Onde esta aquele seu velho olhar, companheiro,
e aquela voz rouca de tanto gritar ?
Me diz onde foi parar aquele seu cheiro de terra
e de gente
que nossas andanças nos faziam exalar
Em que parte do caminho perdeu o rumo ?
Ainda me lembro bem, não apenas das lutas,
mas das buchadas de bode,
das brincadeiras, do dominó ...
Lembro das coisas que falávamos sobre o mundo,
da vergonhosa fome de nossos irmãos
e da ainda mais vergonhosa,
indigestão dos "donos da terra"
Tão claro era o rubor do seu rosto
quando esbravejava contra os cassetetes
e as demais mazelas do Sistema
Tínhamos um plano, lembra ?
E mais do que isto,
tínhamos milhões que confiavam na gente
Milhões que não tinham terra, teto,
escola, rumo ... esperança
Milhões de explorados, excluídos, enganados,
roubados, massacrados ...
Tantos e tantos Chicos, assim como Mendes,
que só queriam uma vida mais digna,
mais justa
Tínhamos em nossas mãos o verdadeiro poder
- éramos o povo !
Joãos, Marias, Josés e Franciscos
Todos da Silva ... todos do Brasil
É companheiro, de lá para cá,
percebo que muita coisa mudou
Nem tanto no Brasil, mas muito em você
Aquela gente toda a qual você torcia o nariz,
e que também torciam o nariz para você,
hoje, mais parecem seus compadres de longa data
E aquela gente, então,
que financiava os velhos políticos ?
Hoje, não apenas financiam as suas campanhas,
como também, seus bancos,
esbanjam lucros cada vez maiores
É, companheiro - se é que posso lhe chamar assim -
tínhamos um plano, ou melhor, ainda tenho
Mas se algum dia destes, resolver mudar de idéia,
saberá muito bem onde me encontrar
- na rua ... na luta
Ao lado daqueles que compartilham comigo
o mesmo ideal que um dia foi nosso
E no mais, é isto
Mesmo assim, diferenças à parte,
dê-me cá um aperto de mão
Desculpe apenas não abraça-lo,
pois temo amassar este seu terno do mais fino linho
Marcelo Roque
(‘Chupado’ de Sarau p Todos)
domingo, 5 de fevereiro de 2012
Vandré
• O amestrado Geraldo Vandré
Recife (PE) - O leitor Xico Júnior, na coluna passada, pediu um texto sobre Geraldo Vandré. Procurarei atendê-lo agora.
Lembro que ao ver a entrevista de Vandré na Globo News, passei dias ruminando. Vinha uma canção íntima, que na década de 70 era senha:
“Eu vou levando a minha vida enfim
Cantando e canto sim
E não cantava se não fosse assim
Levando pra quem me ouvir
Certezas e esperanças pra trocar
Por dores e tristezas que bem sei
Um dia ainda vão findar...
Deixa que a tua certeza se faça do povo a canção
Pra que teu povo cantando teu canto ele não seja em vão”
Que revolução queríamos naqueles anos, quando ouvíamos a canção de Vandré? Que peitos puros guardávamos ainda não provados pela luta? Agora, aparecia na entrevista: um velho de boné, com a insígnia da FAB, cabisbaixo, com o pensamento cheio de interrupções. O diabo era que nesse pensamento falho, ainda assim, sobrevivia uma certa lógica, como naquele louco Hamlet. Havia uma certa memória, montada, como em toda memória,mas, no caso de Vandré, com os cortes cirúrgicos que expurgavam a violência do regime militar.
E houve então a primeira ressalva, ao entrevistador. Ocorre com Geneton Moraes Neto (junto com Vandré na foto) o que é comum em 99% dos repórteres na imprensa do Brasil: eles não entendem nada vezes nada da ditadura. Não é que alguns, pela idade, não tenham passado por aqueles malditos tempos de Médici (por coincidência, o período da volta de Vandré ao Brasil). Alguns viveram, mas a sua experiência é exterior aos perseguidos. Devo dizer, eles não comeram e beberam com e daqueles jovens entusiastas que viviam no limite, clandestinos, entre ruas escuras, promessas de barbárie e bares infectos. Daí que os jornalistas cometam os maiores erros. Eles não têm o conhecimento sofrido da dinâmica.
Pela pesquisa, pelo aprendizado humilde, atento e curioso, poderiam driblar essa impossibilidade da experiência vivida. Mas não, na entrevista parecia que Vandré era autor de duas músicas, Disparada e Caminhando. Pela insistência do repórter nessas canções, parecia. No entanto, há um momento na entrevista em que Vandré refuga, como um cavalo refuga, a seu caráter de compositor engajado. Se o entrevistador houvesse ido além das duas canções, poderia ter lembrado uma canção do senhor de boné, direta como um soco:
“O terreiro lá de casa
Não se varre com vassoura,
Varre com ponta de sabre
E bala de metralhadora....”.
Mas isso ficou oculto das pessoas que viram o compositor pela primeira vez. É possível que houvesse uma pauta prévia, aquela que todo repórter hoje no Brasil tem antes da realidade. A saber, no caso do velhinho: na pauta, havia que mostrar Vandré como um sobrevivente da velha esquerda, recuperado com vivas aos militares. A pauta do escândalo. Nesse particular sentido, a entrevista foi um sucesso. Na verdade, ela nem precisava da presença física de Vandré, bastavam-lhe os elementos essenciais da caricatura: um velho, um boné e a logomarca da Força Aérea Brasileira. O que deveria ser uma revelação do que o regime de 64 fez com um compositor de gênio, transformou-se em uma exibição de paradoxos e ruínas.
Na verdade, Vandré já oferecera antes à imprensa as linhas mestras da sua derrocada. Antes até da sua canção de homenagem à FAB. No coletivo virtual “Os amigos de 68”, uma militante médica, a quem não pedi autorização para divulgar o nome, informou:
“...Foi em torno de 74, quando eu fazia residência no Pinel. Conheci Vandré quando ele foi internado na emergência psiquiátrica da Clínica de Botafogo. Motivo alegado: Vandré estaria ‘armado com uma faca’ e ameaçava matar a sua irmã. Só o vi dias mais tarde, quando tocava violão para os internos no pátio da Clínica. Aparentava ‘tranquilidade’, mas sua fisionomia era de dor. Ele era ouvido com atenção e certa admiração. Sabiam que se tratava de um compositor famoso. Não consigo me lembrar o que tocava. Fiquei muito emocionada e chocada com tudo aquilo. Era o resultado das muitas torturas que ele sofrera na repressão dos anos 60/70...”
Hemingway em “O Velho e o Mar” dizia que é possível destruir-se um homem, mas nunca derrotá-lo. Na entrevista, o que se viu foi um homem ainda em estado de terror, em plena democracia. Nela, Vandré nos lembra os elefantes amestrados, torturados, que levantam a pata para o público no circo. Por isso não sabemos ao fim se o gênio de Vandré foi destruído. Peguemos então um caminho de esperança: Vandré continua nas suas canções, ele não foi derrotado.
Ver ( Veja o vídeo )
(Direto da Redação - Urariano Mota)
Recife (PE) - O leitor Xico Júnior, na coluna passada, pediu um texto sobre Geraldo Vandré. Procurarei atendê-lo agora.
Lembro que ao ver a entrevista de Vandré na Globo News, passei dias ruminando. Vinha uma canção íntima, que na década de 70 era senha:
“Eu vou levando a minha vida enfim
Cantando e canto sim
E não cantava se não fosse assim
Levando pra quem me ouvir
Certezas e esperanças pra trocar
Por dores e tristezas que bem sei
Um dia ainda vão findar...
Deixa que a tua certeza se faça do povo a canção
Pra que teu povo cantando teu canto ele não seja em vão”
Que revolução queríamos naqueles anos, quando ouvíamos a canção de Vandré? Que peitos puros guardávamos ainda não provados pela luta? Agora, aparecia na entrevista: um velho de boné, com a insígnia da FAB, cabisbaixo, com o pensamento cheio de interrupções. O diabo era que nesse pensamento falho, ainda assim, sobrevivia uma certa lógica, como naquele louco Hamlet. Havia uma certa memória, montada, como em toda memória,mas, no caso de Vandré, com os cortes cirúrgicos que expurgavam a violência do regime militar.
E houve então a primeira ressalva, ao entrevistador. Ocorre com Geneton Moraes Neto (junto com Vandré na foto) o que é comum em 99% dos repórteres na imprensa do Brasil: eles não entendem nada vezes nada da ditadura. Não é que alguns, pela idade, não tenham passado por aqueles malditos tempos de Médici (por coincidência, o período da volta de Vandré ao Brasil). Alguns viveram, mas a sua experiência é exterior aos perseguidos. Devo dizer, eles não comeram e beberam com e daqueles jovens entusiastas que viviam no limite, clandestinos, entre ruas escuras, promessas de barbárie e bares infectos. Daí que os jornalistas cometam os maiores erros. Eles não têm o conhecimento sofrido da dinâmica.
Pela pesquisa, pelo aprendizado humilde, atento e curioso, poderiam driblar essa impossibilidade da experiência vivida. Mas não, na entrevista parecia que Vandré era autor de duas músicas, Disparada e Caminhando. Pela insistência do repórter nessas canções, parecia. No entanto, há um momento na entrevista em que Vandré refuga, como um cavalo refuga, a seu caráter de compositor engajado. Se o entrevistador houvesse ido além das duas canções, poderia ter lembrado uma canção do senhor de boné, direta como um soco:
“O terreiro lá de casa
Não se varre com vassoura,
Varre com ponta de sabre
E bala de metralhadora....”.
Mas isso ficou oculto das pessoas que viram o compositor pela primeira vez. É possível que houvesse uma pauta prévia, aquela que todo repórter hoje no Brasil tem antes da realidade. A saber, no caso do velhinho: na pauta, havia que mostrar Vandré como um sobrevivente da velha esquerda, recuperado com vivas aos militares. A pauta do escândalo. Nesse particular sentido, a entrevista foi um sucesso. Na verdade, ela nem precisava da presença física de Vandré, bastavam-lhe os elementos essenciais da caricatura: um velho, um boné e a logomarca da Força Aérea Brasileira. O que deveria ser uma revelação do que o regime de 64 fez com um compositor de gênio, transformou-se em uma exibição de paradoxos e ruínas.
Na verdade, Vandré já oferecera antes à imprensa as linhas mestras da sua derrocada. Antes até da sua canção de homenagem à FAB. No coletivo virtual “Os amigos de 68”, uma militante médica, a quem não pedi autorização para divulgar o nome, informou:
“...Foi em torno de 74, quando eu fazia residência no Pinel. Conheci Vandré quando ele foi internado na emergência psiquiátrica da Clínica de Botafogo. Motivo alegado: Vandré estaria ‘armado com uma faca’ e ameaçava matar a sua irmã. Só o vi dias mais tarde, quando tocava violão para os internos no pátio da Clínica. Aparentava ‘tranquilidade’, mas sua fisionomia era de dor. Ele era ouvido com atenção e certa admiração. Sabiam que se tratava de um compositor famoso. Não consigo me lembrar o que tocava. Fiquei muito emocionada e chocada com tudo aquilo. Era o resultado das muitas torturas que ele sofrera na repressão dos anos 60/70...”
Hemingway em “O Velho e o Mar” dizia que é possível destruir-se um homem, mas nunca derrotá-lo. Na entrevista, o que se viu foi um homem ainda em estado de terror, em plena democracia. Nela, Vandré nos lembra os elefantes amestrados, torturados, que levantam a pata para o público no circo. Por isso não sabemos ao fim se o gênio de Vandré foi destruído. Peguemos então um caminho de esperança: Vandré continua nas suas canções, ele não foi derrotado.
Ver ( Veja o vídeo )
(Direto da Redação - Urariano Mota)
Woody Allen
Conversas com Woody Allen
Ricardo Besen
+ de 2300 Acessos
O problema central que Woody Allen vem enfrentando ao longo de toda sua carreira é que as pessoas acham que ele é a pessoa que está na tela, e tudo se confunde. Essa afirmação é de Eric Lax, jornalista que o vem entrevistando regularmente desde 1971, e que reuniu, em volume recém-lançado, trechos das melhores entrevistas realizadas com o cineasta até 2006. O livro propõe-se a responder à seguinte pergunta: se Allen não é aquele que está na tela, então quem ele é?
Os capítulos são organizados em torno de temas principais, que abordam múltiplas facetas relacionadas à criação e à produção cinematográfica. Allen detalha o processo de elaboração de seus filmes, seu uso da fotografia, suas influências, sua relação com Nova York. No campo pessoal, a experiência de ter um filho, sua relação com o pai, a infância no Brooklyn. Porém, aquelas questões polêmicas sobre suas relações pessoais que causaram tanto impacto há alguns anos, especialmente a de sua relação com a atriz Mia Farrow e sua filha adotiva, Soon-Yi, estão ausentes do livro.
Na verdade, o foco central do livro é o processo criativo de Allen, que começou como uma espécie de fábrica de piadas: o cineasta começou sua carreira escrevendo 50 delas por dia, para ganhar US$ 20, nos anos 1950.
Já em 1973, esta "indústria" passa a mostrar uma sofisticação maior: Allen, já com alguns filmes no curriculum, afirma que a piada é o gancho para as cenas de seus filmes: "uma história maluca dá mais vontade de rir; uma história real é menos engraçada", diz. Na verdade, ao longo de sua carreira, Allen pende entre essas duas tendências. O ideal, para ele, é usar a piada como veículo para apresentar o perfil psicológico do personagem, o que é bem mais difícil. Já em 1974, diz que não pretende mais fazer o que o público espera (a "comédia maluca"), mas aquilo que lhe agrada (o "filme sério"). Lax trata da transição de seus "filmes engraçados", como Bananas (1971), que é uma sequência de gags, passando por O Dorminhoco (1973), uma "história maluca", para Annie Hall (1977), uma "história real".
Em 2005, em outro estágio de sua trajetória, Allen diz que a escrita de uma comédia lhe flui facilmente, mas que se sente inseguro com o texto dramático. Ainda assim, considera-se um "comediante menor". Diz-se consciente de suas limitações como ator e surpreso em ver que as plateias gostem de vê-lo atuando. Prefere fazer filmes sérios, em que não atue. Considera O escorpião de Jade seu pior filme ― ele foi o ator principal ― e Ponto Final o seu melhor drama, no qual consegue expressar alguns pontos de sua filosofia pessoal, sobre a moral num universo sem Deus. Ele revela que havia pressões no inicio de sua carreira para que fizesse comédias. Para muitos críticos (e mesmo amigos), Annie Hall foi um terrível erro ― para Allen, foi após este filme que ele sentiu ser um diretor capaz. Com o sucesso financeiro de Ponto Final, diz que os possíveis investidores não saem mais correndo quando ele resolve fazer um filme sério.
