
O cenário do filme sutilmente sugere que Vicente se inspira nas personagens femininas e temas da ambivalência sexual das novelas de Alice Munro (n. 1931) para compor um simulacro de feminino para Robert, enquanto estampa a sua resistência psicológica – nos escritos e desenhos da parede do quarto de confinamento e nas esculturas que faz – com alusões à obra da artista plástica e militante LGBT Louise Bourgeois (1911-2010). Aliás, nos agradecimentos da ficha técnica do filme, Pedro Almodóvar diz: “Obrigado a Louise Bourgeois, cuja obra não apenas me emocionou, mas também serviu de salvação para a personagem Vera”.
Vicente era heterossexual antes de ser submetido à transexualidade forçada e somente física. Trabalhava no brechó da mãe junto com sua bela ajudante lésbica, que achava que Vicente gostava de homens devido ao modo como vivia a sua masculinidade voltada para a sensibilidade das artes. O diálogo entre ele e a ajudante lésbica do brechó serve para demarcar mais uma zona liminar no filme: a ajudante lésbica, que não era masculinizada, pressupunha que Vicente fosse gay porque não era ‘machão’. Por sua vez, mesmo sabendo de sua orientação lésbica, Vicente gostava de flertar com ela. No diálogo entre ambos, Vicente fala que gostaria de trajá-la com um vestido de seu gosto, ao qual ela responde que era ele que deveria vesti-lo. Em resposta, Vicente diz que ela estaria muito equivocada a seu respeito.
É justamente este vestido e a lembrança deste diálogo que possibilitará que Vicente seja reconhecido por ela e, por conseguinte, possa convencer a sua mãe que, no corpo de Vera, ainda habita Vicente. Em vários momentos, seja com Brutus, seja com Robert, Vicente sentia desconforto – mais psicológico do que físico, considerando que usa a maior prótese peniana para formar, sob as prescrições médicas de Robert, o ‘seu’ canal vaginal – com a penetração, tanto que, antes de assassinar Robert, não aceita a ideia de penetração anal e, mais uma vez, tenta postergar a penetração vaginal, alegando dor devido à brutalidade sexual de Brutus.
Ao final do filme, a tríade entre (1) Vicente em corpo de ‘Vera’, a (2) ajudante lésbica que permaneceu no brechó depois de seis anos e a (3) mãe enlutada aponta para uma possibilidade de configuração liminar de família: a solução afetiva para Vicente seria uma relação lésbica ao nível da pele, mas que não seria lésbica ao nível do seu self psicológico, pois a vaginoplastia foi uma imposição vinda de fora, não gerando em Vicente o real desejo de ter intercursos sexuais vaginais com ‘homens’ ao modo de uma expectativa patriarcal, machista e heteronormativa de papéis de gênero; a ajudante lésbica – já integrada à rotina comercial e familiar da mãe enlutada de Vicente – poderia ser esta possibilidade de parceria afetiva e cúmplice do segredo atroz que cerca a ‘escapada’ (“Runaway”, Alice Munro) de Vicente, que fugiu do cativeiro por meio do corpo de Vera e somente poderia ser identificado/resgatado pela amiga lésbica.
Este filme mereceria um ensaio mais longo, que explorasse, no detalhe, o processo de formação de elenco, as alegorias e citações no cenário (presença de livros, quadros e citação de autores), a trilha sonora, o figurino, a caracterização dos personagens, as sequências e sobreposições fotogramáticas, enfim, tudo que cercasse a sua materialidade, mas as regras do blog “Ensaios sobre Cinema” apenas me permitem provocar um interesse que não exceda a quatro páginas – e, aqui, vejo que já me excedi…
Assim, gostaria que vocês, ao assistirem ao filme, observassem a recorrente presença da liminaridade nos detalhes cênicos, pois mantêm vínculo orgânico com a trama principal. Tudo no filme foi estruturado para romper com algumas expectativas de gênero literário-cinematográfico e sexual, combatendo simplificações e evidenciando, por meio de uma situação-limite (a transexualidade forçada como forma de vingança), as convenções que fundam a potencial violência (simbólica e física) dos preconceitos e fronteiras socioculturais que configuram expectativas sobre papéis sexuais e afetivos.
Ao transformar Vicente no mutante biotecnológico Vera, Robert só mudou a pele, mas não o self psicológico de Vicente. Deste modo, o filme contraria, por um lado, a expectativa do gênero de ficção científica de chave biotecnológica; por outro lado, a transexualidade forçada de Vicente não termina em suicídio, mas em reação vingativa da criatura contra o criador, ao modo da tópica do monstro de Frankenstein. Contudo, na vida fora do filme, muitos casos de transexualidade, não forçados por um indivíduo vingativo como Robert, mas forçados ou impedidos por costumes coletivos patriarcais, heteronormativos e anônimos – que se traduzem em leis ou na negligência regulamentar das mesmas em proteger e aperfeiçoar a igualdade civil – terminam em suicídio.
(Autor?)
O filme se mantém numa zona liminar ao sobrepor uma trama de ficção científica – em chave biotecnológica – ao tema da transexualidade. Os dois gêneros (literário e sexual) não se realizam de fato, embora o roteiro tenha sido engenhosamente concebido para criar tal expectativa ao não seguir uma linearidade cronológica. Somente ao final percebemos que Vicente/Vera (transexualidade forçada) não realiza o que seria previsível no gênero de ficção científica de chave biotecnológica: o mutante não assume efetivamente as pressupostas características psicológicas do novo ‘corpo’ (em si mesmo, uma ilusão montada por meio da castração cirúrgico-psicológica e de ‘pele de porco’), ou o assume estrategicamente, conforme uma expectativa estereotipada de papéis sexuais, como meio de sobreviver frente ao mundo de confinamento criado pelo cientista Robert e que provoca a sua vulnerabilidade momentânea, suportável porque aceita o ópio que Robert lhe oferece “para esquecer”.
No entanto, engenhosamente, as tópicas de Pigmaleão e Frankenstein se sobrepõem para, ao final, o drama de Frankenstein predominar: Robert se apaixona por Vera/Vicente (obra de arte/científica), mas é assassinado por Vicente/Vera (glória científica pretendida, mas não alcançada) que, valendo-se da técnica de Yoga durante o confinamento (aliás, o próprio confinamento preparatório de sua suposta nova identidade é análogo ao tipo de confinamento para aprendizado vivido pelo monstro de Victor Frankenstein), aprendeu a se refugiar em seu interior para não ser, de fato, tocado/penetrado por Robert. Portanto, a tópica de Pigmaleão é ilusória, havendo uma subversão das expectativas dos gêneros literário e sexual: a potência biotecnológica não transforma Vicente em Vera, pois Vicente apenas habita o corpo que lhe foi imposto pela mistura, em Robert, (1) de vingança pessoal pelo suicídio da filha, (2) de glória científica e (3) de obsessão com a esposa adúltera suicida.
A trama principal pode ser resumida da seguinte forma:
1- O cientista Robert vive o luto da esposa e da morte da filha. Ambas se suicidaram jogando-se de janelas, mas por motivações distintas. A esposa adúltera havia sofrido um acidente de automóvel, que a carbonizou, quando tentava fugir de Robert ao se apaixonar por Brutus (nome-emblema para o viés traiçoeiro e sangrento do personagem). Brutus e Robert eram irmãos, mas não sabiam disso, filhos da governanta de El Cigarral. A esposa de Robert sobrevive ao acidente, pois ele fica obcecado com a ideia de “devolver-lhe a vida” por meio de suas práticas científicas. Ela é reconstruída num ambiente privado de luz e beleza primaveris, tal como o monstro de Victor Frankenstein. Assim, ela sobrevive ao acidente, mas fica gravemente deformada. Numa manhã, ao ouvir a sua filha Norma cantando no quintal, aproxima-se da janela. Até então havia sido retirado da casa tudo que pudesse refletir imagem. No entanto, ao se aproximar da janela, viu sua imagem no vidro, ficou tomada pelo horror e se jogou da janela, morrendo perante a filha que, traumatizada, ficou por seis anos aos cuidados de uma clínica psiquiátrica.
