sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Cultura

Notas e fragmentos sobre cultura


Julio Dias


Uma visão oficial e midiática sobre cultura passa pela idéia de tradição. Como um passado recortado da historia, subtraído das relações de produção (econômicas, sociais, políticas, culturais, espirituais) que lhe davam a dimensão histórica concreta.

Da totalidade social de onde foram pinçadas as manifestações culturais que os especialistas elegem como a identidade da cultura popular, nada ou quase nada permanece. A sociedade se transforma pela historia, e sua cultura nos é apresentada como a somatória do pitoresco desarticulado e desvinculado do real vivido no passado e no presente.

A grande maioria dessas manifestações há muito não se manifesta mais. Não são vivências reais e concretas, articuladas com o tempo real do presente. São como entes em coma sem volta, mantidos pelos aparelhos do folclore, e exibidas ao público em ocasiões especiais.

Os folcloristas descrevem e catalogam festas, danças, vestes, cantos, ritmos, ritos. Do achado à pesquisa, agrupam pela diferença e similaridade, local e época. Publicam seus escritos destinados a salvar o tradicional do inexorável e acelerado processo de obsolescência que o capitalismo impõe à sociedade.

Recuperam do passado conjuntos de elementos cristalizados, sem a reconstrução histórica de sua significação, ordenando-os a partir do filtro da consciência do pesquisador a fim de purgá-los da infiltração do contemporâneo, dispondo-os como sobrevivências do passado a serem consumidas no presente. Grupos de arte popular especializados apresentam-se aqui e ali, uma, duas, três vezes ao ano. Levam o público a embarcar num túnel do tempo que não os transporta a passado algum.

A tradição folclórica é uma mercadoria com valor espetacular, como outras mercadorias produzidas pela indústria cultural. A diferença, apenas uma: o espetáculo é sobre um passado não revelado. De similar com o espetacular contemporâneo, o fato de dizer muito pouco sobre o significante, a sociedade, a vida real e historicamente determinada. O espetáculo é o fim em si.

O folclore baseia-se num pressuposto preconceituoso, característico das idéias das classes dominantes. As ciências apóiam-se nos conhecimentos e pesquisas de outras ciências, enquanto o estudo das tradições populares limita-se a apenas uma especialidade. Essa característica parece decorrer da definição que muitos folcloristas dão à cultura popular, como o universo cultural do homem rústico.

Manifesta a tendência conservadora de volta ao passado, como se a realidade social e cultural fosse melhor e mais rica quanto maior a distância histórica. Sua ação reforça a nostalgia reacionária de regresso ao um passado idealizado. Longe de restringir-se aos círculos folcloristas, essa tendência se alastra pelo mundo com o faturamento colossal da indústria do turismo.
Outra visão dominante é dada pela indústria cultural. É a cultura para consumo instantâneo e descartável. Produzida em escala industrial para grandes massas, para todos os estratos e gostos. É música comercial, TV, moda, cinema de grande bilheteria, literatura de fácil digestão, grande mídia...
Com roupagem de arte e modo de vida, é a afirmação acrítica da realidade existente, sempre vestida de novidade, em ciclos repetitivos. Sua estética, ou melhor, seu esteticismo, é a reedição aleatória de formas passadas, remasterizadas, a negação da estética com aparência estética.
Essa cultura de massas ou para as massas, tende sempre à homogeneização. Seu pressuposto é a senha da identidade programada, oposta à autenticidade. O igual, o lugar comum, é sua meta. Um objetivo que parece negar-se a si próprio quando uma nova onda do atual chega, mas que logo volta a afirmar-se no ponto de saturação, no limiar de uma nova leva de produção e consumo que trás o velho reestilizado para realizar nova homogeneidade.
Uma terceira concepção de cultura é a erudita. Trata-se do que mais elevado a humanidade até hoje produziu no universo das artes e ciências. Um grande arcabouço de conhecimentos que pretensamente daria conta de explicar a humanidade de suas origens ao tempo presente.
Sem dúvida, essa cultura dita enciclopédica tem muita importância para humanidade. Basta lembrarmos os períodos da historia, longos ou curtos, abrangentes ou localizados, em que o alto conhecimento foi posto à margem da apropriação social. O exemplo mais trágico está registrado como a noite dos mil anos que pairou sobre o ocidente medieval.
Sua existência como um saber para poucos é determinado pela natureza das sociedades de classes, como o capitalismo, que distribuem desigualmente as condições para a apropriação do conhecimento, produzindo a separação entre cultura erudita e cultura popular.
Entretanto, esse saber supostamente total e profundo é discutível. Uma grande carga ideológica reveste o conjunto da obra, limitando sua capacidade de iluminação sobre a realidade de um mundo crescentemente complexo.


As vanguardas artísticas e o marxismo autêntico, antidogmático, constituem acúmulo decisivo, no sentido de realizar aquilo que Walter Benjamim definiu como iluminação profana do mundo. Lamentavelmente é conhecimento muito restrito, levando-se ainda em conta a ação da indústria cultural e da historia oficial que deformam e mutilam sua força criadora, sua vitalidade crítica.
O conceito de cultura popular contemporânea, viva, é complexo, porque articula passado, presente e determinada potencialidade latente de elementos que podem se desenvolver no futuro, como um devir.
Nesse grande mosaico espiritual dá-se o embate com o mundo real, relação que combina coerção e apropriação social. Sua realidade é um todo em movimento, o produto de uma consciência contraditória e fragmentária de si e do mundo. Uma dinâmica histórica cuja compreensão exige um olhar atento e não fatalista sobre a realidade.
Nas culturas populares estão presentes modos próprios de representação e expressão, como linguagem, visão de mundo e manifestações artísticas e culturais. Estão também as idéias dominantes, os elementos ideológicos comuns a toda a sociedade, como as idéias de progresso, cientificismo, justiça, trabalho, moral dominante, país, região, raça, família, etc. E, numa determinada articulação, a consciência em forma elementar, não desenvolvida, a percepção de pertencimento a uma determinada classe em si, a classe trabalhadora. Esta última característica é decisiva.
O lugar e a função que nós trabalhadores, como classe social, ocupamos e desempenhamos no modo de produção das riquezas materiais sob o capitalismo, nos investe do poder para realizar uma transformação radical da sociedade, substituindo a produção de mercadorias por uma produção voltada para a satisfação das reais necessidades humanas, eliminando a divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, extinguindo a cultura de massas e a dicotomia entre cultura erudita e popular.
Uma outra cultura é possível. Ela pode elevar a humanidade a patamares superiores de riqueza espiritual, numa sociedade onde o homem seja de fato o princípio e o fim de sua existência, onde a felicidade e a liberdade tornem-se coisa elementar, e a busca de novos sentidos para a vida humana seja meta acessível a todos. Só o poder da classe trabalhadora pode nos fazer sonhar com essa possibilidade real.


Vitor Hugo disse que a utopia de hoje é a realidade de amanhã.




Fonte: http://apartirdebaixo.blogspot.com


Postado por Julio Dias às Segunda-feira, Janeiro 16, 2012

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