A escrita é, para ele, um trabalho metódico; cria formas de "extraí-la". Para combater eventuais crises de ideias, guarda piadas numa sacola. Considera o chuveiro (chega a tomar banhos extras) e os elevadores (em prédios de mais de três andares) bons locais de trabalho. Funciona por instinto, mas quando tem que decidir entre duas ideias, há sempre uma agonia, trazida pelo sentimento de perda: a ideia não usada é sempre a melhor... Para Allen, o texto é fundamental para o sucesso de um filme. Mas admite que "é difícil escrever uma coisa entre uma hora e meia e duas horas de duração que seja interessante, original, convincente e comovente".
Outro tema recorrente nas entrevistas é o suposto caráter autobiográfico de seus filmes que, apesar da afirmativa de Lax, nem sempre está ausente. Allen desistiu de negar, por exemplo, que Memórias ou Desconstruindo Harry sejam sobre sua vida. Ainda assim, ele comenta: "as pessoas pensam que a pessoa ficcional que criei sou eu. Não sou. Acontece que ela anda como eu e se veste como eu...". E explica que as poucas experiências próprias usadas em seus filmes não expressam seus verdadeiros sentimentos, mas vão para onde a piada é mais forte. Todas as confusões, segundo o cineasta, decorrem do fato de que seus filmes são muito "autoexpressivos", e que isso é erroneamente tomado por autobiografia. Quase tudo é inventado, mas a "serviço dos meus sentimentos sobre a falta de sentido da vida".
O judaísmo jamais é um tema explícito, mas aspectos filosóficos importantes para Allen aparecem com destaque, como o universo sem Deus, a vida sem sentido. "Se você admite a terrível verdade da existência humana e escolhe ser um ser humano decente diante dela, em vez de mentir para si mesmo que vai haver alguma recompensa ou algum castigo celestial, isso me parece mais nobre". É interessante saber que entre as leituras de Allen, em 1988, estava uma edição de bolso do Concílio Vaticano II, de 1965, que, entre outras decisões, repudiou o conceito de culpa coletiva dos judeus pela morte de Cristo. Leitura surpreendente para um ateu declarado.
Allen se mostra sinceramente modesto, muitas vezes lacônico, quase sempre coerente. Em 1973, diz que gostaria de fazer filmes comercialmente aceitáveis: "não há razão para que sejam obras de arte". Em 2000, afirma que não se vê como um artista e que nunca fez um grande filme. Segundo ele, só há uma razão para não tê-lo feito: ele mesmo, pois "não tem visão em profundidade para fazer isso". É apenas um cineasta "viciado em trabalho". Isso não o impede de se esquecer e se desinteressar de seus filmes: "Quando escrevo um roteiro, para mim acabou. É uma pena precisar ir e fazer o filme". Por paradoxal que pareça, ele também se considera preguiçoso: "não quero trabalhar até altas horas. Quero voltar para casa (...), ver os meus filhos... Nessas circunstâncias, faço o melhor filme que posso. Às vezes tenho sorte, e o filme sai bom". Revela também que raramente fala com os atores, e não os ensaia, porque "enche". Além disso, como ator cômico, não gosta de fazer a cena até precisar fazê-la.
Em 2000, diz que parou de ler críticas, porque "é uma perda de tempo, não ajuda em nada. (...) Não conseguiria mudar meu estilo, mesmo que quisesse". Afirma não saber quem é seu público, nem como explicar sua longevidade artística. Ele admite que perdeu parte do público, que se sentiu incomodado pelo rumo tomado na carreira após Interiores e Memórias. Já em 2005, diz que entende a crítica aos artistas, em geral: "o artista está sempre na mira (...). Se você não é bem-sucedido ou não agrada, [o público] tem o direito de te execrar, e você não tem o direito de esperar ser nada além de um objeto de desprezo. Te pagam para acertar o gol, e não para acertar a bola neles".
Nota ainda uma mudança no interesse do público: "as gerações mais novas (..) não são letradas em cinema, não conhecem os grandes filmes. Não estou fazendo nenhum juízo de valor; apenas são diferentes da minha. O cinema de que eles gostam não me interessa". E arremata: "Faz anos que parei de conferir se o público gosta de meus filmes, não porque eu seja indiferente ou arrogante, mas porque aprendi tristemente que a aprovação dele não afeta a minha mortalidade. Nenhum sucesso consegue aliviar a minha melancolia genética (...). Os prêmios são feitos para juntar poeira; eles não mudam a sua vida, não afetam a sua saúde de forma positiva, nem a sua longevidade ou a sua felicidade emocional, não resolvem os verdadeiros problemas (...). Nós todos sofremos impotentemente com a condição humana, mesmo se temos sucesso".
O trabalho é uma de suas estratégias (a clarineta é outra) para controlar sua "depressão de baixa intensidade". Allen faz um filme por ano. A disciplina é sua arma para combater a "horrenda melancolia da realidade".
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na Revista 18, edição de outubro de 2009.
(Dig. Cultural)
Ricardo Besen
+ de 2300 Acessos
O problema central que Woody Allen vem enfrentando ao longo de toda sua carreira é que as pessoas acham que ele é a pessoa que está na tela, e tudo se confunde. Essa afirmação é de Eric Lax, jornalista que o vem entrevistando regularmente desde 1971, e que reuniu, em volume recém-lançado, trechos das melhores entrevistas realizadas com o cineasta até 2006. O livro propõe-se a responder à seguinte pergunta: se Allen não é aquele que está na tela, então quem ele é?
Os capítulos são organizados em torno de temas principais, que abordam múltiplas facetas relacionadas à criação e à produção cinematográfica. Allen detalha o processo de elaboração de seus filmes, seu uso da fotografia, suas influências, sua relação com Nova York. No campo pessoal, a experiência de ter um filho, sua relação com o pai, a infância no Brooklyn. Porém, aquelas questões polêmicas sobre suas relações pessoais que causaram tanto impacto há alguns anos, especialmente a de sua relação com a atriz Mia Farrow e sua filha adotiva, Soon-Yi, estão ausentes do livro.
Na verdade, o foco central do livro é o processo criativo de Allen, que começou como uma espécie de fábrica de piadas: o cineasta começou sua carreira escrevendo 50 delas por dia, para ganhar US$ 20, nos anos 1950.
Já em 1973, esta "indústria" passa a mostrar uma sofisticação maior: Allen, já com alguns filmes no curriculum, afirma que a piada é o gancho para as cenas de seus filmes: "uma história maluca dá mais vontade de rir; uma história real é menos engraçada", diz. Na verdade, ao longo de sua carreira, Allen pende entre essas duas tendências. O ideal, para ele, é usar a piada como veículo para apresentar o perfil psicológico do personagem, o que é bem mais difícil. Já em 1974, diz que não pretende mais fazer o que o público espera (a "comédia maluca"), mas aquilo que lhe agrada (o "filme sério"). Lax trata da transição de seus "filmes engraçados", como Bananas (1971), que é uma sequência de gags, passando por O Dorminhoco (1973), uma "história maluca", para Annie Hall (1977), uma "história real".
Em 2005, em outro estágio de sua trajetória, Allen diz que a escrita de uma comédia lhe flui facilmente, mas que se sente inseguro com o texto dramático. Ainda assim, considera-se um "comediante menor". Diz-se consciente de suas limitações como ator e surpreso em ver que as plateias gostem de vê-lo atuando. Prefere fazer filmes sérios, em que não atue. Considera O escorpião de Jade seu pior filme ― ele foi o ator principal ― e Ponto Final o seu melhor drama, no qual consegue expressar alguns pontos de sua filosofia pessoal, sobre a moral num universo sem Deus. Ele revela que havia pressões no inicio de sua carreira para que fizesse comédias. Para muitos críticos (e mesmo amigos), Annie Hall foi um terrível erro ― para Allen, foi após este filme que ele sentiu ser um diretor capaz. Com o sucesso financeiro de Ponto Final, diz que os possíveis investidores não saem mais correndo quando ele resolve fazer um filme sério.
A escrita é, para ele, um trabalho metódico; cria formas de "extraí-la". Para combater eventuais crises de ideias, guarda piadas numa sacola. Considera o chuveiro (chega a tomar banhos extras) e os elevadores (em prédios de mais de três andares) bons locais de trabalho. Funciona por instinto, mas quando tem que decidir entre duas ideias, há sempre uma agonia, trazida pelo sentimento de perda: a ideia não usada é sempre a melhor... Para Allen, o texto é fundamental para o sucesso de um filme. Mas admite que "é difícil escrever uma coisa entre uma hora e meia e duas horas de duração que seja interessante, original, convincente e comovente".
Outro tema recorrente nas entrevistas é o suposto caráter autobiográfico de seus filmes que, apesar da afirmativa de Lax, nem sempre está ausente. Allen desistiu de negar, por exemplo, que Memórias ou Desconstruindo Harry sejam sobre sua vida. Ainda assim, ele comenta: "as pessoas pensam que a pessoa ficcional que criei sou eu. Não sou. Acontece que ela anda como eu e se veste como eu...". E explica que as poucas experiências próprias usadas em seus filmes não expressam seus verdadeiros sentimentos, mas vão para onde a piada é mais forte. Todas as confusões, segundo o cineasta, decorrem do fato de que seus filmes são muito "autoexpressivos", e que isso é erroneamente tomado por autobiografia. Quase tudo é inventado, mas a "serviço dos meus sentimentos sobre a falta de sentido da vida".
O judaísmo jamais é um tema explícito, mas aspectos filosóficos importantes para Allen aparecem com destaque, como o universo sem Deus, a vida sem sentido. "Se você admite a terrível verdade da existência humana e escolhe ser um ser humano decente diante dela, em vez de mentir para si mesmo que vai haver alguma recompensa ou algum castigo celestial, isso me parece mais nobre". É interessante saber que entre as leituras de Allen, em 1988, estava uma edição de bolso do Concílio Vaticano II, de 1965, que, entre outras decisões, repudiou o conceito de culpa coletiva dos judeus pela morte de Cristo. Leitura surpreendente para um ateu declarado.
Allen se mostra sinceramente modesto, muitas vezes lacônico, quase sempre coerente. Em 1973, diz que gostaria de fazer filmes comercialmente aceitáveis: "não há razão para que sejam obras de arte". Em 2000, afirma que não se vê como um artista e que nunca fez um grande filme. Segundo ele, só há uma razão para não tê-lo feito: ele mesmo, pois "não tem visão em profundidade para fazer isso". É apenas um cineasta "viciado em trabalho". Isso não o impede de se esquecer e se desinteressar de seus filmes: "Quando escrevo um roteiro, para mim acabou. É uma pena precisar ir e fazer o filme". Por paradoxal que pareça, ele também se considera preguiçoso: "não quero trabalhar até altas horas. Quero voltar para casa (...), ver os meus filhos... Nessas circunstâncias, faço o melhor filme que posso. Às vezes tenho sorte, e o filme sai bom". Revela também que raramente fala com os atores, e não os ensaia, porque "enche". Além disso, como ator cômico, não gosta de fazer a cena até precisar fazê-la.
Em 2000, diz que parou de ler críticas, porque "é uma perda de tempo, não ajuda em nada. (...) Não conseguiria mudar meu estilo, mesmo que quisesse". Afirma não saber quem é seu público, nem como explicar sua longevidade artística. Ele admite que perdeu parte do público, que se sentiu incomodado pelo rumo tomado na carreira após Interiores e Memórias. Já em 2005, diz que entende a crítica aos artistas, em geral: "o artista está sempre na mira (...). Se você não é bem-sucedido ou não agrada, [o público] tem o direito de te execrar, e você não tem o direito de esperar ser nada além de um objeto de desprezo. Te pagam para acertar o gol, e não para acertar a bola neles".
Nota ainda uma mudança no interesse do público: "as gerações mais novas (..) não são letradas em cinema, não conhecem os grandes filmes. Não estou fazendo nenhum juízo de valor; apenas são diferentes da minha. O cinema de que eles gostam não me interessa". E arremata: "Faz anos que parei de conferir se o público gosta de meus filmes, não porque eu seja indiferente ou arrogante, mas porque aprendi tristemente que a aprovação dele não afeta a minha mortalidade. Nenhum sucesso consegue aliviar a minha melancolia genética (...). Os prêmios são feitos para juntar poeira; eles não mudam a sua vida, não afetam a sua saúde de forma positiva, nem a sua longevidade ou a sua felicidade emocional, não resolvem os verdadeiros problemas (...). Nós todos sofremos impotentemente com a condição humana, mesmo se temos sucesso".
O trabalho é uma de suas estratégias (a clarineta é outra) para controlar sua "depressão de baixa intensidade". Allen faz um filme por ano. A disciplina é sua arma para combater a "horrenda melancolia da realidade".
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado na Revista 18, edição de outubro de 2009.
(Dig. Cultural)
sábado, 4 de fevereiro de 2012
Palavrões
Palavrões
Sirio Possenti
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Quando um palavrão aparece fora de lugar ou sai da boca de quem não se esperaria, a reação é um pouco escandalizada. No Brasil, menos do que em outros países. Duvido que um jornal chileno reproduzisse o palavrão de um político de seu país (claro, na hipótese improvável de algum político chileno dizer um palavrão em público).
Nossa televisão, de vez em quando, afrouxa as regras: Faustão tornou "pentelho" aceitável nos domingos à tarde, e Boris Casoy, de vez em quando, abria espaço para um "bunda de fora". Programas de humor, claro, são um pouco mais liberais. Quando são apresentados ao vivo, os apresentadores olham seus relógios para conferir se podem falar mais livremente. É só ver o CQC para comprovar.
Mudanças em relação a palavras tabu refletem mudanças sociais. Não faz muito tempo que não se podia falar publicamente em menstruação ou em camisinha. O fato de nem nos darmos mais conta de que tais palavras já foram proibidas (ao lado de "babaca", por exemplo) é o mais claro sinal de que as coisas mudaram. No caso, acho eu, para melhor.
(O que me lembra da avó que pedia à neta que não dissesse mais certas palavras, que achava inadequadas. Uma era bacana e outra, nojenta, acrescentou. E a neta perguntou, inocentemente, quais eram as palavras!).
Lendo qualquer texto que trate de tabus linguísticos (palavrões são os exemplos mais claros), descobrem-se dois aspectos aparentemente contraditórios de sua vida numa comunidade linguística. Primeiro: são controlados (e não propriamente proibidos), de forma que nem todos os falantes os empregam, ou os empregam impunemente. Digamos, para simplificar bastante, que são mais admissíveis para homens que para mulheres, e são mais admissíveis em lugares privados do que em público (estádios de futebol não valem como contraexemplo, está claro). Segundo: são valorizados, o que significa que os que proferem palavras proibidas são considerados de certa forma heróicos, corajosos, por terem a coragem de violar certas regras (ou de desafiar forças ocultas). Lembro como eram valorizados (os risos sorrateiros eram a prova) na minha terrinha os lavradores que berravam blasfêmias quando suas juntas de bois não lhes obedeciam, nas idas e vindas pelos morros, puxando o arado...