2- Os médicos de Norma convencem Robert, seis anos depois, a tentar uma ressocialização da filha, assistida por muitos remédios. Então, Norma e Robert vão a uma festa de casamento, onde ela encontra Vicente, que se drogava. Robert se descuida de Norma, que vai para o jardim com Vicente. Norma está trajada num rosa pueril, que se estende da sandália ao casaco de crochê. Tudo isso sinaliza que ela ainda está retida numa redoma emocional infantil. Ambos têm uma conversa dissonante, pois Vicente pensa que Norma, tal como ele, estaria ‘alta’ devido ao uso de drogas por farra, não por razões clínica. Eles começam a se beijar e a excitação sexual os toma de forma diferente: Vicente quer o corpo daquela mulher e ensaia a penetração; ela não sabe o que quer, mas, no meio daquela excitação – uma novidade para uma menina emocional em corpo de mulher – sente a penetração e começa a gritar. Vicente não entende a reação, pois achava que havia consentimento. Drogado e exasperado pelos gritos de Norma, coloca a mão em sua boca para calá-la, mas não força o sexo. No entanto, institivamente, Norma o morde. Vicente reage, em reflexo, dando um tapa em seu rosto, que a deixa desacordada.
3- A situação entre Vicente e Norma é liminar, como várias outras ao longo do filme, mas esta se evidencia como uma cena que não foi de estupro: ao vê-la desacordada, Vicente não se aproveita da situação e, com delicada erotização, veste o corpo de Norma, o que evoca a cena na loja de sua mãe, quando veste um manequim de palha com equivalente erotização. Vicente ‘foge’ com sua moto e Robert chega. Ao encontrar a filha, esta acorda em surto psicótico e passa a associar a imagem do pai àquela do ‘estuprador’. Por conta disso, os próprios médicos de Norma aconselham Robert a não ver a filha no hospital com tanta frequência, o que é mais uma situação liminar, pois os médicos não estão completamente seguros da inocência de Robert em relação ao suposto ‘estupro’ da filha. Dias depois, sabemos que Norma se matou, jogando-se da janela da clínica. Tudo isso vai alimentar o ódio vingativo de Robert contra Vicente.
4- Robert rapta Vicente, tenta manipular sua mente por meio do confinamento e mistura sua ânsia de vingança contra o ‘estuprador’ de sua filha com a oportunidade de glória científica, ao foçar, por meio de cirurgias e transgenia, a transexualização do corpo de Vicente. Mais uma zona liminar é, portanto, construída no filme: a vingança contra o suposto ‘estuprador’ retira a barreira moral quanto ao uso de cobaias humanas para seus experimentos científicos. À medida que vai construindo a sua obra de arte – deliberadamente uma recuperação da imagem da esposa suicida –, Robert se apaixona por ela, mas o obra, de fato, não se molda afetivamente às suas expectativas pigmaleônicas. Robert somente descobre isso quando a obra se volta conta ele, destruindo-o. Depois que o filme faz a transição entre o ator (Jan Cornet) e a atriz (Elena Anaya) que encarnam Vicente/Vera, é Robert que rebatiza Vicente como Vera, para seu patente desconforto. Como sabemos, nas conquistas de ‘novos mundos’, nomear é um ato de domínio/posse: Robert passa a chamar, emblematicamente, Vicente de Vera Cruz.
Vera Cruz não é a única alusão situacional ao Brasil: quando canta a música no jardim de sua casa que atrai sua mãe, fatidicamente, para o suicídio, Norma usa prosódia brasileira, com leve sotaque espanhol; Brutus passou um tempo na Bahia, fazendo alusão focal ao seu carnaval, que é emblema cultural estereotípico de transexualidade/travestimento; compõe o cenário da casa de Robert um quadro de Tarcila do Amaral, intitulado “Paisagem com Ponte”, que se associa ao tema da liminaridade, ambivalência ou transitividade social, pessoal e espacial.
A situação de Vicente/Vera se torna ainda mais liminar à medida que Robert não tem o aval esperado da comunidade científica para continuar as suas experiências transgênicas com pessoas, o que significa que a existência de Vicente/Vera é um risco calculado do qual não quer abrir mão. À medida que, aos olhos de Robert, Vera é somente Vera, permite-se apaixonar por ela, pois é um simulacro de esposa renascida e, aos poucos, o ódio pelo que supostamente Vicente teria causado à sua filha vai ficando para trás. Vicente, por sua vez, faz uso estratégico de sua ‘vulnerabilidade feminina’ e entra no papel de Vera, tentando corresponder às expectativas de Robert e ganhar a sua confiança.
No entanto, o aparente laço de confiança entre Robert e Vera ocorre depois do encontro traumático com Brutus, que invade El Cigarral com a ajuda involuntária da mãe, que volta a ser governanta da casa. Vicente aproveita esta oportunidade e tenta fugir, mas é capturado por Brutus. Sem saída, Vicente usa seu corpo de Vera para sexo com Brutus (mais uma vez, o tema do ‘estupro’ fica numa zona liminar), vendo nisso um meio de fugir do cativeiro. No entanto, Brutus queria o corpo de Vera para sexo e sequestro, de modo a foçar Robert a fazer uma operação plástica que pudesse salvá-lo da perseguição da polícia depois de um roubo à joalheria. Robert chega em casa enquanto Brutus penetra fortemente em Vera/Vicente. Ao flagrá-lo sobre Vera, aponta a arma primeiramente para ela, que sinaliza com o olhar de desespero que aquilo não é ‘consentido’. Então, Robert mata Brutus.
A partir daí, por meio do relato da governanta, Vera fica sabendo das histórias de perdas familiares de Robert. Vicente permite-se alguma empatia pelo seu algoz, ensaiando psicologicamente o que poderia aparentar uma “síndrome de Estocolmo”, o que cria a ilusão no expectador de que a tópica de Pigmaleão vai predominar sobre a tópica de Frankenstein. No entanto, em nenhum momento a trilha sonora do filme moraliza positivamente a relação Robert/Vera. Vera não é “Uma Linda Mulher”. Vicente permanece vivo embaixo de sua pele e inacessível para Robert.
O cenário do filme sutilmente sugere que Vicente se inspira nas personagens femininas e temas da ambivalência sexual das novelas de Alice Munro (n. 1931) para compor um simulacro de feminino para Robert, enquanto estampa a sua resistência psicológica – nos escritos e desenhos da parede do quarto de confinamento e nas esculturas que faz – com alusões à obra da artista plástica e militante LGBT Louise Bourgeois (1911-2010). Aliás, nos agradecimentos da ficha técnica do filme, Pedro Almodóvar diz: “Obrigado a Louise Bourgeois, cuja obra não apenas me emocionou, mas também serviu de salvação para a personagem Vera”.
Vicente era heterossexual antes de ser submetido à transexualidade forçada e somente física. Trabalhava no brechó da mãe junto com sua bela ajudante lésbica, que achava que Vicente gostava de homens devido ao modo como vivia a sua masculinidade voltada para a sensibilidade das artes. O diálogo entre ele e a ajudante lésbica do brechó serve para demarcar mais uma zona liminar no filme: a ajudante lésbica, que não era masculinizada, pressupunha que Vicente fosse gay porque não era ‘machão’. Por sua vez, mesmo sabendo de sua orientação lésbica, Vicente gostava de flertar com ela. No diálogo entre ambos, Vicente fala que gostaria de trajá-la com um vestido de seu gosto, ao qual ela responde que era ele que deveria vesti-lo. Em resposta, Vicente diz que ela estaria muito equivocada a seu respeito.