Que palavras tabu sejam mais privadas e masculinas são dois traços que batem com outras representações mais ou menos valorizadas da masculinidade, entre as quais está uma certa grosseria, que pega bem entre homens (em bares, vestiários, saunas etc.). É um comportamento que acompanha e apimenta outros comportamentos que estão mais ou menos no limite (entre os quais está o consumo da bebida). Não esqueçamos que circula um comercial de carro cujo slogan é "para poucos e maus". Os bonzinhos, sabe-se, não arranjam nada...
Há episódios históricos interessantes em relação aos palavrões. O Pasquim foi francamente inovador, especialmente em suas entrevistas, quando eles abundavam. O jornal vinha cheio de asteriscos. É a vantagem da escrita. Ninguém pode ficar desenhando asteriscos no ar quando fala.
Mas nem só de palavrão vive o tabu. Outras palavras são consideradas perigosas, e são evitadas de alguma forma: muita gente não diz nomes de doenças, por exemplo, ou não tem coragem de dizer "morrer" (diz "faltar") nem "diabo" (no máximo, diz "diacho", o que permite expressar uma carga emotiva e, ao, mesmo tempo, evitar que o Cujo apareça ou aja). Quem leu Grande Sertão: Veredas sabe o quanto Riobaldo evitava dizer o nome dele. De quebra, aprendeu um bom número de nomes alternativos.
Em suma: dizer palavrões é violar regras sociais. Sabemos mais ou menos como elas funcionam. Como sempre, a certeza aumenta quando uma regra é violada. Como foi o caso da fala do presidente Lula no Maranhão (mas ninguém deu bola para o fato de Zé Simão dizer que DEM agora quer dizer "Deu Em M...", seja porque é um humorista, seja porque esta notícia circulou bem menos). Nixon ficou famoso pela quantidade de palavrões que dizia, mas o fazia em seu gabinete, discutindo com os assessores mais próximos.
Além disso, há termos técnicos que os substituem. Nenhum de nós vai ao laboratório para fazer exame de m... Mas, convenhamos, ninguém dirá que quer tirar alguém das fezes...
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no Terra Magazine, em dezembro de 2009. Leia também: "É a mãe!".
Sirio Possenti
São Paulo, 28/12/2009
(Digest. Cultural)
Sirio Possenti
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Quando um palavrão aparece fora de lugar ou sai da boca de quem não se esperaria, a reação é um pouco escandalizada. No Brasil, menos do que em outros países. Duvido que um jornal chileno reproduzisse o palavrão de um político de seu país (claro, na hipótese improvável de algum político chileno dizer um palavrão em público).
Nossa televisão, de vez em quando, afrouxa as regras: Faustão tornou "pentelho" aceitável nos domingos à tarde, e Boris Casoy, de vez em quando, abria espaço para um "bunda de fora". Programas de humor, claro, são um pouco mais liberais. Quando são apresentados ao vivo, os apresentadores olham seus relógios para conferir se podem falar mais livremente. É só ver o CQC para comprovar.
Mudanças em relação a palavras tabu refletem mudanças sociais. Não faz muito tempo que não se podia falar publicamente em menstruação ou em camisinha. O fato de nem nos darmos mais conta de que tais palavras já foram proibidas (ao lado de "babaca", por exemplo) é o mais claro sinal de que as coisas mudaram. No caso, acho eu, para melhor.
(O que me lembra da avó que pedia à neta que não dissesse mais certas palavras, que achava inadequadas. Uma era bacana e outra, nojenta, acrescentou. E a neta perguntou, inocentemente, quais eram as palavras!).
Lendo qualquer texto que trate de tabus linguísticos (palavrões são os exemplos mais claros), descobrem-se dois aspectos aparentemente contraditórios de sua vida numa comunidade linguística. Primeiro: são controlados (e não propriamente proibidos), de forma que nem todos os falantes os empregam, ou os empregam impunemente. Digamos, para simplificar bastante, que são mais admissíveis para homens que para mulheres, e são mais admissíveis em lugares privados do que em público (estádios de futebol não valem como contraexemplo, está claro). Segundo: são valorizados, o que significa que os que proferem palavras proibidas são considerados de certa forma heróicos, corajosos, por terem a coragem de violar certas regras (ou de desafiar forças ocultas). Lembro como eram valorizados (os risos sorrateiros eram a prova) na minha terrinha os lavradores que berravam blasfêmias quando suas juntas de bois não lhes obedeciam, nas idas e vindas pelos morros, puxando o arado...
Que palavras tabu sejam mais privadas e masculinas são dois traços que batem com outras representações mais ou menos valorizadas da masculinidade, entre as quais está uma certa grosseria, que pega bem entre homens (em bares, vestiários, saunas etc.). É um comportamento que acompanha e apimenta outros comportamentos que estão mais ou menos no limite (entre os quais está o consumo da bebida). Não esqueçamos que circula um comercial de carro cujo slogan é "para poucos e maus". Os bonzinhos, sabe-se, não arranjam nada...
Há episódios históricos interessantes em relação aos palavrões. O Pasquim foi francamente inovador, especialmente em suas entrevistas, quando eles abundavam. O jornal vinha cheio de asteriscos. É a vantagem da escrita. Ninguém pode ficar desenhando asteriscos no ar quando fala.
Mas nem só de palavrão vive o tabu. Outras palavras são consideradas perigosas, e são evitadas de alguma forma: muita gente não diz nomes de doenças, por exemplo, ou não tem coragem de dizer "morrer" (diz "faltar") nem "diabo" (no máximo, diz "diacho", o que permite expressar uma carga emotiva e, ao, mesmo tempo, evitar que o Cujo apareça ou aja). Quem leu Grande Sertão: Veredas sabe o quanto Riobaldo evitava dizer o nome dele. De quebra, aprendeu um bom número de nomes alternativos.
Em suma: dizer palavrões é violar regras sociais. Sabemos mais ou menos como elas funcionam. Como sempre, a certeza aumenta quando uma regra é violada. Como foi o caso da fala do presidente Lula no Maranhão (mas ninguém deu bola para o fato de Zé Simão dizer que DEM agora quer dizer "Deu Em M...", seja porque é um humorista, seja porque esta notícia circulou bem menos). Nixon ficou famoso pela quantidade de palavrões que dizia, mas o fazia em seu gabinete, discutindo com os assessores mais próximos.
Além disso, há termos técnicos que os substituem. Nenhum de nós vai ao laboratório para fazer exame de m... Mas, convenhamos, ninguém dirá que quer tirar alguém das fezes...
Nota do Editor
Texto gentilmente cedido pelo autor. Originalmente publicado no Terra Magazine, em dezembro de 2009. Leia também: "É a mãe!".
Sirio Possenti
São Paulo, 28/12/2009
(Digest. Cultural)
China
A questão chinesa
Após trinta anos, a questão chinesa é bastante complexa. De qualquer ângulo que se olhe, tornou-se um perigo para o capitalismo. Assim, não é por acaso que os países centrais tomam a China, cada vez mais, como alvo principal de suas estratégias políticas e militares
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China: paz e boas relações com as nações para completar seu desenvolvimento
Foto: Pixtal/Grupo Keystone
Não é só o Brasil que se vê às voltas com o que poderíamos chamar de questão chinesa. Essa questão está, praticamente, diante de todos os países e povos. Não tem, porém, a mesma forma de quando emergiu, no final dos anos 1970 e início dos 1980. A questão chinesa atual parece haver se transformado no contrário daquela.
Nos anos 1980, todos os empresários relativamente bem informados, em qualquer parte do planeta, saudavam o ingresso da China no caminho do capitalismo. Tal virada seria o complemento final da reversão do sonho comunista e socialista à realidade inexorável e eterna do modo de produção capitalista. A rigor, nada muito diferente do que pensava a maior parte dos comunistas e socialistas, em todo o mundo. É verdade que para estes, diferentemente dos detentores de capital, o ingresso da China na globalização capitalista não representava apenas uma regressão social e a implantação do iníquo processo de exploração da força de trabalho chinesa. Representava, também, uma nova subordinação da China às potências capitalistas.
Trinta anos depois, muita gente ainda acredita na China completamente perdida para o socialismo. Mas até esses céticos são obrigados a reconhecer que a questão chinesa se tornou bem mais complexa. Por exemplo, na atualidade, pouco mais de 50% das empresas do país são privadas. Pertencem tanto a capitalistas estrangeiros quanto a uma florescente burguesia nacional chinesa. E ambos reclamam maior participação nos mercados e menos travas na exploração de seus trabalhadores.
No entanto, ao contrário da divulgada privatização completa da economia chinesa, cerca de 50% das demais empresas continuam nas mãos do Estado e de cooperativas, com predomínio nos setores econômicos estratégicos, e não há indício de que o Estado esteja disposto a abrir mão delas. Antes estão se tornando grandes corporações, utilizadas como instrumentos econômicos para orientar o conjunto da economia e corrigir os desvios erráticos do mercado. Ao desfazer os monopólios, o Estado chinês impôs a suas estatais aprender a operar no mercado sem preços administrados, competindo tanto com as empresas privadas quanto entre si.
Do ponto de vista social, o panorama também não é o céu de exploração desejado pelos capitalistas nem o inferno previsto por socialistas. Hoje, enquanto os empresários privados chineses reclamam do crescimento dos salários e dos benefícios aos trabalhadores, os dos demais países, diante da concorrência dos produtos chineses, acusam a China de dumping social, salários de fome, trabalho escravo e outras práticas que feririam os direitos humanos. Muitos socialistas também se preocupam com o evidente crescimento das desigualdades econômicas e sociais chinesas. Sem dúvida, como em todos os países onde há capitalistas, é possível encontrar na China casos pontuais de extrema pobreza, salários abaixo do limite legal, superexploração de trabalhadores e mesmo trabalho escravo.
No entanto, ao contrário do que aconteceu no desenvolvimento de muitos países, essas desigualdades ocorrem no contexto de um enriquecimento geral. A China retirou da linha da pobreza e da miséria, no curto espaço de trinta anos, cerca de 800 milhões de pessoas, elevando-as acima do nível de classe média baixa. O poder de compra dessa imensa população criou um mercado doméstico inigualável.
(Teoria e Debate)
Após trinta anos, a questão chinesa é bastante complexa. De qualquer ângulo que se olhe, tornou-se um perigo para o capitalismo. Assim, não é por acaso que os países centrais tomam a China, cada vez mais, como alvo principal de suas estratégias políticas e militares
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China: paz e boas relações com as nações para completar seu desenvolvimento
Foto: Pixtal/Grupo Keystone
Não é só o Brasil que se vê às voltas com o que poderíamos chamar de questão chinesa. Essa questão está, praticamente, diante de todos os países e povos. Não tem, porém, a mesma forma de quando emergiu, no final dos anos 1970 e início dos 1980. A questão chinesa atual parece haver se transformado no contrário daquela.
Nos anos 1980, todos os empresários relativamente bem informados, em qualquer parte do planeta, saudavam o ingresso da China no caminho do capitalismo. Tal virada seria o complemento final da reversão do sonho comunista e socialista à realidade inexorável e eterna do modo de produção capitalista. A rigor, nada muito diferente do que pensava a maior parte dos comunistas e socialistas, em todo o mundo. É verdade que para estes, diferentemente dos detentores de capital, o ingresso da China na globalização capitalista não representava apenas uma regressão social e a implantação do iníquo processo de exploração da força de trabalho chinesa. Representava, também, uma nova subordinação da China às potências capitalistas.
Trinta anos depois, muita gente ainda acredita na China completamente perdida para o socialismo. Mas até esses céticos são obrigados a reconhecer que a questão chinesa se tornou bem mais complexa. Por exemplo, na atualidade, pouco mais de 50% das empresas do país são privadas. Pertencem tanto a capitalistas estrangeiros quanto a uma florescente burguesia nacional chinesa. E ambos reclamam maior participação nos mercados e menos travas na exploração de seus trabalhadores.
No entanto, ao contrário da divulgada privatização completa da economia chinesa, cerca de 50% das demais empresas continuam nas mãos do Estado e de cooperativas, com predomínio nos setores econômicos estratégicos, e não há indício de que o Estado esteja disposto a abrir mão delas. Antes estão se tornando grandes corporações, utilizadas como instrumentos econômicos para orientar o conjunto da economia e corrigir os desvios erráticos do mercado. Ao desfazer os monopólios, o Estado chinês impôs a suas estatais aprender a operar no mercado sem preços administrados, competindo tanto com as empresas privadas quanto entre si.
Do ponto de vista social, o panorama também não é o céu de exploração desejado pelos capitalistas nem o inferno previsto por socialistas. Hoje, enquanto os empresários privados chineses reclamam do crescimento dos salários e dos benefícios aos trabalhadores, os dos demais países, diante da concorrência dos produtos chineses, acusam a China de dumping social, salários de fome, trabalho escravo e outras práticas que feririam os direitos humanos. Muitos socialistas também se preocupam com o evidente crescimento das desigualdades econômicas e sociais chinesas. Sem dúvida, como em todos os países onde há capitalistas, é possível encontrar na China casos pontuais de extrema pobreza, salários abaixo do limite legal, superexploração de trabalhadores e mesmo trabalho escravo.
No entanto, ao contrário do que aconteceu no desenvolvimento de muitos países, essas desigualdades ocorrem no contexto de um enriquecimento geral. A China retirou da linha da pobreza e da miséria, no curto espaço de trinta anos, cerca de 800 milhões de pessoas, elevando-as acima do nível de classe média baixa. O poder de compra dessa imensa população criou um mercado doméstico inigualável.
(Teoria e Debate)
Haiti
O Haiti que Dilma visita (contado por Eduardo Galeano)
“Os escravos negros do Haiti propinaram uma tremenda surra ao Exército de Napoleao Bonaparte; e em 1808 a bandeira dos livres se alçou sobre as ruínas.
Mas o Haiti foi, desde ali, um país arrasado. Nos altares das plantações francesas de açúcar se tinham imolado terras e braços, e as calamidades da guerra tinham exterminado um terço da população.
O nascimento da independência e a morte da escravidão, façanhas negras, foram humilhações imperdoáveis para os brancos donos do mundo.
Dezoito generais de Napoleão tinham sido enterrados na ilha rebelde. A nova nação, parida em sangue, nasceu condenada ao bloqueio e à solidão: ninguém comprava dela, ninguém lhe vendia, ninguém a reconhecia. Por ter sido infiel ao amo colonial, o Haiti foi obrigado a pagar à França uma gigantesca indenização. Essa expiação do pecado da dignidade, que esteve pagando durante um século e meio, foi o preço que a França lhe impôs para seu reconhecimento diplomático.
Ninguém mais o reconheceu. Nem a Grande Colombia de Simon Bolívar, mesmo se ele lhe deveu tudo. Navios, armas e soldados o Haiti tinha lhe dado, com a única condição que libertasse aos escravos, uma ideia que não tinha ocorrido ao Libertador. Depois, quando Bolívar triunfou na sua guerra de independência, negou-se a convidar o Haiti ao congresso das novas nações americanas.
O Haiti continuou sendo o leproso das Américas.
Thomas Jefferson tinha advertido, desde o começo, que tinha que confinar a peste nessa ilha, porque dali provinha o mal exemplo.
A peste, o mau exemplo: desobediência, caos, violência. Na Carolina do Sul, a lei permitia prender qualquer marinheiro negro, enquanto o seu navio estivesse no porto, pelo risco de que pudesse contagiar a febre antiescravista que ameaçava a todas as Américas. No Brasil essa febre se chamava haitianismo.
Postado por Emir Sader às 14:03
(Carta Maior)
“Os escravos negros do Haiti propinaram uma tremenda surra ao Exército de Napoleao Bonaparte; e em 1808 a bandeira dos livres se alçou sobre as ruínas.
Mas o Haiti foi, desde ali, um país arrasado. Nos altares das plantações francesas de açúcar se tinham imolado terras e braços, e as calamidades da guerra tinham exterminado um terço da população.
O nascimento da independência e a morte da escravidão, façanhas negras, foram humilhações imperdoáveis para os brancos donos do mundo.
Dezoito generais de Napoleão tinham sido enterrados na ilha rebelde. A nova nação, parida em sangue, nasceu condenada ao bloqueio e à solidão: ninguém comprava dela, ninguém lhe vendia, ninguém a reconhecia. Por ter sido infiel ao amo colonial, o Haiti foi obrigado a pagar à França uma gigantesca indenização. Essa expiação do pecado da dignidade, que esteve pagando durante um século e meio, foi o preço que a França lhe impôs para seu reconhecimento diplomático.
Ninguém mais o reconheceu. Nem a Grande Colombia de Simon Bolívar, mesmo se ele lhe deveu tudo. Navios, armas e soldados o Haiti tinha lhe dado, com a única condição que libertasse aos escravos, uma ideia que não tinha ocorrido ao Libertador. Depois, quando Bolívar triunfou na sua guerra de independência, negou-se a convidar o Haiti ao congresso das novas nações americanas.
O Haiti continuou sendo o leproso das Américas.
Thomas Jefferson tinha advertido, desde o começo, que tinha que confinar a peste nessa ilha, porque dali provinha o mal exemplo.
A peste, o mau exemplo: desobediência, caos, violência. Na Carolina do Sul, a lei permitia prender qualquer marinheiro negro, enquanto o seu navio estivesse no porto, pelo risco de que pudesse contagiar a febre antiescravista que ameaçava a todas as Américas. No Brasil essa febre se chamava haitianismo.
Postado por Emir Sader às 14:03
(Carta Maior)
sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012
Poesia
Pelo seu corpo eu percorro
2012/01/31 • Arquivado em Uncategorized
Seu corpo saliente, quente e envolvente
Balançando meu traseiro
Invisto sensualmente desejada por voce
Em meus pensamentos, ja nua
Domada, Amada…
De moçinha em uma doce mulher safada
(Da amiga Christiane)
2012/01/31 • Arquivado em Uncategorized
Seu corpo saliente, quente e envolvente
Balançando meu traseiro
Invisto sensualmente desejada por voce
Em meus pensamentos, ja nua
Domada, Amada…
De moçinha em uma doce mulher safada
(Da amiga Christiane)
Espanha
Baltasar Garzón é alvo de entidades fascistas, diz Ramonet
“Estão usando como desculpa denúncias nebulosas sobre honorários de uma palestra que ele deu para o banco Santander, mas a verdade é que não passa de um ataque de duas entidades claramente fascistas. É uma resposta a decisão do juiz Garzon de autorizar a abertura das covas coletivas do franquismo e de investigar os crimes cometidos durante a guerra civil e a ditadura. Proponho que os participantes do Fórum Social Temático preparem um documento de solidariedade ao juiz Garzon", disse Ignacio Ramonet em Porto Alegre.
Ivan Trindade
Porto Alegre - O ciclo de debates Direitos Humanos e Justiça iniciou sexta-feira (27), com uma palestra do jornalista espanhol Ignácio Ramonet, que falou para um auditório repleto na faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A mesa foi aberta pela ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, que lembrou que o exame dos erros do passado influi diretamente no futuro: “Enquanto não respondermos sobre as mortes na ditadura militar, a democracia brasileira será uma democracia frágil”. Rosário frisou a importância da aprovação recente da Comissão da Verdade, que examinará as mortes e demais violações aos direitos humanos durante o regime militar brasileiro.
Em sua fala, porém, Rosário não comentou nenhuma das críticas que a comissão vem recebendo. O governo brasileiro é acusado por parentes de vítimas e movimentos de defesa dos direitos humanos de ter cedido à pressão da direita e criado uma comissão ineficiente. A ministra lamentou que ainda hoje violações sigam acontecendo, citando a recente remoção violenta dos moradores da comunidade do Pinheirinho, em São José dos Campos, São Paulo: “A própria presidenta Dilma chamou a ação de barbárie. É preciso combater com firmeza a violência policial que ainda é frequente no Brasil”, disse para aplausos.
O diretor do Le Monde Diplomatique (edição espanhola) iniciou sua fala lembrando que tratava-se de um dia muito especial, já que a justiça da Guatemala tinha decidido pela condenação do ex-ditador Efraín Ríos Montt, 86, a 30 anos de cadeia por genocídio cometido durante os 36 anos em que governou o país, entre 1960 e 1996. “Mesmo tão idoso, a justiça deixou claro que não se pode esquecer”, disse Ramonet.
Se a justiça guatemalteca trouxe boas notícias, na França e na Espanha, as novidades são muito piores: “Na França, uma lei foi aprovada e promete punir quem negar o genocídio armênio pelo império otomano, o que tem sido considerado pelos historiadores como uma volta à política da verdade oficial, uma forma de inquisição”. No país natal de Ramonet, o ataque é ainda mais grave, com o julgamento do juiz Baltasar Garzon pela justiça espanhola:
“Estão usando como desculpa denúncias nebulosas sobre honorários de uma palestra que ele deu para o banco Santander, mas a verdade é que não passa de um ataque de duas entidades claramente fascistas. É uma resposta a decisão do juiz Garzon de autorizar a abertura das covas coletivas do franquismo e de investigar os crimes cometidos durante a guerra civil e a ditadura. Proponho que os participantes do Fórum Social Temático preparem e assinem documento de solidariedade ao juiz Garzon. Se condenado, ele poderá ser suspenso por 10 a 20 anos, o que o impediria de lutar pela liberdade”.
O trabalho de Garzon, que mandou prender o ditador chileno Augusto Pinochet, entre diversos outros militares, policiais e agentes das ditaduras chilena e argentina, para Ramonet, caminha juntamente com a instalação de comissões da verdade, entidades que investigam crimes cometidos por regimes autoritários: “Entre 1974 e 2011, mais de 35 dessas comissões foram instaladas. Elas vem atender uma obrigação dos estados, que é o dever de memória. Cada estado precisa assumir sua responsabilidade por atos criminosos do passado”.
Ramonet argumentou ainda que colocar os criminosos na cadeia não é a única resposta que os estados devem dar à sociedade: “Principalmente nos casos em que o tempo passa e os criminosos morrem, o Estado precisa prover uma reparação moral às vítimas. Reconhecer que torturou e matou. O desejo de memória nasceu em Auschwitz, quando Hitler tentou exterminar os judeus e todo o rastro que aquele povo havia deixado”.
Em seguida o fundador da ONG Global Media Watch expôs os percalços que a busca pela verdade vem sofrendo: “As leis de anistia, que foram aprovadas em diversos países, causaram uma forma de amnésia coletiva que, com o tempo, podem se tornar uma explosão de intolerância e violência”.
Para encerrar, Ramonet enumerou as funções que cada comissão da verdade tem que cumprir. Sua última frase definiu perfeitamente o espírito da mesa e do ciclo de debates: “Há que se ter memória, para se fazer justiça”. Assista no vídeo acima os minutos finais da fala do jornalista.
A ministra Maria do Rosário encerrou a mesa com uma fala breve, em que disse que a democracia, para ser viva, tem que estar em movimento, ativa pela participação da sociedade: “Se não há participação dos movimentos sociais, a democracia abre caminhos para sérios retrocessos. As ditaduras não conhecem barreiras e as lutas pelos direitos humanos também não podem ser contidas”.
Fotos: Ivan Trindade
(Outras Palavras)
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“Estão usando como desculpa denúncias nebulosas sobre honorários de uma palestra que ele deu para o banco Santander, mas a verdade é que não passa de um ataque de duas entidades claramente fascistas. É uma resposta a decisão do juiz Garzon de autorizar a abertura das covas coletivas do franquismo e de investigar os crimes cometidos durante a guerra civil e a ditadura. Proponho que os participantes do Fórum Social Temático preparem um documento de solidariedade ao juiz Garzon", disse Ignacio Ramonet em Porto Alegre.
Ivan Trindade
Porto Alegre - O ciclo de debates Direitos Humanos e Justiça iniciou sexta-feira (27), com uma palestra do jornalista espanhol Ignácio Ramonet, que falou para um auditório repleto na faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A mesa foi aberta pela ministra dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, que lembrou que o exame dos erros do passado influi diretamente no futuro: “Enquanto não respondermos sobre as mortes na ditadura militar, a democracia brasileira será uma democracia frágil”. Rosário frisou a importância da aprovação recente da Comissão da Verdade, que examinará as mortes e demais violações aos direitos humanos durante o regime militar brasileiro.
Em sua fala, porém, Rosário não comentou nenhuma das críticas que a comissão vem recebendo. O governo brasileiro é acusado por parentes de vítimas e movimentos de defesa dos direitos humanos de ter cedido à pressão da direita e criado uma comissão ineficiente. A ministra lamentou que ainda hoje violações sigam acontecendo, citando a recente remoção violenta dos moradores da comunidade do Pinheirinho, em São José dos Campos, São Paulo: “A própria presidenta Dilma chamou a ação de barbárie. É preciso combater com firmeza a violência policial que ainda é frequente no Brasil”, disse para aplausos.
O diretor do Le Monde Diplomatique (edição espanhola) iniciou sua fala lembrando que tratava-se de um dia muito especial, já que a justiça da Guatemala tinha decidido pela condenação do ex-ditador Efraín Ríos Montt, 86, a 30 anos de cadeia por genocídio cometido durante os 36 anos em que governou o país, entre 1960 e 1996. “Mesmo tão idoso, a justiça deixou claro que não se pode esquecer”, disse Ramonet.
Se a justiça guatemalteca trouxe boas notícias, na França e na Espanha, as novidades são muito piores: “Na França, uma lei foi aprovada e promete punir quem negar o genocídio armênio pelo império otomano, o que tem sido considerado pelos historiadores como uma volta à política da verdade oficial, uma forma de inquisição”. No país natal de Ramonet, o ataque é ainda mais grave, com o julgamento do juiz Baltasar Garzon pela justiça espanhola:
“Estão usando como desculpa denúncias nebulosas sobre honorários de uma palestra que ele deu para o banco Santander, mas a verdade é que não passa de um ataque de duas entidades claramente fascistas. É uma resposta a decisão do juiz Garzon de autorizar a abertura das covas coletivas do franquismo e de investigar os crimes cometidos durante a guerra civil e a ditadura. Proponho que os participantes do Fórum Social Temático preparem e assinem documento de solidariedade ao juiz Garzon. Se condenado, ele poderá ser suspenso por 10 a 20 anos, o que o impediria de lutar pela liberdade”.
O trabalho de Garzon, que mandou prender o ditador chileno Augusto Pinochet, entre diversos outros militares, policiais e agentes das ditaduras chilena e argentina, para Ramonet, caminha juntamente com a instalação de comissões da verdade, entidades que investigam crimes cometidos por regimes autoritários: “Entre 1974 e 2011, mais de 35 dessas comissões foram instaladas. Elas vem atender uma obrigação dos estados, que é o dever de memória. Cada estado precisa assumir sua responsabilidade por atos criminosos do passado”.
Ramonet argumentou ainda que colocar os criminosos na cadeia não é a única resposta que os estados devem dar à sociedade: “Principalmente nos casos em que o tempo passa e os criminosos morrem, o Estado precisa prover uma reparação moral às vítimas. Reconhecer que torturou e matou. O desejo de memória nasceu em Auschwitz, quando Hitler tentou exterminar os judeus e todo o rastro que aquele povo havia deixado”.
Em seguida o fundador da ONG Global Media Watch expôs os percalços que a busca pela verdade vem sofrendo: “As leis de anistia, que foram aprovadas em diversos países, causaram uma forma de amnésia coletiva que, com o tempo, podem se tornar uma explosão de intolerância e violência”.
Para encerrar, Ramonet enumerou as funções que cada comissão da verdade tem que cumprir. Sua última frase definiu perfeitamente o espírito da mesa e do ciclo de debates: “Há que se ter memória, para se fazer justiça”. Assista no vídeo acima os minutos finais da fala do jornalista.
A ministra Maria do Rosário encerrou a mesa com uma fala breve, em que disse que a democracia, para ser viva, tem que estar em movimento, ativa pela participação da sociedade: “Se não há participação dos movimentos sociais, a democracia abre caminhos para sérios retrocessos. As ditaduras não conhecem barreiras e as lutas pelos direitos humanos também não podem ser contidas”.
Fotos: Ivan Trindade
(Outras Palavras)
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III Reich
Memória: como Hitler inaugurou o 3º Reich, há 79 anos
By
admin
– 30 de janeiro de 2012
Juntos, socialistas e comunistas tinham mais votos e presença no Parlamento que os nazistas. Mas atos de terror de Estado, e promessa de encerrar crise econômica, consolidaram governo que começou minoritário e débil
Por Max Altman, no Opera Mundi
Na gelada manhã de 30 de janeiro de 1933 chegaria ao fim a tragédia da República de Weimar, a tragédia de 14 frustrados anos nos quais os alemães buscaram, sem sucesso, pôr em funcionamento uma democracia.
Aproximadamente às 10h30, os membros do ministério proposto em negociações entre nazistas e reacionários da velha escola, somados às forças conservadoras, de centro e de setores sociais-democratas, atravessam o jardim do palácio e se apresentam no gabinete presidencial.
O presidente da República, o velho marechal Paul von Hindenburg, de 86 anos, confia a chancelaria a Adolf Hitler, führer do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, NSDAP), mais conhecido como Partido Nazista, e o encarrega de formar o novo governo.