É justamente este vestido e a lembrança deste diálogo que possibilitará que Vicente seja reconhecido por ela e, por conseguinte, possa convencer a sua mãe que, no corpo de Vera, ainda habita Vicente. Em vários momentos, seja com Brutus, seja com Robert, Vicente sentia desconforto – mais psicológico do que físico, considerando que usa a maior prótese peniana para formar, sob as prescrições médicas de Robert, o ‘seu’ canal vaginal – com a penetração, tanto que, antes de assassinar Robert, não aceita a ideia de penetração anal e, mais uma vez, tenta postergar a penetração vaginal, alegando dor devido à brutalidade sexual de Brutus.
Ao final do filme, a tríade entre (1) Vicente em corpo de ‘Vera’, a (2) ajudante lésbica que permaneceu no brechó depois de seis anos e a (3) mãe enlutada aponta para uma possibilidade de configuração liminar de família: a solução afetiva para Vicente seria uma relação lésbica ao nível da pele, mas que não seria lésbica ao nível do seu self psicológico, pois a vaginoplastia foi uma imposição vinda de fora, não gerando em Vicente o real desejo de ter intercursos sexuais vaginais com ‘homens’ ao modo de uma expectativa patriarcal, machista e heteronormativa de papéis de gênero; a ajudante lésbica – já integrada à rotina comercial e familiar da mãe enlutada de Vicente – poderia ser esta possibilidade de parceria afetiva e cúmplice do segredo atroz que cerca a ‘escapada’ (“Runaway”, Alice Munro) de Vicente, que fugiu do cativeiro por meio do corpo de Vera e somente poderia ser identificado/resgatado pela amiga lésbica.
Este filme mereceria um ensaio mais longo, que explorasse, no detalhe, o processo de formação de elenco, as alegorias e citações no cenário (presença de livros, quadros e citação de autores), a trilha sonora, o figurino, a caracterização dos personagens, as sequências e sobreposições fotogramáticas, enfim, tudo que cercasse a sua materialidade, mas as regras do blog “Ensaios sobre Cinema” apenas me permitem provocar um interesse que não exceda a quatro páginas – e, aqui, vejo que já me excedi…
Assim, gostaria que vocês, ao assistirem ao filme, observassem a recorrente presença da liminaridade nos detalhes cênicos, pois mantêm vínculo orgânico com a trama principal. Tudo no filme foi estruturado para romper com algumas expectativas de gênero literário-cinematográfico e sexual, combatendo simplificações e evidenciando, por meio de uma situação-limite (a transexualidade forçada como forma de vingança), as convenções que fundam a potencial violência (simbólica e física) dos preconceitos e fronteiras socioculturais que configuram expectativas sobre papéis sexuais e afetivos.
Ao transformar Vicente no mutante biotecnológico Vera, Robert só mudou a pele, mas não o self psicológico de Vicente. Deste modo, o filme contraria, por um lado, a expectativa do gênero de ficção científica de chave biotecnológica; por outro lado, a transexualidade forçada de Vicente não termina em suicídio, mas em reação vingativa da criatura contra o criador, ao modo da tópica do monstro de Frankenstein. Contudo, na vida fora do filme, muitos casos de transexualidade, não forçados por um indivíduo vingativo como Robert, mas forçados ou impedidos por costumes coletivos patriarcais, heteronormativos e anônimos – que se traduzem em leis ou na negligência regulamentar das mesmas em proteger e aperfeiçoar a igualdade civil – terminam em suicídio.
(Autor?)
Israel
Lawrence Davidson: “Algo de podre no estado de Israel”
25/3/2013, Lawrence Davidson, To the point analysis
“The Holy Land Gets Skunked”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Lawrence Davidson
Diz-se que o diabo arrasta com ele um fedor de fogo e enxofre. Os feitos do diabo são frequentemente descritos como “o mal mais alucinado” [1]. E quem pareça (seja ou não seja) inocente é sempre descrito como “cheirando a rosas”. Parece haver, pois, associação antiga entre feitos e fedores.
O exército israelense recentemente se empenhou em demonstrar essa associação. Dia 6 de março, o Middle East Monitor noticiou que:
...o exército de Israel atacou casas de palestinos na vila de Nabi Saleh com jatos de água podre de esgoto, como punição aos palestinos que organizavam protestos semanais contra o Muro do Apartheid construído em terra roubada. O grupo de defesa de direitos humanos B’Tselem publicou um vídeo (a seguir) no qual se veem caminhões-tanques blindados israelenses, armados com “canhões d’água”, lançando água podre de esgotos sobre casas de palestinos.
A água podre de esgoto é líquido tão mal-cheiroso que não há quem não se afaste para o mais longe que possa, de quem feda como fede aquela água podre. Não é a primeira vez que o exército de Israel usa esse tipo de tática imunda.
Os colonos sionistas orgulham-se muito da prática de lançar os esgotos bem longe das próprias colônias, quase sempre erguidas nas áreas mais altas, diretamente nos campos e cidades palestinas, nos vales abaixo. Ao que tudo indica, são práticas conhecidas e, muito provavelmente, aprovadas pelo estado de Israel.
Duvido que muitos dos israelenses envolvidos nessas manobras tenham algum dia lido O Inferno, de Dante. Naquele poema épico, o inferno é lugar afogado em esgoto e podridão: as ações dos israelenses parecem desejar reproduzir o mesmo cenário. Estarão os israelenses dedicados a converter em inferno a Terra Santa? Sim, pelo menos no que tenha a ver com os palestinos. Por isso os colonos e os soldados copiam os passos dos amaldiçoados de Dante.
David Ward
Até onde vai o fedor das ações dos israelenses? Com certeza chega até Londres. Recentemente, o deputado David Ward, do partido Democrático Liberal escreveu num livro de visitas do Memorial do Holocausto que:
...tendo visitado Auschwitz duas vezes (...) muito me entristece ver que os judeus, vítimas de níveis inacreditáveis de perseguição durante o Holocausto, já estivessem, poucos anos depois de libertados daqueles campos de morte, a infligir tais atrocidades aos palestinos no novo Estado de Israel e que continuem a fazer o mesmo até hoje, diariamente, na Cisjordânia e em Gaza.
A referência que Ward fez a “os judeus” é qualificada, porque nem todos os judeus apoiam o sionismo, nem a ideia de que Israel tenha algum direito a ocupar “Judéia e Samaria”, muito menos a comandar pogroms como se veem hoje, em ações de limpeza étnica em áreas que o estado israelense controla. A verdade é que cada dia mais e mais judeus norte-americanos manifestam-se contra o que Israel faz na Palestina.
Mas Ward acerta no que diz do comportamento do “estado judeu”. E é possível que a generalização errada, na frase de Ward, seja resultado da propaganda israelense, que nunca se cansa de repetir que Israel representa(ria) todos os judeus do mundo.
Mas nem todos dão sinais de desgostar do fedor que emana do estado de Israel: há os que gostam. O partido Liberal Democrático do deputado Ward chamou-o às falas, pelo crime de ter denunciado que os crimes do mal mais alucinado continua a ser praticados contra os palestinos, por autoproclamados representantes de todos os judeus.
Teria bastado uma advertência discreta, que lembrasse Ward de que, em todos os casos, devem-se evitar generalizações. Mas, usando processo semelhante ao que se vê nos regimes totalitários, o partido Liberal Democrático ordenou que o deputado
...procure a divisão do partido chamada Amigos de Israel, para informar-se sobre o correto linguajar que os deputados devem empregar sempre que falarem sobre o conflito Israel-palestinos.
O deputado obedeceu e distribuiu as exigidas desculpas públicas. Meu nariz fareja aí um horrível fedor de censura.
Mas uma coisa é punir alguém por chamar a atenção para o abjeto comportamento de Israel. Outra, diferente, é insistir no desatino de pretender que o que é insano e abjeto seria justo e bom. Haveria alguém suficientemente cínico, impiedoso, a ponto de impor a outros seres humanos esse tipo de castigo nauseabundo e em seguida elogiar o castigo e todo o fedor, ante as câmeras de televisão de todo mundo? Parece que há. Parece que vive em Washington, onde negar os fedores que emanam de Israel é prática quase unânime. Parece que é presidente dos EUA.