A nomeação surpreendente de Hitler seguiu-se às tratativas entre os dirigentes conservadores, em especial o ex-chanceler Franz von Papen, e os simpatizantes nazistas, representados pelo doutor Hjalmar Schacht, um reputado economista responsável pelo reordenamento espetacular da economia alemã após a crise inflacionária de 1923, o “ano desumano”.
Os conservadores e o empresariado queriam se servir de Hitler para deter a ameaça comunista. Não acreditavam que os nazistas representassem um perigo real para a democracia alemã. No entanto, eles sabiam bem quem era Hitler e sua ideologia, desde a publicação do Mein Kampf, a “Bíblia nazista”, oito anos antes.
O Partido Nazi estava perdendo velocidade eleitoral. No pleito de 31 de julho de 1932 havia conquistado 230 cadeiras no Reichstag de um total de 608 – 37,3 % dos votos populares. Já nas eleições legislativas de novembro do mesmo ano, obtiveram 33,1% dos sufrágios, perdendo 2 milhões de votos e 34 lugares no Parlamento. Os comunistas ganharam 750 mil votos e os social-democratas perderam a mesma quantidade. Com esse resultado, os comunistas passaram de 89 para 100 cadeiras e os socialistas caíram de 133 para 121 deputados. Os dois somados superavam largamente as 196 cadeiras nazistas. A perda de dois milhões de votos nazistas sobre um total de 17 milhões, em apenas quatro meses, significava um duro revés. O governo formado por Hitler foi aberto amplamente aos representantes da direita clássica. Não contava com mais do que três nazistas, Hitler, entre eles, e Von Papen, como vice-chanceler.
Por falta da maioria absoluta no Reichstag, Hitler parecia longe de poder governar a seu talante. Ninguém leva a sério os discursos racistas. Muitos alemães pensam, contudo, que ele poderia recuperar o país atormentado pela crise econômica.
Com uma rapidez fulminante e por meios totalmente ilegais, vai consolidar a ditadura a despeito da fraca representação de seu partido no governo e no Reichstag.
No dia seguinte a sua investidura na chancelaria, Hitler dissolve o Reichstag e prepara novas eleições para 5 de março de 1933. Ao mesmo tempo, traça aquilo que seu chefe de propaganda, Josef Goebbels, chama de “as grandes linhas da luta armada contra o terror vermelho”.
As tropas de assalto de seu partido, as SA (Sturmabteilung), aterrorizam a oposição como forma de campanha eleitoral. Cometem pelo menos 51 assassinatos.
Um dos principais ajudantes de Hitler, Hermann Goering, ocupando o cargo chave de Ministro do Interior da Prússia, manipula a polícia, demitindo funcionários hostis e colocando os nazistas nos postos essenciais.
Hitler faz rondar o “espectro da revolução bolchevique”, mas como esta tarda a eclodir, decide inventá-la. Em 24 de fevereiro, uma batida na sede do Partido Comunista permite a Goering anunciar a apreensão de documentos prenunciando a revolução. Esses documentos jamais foram publicados.
Como toda essa agitação não parecia bastar para acumular a maioria dos sufrágios aos nazistas, decidem pôr fogo no Reichstag.
As classes conservadoras julgavam ter encontrado o homem que as ajudaria a alcançar suas metas : erguer uma Alemanha autoritária que pusesse termo à “insensatez democrática”, esmagasse os comunistas e o poder dos sindicatos, arrancasse as algemas de Versalhes, reconstruísse um grande exército e reconquistasse para o país o seu lugar ao sol.
O Império dos Hohenzollern fora edificado sobre as vitórias militares da Prússia ; a República alemã sobre a derrota diante dos Aliados depois de uma grande guerra. O Terceiro Reich, porém, nada devia aos azares da guerra. Foi instaurado em tempos de paz, e pacificamente, pelos próprios alemães.
(Outras Palavras)
By
admin
– 30 de janeiro de 2012
Juntos, socialistas e comunistas tinham mais votos e presença no Parlamento que os nazistas. Mas atos de terror de Estado, e promessa de encerrar crise econômica, consolidaram governo que começou minoritário e débil
Por Max Altman, no Opera Mundi
Na gelada manhã de 30 de janeiro de 1933 chegaria ao fim a tragédia da República de Weimar, a tragédia de 14 frustrados anos nos quais os alemães buscaram, sem sucesso, pôr em funcionamento uma democracia.
Aproximadamente às 10h30, os membros do ministério proposto em negociações entre nazistas e reacionários da velha escola, somados às forças conservadoras, de centro e de setores sociais-democratas, atravessam o jardim do palácio e se apresentam no gabinete presidencial.
O presidente da República, o velho marechal Paul von Hindenburg, de 86 anos, confia a chancelaria a Adolf Hitler, führer do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei, NSDAP), mais conhecido como Partido Nazista, e o encarrega de formar o novo governo.
A nomeação surpreendente de Hitler seguiu-se às tratativas entre os dirigentes conservadores, em especial o ex-chanceler Franz von Papen, e os simpatizantes nazistas, representados pelo doutor Hjalmar Schacht, um reputado economista responsável pelo reordenamento espetacular da economia alemã após a crise inflacionária de 1923, o “ano desumano”.
Os conservadores e o empresariado queriam se servir de Hitler para deter a ameaça comunista. Não acreditavam que os nazistas representassem um perigo real para a democracia alemã. No entanto, eles sabiam bem quem era Hitler e sua ideologia, desde a publicação do Mein Kampf, a “Bíblia nazista”, oito anos antes.
O Partido Nazi estava perdendo velocidade eleitoral. No pleito de 31 de julho de 1932 havia conquistado 230 cadeiras no Reichstag de um total de 608 – 37,3 % dos votos populares. Já nas eleições legislativas de novembro do mesmo ano, obtiveram 33,1% dos sufrágios, perdendo 2 milhões de votos e 34 lugares no Parlamento. Os comunistas ganharam 750 mil votos e os social-democratas perderam a mesma quantidade. Com esse resultado, os comunistas passaram de 89 para 100 cadeiras e os socialistas caíram de 133 para 121 deputados. Os dois somados superavam largamente as 196 cadeiras nazistas. A perda de dois milhões de votos nazistas sobre um total de 17 milhões, em apenas quatro meses, significava um duro revés. O governo formado por Hitler foi aberto amplamente aos representantes da direita clássica. Não contava com mais do que três nazistas, Hitler, entre eles, e Von Papen, como vice-chanceler.
Por falta da maioria absoluta no Reichstag, Hitler parecia longe de poder governar a seu talante. Ninguém leva a sério os discursos racistas. Muitos alemães pensam, contudo, que ele poderia recuperar o país atormentado pela crise econômica.
Com uma rapidez fulminante e por meios totalmente ilegais, vai consolidar a ditadura a despeito da fraca representação de seu partido no governo e no Reichstag.
No dia seguinte a sua investidura na chancelaria, Hitler dissolve o Reichstag e prepara novas eleições para 5 de março de 1933. Ao mesmo tempo, traça aquilo que seu chefe de propaganda, Josef Goebbels, chama de “as grandes linhas da luta armada contra o terror vermelho”.
As tropas de assalto de seu partido, as SA (Sturmabteilung), aterrorizam a oposição como forma de campanha eleitoral. Cometem pelo menos 51 assassinatos.
Um dos principais ajudantes de Hitler, Hermann Goering, ocupando o cargo chave de Ministro do Interior da Prússia, manipula a polícia, demitindo funcionários hostis e colocando os nazistas nos postos essenciais.
Hitler faz rondar o “espectro da revolução bolchevique”, mas como esta tarda a eclodir, decide inventá-la. Em 24 de fevereiro, uma batida na sede do Partido Comunista permite a Goering anunciar a apreensão de documentos prenunciando a revolução. Esses documentos jamais foram publicados.
Como toda essa agitação não parecia bastar para acumular a maioria dos sufrágios aos nazistas, decidem pôr fogo no Reichstag.
As classes conservadoras julgavam ter encontrado o homem que as ajudaria a alcançar suas metas : erguer uma Alemanha autoritária que pusesse termo à “insensatez democrática”, esmagasse os comunistas e o poder dos sindicatos, arrancasse as algemas de Versalhes, reconstruísse um grande exército e reconquistasse para o país o seu lugar ao sol.
O Império dos Hohenzollern fora edificado sobre as vitórias militares da Prússia ; a República alemã sobre a derrota diante dos Aliados depois de uma grande guerra. O Terceiro Reich, porém, nada devia aos azares da guerra. Foi instaurado em tempos de paz, e pacificamente, pelos próprios alemães.
(Outras Palavras)
Cultura
Notas e fragmentos sobre cultura
Julio Dias
Uma visão oficial e midiática sobre cultura passa pela idéia de tradição. Como um passado recortado da historia, subtraído das relações de produção (econômicas, sociais, políticas, culturais, espirituais) que lhe davam a dimensão histórica concreta.
Da totalidade social de onde foram pinçadas as manifestações culturais que os especialistas elegem como a identidade da cultura popular, nada ou quase nada permanece. A sociedade se transforma pela historia, e sua cultura nos é apresentada como a somatória do pitoresco desarticulado e desvinculado do real vivido no passado e no presente.
A grande maioria dessas manifestações há muito não se manifesta mais. Não são vivências reais e concretas, articuladas com o tempo real do presente. São como entes em coma sem volta, mantidos pelos aparelhos do folclore, e exibidas ao público em ocasiões especiais.
Os folcloristas descrevem e catalogam festas, danças, vestes, cantos, ritmos, ritos. Do achado à pesquisa, agrupam pela diferença e similaridade, local e época. Publicam seus escritos destinados a salvar o tradicional do inexorável e acelerado processo de obsolescência que o capitalismo impõe à sociedade.
Recuperam do passado conjuntos de elementos cristalizados, sem a reconstrução histórica de sua significação, ordenando-os a partir do filtro da consciência do pesquisador a fim de purgá-los da infiltração do contemporâneo, dispondo-os como sobrevivências do passado a serem consumidas no presente. Grupos de arte popular especializados apresentam-se aqui e ali, uma, duas, três vezes ao ano. Levam o público a embarcar num túnel do tempo que não os transporta a passado algum.
A tradição folclórica é uma mercadoria com valor espetacular, como outras mercadorias produzidas pela indústria cultural. A diferença, apenas uma: o espetáculo é sobre um passado não revelado. De similar com o espetacular contemporâneo, o fato de dizer muito pouco sobre o significante, a sociedade, a vida real e historicamente determinada. O espetáculo é o fim em si.
O folclore baseia-se num pressuposto preconceituoso, característico das idéias das classes dominantes. As ciências apóiam-se nos conhecimentos e pesquisas de outras ciências, enquanto o estudo das tradições populares limita-se a apenas uma especialidade. Essa característica parece decorrer da definição que muitos folcloristas dão à cultura popular, como o universo cultural do homem rústico.
Manifesta a tendência conservadora de volta ao passado, como se a realidade social e cultural fosse melhor e mais rica quanto maior a distância histórica. Sua ação reforça a nostalgia reacionária de regresso ao um passado idealizado. Longe de restringir-se aos círculos folcloristas, essa tendência se alastra pelo mundo com o faturamento colossal da indústria do turismo.
Outra visão dominante é dada pela indústria cultural. É a cultura para consumo instantâneo e descartável. Produzida em escala industrial para grandes massas, para todos os estratos e gostos. É música comercial, TV, moda, cinema de grande bilheteria, literatura de fácil digestão, grande mídia...
Com roupagem de arte e modo de vida, é a afirmação acrítica da realidade existente, sempre vestida de novidade, em ciclos repetitivos. Sua estética, ou melhor, seu esteticismo, é a reedição aleatória de formas passadas, remasterizadas, a negação da estética com aparência estética.
Essa cultura de massas ou para as massas, tende sempre à homogeneização. Seu pressuposto é a senha da identidade programada, oposta à autenticidade. O igual, o lugar comum, é sua meta. Um objetivo que parece negar-se a si próprio quando uma nova onda do atual chega, mas que logo volta a afirmar-se no ponto de saturação, no limiar de uma nova leva de produção e consumo que trás o velho reestilizado para realizar nova homogeneidade.
Uma terceira concepção de cultura é a erudita. Trata-se do que mais elevado a humanidade até hoje produziu no universo das artes e ciências. Um grande arcabouço de conhecimentos que pretensamente daria conta de explicar a humanidade de suas origens ao tempo presente.
Sem dúvida, essa cultura dita enciclopédica tem muita importância para humanidade. Basta lembrarmos os períodos da historia, longos ou curtos, abrangentes ou localizados, em que o alto conhecimento foi posto à margem da apropriação social. O exemplo mais trágico está registrado como a noite dos mil anos que pairou sobre o ocidente medieval.
Sua existência como um saber para poucos é determinado pela natureza das sociedades de classes, como o capitalismo, que distribuem desigualmente as condições para a apropriação do conhecimento, produzindo a separação entre cultura erudita e cultura popular.
Entretanto, esse saber supostamente total e profundo é discutível. Uma grande carga ideológica reveste o conjunto da obra, limitando sua capacidade de iluminação sobre a realidade de um mundo crescentemente complexo.
As vanguardas artísticas e o marxismo autêntico, antidogmático, constituem acúmulo decisivo, no sentido de realizar aquilo que Walter Benjamim definiu como iluminação profana do mundo. Lamentavelmente é conhecimento muito restrito, levando-se ainda em conta a ação da indústria cultural e da historia oficial que deformam e mutilam sua força criadora, sua vitalidade crítica.
O conceito de cultura popular contemporânea, viva, é complexo, porque articula passado, presente e determinada potencialidade latente de elementos que podem se desenvolver no futuro, como um devir.
Nesse grande mosaico espiritual dá-se o embate com o mundo real, relação que combina coerção e apropriação social. Sua realidade é um todo em movimento, o produto de uma consciência contraditória e fragmentária de si e do mundo. Uma dinâmica histórica cuja compreensão exige um olhar atento e não fatalista sobre a realidade.
Nas culturas populares estão presentes modos próprios de representação e expressão, como linguagem, visão de mundo e manifestações artísticas e culturais. Estão também as idéias dominantes, os elementos ideológicos comuns a toda a sociedade, como as idéias de progresso, cientificismo, justiça, trabalho, moral dominante, país, região, raça, família, etc. E, numa determinada articulação, a consciência em forma elementar, não desenvolvida, a percepção de pertencimento a uma determinada classe em si, a classe trabalhadora. Esta última característica é decisiva.
O lugar e a função que nós trabalhadores, como classe social, ocupamos e desempenhamos no modo de produção das riquezas materiais sob o capitalismo, nos investe do poder para realizar uma transformação radical da sociedade, substituindo a produção de mercadorias por uma produção voltada para a satisfação das reais necessidades humanas, eliminando a divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, extinguindo a cultura de massas e a dicotomia entre cultura erudita e popular.