Dia 15/3, antes de partir para visitar Israel, o presidente Obama disse, em entrevista ao Canal 2 da televisão israelense (ver a seguir, em inglês e legendado em ídiche), que admira muito “os valores centrais” de Israel.
Em análise que publicou depois, o jornalista israelense Gideon Levy – que tem nariz honesto e fareja podridões onde as haja – perguntou:
Gideon Levy
...de que valores Obama falava? De desumanizar os palestinos? Da atitude contra migrantes africanos? Da arrogância? Do racismo? Do nacionalismo? Obama admira isso? Será que jamais, antes, ouviu falar de ônibus segregados (palestinos não entram)? Será que jamais antes ouviu falar de comunidades convivendo no mesmo território, uma com todos os direitos, a outra sem nenhum direito? Terá esquecido... tudo?!
Dizer que admira “os valores centrais” de um dos países mais racistas do mundo, onde há muro e políticas de apartheid, significa, isso sim, trair todos os valores centrais do movimento pelos direitos civis nos EUA – o movimento que tornou possível o milagre-Obama.
O caso é que, chegado a Israel, o presidente Obama disse que o apoio dos EUA àquela Israel que Levy descreve será “eterno”, forever. Deve-se acrescentar que, ao mesmo tempo, o presidente insistiu que os palestinos parem de querer o fim das construções nas colônias em território ocupado e das correspondentes políticas de esgoto podre... ou jamais terão qualquer conversação de “paz” com os israelenses.
No que tenha a ver com Israel, nem o presidente Obama, nem a maior parte dos políticos no Congresso dos EUA são capazes de ver a diferença entre o certo e o errado, entre o justo e o “mal mais alucinado”. Por isso vivem num mundo à parte, estanque, só deles, cujos parâmetros e “valores” são definidos e “ensinados” a eles por um lobby sionista ao qual se deram poderes orwellianos.
Nesse mundo excepcional, abunda o duplipensar. Racismo, apartheid, limpeza étnica e o uso tático de água podre de esgotos e Skunk desaparecem, substituídos por imaginários “valores centrais” que cheiram a rosas.
O presidente, se quiser, que se afogue o quanto queira, privadamente, nos fedores mais nauseabundos, e chame-os de cheiro de rosa o quanto queira. Mas quando tenta vender a nós todos a falcatrua, é a credibilidade de seus discursos que se vai pelo esgoto. Lembremos o que George Orwell ensinou sobre o mau uso do discurso político.
Usada para o mal mais desatinado, a fala política torna possível “defender o indefensável” e “foi construída para fazer mentiras soarem como verdades, para tornar respeitável o assassinato e para dar ao vento aparência de solidez”. A isso está reduzida a fala da maioria dos políticos, no que tenha a ver com Israel/Palestina.
Que isso continuará forever, como quer o presidente Obama, é puro exagero, hipérbole. Considere-se um recente relatório da CIA, que questiona a capacidade do estado sionista para conseguir sobreviver outros vinte anos.
A verdade é que o fedor que emana de Israel indica podridão sociopolítica intestina, tão podre quanto as táticas podres que Israel usa contra moradores não judeus. Mais cedo ou mais tarde, qualquer homem, qualquer mulher que ainda preserve boa consciência humana (e melhor se mantiverem também nariz honesto e em funcionamento) passarão a recusar a ter qualquer associação ou contato com esse estado, na prática, já estado de apartheid.
Nota dos tradutores
[1] Orig. “most foul”. A expressão aparece em Hamlet, ato 1, cena 5, quando o espectro do rei assassinado conta a Hamlet sobre o crime de que foi vítima: Murder most foul, as in the best it is, but this most foul, strange and unnatural” [aprox. “Assassinato é sempre [o mal] mais alucinado, mas esse do qual falo é o mais alucinado de todos, estranho, contra a natureza”]. Foul sempre significa “mau”, em algum sentido. O espectro diz a Hamlet que, dentre os assassinatos, sempre o pior dos crimes, assassinar o próprio irmão é o crime pior.
Postado por Castor Filho às 17:27:00
(Redecastor)
25/3/2013, Lawrence Davidson, To the point analysis
“The Holy Land Gets Skunked”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Lawrence Davidson
Diz-se que o diabo arrasta com ele um fedor de fogo e enxofre. Os feitos do diabo são frequentemente descritos como “o mal mais alucinado” [1]. E quem pareça (seja ou não seja) inocente é sempre descrito como “cheirando a rosas”. Parece haver, pois, associação antiga entre feitos e fedores.
O exército israelense recentemente se empenhou em demonstrar essa associação. Dia 6 de março, o Middle East Monitor noticiou que:
...o exército de Israel atacou casas de palestinos na vila de Nabi Saleh com jatos de água podre de esgoto, como punição aos palestinos que organizavam protestos semanais contra o Muro do Apartheid construído em terra roubada. O grupo de defesa de direitos humanos B’Tselem publicou um vídeo (a seguir) no qual se veem caminhões-tanques blindados israelenses, armados com “canhões d’água”, lançando água podre de esgotos sobre casas de palestinos.
A água podre de esgoto é líquido tão mal-cheiroso que não há quem não se afaste para o mais longe que possa, de quem feda como fede aquela água podre. Não é a primeira vez que o exército de Israel usa esse tipo de tática imunda.
Os colonos sionistas orgulham-se muito da prática de lançar os esgotos bem longe das próprias colônias, quase sempre erguidas nas áreas mais altas, diretamente nos campos e cidades palestinas, nos vales abaixo. Ao que tudo indica, são práticas conhecidas e, muito provavelmente, aprovadas pelo estado de Israel.
Duvido que muitos dos israelenses envolvidos nessas manobras tenham algum dia lido O Inferno, de Dante. Naquele poema épico, o inferno é lugar afogado em esgoto e podridão: as ações dos israelenses parecem desejar reproduzir o mesmo cenário. Estarão os israelenses dedicados a converter em inferno a Terra Santa? Sim, pelo menos no que tenha a ver com os palestinos. Por isso os colonos e os soldados copiam os passos dos amaldiçoados de Dante.
David Ward
Até onde vai o fedor das ações dos israelenses? Com certeza chega até Londres. Recentemente, o deputado David Ward, do partido Democrático Liberal escreveu num livro de visitas do Memorial do Holocausto que:
...tendo visitado Auschwitz duas vezes (...) muito me entristece ver que os judeus, vítimas de níveis inacreditáveis de perseguição durante o Holocausto, já estivessem, poucos anos depois de libertados daqueles campos de morte, a infligir tais atrocidades aos palestinos no novo Estado de Israel e que continuem a fazer o mesmo até hoje, diariamente, na Cisjordânia e em Gaza.
A referência que Ward fez a “os judeus” é qualificada, porque nem todos os judeus apoiam o sionismo, nem a ideia de que Israel tenha algum direito a ocupar “Judéia e Samaria”, muito menos a comandar pogroms como se veem hoje, em ações de limpeza étnica em áreas que o estado israelense controla. A verdade é que cada dia mais e mais judeus norte-americanos manifestam-se contra o que Israel faz na Palestina.
Mas Ward acerta no que diz do comportamento do “estado judeu”. E é possível que a generalização errada, na frase de Ward, seja resultado da propaganda israelense, que nunca se cansa de repetir que Israel representa(ria) todos os judeus do mundo.
Mas nem todos dão sinais de desgostar do fedor que emana do estado de Israel: há os que gostam. O partido Liberal Democrático do deputado Ward chamou-o às falas, pelo crime de ter denunciado que os crimes do mal mais alucinado continua a ser praticados contra os palestinos, por autoproclamados representantes de todos os judeus.
Teria bastado uma advertência discreta, que lembrasse Ward de que, em todos os casos, devem-se evitar generalizações. Mas, usando processo semelhante ao que se vê nos regimes totalitários, o partido Liberal Democrático ordenou que o deputado
...procure a divisão do partido chamada Amigos de Israel, para informar-se sobre o correto linguajar que os deputados devem empregar sempre que falarem sobre o conflito Israel-palestinos.
O deputado obedeceu e distribuiu as exigidas desculpas públicas. Meu nariz fareja aí um horrível fedor de censura.
Mas uma coisa é punir alguém por chamar a atenção para o abjeto comportamento de Israel. Outra, diferente, é insistir no desatino de pretender que o que é insano e abjeto seria justo e bom. Haveria alguém suficientemente cínico, impiedoso, a ponto de impor a outros seres humanos esse tipo de castigo nauseabundo e em seguida elogiar o castigo e todo o fedor, ante as câmeras de televisão de todo mundo? Parece que há. Parece que vive em Washington, onde negar os fedores que emanam de Israel é prática quase unânime. Parece que é presidente dos EUA.
Dia 15/3, antes de partir para visitar Israel, o presidente Obama disse, em entrevista ao Canal 2 da televisão israelense (ver a seguir, em inglês e legendado em ídiche), que admira muito “os valores centrais” de Israel.
Em análise que publicou depois, o jornalista israelense Gideon Levy – que tem nariz honesto e fareja podridões onde as haja – perguntou:
Gideon Levy
...de que valores Obama falava? De desumanizar os palestinos? Da atitude contra migrantes africanos? Da arrogância? Do racismo? Do nacionalismo? Obama admira isso? Será que jamais, antes, ouviu falar de ônibus segregados (palestinos não entram)? Será que jamais antes ouviu falar de comunidades convivendo no mesmo território, uma com todos os direitos, a outra sem nenhum direito? Terá esquecido... tudo?!
Dizer que admira “os valores centrais” de um dos países mais racistas do mundo, onde há muro e políticas de apartheid, significa, isso sim, trair todos os valores centrais do movimento pelos direitos civis nos EUA – o movimento que tornou possível o milagre-Obama.
O caso é que, chegado a Israel, o presidente Obama disse que o apoio dos EUA àquela Israel que Levy descreve será “eterno”, forever. Deve-se acrescentar que, ao mesmo tempo, o presidente insistiu que os palestinos parem de querer o fim das construções nas colônias em território ocupado e das correspondentes políticas de esgoto podre... ou jamais terão qualquer conversação de “paz” com os israelenses.
No que tenha a ver com Israel, nem o presidente Obama, nem a maior parte dos políticos no Congresso dos EUA são capazes de ver a diferença entre o certo e o errado, entre o justo e o “mal mais alucinado”. Por isso vivem num mundo à parte, estanque, só deles, cujos parâmetros e “valores” são definidos e “ensinados” a eles por um lobby sionista ao qual se deram poderes orwellianos.
Nesse mundo excepcional, abunda o duplipensar. Racismo, apartheid, limpeza étnica e o uso tático de água podre de esgotos e Skunk desaparecem, substituídos por imaginários “valores centrais” que cheiram a rosas.
O presidente, se quiser, que se afogue o quanto queira, privadamente, nos fedores mais nauseabundos, e chame-os de cheiro de rosa o quanto queira. Mas quando tenta vender a nós todos a falcatrua, é a credibilidade de seus discursos que se vai pelo esgoto. Lembremos o que George Orwell ensinou sobre o mau uso do discurso político.
Usada para o mal mais desatinado, a fala política torna possível “defender o indefensável” e “foi construída para fazer mentiras soarem como verdades, para tornar respeitável o assassinato e para dar ao vento aparência de solidez”. A isso está reduzida a fala da maioria dos políticos, no que tenha a ver com Israel/Palestina.
Que isso continuará forever, como quer o presidente Obama, é puro exagero, hipérbole. Considere-se um recente relatório da CIA, que questiona a capacidade do estado sionista para conseguir sobreviver outros vinte anos.
A verdade é que o fedor que emana de Israel indica podridão sociopolítica intestina, tão podre quanto as táticas podres que Israel usa contra moradores não judeus. Mais cedo ou mais tarde, qualquer homem, qualquer mulher que ainda preserve boa consciência humana (e melhor se mantiverem também nariz honesto e em funcionamento) passarão a recusar a ter qualquer associação ou contato com esse estado, na prática, já estado de apartheid.
Nota dos tradutores
[1] Orig. “most foul”. A expressão aparece em Hamlet, ato 1, cena 5, quando o espectro do rei assassinado conta a Hamlet sobre o crime de que foi vítima: Murder most foul, as in the best it is, but this most foul, strange and unnatural” [aprox. “Assassinato é sempre [o mal] mais alucinado, mas esse do qual falo é o mais alucinado de todos, estranho, contra a natureza”]. Foul sempre significa “mau”, em algum sentido. O espectro diz a Hamlet que, dentre os assassinatos, sempre o pior dos crimes, assassinar o próprio irmão é o crime pior.
Postado por Castor Filho às 17:27:00
(Redecastor)
Terceiro Mundo
Os grandes BRICS: a China afinal encontra seu nicho
27/3/2013, Vijay Prashad*, Counterpunch
“The Big BRICS: China Finds Its Place”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Os velhos colonialistas preocuparam-se com a penetração dos asiáticos nas colônias europeias na África e entre os respectivos colonos (da Austrália, Nova Zelândia e África do Sul); temiam que, embora estivessem chegando para garantir mão de obra braçal e trabalhar como balconistas, os asiáticos se multiplicassem pela migração e pela procriação e que, depois, suplantassem os brancos em suas próprias colônias.
Cartapácio publicado em 1907 (The Asiatic Danger in the Colonies [O perigo asiático nas colônias]), de autoria de L.E.Neame, autor que trabalhava em Johannesburg, alertava que, se os asiáticos chegassem à África, “essas massas inferiores, por suas muitas capacidades, viverão por mais tempo e ultrapassarão” os europeus. Depois que os chineses migraram para a Austrália, a preocupação de Neame era que “o chinês aprenderá o suficiente para executar as tarefas, e o branco será alijado, condenado ao desemprego; ou terá de aceitar salários chineses e viverá conforme os baixos padrões chineses”. Não que algum perigo ameaçasse algum africano ou algum povo aborígene australiano – o que não seria problema para Neame; problema era que os chineses ameaçariam os brancos europeus, na África e na Austrália.
Cem anos depois, o que se escreve no Atlântico Norte sobre chineses na África é mais gentil, mas ainda é agressivo e preconceituoso. Basta conhecer alguns títulos:
Safari chinês: na trilha da expansão de Pequim.
Tigre de cócoras, Dragão escondido? África e China.
E era do dragão: a conquista chinesa na África.
Presente de dragão: a verdadeira história da China na África.
Moralidade chinesa para a África: o Império do Meio e o Continente Obscuro
Abundam os clichês. Dragões e tigres nunca faltam. Portanto, muitas caçadas. A África é a presa; a China, o predador. Em termos relativos, pouco mudou, no roteiro básico traçado pelo velho Neame. Naquele momento, problemas eram o pequeno comerciante e o trabalhador agrícola; hoje, problemas são o Estado chinês, as empresas estatais chinesas e o empresariado chinês.
Grandes mineradoras australianas, como Rio Tinto, Newcrest e Ivanhoe, começaram todas a escavar o subsolo africano à busca de cobre e platina, ouro e minério de ferro. O Grupo Australia-Africa Mining Industry já construiu vastos projetos, para compensar regulações do estado australiano que fizeram aumentar os custos. Mas não se veem livros que exibam qualquer dos seguintes títulos:
África Crocodilo: Austrália perfura o Continente Obscuro
Dingos esburacam a savana: O que faz a Austrália na África?
As aventuras de Rio Tinto, Rei da Guiné.