Uma outra cultura é possível. Ela pode elevar a humanidade a patamares superiores de riqueza espiritual, numa sociedade onde o homem seja de fato o princípio e o fim de sua existência, onde a felicidade e a liberdade tornem-se coisa elementar, e a busca de novos sentidos para a vida humana seja meta acessível a todos. Só o poder da classe trabalhadora pode nos fazer sonhar com essa possibilidade real.
Vitor Hugo disse que a utopia de hoje é a realidade de amanhã.
Fonte: http://apartirdebaixo.blogspot.com
Postado por Julio Dias às Segunda-feira, Janeiro 16, 2012
Julio Dias
Uma visão oficial e midiática sobre cultura passa pela idéia de tradição. Como um passado recortado da historia, subtraído das relações de produção (econômicas, sociais, políticas, culturais, espirituais) que lhe davam a dimensão histórica concreta.
Da totalidade social de onde foram pinçadas as manifestações culturais que os especialistas elegem como a identidade da cultura popular, nada ou quase nada permanece. A sociedade se transforma pela historia, e sua cultura nos é apresentada como a somatória do pitoresco desarticulado e desvinculado do real vivido no passado e no presente.
A grande maioria dessas manifestações há muito não se manifesta mais. Não são vivências reais e concretas, articuladas com o tempo real do presente. São como entes em coma sem volta, mantidos pelos aparelhos do folclore, e exibidas ao público em ocasiões especiais.
Os folcloristas descrevem e catalogam festas, danças, vestes, cantos, ritmos, ritos. Do achado à pesquisa, agrupam pela diferença e similaridade, local e época. Publicam seus escritos destinados a salvar o tradicional do inexorável e acelerado processo de obsolescência que o capitalismo impõe à sociedade.
Recuperam do passado conjuntos de elementos cristalizados, sem a reconstrução histórica de sua significação, ordenando-os a partir do filtro da consciência do pesquisador a fim de purgá-los da infiltração do contemporâneo, dispondo-os como sobrevivências do passado a serem consumidas no presente. Grupos de arte popular especializados apresentam-se aqui e ali, uma, duas, três vezes ao ano. Levam o público a embarcar num túnel do tempo que não os transporta a passado algum.
A tradição folclórica é uma mercadoria com valor espetacular, como outras mercadorias produzidas pela indústria cultural. A diferença, apenas uma: o espetáculo é sobre um passado não revelado. De similar com o espetacular contemporâneo, o fato de dizer muito pouco sobre o significante, a sociedade, a vida real e historicamente determinada. O espetáculo é o fim em si.
O folclore baseia-se num pressuposto preconceituoso, característico das idéias das classes dominantes. As ciências apóiam-se nos conhecimentos e pesquisas de outras ciências, enquanto o estudo das tradições populares limita-se a apenas uma especialidade. Essa característica parece decorrer da definição que muitos folcloristas dão à cultura popular, como o universo cultural do homem rústico.
Manifesta a tendência conservadora de volta ao passado, como se a realidade social e cultural fosse melhor e mais rica quanto maior a distância histórica. Sua ação reforça a nostalgia reacionária de regresso ao um passado idealizado. Longe de restringir-se aos círculos folcloristas, essa tendência se alastra pelo mundo com o faturamento colossal da indústria do turismo.
Outra visão dominante é dada pela indústria cultural. É a cultura para consumo instantâneo e descartável. Produzida em escala industrial para grandes massas, para todos os estratos e gostos. É música comercial, TV, moda, cinema de grande bilheteria, literatura de fácil digestão, grande mídia...
Com roupagem de arte e modo de vida, é a afirmação acrítica da realidade existente, sempre vestida de novidade, em ciclos repetitivos. Sua estética, ou melhor, seu esteticismo, é a reedição aleatória de formas passadas, remasterizadas, a negação da estética com aparência estética.
Essa cultura de massas ou para as massas, tende sempre à homogeneização. Seu pressuposto é a senha da identidade programada, oposta à autenticidade. O igual, o lugar comum, é sua meta. Um objetivo que parece negar-se a si próprio quando uma nova onda do atual chega, mas que logo volta a afirmar-se no ponto de saturação, no limiar de uma nova leva de produção e consumo que trás o velho reestilizado para realizar nova homogeneidade.
Uma terceira concepção de cultura é a erudita. Trata-se do que mais elevado a humanidade até hoje produziu no universo das artes e ciências. Um grande arcabouço de conhecimentos que pretensamente daria conta de explicar a humanidade de suas origens ao tempo presente.
Sem dúvida, essa cultura dita enciclopédica tem muita importância para humanidade. Basta lembrarmos os períodos da historia, longos ou curtos, abrangentes ou localizados, em que o alto conhecimento foi posto à margem da apropriação social. O exemplo mais trágico está registrado como a noite dos mil anos que pairou sobre o ocidente medieval.
Sua existência como um saber para poucos é determinado pela natureza das sociedades de classes, como o capitalismo, que distribuem desigualmente as condições para a apropriação do conhecimento, produzindo a separação entre cultura erudita e cultura popular.
Entretanto, esse saber supostamente total e profundo é discutível. Uma grande carga ideológica reveste o conjunto da obra, limitando sua capacidade de iluminação sobre a realidade de um mundo crescentemente complexo.
As vanguardas artísticas e o marxismo autêntico, antidogmático, constituem acúmulo decisivo, no sentido de realizar aquilo que Walter Benjamim definiu como iluminação profana do mundo. Lamentavelmente é conhecimento muito restrito, levando-se ainda em conta a ação da indústria cultural e da historia oficial que deformam e mutilam sua força criadora, sua vitalidade crítica.
O conceito de cultura popular contemporânea, viva, é complexo, porque articula passado, presente e determinada potencialidade latente de elementos que podem se desenvolver no futuro, como um devir.
Nesse grande mosaico espiritual dá-se o embate com o mundo real, relação que combina coerção e apropriação social. Sua realidade é um todo em movimento, o produto de uma consciência contraditória e fragmentária de si e do mundo. Uma dinâmica histórica cuja compreensão exige um olhar atento e não fatalista sobre a realidade.
Nas culturas populares estão presentes modos próprios de representação e expressão, como linguagem, visão de mundo e manifestações artísticas e culturais. Estão também as idéias dominantes, os elementos ideológicos comuns a toda a sociedade, como as idéias de progresso, cientificismo, justiça, trabalho, moral dominante, país, região, raça, família, etc. E, numa determinada articulação, a consciência em forma elementar, não desenvolvida, a percepção de pertencimento a uma determinada classe em si, a classe trabalhadora. Esta última característica é decisiva.
O lugar e a função que nós trabalhadores, como classe social, ocupamos e desempenhamos no modo de produção das riquezas materiais sob o capitalismo, nos investe do poder para realizar uma transformação radical da sociedade, substituindo a produção de mercadorias por uma produção voltada para a satisfação das reais necessidades humanas, eliminando a divisão entre trabalho intelectual e trabalho manual, extinguindo a cultura de massas e a dicotomia entre cultura erudita e popular.
Uma outra cultura é possível. Ela pode elevar a humanidade a patamares superiores de riqueza espiritual, numa sociedade onde o homem seja de fato o princípio e o fim de sua existência, onde a felicidade e a liberdade tornem-se coisa elementar, e a busca de novos sentidos para a vida humana seja meta acessível a todos. Só o poder da classe trabalhadora pode nos fazer sonhar com essa possibilidade real.
Vitor Hugo disse que a utopia de hoje é a realidade de amanhã.
Fonte: http://apartirdebaixo.blogspot.com
Postado por Julio Dias às Segunda-feira, Janeiro 16, 2012
quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012
Pinheirinho
Pinheirinho, a esquerda e a direita
A tentativa de decretar o fim da história, com o triunfo do liberalismo e a extinção da luta de classes e do que seja esquerda e direita no campo político, vai sendo enterrada pela prática como bom e velho critério da verdade. Não é preciso se debruçar sobre conceitos e análises elaboradas. Basta olhar o que aconteceu no despejo de 1.600 famílias no Pinheirinho, em São José dos Campos, para constatar os evidentes interesses de classe e as diferentes visões políticas.
O que estava em jogo era o destino de milhares de pessoas, pobres e sem teto, que ocupavam há oito anos a área de uma fábrica falida, e os interesses do megaespeculador Naji Nahas, o dono (?) do terreno, que tem contas a prestar ao Estado e à Justiça. Uma questão social, e não de polícia, como a direita sempre a encarou. Basta ver o protagonismo da ação policial em São Paulo. Ela se dá contra estudantes, dependentes de crack, sem teto, sempre em defesa da ordem vigente, da propriedade privada e dos poderosos.
O litígio no Pinheirinho vinha se acirrando com decisões judiciais controversas e passou a ter a presença direta do governo federal, através da Secretaria Geral da Presidência, interessado numa solução negociada, que preservasse as famílias, com a construção de moradias populares no local. O governo federal estava disposto a se associar ao estadual na compra do terreno, numa ação conjunta para encerrar o impasse e evitar a violência prestes a explodir.
Mas não foi esse o entendimento do dono da área - aliás já um bairro, com casas montadas e famílias instaladas -, interessado em faturar mais com a valorização do local, que contou com os préstimos da Justiça estadual e dos governos de São José dos Campos e de São Paulo para atirar dois mil policiais, blindados e helicópteros sobre a massa, numa demonstração desnecessária de selvageria e brutalidade, que macula o estado de Direito e democrático. Justiça (apressada) e polícia (violenta), mais uma vez, se tornaram instrumento dos poderosos contra os desvalidos. E o poder público paulista amparando toda a ação é célere ao enviar os tratores logo após o despejo, demolindo os imóveis sem sequer dar tempo para que muitos retirassem os seus pertences.
A ação policial atropelou as tentativas de solução negociada em curso, que incluíam a presença no local, no momento do despejo, de um representante da Secretaria Geral da Presidência, atingido por balas de borracha. O ministro-chefe da Secretaria Geral, Gilberto Carvalho, tratou de sublinhar as diferenças entre governo federal e estadual: "Esse não é um método nosso, do governo federal. Nós achamos que tinha alguma coisa que poderia ser esgotada ainda no diálogo e, sobretudo, uma saída negociada e humana para as famílias, sem a necessidade daquela praça de guerra que foi armada."
O governo de São Paulo e o PSDB também deixaram clara a sua visão. Decisão judicial não se discute, por mais que não seja a de última instância, envolva vidas humanas e que ainda existam canais abertos para uma solução menos traumática. "O governo de São Paulo agiu em cumprimento de determinação do Judiciário, e a operação foi comandada diretamente pela presidência do Tribunal de Justiça paulista. Enquanto o governo federal só agride, o governo paulista e a prefeitura do município providenciam a ajuda necessária para minorar o sofrimento das famílias desalojadas", disse o PSDB em nota.
Essa distinção na maneira de lidar com conflitos sociais é fundamental para desmascarar os que tentam pregar a não existência entre esquerda e direita, como se tanto fizesse escolher entre uma e outra nos processos eleitorais. Esse é um discurso dissimulado do qual a direita se vale para tentar atrair os mal informados e a pouco politizada classe média ascendente. Mas, no fundo, ela continua a ser a antiga e conservadora tendência, que deseja reduzir o papel do Estado, entregando o país aos mercados, e está sempre pronta a tratar as questões sociais como caso de polícia.
(Direto da Redação)
A tentativa de decretar o fim da história, com o triunfo do liberalismo e a extinção da luta de classes e do que seja esquerda e direita no campo político, vai sendo enterrada pela prática como bom e velho critério da verdade. Não é preciso se debruçar sobre conceitos e análises elaboradas. Basta olhar o que aconteceu no despejo de 1.600 famílias no Pinheirinho, em São José dos Campos, para constatar os evidentes interesses de classe e as diferentes visões políticas.
O que estava em jogo era o destino de milhares de pessoas, pobres e sem teto, que ocupavam há oito anos a área de uma fábrica falida, e os interesses do megaespeculador Naji Nahas, o dono (?) do terreno, que tem contas a prestar ao Estado e à Justiça. Uma questão social, e não de polícia, como a direita sempre a encarou. Basta ver o protagonismo da ação policial em São Paulo. Ela se dá contra estudantes, dependentes de crack, sem teto, sempre em defesa da ordem vigente, da propriedade privada e dos poderosos.
O litígio no Pinheirinho vinha se acirrando com decisões judiciais controversas e passou a ter a presença direta do governo federal, através da Secretaria Geral da Presidência, interessado numa solução negociada, que preservasse as famílias, com a construção de moradias populares no local. O governo federal estava disposto a se associar ao estadual na compra do terreno, numa ação conjunta para encerrar o impasse e evitar a violência prestes a explodir.
Mas não foi esse o entendimento do dono da área - aliás já um bairro, com casas montadas e famílias instaladas -, interessado em faturar mais com a valorização do local, que contou com os préstimos da Justiça estadual e dos governos de São José dos Campos e de São Paulo para atirar dois mil policiais, blindados e helicópteros sobre a massa, numa demonstração desnecessária de selvageria e brutalidade, que macula o estado de Direito e democrático. Justiça (apressada) e polícia (violenta), mais uma vez, se tornaram instrumento dos poderosos contra os desvalidos. E o poder público paulista amparando toda a ação é célere ao enviar os tratores logo após o despejo, demolindo os imóveis sem sequer dar tempo para que muitos retirassem os seus pertences.
A ação policial atropelou as tentativas de solução negociada em curso, que incluíam a presença no local, no momento do despejo, de um representante da Secretaria Geral da Presidência, atingido por balas de borracha. O ministro-chefe da Secretaria Geral, Gilberto Carvalho, tratou de sublinhar as diferenças entre governo federal e estadual: "Esse não é um método nosso, do governo federal. Nós achamos que tinha alguma coisa que poderia ser esgotada ainda no diálogo e, sobretudo, uma saída negociada e humana para as famílias, sem a necessidade daquela praça de guerra que foi armada."
O governo de São Paulo e o PSDB também deixaram clara a sua visão. Decisão judicial não se discute, por mais que não seja a de última instância, envolva vidas humanas e que ainda existam canais abertos para uma solução menos traumática. "O governo de São Paulo agiu em cumprimento de determinação do Judiciário, e a operação foi comandada diretamente pela presidência do Tribunal de Justiça paulista. Enquanto o governo federal só agride, o governo paulista e a prefeitura do município providenciam a ajuda necessária para minorar o sofrimento das famílias desalojadas", disse o PSDB em nota.