O que os negócios africanos estão fazendo não é, na essência, muito diferente à superfície do que fizeram empresas de qualquer outro país. A necessidade de partir à caça de recursos naturais e novos mercados conteve o capital desde o século 19 – isso, precisamente é o que motiva os chineses e outros a levar suas respectivas mais-valias e suas carências para lugares como hoje a África. Nada há de misterioso ou imperscrutável na intenção dos chineses. O capital chinês busca o que todo e qualquer capital busca – investimentos, recursos e mercados. Não ver isso é recair na velha ansiedade colonialista que fazia temer a Ameaça Asiática.
Além disso, um novo estudo da ONU mostra que os maiores investidores na África são França, Estados Unidos, Malásia, China e Índia. Qualquer preocupação residual que haja deve-se distribuir igualitariamente entre esses cinco estados (e dois deles são países do Atlântico Norte).
Lamido Sanusi
No menos anti-imperialista dos jornais, o Financial Times, o presidente do Banco Central da Nigéria, Lamido Sanusi, outro que de modo algum se poderia tomar por anti-imperialista, escreveu que “é hora de os africanos acordarem para as realidades do caso de amor que vivem com a China. A China leva nossos bens primários e nos vende produtos manufaturados”. E essa, prosseguem Sanusi e o Financial Times, “sempre foi a essência do colonialismo”. A África, diz ele “quer agora se abrir para uma nova modalidade de imperialismo. Temos de ver a China pelo que a China é: um competidor, nosso concorrente” (“África Must Get Real About Chinese” [A África tem de cair na real sobre os chineses],Times, 11/3). Sanusi, evidentemente, nada disse contra o imperialismo vindo do Atlântico Norte. Seria esquerdista,gauche.
Qual o antídoto para o problema africano? Para Sanusi e o Financial Times, os países africanos têm “de produzir localmente os bens a partir dos quais possam construir vantagem comparativa, mas têm também de combater as importações chinesas promovidas por políticas predatórias”. Em outras palavras, os estados africanos têm de abraçar projetos de substituição de importações como houve nos anos 1960s e 1970s – por mais que aqueles mesmíssimos projetos tenham sido detonados por estados do Atlântico Norte em nome da globalização – entusiasticamente promovida pelo Financial Times e pelo próprio Sanusi. “Investimento em educação técnica e vocacional é crítico” – ensina Sanusi. Mas não diz como se financiarão os projetos.
Sanusi é favorável a que a Nigéria retire todo o subsídio que dá à gasolina e gostaria que o país abrisse o mercado de combustíveis. Não se cogita, na Nigéria, de solução venezuelana à Chávez, que aplicou os super-ganhos e royalties do petróleo nacional na própria política educacional; em outras palavras, o governo da Venezuela usou o ganho que advêm dos recursos naturais do país para financiar seu próprio e massivo programa de desenvolvimento humano.
Muito mais fácil para Sanusi é inventar e alertar contra uma “ameaça asiática” e promover políticas contra as quais ele e o Financial Times opõem-se, do que enfrentar cara a cara a fortaleza do poder de classe nos estados africanos.
Africa subsaariana (parte colorida)
A África subsaariana, segundo o mais recente Relatório de Desenvolvimento Humano (orig. Human Development Report, 2013), “converteu-se em importante nova fonte e destinação do comércio sul-sul. Entre 1992 e 2011, o comércio entre a China e a África Subsaariana cresceu, de US$ 1 bilhão, para mais de US$140 bilhões”. O Atlântico Norte, especialmente os EUA, tentaram todos os tipos de mecanismos na concorrência contra a China, inclusive pressões mediante a Organização Mundial de Comércio, pressões bilaterais sobre seus aliados regionais e, claro, a ameaça do AFRICOM, Comando dos EUA na África. Nada funcionou.
A China não está na África em projeto missionário. Está nos países africanos como etapa de suas próprias estratégias de acumulação.
Ibrahim Kaduma
Perguntei a Ibrahim Kaduma, ex-ministro de Relações Exteriores da Tanzânia, como ele abordaria os investimentos chineses na África. Respondeu-me que “os estados africanos têm de propor suas próprias avaliações do percurso a seguir” e engajar-se com chineses ou com qualquer outro investidor a partir desses valores. Sem fundação forte e sem claro projeto de desenvolvimento, as novas elites acertam-se com quem aparecer, quase sempre com quem lhes pague mais diretamente. E o país inteiro padece”.
Na parada que fez em Dar es Salaam, o novo presidente chinês, Xi Jinping, procurou acalmar a crescente inquietação que se vê no país, em torno dos investimentos chineses. “A África pertence aos povos africanos” – disse Xi. – “Ao desenvolver relações com a África, todos os países devem respeitar a dignidade e a independência da África”. É retórica velha conhecida no continente. O capital fala sempre pela mesma partitura. O capital odeia mostrar-se impiedoso, cruel.
Donald Kaberuka
Mas há um setor nos negócios africanos que vê as coisas sob luz positiva. Donald Kaberuka do Banco Africano de Desenvolvimento espera aprender com os chineses, “como organizar nossa política comercial, como passar do status de baixa renda para status de renda média, como educar nossas crianças em áreas e competências que lhes rendam benefícios em alguns anos”. Em outras palavras, há eleitores africanos que, sim, querem seguir a Estrada da China ou, pelo menos, o Paradigma dos Gansos Voadores [orig. Flying Geese Paradigm][1] para fazer aumentar as taxas de crescimento de estados africanos.
Nada disso é sonho ou alucinação. Como se lê no Human Development Report (2013):
Para testar as consequências adversas de aumentar as exportações para alguns dos seus países parceiros, a China está oferecendo empréstimos preferenciais e estabelecendo programas de treinamento para modernizar os setores têxteis e de roupas em países africanos. A China tem estimulado suas indústrias já maduras, como a do couro, a mudar-se para mais perto da cadeia de suprimento na África; e suas modernas empresas de telecomunicações, produtos farmacêuticos, eletrônicos e da construção, para que se associem em joint ventures com empresários africanos.
Não há dúvidas de que o investimento chinês já está construindo vasta rede de comunicações e de transportes na África. Nenhuma dúvida tampouco de que o business chinês está erguendo infraestrutura industrial e com ela instituições para educação e saúde. E também nenhuma dúvida de que a ajuda e as bolsas chinesas chegam sem “condicionalidades”.
Todo e qualquer investimento, venha do Atlântico Norte ou da Ásia, vem em busca das matérias primas e dos mercados. Mas o dinheiro do Atlântico Norte também busca poder político – com os EUA empurrando seus fundos via AID - Agência para o Desenvolvimento Internacional (estatal), braço fantasma do Departamento de Estado. O dinheiro chinês vem de seu ministério de Comércio e de seu Export-Import Bank, que têm mandato duplo: garantir o acesso da China às matérias primas (petróleo e minérios raros) e garantir um mercado para o super aquecido setor industrial da China. Os negócios vêm à frente.
Essa abordagem inicial pelo business não é neutra. Revela, primeiro, a fraqueza do modelo chinês, petrificado pelas limitações do capitalismo – superproduzindo bens graças à mágica do capitalismo industrial; sub-remunerando trabalhadores que não podem comprar aqueles bens; distribuindo crédito como mecanismo para produzir demanda; buscando novas pastagens onde encontre matérias primas mais baratas para reduzir o custo final, e mercados para os quais vender aqueles produtos. Esse é o ciclo satânico do capitalismo.
A China é gigante industrial orientado para a exportação, que gradualmente viu-se forçada a afastar-se das economias dirigidas ao consumidor e saturadas de dívidas do Atlântico Norte, e, portanto, agora faminta, desesperada, mesmo, por criar e cultivar novos mercados no Sul. Essa é a precisamente a alavanca que os países africanos poderiam usar para extrair proveito máximo de sua situação atual. Sem projeto democrático ou socialista bem claramente traçado, “os valores”, no léxico de Kaduma, só se veem maus negócios para a África, negociados por políticos venais, ansiosos por arrancar do bolo só a fatia deles.