Essa distinção na maneira de lidar com conflitos sociais é fundamental para desmascarar os que tentam pregar a não existência entre esquerda e direita, como se tanto fizesse escolher entre uma e outra nos processos eleitorais. Esse é um discurso dissimulado do qual a direita se vale para tentar atrair os mal informados e a pouco politizada classe média ascendente. Mas, no fundo, ela continua a ser a antiga e conservadora tendência, que deseja reduzir o papel do Estado, entregando o país aos mercados, e está sempre pronta a tratar as questões sociais como caso de polícia.
(Direto da Redação)
Bancos
Ainda há espaço para bancos bons?
29/1/2012 12:57, Por Paulo Kliass
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Qual o cliente que não se sente lesado por estar pagando mais de 200% ao ano em cada momento que entra no vermelho em sua conta corrente? Qual empresário industrial não se sente prejudicado com as absurdas taxas cobradas em seus empréstimos, em níveis muito superiores à já elevada taxa oficial da SELIC?
A péssima imagem do financeiro
Um dos problemas derivados da profunda crise por que passa o sistema econômico mundial nos tempos atuais é o aumento contínuo da descrença em suas próprias instituições. Como a face mais evidente e mais importante do sistema globalizado é a do universo financeiro, todas as ações e organizações a ele ligadas acabam tendo sua própria credibilidade colocada em xeque. Falou em qualquer coisa que leve o adjetivo “financeiro”: pronto! Entrou em estado de “desgraça”.
A coisa acaba ficando mais complicada, pois nas manchetes do mal-feito acabam confundindo-se todos os elementos do próprio sistema. A crise foi provocada pela ação irresponsável das grandes corporações financeiras. Os maiores beneficiários da crise são os grandes bancos. As bolsas de valores e de mercadorias representam o lócus por excelência da especulação financeira.
A crise teve início com o sistema das hipotecas no mercado imobiliário estadounidense, onde a incapacidade de honrar os compromissos dos empréstimos era mascarada pelos mercados de títulos secundários. A solução para o fenômeno evidente da bolha do mercado de imóveis era empurrada com a barriga, por meio do lançamento de mais operações, envolvendo maior risco, como nos jogos de pirâmide. As agências de “rating” – que deveriam bem avaliar o risco embutidos nas operações financeiras – exercem, ao contrário, função ativa no processo da especulação. Os esforços realizados pelos governos dos Estados Unidos e da Europa têm sido na direção do salvamento dos bancos, sempre à custa de sacrifício imposto à maioria da população. E por aí vai.
E nessa toada, acaba-se correndo o risco de generalizações que, muitas vezes, acabam por dificultar a análise concreta de cada caso, de cada agente, de cada instituição. Apenas demonizar o conjunto das instituições do sistema financeiro, por conta da crise e do comportamento mais visível de seus gigantes, é algo que não contribui para bem compreender a dinâmica de funcionamento da economia contemporânea. Na verdade, seria uma atitude similar a condenar o conjunto das atividades do setor da agricultura, por exemplo, em razão do comportamento predatório do latifundiário plantador de soja transgênica. Ou então de denunciar todo o ramo da indústria de confecções em função dos conhecidos empresários que realizam o seu lucro com base na exploração do trabalho escravo. Ou ainda responsabilizar todas as empresas atuantes no ramo da construção civil pela ação irresponsável das grandes e conhecidas construtoras na área da construção residencial ou das grandes obras encomendadas pelo setor público. Ou mesmo uma condenação de qualquer tentativa de constituição de novos agentes na área de comunicação, dada a péssima atuação dos integrantes do oligopólio atual em televisão, rádio, imprensa escrita, etc.
A atividade bancária em suas origens
No caso do sistema financeiro, a identificação mais imediata que realizamos em nosso imaginário é com as instituições bancárias. A formulação da falsa identidade “financeiro = banco” termina por criar um sentimento contra os bancos, de natureza quase figadal por parte da maioria da população (ainda que perfeitamente compreensível, em função da ação concreta da maior parte deles). E, assim, surge a pergunta que não quer calar, embutida no título: mas, afinal, não haveria mais espaço para atuação de “bons bancos” em nossa economia?
Para ensaiar algum caminho de resposta, seria necessário buscar compreender melhor qual a função do banco na economia capitalista. Na verdade, a função clássica e tradicional das instituições bancárias é o da concessão de crédito e de empréstimos. Em sua versão mais tradicional, o banco recolheria os recursos monetários sobrantes na sociedade em determinado momento, ou seja, a chamada poupança. Os indivíduos, as famílias, as empresas e até mesmo o Estado deixariam ali os valores que não foram consumidos em suas contas bancárias (por oposição à imagem de deixar o dinheiro debaixo do colchão). Em tese, para assegurar que os recursos fiquem por mais tempo sem movimentação, os bancos podem oferecer uma remuneração, que se efetua com base na taxa de juros que eles oferecem aos depositantes. No jargão do financês, são as assim denominadas “taxas de juros passivas”. Na outra ponta, estariam os chamados agentes econômicos que necessitam de mais recursos do que dispõem para suas atividades – os tomadores de empréstimos. E eles se dirigem aos bancos, que justamente oferecem os valores que os demais haviam deixado para depósito. No caso, a concessão do crédito envolve a cobrança das “taxas de juros ativas” – normalmente maiores do que as anteriores. A diferença entre ambas é o chamado “spread” e serve como base para constituição dos ganhos da atividade bancária.
Assim, em uma versão assim simplificada, os bancos podem vir a cumprir uma função importante na economia: a de intermediação de recursos monetários. Mas por se tratar de um setor sensível e estratégico, a atividade bancária quase sempre esteve sujeita à regulação e à fiscalização do poder público. Afinal, o banco opera com aquilo que não é seu. Ele recolhe valores de uns e empresta esses mesmos recursos para outros. Com o agravante de que ele pode até emprestar mais do que tem em sua carteira. Ele teria o poder, assim, de criar moeda de forma, digamos, artificial. É o que no financês se chama de “multiplicador bancário”. O risco desse tipo de possibilidade é o da chamada “corrida bancária”: se todos que aplicaram na instituição forem reclamar o seu depósito aomesmo tempo, o banco não tem como honrar os compromissos. É por isso que os órgãos de regulação do sistema financeiro estabelecem o “depósito compulsório”. Ou seja, uma parte do valor depositado fica retida junto à autoridade monetária e o banco não pode usar para emprestar. É uma tentativa de reduzir o risco da exposição bancária exagerada.
Assim, em condições de boa regulação e operando com taxas de ganho razoáveis, é possível que a atividade bancária cumpra seu papel de forma adequada na economia contemporânea. Isso significa intermediar recursos de quem poupa e emprestá-los a quem deles necessite. E menciono aqui dois casos típicos em que a atividade pode muito bem cumprir sua função social, até de forma relevante e saudável. Trata-se dos bancos públicos e das cooperativas de crédito.
Bancos públicos podem ser diferentes
O comportamento empresarial dos bancos públicos é definido por seu dono, o governo. Ora, se a autoridade pública tiver interesse em moralizar as atividades desenvolvidas no interior do sistema financeiro, nada mais adequado do que utilizar os bancos de sua propriedade para tanto. No Brasil, o governo federal é acionista majoritário de duas das maiores instituições bancárias: o Banco do Brasil (BB) e a Caixa Econômica Federal (CEF). Além disso, detém também a capacidade de comando sobre outras importantes instituições de empréstimo e crédito: o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e os bancos de desenvolvimento regional – Banco da Amazônia (BASA) e o Banco do Nordeste (BNB).
Ora, com um potencial de influência de mercado como esse, o que falta é apenas a vontade política de transformar a prática e a gestão das instituições bancárias. Por exemplo, decidindo diminuir o “spread” cobrado em suas operações de crédito, onde chegam a impor ao cliente diferenças abissais entre o juro que eles remuneram e o juro que eles recebem. Ou ainda reduzindo de forma drástica os ganhos com as tarifas abusivas cobradas pelos serviços oferecidos. Ou então estabelecendo regras para não mais enganar a clientela com oferta de produtos financeiros escandalosamente irresponsáveis e especulativos. Assim, os bancos estatais poderiam recuperar sua credibilidade pública e contribuir para que a própria concorrência privada fosse obrigada a redefinir seu “modus operandi”, sob pena de perder parte da clientela. Nada justifica que o BB ou a CEF apresentem resultados escandalosamente elevados em seus lucros anuais. Por serem bancos de propriedade do governo federal, seria de se esperar que fossem obrigados por este a que melhor cumprissem com sua missão: prestar um serviço ao conjunto da sociedade de menor custo e de melhor qualidade.
A alternativa das cooperativas de crédito
O outro exemplo é o das cooperativas de crédito. Trata-se de uma importante experiência histórica no movimento bancário em todo o mundo. Boa parte do sistema financeiro europeu atual, por exemplo, tem suas origens no movimento cooperativo, que surge ainda no final do século XIX e início do século XX em países como Alemanha, França, entre outros. Na maioria dos casos, a iniciativa estava vinculada a cooperativas ligadas à atividade agrícola. E que depois, pouco a pouco, foram ampliando a sua área de atuação. No caso brasileiro também houve momentos de fortalecimento desse tipo de alternativa de financiamento. No entanto, a falta de controle dos órgãos públicos envolvidos e a ausência de transparência no interior das próprias cooperativas de crédito terminaram por manchar a imagem desse setor, jogando-o na vala comum do escândalo geral da corrupção.
Atualmente, em função inclusive dos elevados custos financeiros, vive-se uma retomada desse tipo de iniciativa. Afinal, se a cooperativa pertence aos seus associados e não visa lucro, qual o sentido de cobrar taxas extorsivas em suas operações ou buscar rentabilidade máxima na apuração de seus resultados operacionais? Basta que elas tenham escala em termos do número de participantes e credibilidade junto ao mercado para que seu funcionamento seja simples e eficiente.
Qual o cliente que não se sente lesado por estar pagando mais de 200% ao ano em cada momento que entra no vermelho em sua conta corrente? Qual empresário industrial não se sente prejudicado com as absurdas taxas cobradas em seus empréstimos, em níveis muito superiores à já elevada taxa oficial da SELIC? Qual comerciante não se sente injustiçado com as tarifas abusivas cobradas pelas empresas operadoras de cartão de crédito, todas elas pertencentes aos próprios bancos?
Portanto, caberia ao governo federal cumprir sua missão e moralizar a ação dos bancos. Em primeiro lugar, recomendando ao COPOM que reduzisse de forma efetiva a taxa oficial de juros. Depois, orientando os dirigentes dos bancos públicos a romperem com a lógica mercadista em seu comportamento empresarial. Ou seja, não mais buscar a acumulação de lucros sem qualquer princípio ético ou de respeito ao País, à sociedade e a seus cliente. Finalmente, recomendando maior rigor da parte dos órgãos reguladores do sistema financeiro, para reduzir a margem das manobras de natureza especulativa e impondo limites legais à prática do “spread”
Assim, todos ganharíamos. Principalmente, as futuras gerações que passariam a viver em uma sociedade menos contaminada pelo vício do rentismo, a esperteza de viver usufruindo apenas dos ganhos da atividade financeira parasita. Sim, é possível e necessário que haja espaço para “bons bancos”. Basta que sejam, em sua essência, apenas bancos e nada mais.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
(CdB)
29/1/2012 12:57, Por Paulo Kliass
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Qual o cliente que não se sente lesado por estar pagando mais de 200% ao ano em cada momento que entra no vermelho em sua conta corrente? Qual empresário industrial não se sente prejudicado com as absurdas taxas cobradas em seus empréstimos, em níveis muito superiores à já elevada taxa oficial da SELIC?
A péssima imagem do financeiro
Um dos problemas derivados da profunda crise por que passa o sistema econômico mundial nos tempos atuais é o aumento contínuo da descrença em suas próprias instituições. Como a face mais evidente e mais importante do sistema globalizado é a do universo financeiro, todas as ações e organizações a ele ligadas acabam tendo sua própria credibilidade colocada em xeque. Falou em qualquer coisa que leve o adjetivo “financeiro”: pronto! Entrou em estado de “desgraça”.
A coisa acaba ficando mais complicada, pois nas manchetes do mal-feito acabam confundindo-se todos os elementos do próprio sistema. A crise foi provocada pela ação irresponsável das grandes corporações financeiras. Os maiores beneficiários da crise são os grandes bancos. As bolsas de valores e de mercadorias representam o lócus por excelência da especulação financeira.
A crise teve início com o sistema das hipotecas no mercado imobiliário estadounidense, onde a incapacidade de honrar os compromissos dos empréstimos era mascarada pelos mercados de títulos secundários. A solução para o fenômeno evidente da bolha do mercado de imóveis era empurrada com a barriga, por meio do lançamento de mais operações, envolvendo maior risco, como nos jogos de pirâmide. As agências de “rating” – que deveriam bem avaliar o risco embutidos nas operações financeiras – exercem, ao contrário, função ativa no processo da especulação. Os esforços realizados pelos governos dos Estados Unidos e da Europa têm sido na direção do salvamento dos bancos, sempre à custa de sacrifício imposto à maioria da população. E por aí vai.
E nessa toada, acaba-se correndo o risco de generalizações que, muitas vezes, acabam por dificultar a análise concreta de cada caso, de cada agente, de cada instituição. Apenas demonizar o conjunto das instituições do sistema financeiro, por conta da crise e do comportamento mais visível de seus gigantes, é algo que não contribui para bem compreender a dinâmica de funcionamento da economia contemporânea. Na verdade, seria uma atitude similar a condenar o conjunto das atividades do setor da agricultura, por exemplo, em razão do comportamento predatório do latifundiário plantador de soja transgênica. Ou então de denunciar todo o ramo da indústria de confecções em função dos conhecidos empresários que realizam o seu lucro com base na exploração do trabalho escravo. Ou ainda responsabilizar todas as empresas atuantes no ramo da construção civil pela ação irresponsável das grandes e conhecidas construtoras na área da construção residencial ou das grandes obras encomendadas pelo setor público. Ou mesmo uma condenação de qualquer tentativa de constituição de novos agentes na área de comunicação, dada a péssima atuação dos integrantes do oligopólio atual em televisão, rádio, imprensa escrita, etc.
A atividade bancária em suas origens
No caso do sistema financeiro, a identificação mais imediata que realizamos em nosso imaginário é com as instituições bancárias. A formulação da falsa identidade “financeiro = banco” termina por criar um sentimento contra os bancos, de natureza quase figadal por parte da maioria da população (ainda que perfeitamente compreensível, em função da ação concreta da maior parte deles). E, assim, surge a pergunta que não quer calar, embutida no título: mas, afinal, não haveria mais espaço para atuação de “bons bancos” em nossa economia?