Quando Xi chegar a Durban, a cúpula dos BRICS anunciará a formação do Banco de Desenvolvimento dos BRICS com capital inicial de $50 bilhões (a China tem superávit de $3,31 trilhões, quantia que será como que reciclada mediante esse tipo de banco). Mas há graves dúvidas sobre o modelo do investimento que pode estar chegando; chega para promover extração de recursos, em vez de desenvolvimento econômico.
A preocupação é que o novo Banco dos BRICS, que quase com certeza terá sede em Xangai, seja uma bem capitalizada versão “do Sul”, do Banco Mundial; bem diferente do Banco del Sur (antes de seu radicalismo ser moderado pelo governo do Brasil – como anotaram Oscar Ugarteche e Eric Toussaint).
Os governos que atualmente controlam o processo dos BRICS são limitados por seus próprios projetos de classe: todos favorecem políticas neoliberais, em todos os casos em que essas políticas não favoreçam, de modo discriminatório, o Norte.
__________________________
Nota dos tradutores
[1] Modelo definido por economistas japoneses como “uma economia, como os gansos que voam em formação de V, pode liderar outras economias rumo à industrialização, com os [gansos/países] que voam à frente passando para os [gansos/países] que voam atrás as tecnologias mais antigas, à medida que a renda nacional aumenta nos países que voam à frente e eles podem passar para tecnologias mais novas” (25/8/2010, New York Times em: “The Flying Geese Model”)
______________________
Vijay Prashad* é professor de Estudos Internacionais no Trinity College em Hartford, Connecticut. Dentre seus livros mais recentes estão Uncle Swami: South Asians in America e Arab Spring, Libyan Winter. Vijay é colaborador regular das publicações Ásia Times, The Nation, The Hindu, Newsclick, Frontline e CounterPunch. É entrevistado regularmente pela TRNN - The Real News Network - sobre Geopolítica e Política internacional.
Postado por Castor Filho às 22:54:00
(Redecastor)
27/3/2013, Vijay Prashad*, Counterpunch
“The Big BRICS: China Finds Its Place”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Os velhos colonialistas preocuparam-se com a penetração dos asiáticos nas colônias europeias na África e entre os respectivos colonos (da Austrália, Nova Zelândia e África do Sul); temiam que, embora estivessem chegando para garantir mão de obra braçal e trabalhar como balconistas, os asiáticos se multiplicassem pela migração e pela procriação e que, depois, suplantassem os brancos em suas próprias colônias.
Cartapácio publicado em 1907 (The Asiatic Danger in the Colonies [O perigo asiático nas colônias]), de autoria de L.E.Neame, autor que trabalhava em Johannesburg, alertava que, se os asiáticos chegassem à África, “essas massas inferiores, por suas muitas capacidades, viverão por mais tempo e ultrapassarão” os europeus. Depois que os chineses migraram para a Austrália, a preocupação de Neame era que “o chinês aprenderá o suficiente para executar as tarefas, e o branco será alijado, condenado ao desemprego; ou terá de aceitar salários chineses e viverá conforme os baixos padrões chineses”. Não que algum perigo ameaçasse algum africano ou algum povo aborígene australiano – o que não seria problema para Neame; problema era que os chineses ameaçariam os brancos europeus, na África e na Austrália.
Cem anos depois, o que se escreve no Atlântico Norte sobre chineses na África é mais gentil, mas ainda é agressivo e preconceituoso. Basta conhecer alguns títulos:
Safari chinês: na trilha da expansão de Pequim.
Tigre de cócoras, Dragão escondido? África e China.
E era do dragão: a conquista chinesa na África.
Presente de dragão: a verdadeira história da China na África.
Moralidade chinesa para a África: o Império do Meio e o Continente Obscuro
Abundam os clichês. Dragões e tigres nunca faltam. Portanto, muitas caçadas. A África é a presa; a China, o predador. Em termos relativos, pouco mudou, no roteiro básico traçado pelo velho Neame. Naquele momento, problemas eram o pequeno comerciante e o trabalhador agrícola; hoje, problemas são o Estado chinês, as empresas estatais chinesas e o empresariado chinês.
Grandes mineradoras australianas, como Rio Tinto, Newcrest e Ivanhoe, começaram todas a escavar o subsolo africano à busca de cobre e platina, ouro e minério de ferro. O Grupo Australia-Africa Mining Industry já construiu vastos projetos, para compensar regulações do estado australiano que fizeram aumentar os custos. Mas não se veem livros que exibam qualquer dos seguintes títulos:
África Crocodilo: Austrália perfura o Continente Obscuro
Dingos esburacam a savana: O que faz a Austrália na África?
As aventuras de Rio Tinto, Rei da Guiné.
O que os negócios africanos estão fazendo não é, na essência, muito diferente à superfície do que fizeram empresas de qualquer outro país. A necessidade de partir à caça de recursos naturais e novos mercados conteve o capital desde o século 19 – isso, precisamente é o que motiva os chineses e outros a levar suas respectivas mais-valias e suas carências para lugares como hoje a África. Nada há de misterioso ou imperscrutável na intenção dos chineses. O capital chinês busca o que todo e qualquer capital busca – investimentos, recursos e mercados. Não ver isso é recair na velha ansiedade colonialista que fazia temer a Ameaça Asiática.
Além disso, um novo estudo da ONU mostra que os maiores investidores na África são França, Estados Unidos, Malásia, China e Índia. Qualquer preocupação residual que haja deve-se distribuir igualitariamente entre esses cinco estados (e dois deles são países do Atlântico Norte).
Lamido Sanusi
No menos anti-imperialista dos jornais, o Financial Times, o presidente do Banco Central da Nigéria, Lamido Sanusi, outro que de modo algum se poderia tomar por anti-imperialista, escreveu que “é hora de os africanos acordarem para as realidades do caso de amor que vivem com a China. A China leva nossos bens primários e nos vende produtos manufaturados”. E essa, prosseguem Sanusi e o Financial Times, “sempre foi a essência do colonialismo”. A África, diz ele “quer agora se abrir para uma nova modalidade de imperialismo. Temos de ver a China pelo que a China é: um competidor, nosso concorrente” (“África Must Get Real About Chinese” [A África tem de cair na real sobre os chineses],Times, 11/3). Sanusi, evidentemente, nada disse contra o imperialismo vindo do Atlântico Norte. Seria esquerdista,gauche.
Qual o antídoto para o problema africano? Para Sanusi e o Financial Times, os países africanos têm “de produzir localmente os bens a partir dos quais possam construir vantagem comparativa, mas têm também de combater as importações chinesas promovidas por políticas predatórias”. Em outras palavras, os estados africanos têm de abraçar projetos de substituição de importações como houve nos anos 1960s e 1970s – por mais que aqueles mesmíssimos projetos tenham sido detonados por estados do Atlântico Norte em nome da globalização – entusiasticamente promovida pelo Financial Times e pelo próprio Sanusi. “Investimento em educação técnica e vocacional é crítico” – ensina Sanusi. Mas não diz como se financiarão os projetos.
Sanusi é favorável a que a Nigéria retire todo o subsídio que dá à gasolina e gostaria que o país abrisse o mercado de combustíveis. Não se cogita, na Nigéria, de solução venezuelana à Chávez, que aplicou os super-ganhos e royalties do petróleo nacional na própria política educacional; em outras palavras, o governo da Venezuela usou o ganho que advêm dos recursos naturais do país para financiar seu próprio e massivo programa de desenvolvimento humano.
Muito mais fácil para Sanusi é inventar e alertar contra uma “ameaça asiática” e promover políticas contra as quais ele e o Financial Times opõem-se, do que enfrentar cara a cara a fortaleza do poder de classe nos estados africanos.
Africa subsaariana (parte colorida)
A África subsaariana, segundo o mais recente Relatório de Desenvolvimento Humano (orig. Human Development Report, 2013), “converteu-se em importante nova fonte e destinação do comércio sul-sul. Entre 1992 e 2011, o comércio entre a China e a África Subsaariana cresceu, de US$ 1 bilhão, para mais de US$140 bilhões”. O Atlântico Norte, especialmente os EUA, tentaram todos os tipos de mecanismos na concorrência contra a China, inclusive pressões mediante a Organização Mundial de Comércio, pressões bilaterais sobre seus aliados regionais e, claro, a ameaça do AFRICOM, Comando dos EUA na África. Nada funcionou.
A China não está na África em projeto missionário. Está nos países africanos como etapa de suas próprias estratégias de acumulação.
Ibrahim Kaduma
Perguntei a Ibrahim Kaduma, ex-ministro de Relações Exteriores da Tanzânia, como ele abordaria os investimentos chineses na África. Respondeu-me que “os estados africanos têm de propor suas próprias avaliações do percurso a seguir” e engajar-se com chineses ou com qualquer outro investidor a partir desses valores. Sem fundação forte e sem claro projeto de desenvolvimento, as novas elites acertam-se com quem aparecer, quase sempre com quem lhes pague mais diretamente. E o país inteiro padece”.
Na parada que fez em Dar es Salaam, o novo presidente chinês, Xi Jinping, procurou acalmar a crescente inquietação que se vê no país, em torno dos investimentos chineses. “A África pertence aos povos africanos” – disse Xi. – “Ao desenvolver relações com a África, todos os países devem respeitar a dignidade e a independência da África”. É retórica velha conhecida no continente. O capital fala sempre pela mesma partitura. O capital odeia mostrar-se impiedoso, cruel.
Donald Kaberuka
Mas há um setor nos negócios africanos que vê as coisas sob luz positiva. Donald Kaberuka do Banco Africano de Desenvolvimento espera aprender com os chineses, “como organizar nossa política comercial, como passar do status de baixa renda para status de renda média, como educar nossas crianças em áreas e competências que lhes rendam benefícios em alguns anos”. Em outras palavras, há eleitores africanos que, sim, querem seguir a Estrada da China ou, pelo menos, o Paradigma dos Gansos Voadores [orig. Flying Geese Paradigm][1] para fazer aumentar as taxas de crescimento de estados africanos.
Nada disso é sonho ou alucinação. Como se lê no Human Development Report (2013):
Para testar as consequências adversas de aumentar as exportações para alguns dos seus países parceiros, a China está oferecendo empréstimos preferenciais e estabelecendo programas de treinamento para modernizar os setores têxteis e de roupas em países africanos. A China tem estimulado suas indústrias já maduras, como a do couro, a mudar-se para mais perto da cadeia de suprimento na África; e suas modernas empresas de telecomunicações, produtos farmacêuticos, eletrônicos e da construção, para que se associem em joint ventures com empresários africanos.
Não há dúvidas de que o investimento chinês já está construindo vasta rede de comunicações e de transportes na África. Nenhuma dúvida tampouco de que o business chinês está erguendo infraestrutura industrial e com ela instituições para educação e saúde. E também nenhuma dúvida de que a ajuda e as bolsas chinesas chegam sem “condicionalidades”.
Todo e qualquer investimento, venha do Atlântico Norte ou da Ásia, vem em busca das matérias primas e dos mercados. Mas o dinheiro do Atlântico Norte também busca poder político – com os EUA empurrando seus fundos via AID - Agência para o Desenvolvimento Internacional (estatal), braço fantasma do Departamento de Estado. O dinheiro chinês vem de seu ministério de Comércio e de seu Export-Import Bank, que têm mandato duplo: garantir o acesso da China às matérias primas (petróleo e minérios raros) e garantir um mercado para o super aquecido setor industrial da China. Os negócios vêm à frente.
Essa abordagem inicial pelo business não é neutra. Revela, primeiro, a fraqueza do modelo chinês, petrificado pelas limitações do capitalismo – superproduzindo bens graças à mágica do capitalismo industrial; sub-remunerando trabalhadores que não podem comprar aqueles bens; distribuindo crédito como mecanismo para produzir demanda; buscando novas pastagens onde encontre matérias primas mais baratas para reduzir o custo final, e mercados para os quais vender aqueles produtos. Esse é o ciclo satânico do capitalismo.
A China é gigante industrial orientado para a exportação, que gradualmente viu-se forçada a afastar-se das economias dirigidas ao consumidor e saturadas de dívidas do Atlântico Norte, e, portanto, agora faminta, desesperada, mesmo, por criar e cultivar novos mercados no Sul. Essa é a precisamente a alavanca que os países africanos poderiam usar para extrair proveito máximo de sua situação atual. Sem projeto democrático ou socialista bem claramente traçado, “os valores”, no léxico de Kaduma, só se veem maus negócios para a África, negociados por políticos venais, ansiosos por arrancar do bolo só a fatia deles.
Quando Xi chegar a Durban, a cúpula dos BRICS anunciará a formação do Banco de Desenvolvimento dos BRICS com capital inicial de $50 bilhões (a China tem superávit de $3,31 trilhões, quantia que será como que reciclada mediante esse tipo de banco). Mas há graves dúvidas sobre o modelo do investimento que pode estar chegando; chega para promover extração de recursos, em vez de desenvolvimento econômico.
A preocupação é que o novo Banco dos BRICS, que quase com certeza terá sede em Xangai, seja uma bem capitalizada versão “do Sul”, do Banco Mundial; bem diferente do Banco del Sur (antes de seu radicalismo ser moderado pelo governo do Brasil – como anotaram Oscar Ugarteche e Eric Toussaint).
Os governos que atualmente controlam o processo dos BRICS são limitados por seus próprios projetos de classe: todos favorecem políticas neoliberais, em todos os casos em que essas políticas não favoreçam, de modo discriminatório, o Norte.
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Nota dos tradutores
[1] Modelo definido por economistas japoneses como “uma economia, como os gansos que voam em formação de V, pode liderar outras economias rumo à industrialização, com os [gansos/países] que voam à frente passando para os [gansos/países] que voam atrás as tecnologias mais antigas, à medida que a renda nacional aumenta nos países que voam à frente e eles podem passar para tecnologias mais novas” (25/8/2010, New York Times em: “The Flying Geese Model”)
______________________
Vijay Prashad* é professor de Estudos Internacionais no Trinity College em Hartford, Connecticut. Dentre seus livros mais recentes estão Uncle Swami: South Asians in America e Arab Spring, Libyan Winter. Vijay é colaborador regular das publicações Ásia Times, The Nation, The Hindu, Newsclick, Frontline e CounterPunch. É entrevistado regularmente pela TRNN - The Real News Network - sobre Geopolítica e Política internacional.
Postado por Castor Filho às 22:54:00
(Redecastor)
quarta-feira, 27 de março de 2013
Drummond
Amar
Julio Daio Borges
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa,
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
Drummond, novamente em Claro Enigma
Julio Daio Borges
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa,
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
Drummond, novamente em Claro Enigma
Ditadura
No último dia 9 de março, reportagem de O GLOBO revelou que Geraldo Mendes de Mattos, funcionário do Serviço Social da Indústria (Sesi), e o empresário Nadir Dias de Figueiredo eram os interlocutores principais da entidade junto ao governo militar. Os recursos para financiar o aparato repressor eram coletados, entre outros, pelos empresários Gastão de Bueno Vidigal (Banco Mercantil de São Paulo), João Batista Leopoldo Figueiredo (Banco Itaú e Scania) e Paulo Ayres Filho (Pinheiros Produtos Farmacêuticos), além do advogado Paulo Sawaia. Empresas como Ultragaz, Ford, Volkswagen e Chrysler forneceram carros blindados, caminhões e até refeições prontas para as equipe do Dops.
(Documentando a ditadura)
(Documentando a ditadura)
Desculpem-me
Aliás, a nossa revolução vitoriosa, tudo relacionado a informática socialista ficará a seu encargo.
Obrigado, Souza!
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