Para ensaiar algum caminho de resposta, seria necessário buscar compreender melhor qual a função do banco na economia capitalista. Na verdade, a função clássica e tradicional das instituições bancárias é o da concessão de crédito e de empréstimos. Em sua versão mais tradicional, o banco recolheria os recursos monetários sobrantes na sociedade em determinado momento, ou seja, a chamada poupança. Os indivíduos, as famílias, as empresas e até mesmo o Estado deixariam ali os valores que não foram consumidos em suas contas bancárias (por oposição à imagem de deixar o dinheiro debaixo do colchão). Em tese, para assegurar que os recursos fiquem por mais tempo sem movimentação, os bancos podem oferecer uma remuneração, que se efetua com base na taxa de juros que eles oferecem aos depositantes. No jargão do financês, são as assim denominadas “taxas de juros passivas”. Na outra ponta, estariam os chamados agentes econômicos que necessitam de mais recursos do que dispõem para suas atividades – os tomadores de empréstimos. E eles se dirigem aos bancos, que justamente oferecem os valores que os demais haviam deixado para depósito. No caso, a concessão do crédito envolve a cobrança das “taxas de juros ativas” – normalmente maiores do que as anteriores. A diferença entre ambas é o chamado “spread” e serve como base para constituição dos ganhos da atividade bancária.
Assim, em uma versão assim simplificada, os bancos podem vir a cumprir uma função importante na economia: a de intermediação de recursos monetários. Mas por se tratar de um setor sensível e estratégico, a atividade bancária quase sempre esteve sujeita à regulação e à fiscalização do poder público. Afinal, o banco opera com aquilo que não é seu. Ele recolhe valores de uns e empresta esses mesmos recursos para outros. Com o agravante de que ele pode até emprestar mais do que tem em sua carteira. Ele teria o poder, assim, de criar moeda de forma, digamos, artificial. É o que no financês se chama de “multiplicador bancário”. O risco desse tipo de possibilidade é o da chamada “corrida bancária”: se todos que aplicaram na instituição forem reclamar o seu depósito aomesmo tempo, o banco não tem como honrar os compromissos. É por isso que os órgãos de regulação do sistema financeiro estabelecem o “depósito compulsório”. Ou seja, uma parte do valor depositado fica retida junto à autoridade monetária e o banco não pode usar para emprestar. É uma tentativa de reduzir o risco da exposição bancária exagerada.
Assim, em condições de boa regulação e operando com taxas de ganho razoáveis, é possível que a atividade bancária cumpra seu papel de forma adequada na economia contemporânea. Isso significa intermediar recursos de quem poupa e emprestá-los a quem deles necessite. E menciono aqui dois casos típicos em que a atividade pode muito bem cumprir sua função social, até de forma relevante e saudável. Trata-se dos bancos públicos e das cooperativas de crédito.
Bancos públicos podem ser diferentes
O comportamento empresarial dos bancos públicos é definido por seu dono, o governo. Ora, se a autoridade pública tiver interesse em moralizar as atividades desenvolvidas no interior do sistema financeiro, nada mais adequado do que utilizar os bancos de sua propriedade para tanto. No Brasil, o governo federal é acionista majoritário de duas das maiores instituições bancárias: o Banco do Brasil (BB) e a Caixa Econômica Federal (CEF). Além disso, detém também a capacidade de comando sobre outras importantes instituições de empréstimo e crédito: o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e os bancos de desenvolvimento regional – Banco da Amazônia (BASA) e o Banco do Nordeste (BNB).
Ora, com um potencial de influência de mercado como esse, o que falta é apenas a vontade política de transformar a prática e a gestão das instituições bancárias. Por exemplo, decidindo diminuir o “spread” cobrado em suas operações de crédito, onde chegam a impor ao cliente diferenças abissais entre o juro que eles remuneram e o juro que eles recebem. Ou ainda reduzindo de forma drástica os ganhos com as tarifas abusivas cobradas pelos serviços oferecidos. Ou então estabelecendo regras para não mais enganar a clientela com oferta de produtos financeiros escandalosamente irresponsáveis e especulativos. Assim, os bancos estatais poderiam recuperar sua credibilidade pública e contribuir para que a própria concorrência privada fosse obrigada a redefinir seu “modus operandi”, sob pena de perder parte da clientela. Nada justifica que o BB ou a CEF apresentem resultados escandalosamente elevados em seus lucros anuais. Por serem bancos de propriedade do governo federal, seria de se esperar que fossem obrigados por este a que melhor cumprissem com sua missão: prestar um serviço ao conjunto da sociedade de menor custo e de melhor qualidade.
A alternativa das cooperativas de crédito
O outro exemplo é o das cooperativas de crédito. Trata-se de uma importante experiência histórica no movimento bancário em todo o mundo. Boa parte do sistema financeiro europeu atual, por exemplo, tem suas origens no movimento cooperativo, que surge ainda no final do século XIX e início do século XX em países como Alemanha, França, entre outros. Na maioria dos casos, a iniciativa estava vinculada a cooperativas ligadas à atividade agrícola. E que depois, pouco a pouco, foram ampliando a sua área de atuação. No caso brasileiro também houve momentos de fortalecimento desse tipo de alternativa de financiamento. No entanto, a falta de controle dos órgãos públicos envolvidos e a ausência de transparência no interior das próprias cooperativas de crédito terminaram por manchar a imagem desse setor, jogando-o na vala comum do escândalo geral da corrupção.
Atualmente, em função inclusive dos elevados custos financeiros, vive-se uma retomada desse tipo de iniciativa. Afinal, se a cooperativa pertence aos seus associados e não visa lucro, qual o sentido de cobrar taxas extorsivas em suas operações ou buscar rentabilidade máxima na apuração de seus resultados operacionais? Basta que elas tenham escala em termos do número de participantes e credibilidade junto ao mercado para que seu funcionamento seja simples e eficiente.
Qual o cliente que não se sente lesado por estar pagando mais de 200% ao ano em cada momento que entra no vermelho em sua conta corrente? Qual empresário industrial não se sente prejudicado com as absurdas taxas cobradas em seus empréstimos, em níveis muito superiores à já elevada taxa oficial da SELIC? Qual comerciante não se sente injustiçado com as tarifas abusivas cobradas pelas empresas operadoras de cartão de crédito, todas elas pertencentes aos próprios bancos?
Portanto, caberia ao governo federal cumprir sua missão e moralizar a ação dos bancos. Em primeiro lugar, recomendando ao COPOM que reduzisse de forma efetiva a taxa oficial de juros. Depois, orientando os dirigentes dos bancos públicos a romperem com a lógica mercadista em seu comportamento empresarial. Ou seja, não mais buscar a acumulação de lucros sem qualquer princípio ético ou de respeito ao País, à sociedade e a seus cliente. Finalmente, recomendando maior rigor da parte dos órgãos reguladores do sistema financeiro, para reduzir a margem das manobras de natureza especulativa e impondo limites legais à prática do “spread”
Assim, todos ganharíamos. Principalmente, as futuras gerações que passariam a viver em uma sociedade menos contaminada pelo vício do rentismo, a esperteza de viver usufruindo apenas dos ganhos da atividade financeira parasita. Sim, é possível e necessário que haja espaço para “bons bancos”. Basta que sejam, em sua essência, apenas bancos e nada mais.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
(CdB)
quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012
Velhice
Massacre em Buenos Aires
Em "Diário da Guerra do Porco", Adolfo Bioy Casares imagina uma guerra contra a velhice
Divulgação
Adolfo Bioy Casares
“A velhice é um massacre”. A frase está num dos livros recentes de Philip Roth. Crua, de uma lucidez rancorosa, não dá margem a resposta. Quarenta anos antes, Adolfo Bioy Casares colocou esse mesmo diagnóstico no papel, mas literalmente. Em Diário da guerra do porco imagina uma Buenos Aires em guerra contra seus velhos. Entregues ao “vício das lembranças”, ao truco e ao Fernet, bebida amarga, lembrete irônico de que a vida perde a doçura, homens e mulheres de cabelos brancos, “vorazes, roncadores, verdadeiros porcos” vêem-se diante de uma enorme onda de violência.
Milícias formadas por jovens saem às ruas para espancá-los, alguns até a morte. Os novos bárbaros têm nojo, desprezo profundo pela velhice. Acima de tudo, têm medo, não querem encarar o próprio futuro, a decrepitude que os espera. Isidro Vidal, personagem que o “diário” acompanha com mais interesse, ainda não chegou aos 60. Está próximo, no entanto – próximo o suficiente para ver-se ameaçado, depois de testemunhar a morte de alguns amigos.
Uns reagem com bravatas, querem mostrar que ainda não perderam a força e a valentia. Outros desesperam-se, escondem-se no sótão dos cortiços em que vivem, tremem ao menor ruído. Vidal é sereno, tenta entender a situação, busca conversar com o filho, marginalmente ligado aos fascistas que promovem a cruel limpeza “etária”.
A cidade, descrita minuciosamente pelo autor, é tomada por fogueiras, que lançam um fulgor vermelho na noite. A ameaça é permanente, não há descanso. Ao saírem em cortejo para enterrar um de seus colegas de truco, os velhos são apedrejados, têm de correr, esconder-se atrás das lápides, lançar-se no gramado que cobre os mortos.
Em meio a esse caos, Vidal filosofa: “pela primeira vez julgou entender por que diziam que a vida é sonho: se alguém vive bastante, os fatos de sua vida, como os de um sonho, tornam-se incomunicáveis, porque não interessam a ninguém.” E de fato, atravessa as cenas de batalha como se estivesse sonhando. Em alguns trechos, Bioy Casares lança mesmo essa dúvida ao leitor: tudo pode ser um sonho, afinal.
A amargura de Vidal, porém, interessa às mulheres, que o procuram; feias, malcheirosas, velhas; mas também, no meio delas, uma jovem, bela, de pele macia. O amor surge como porta de saída do pesadelo, como alternativa para a morte. Ainda assim, Vidal não sabe o que fazer. Vaga pelos escombros, procurando entender se há sentido em permitir-se novos desejos e ambições.
Escrito em 1968, quando o próprio Bioy (1914-1999) talvez começasse a se debater com a ideia de ocaso, Diário da Guerra do Porco acaba sendo menos pessimista do que poderia. O autor dizia não gostar do livro, mas de alguma forma sentiu-se impelido a escrevê-lo. Talvez quisesse afirmar – e assim convencer a si mesmo – que, se há tempestade, escura, avassaladora, que provoca desespero, pode haver também bonança.
De qualquer forma, é grande literatura, um romance à altura de sua criação mais conhecida, A Invenção de Morel, e que nada fica a dever aos brilhantes jogos literários de seu amigo mais famoso, Jorge Luis Borges. Não são poucos, aliás, os que consideram Diário da Guerra do Porco sua obra-prima, e Rubem Fonseca, autor da quarta-capa, é um deles. Como nos contos inesquecíveis de Histórias fantásticas, o livro é escrito com rara elegância, muito bem recriada pelo tradutor José Geraldo Couto. Bioy Casares parece incapaz de uma frase ou idéia vulgar, de um clichê, de uma observação inútil.
(OperaMundi)
Em "Diário da Guerra do Porco", Adolfo Bioy Casares imagina uma guerra contra a velhice
Divulgação
Adolfo Bioy Casares
“A velhice é um massacre”. A frase está num dos livros recentes de Philip Roth. Crua, de uma lucidez rancorosa, não dá margem a resposta. Quarenta anos antes, Adolfo Bioy Casares colocou esse mesmo diagnóstico no papel, mas literalmente. Em Diário da guerra do porco imagina uma Buenos Aires em guerra contra seus velhos. Entregues ao “vício das lembranças”, ao truco e ao Fernet, bebida amarga, lembrete irônico de que a vida perde a doçura, homens e mulheres de cabelos brancos, “vorazes, roncadores, verdadeiros porcos” vêem-se diante de uma enorme onda de violência.
Milícias formadas por jovens saem às ruas para espancá-los, alguns até a morte. Os novos bárbaros têm nojo, desprezo profundo pela velhice. Acima de tudo, têm medo, não querem encarar o próprio futuro, a decrepitude que os espera. Isidro Vidal, personagem que o “diário” acompanha com mais interesse, ainda não chegou aos 60. Está próximo, no entanto – próximo o suficiente para ver-se ameaçado, depois de testemunhar a morte de alguns amigos.
Uns reagem com bravatas, querem mostrar que ainda não perderam a força e a valentia. Outros desesperam-se, escondem-se no sótão dos cortiços em que vivem, tremem ao menor ruído. Vidal é sereno, tenta entender a situação, busca conversar com o filho, marginalmente ligado aos fascistas que promovem a cruel limpeza “etária”.
A cidade, descrita minuciosamente pelo autor, é tomada por fogueiras, que lançam um fulgor vermelho na noite. A ameaça é permanente, não há descanso. Ao saírem em cortejo para enterrar um de seus colegas de truco, os velhos são apedrejados, têm de correr, esconder-se atrás das lápides, lançar-se no gramado que cobre os mortos.
Em meio a esse caos, Vidal filosofa: “pela primeira vez julgou entender por que diziam que a vida é sonho: se alguém vive bastante, os fatos de sua vida, como os de um sonho, tornam-se incomunicáveis, porque não interessam a ninguém.” E de fato, atravessa as cenas de batalha como se estivesse sonhando. Em alguns trechos, Bioy Casares lança mesmo essa dúvida ao leitor: tudo pode ser um sonho, afinal.
A amargura de Vidal, porém, interessa às mulheres, que o procuram; feias, malcheirosas, velhas; mas também, no meio delas, uma jovem, bela, de pele macia. O amor surge como porta de saída do pesadelo, como alternativa para a morte. Ainda assim, Vidal não sabe o que fazer. Vaga pelos escombros, procurando entender se há sentido em permitir-se novos desejos e ambições.
Escrito em 1968, quando o próprio Bioy (1914-1999) talvez começasse a se debater com a ideia de ocaso, Diário da Guerra do Porco acaba sendo menos pessimista do que poderia. O autor dizia não gostar do livro, mas de alguma forma sentiu-se impelido a escrevê-lo. Talvez quisesse afirmar – e assim convencer a si mesmo – que, se há tempestade, escura, avassaladora, que provoca desespero, pode haver também bonança.
De qualquer forma, é grande literatura, um romance à altura de sua criação mais conhecida, A Invenção de Morel, e que nada fica a dever aos brilhantes jogos literários de seu amigo mais famoso, Jorge Luis Borges. Não são poucos, aliás, os que consideram Diário da Guerra do Porco sua obra-prima, e Rubem Fonseca, autor da quarta-capa, é um deles. Como nos contos inesquecíveis de Histórias fantásticas, o livro é escrito com rara elegância, muito bem recriada pelo tradutor José Geraldo Couto. Bioy Casares parece incapaz de uma frase ou idéia vulgar, de um clichê, de uma observação inútil.
(OperaMundi)
Cuba
Não mexerei um palito pela blogueira cubana, diz Fernando Morais
No Fórum Social, jornalista e escritor especialista em Cuba diz que ajudar Yoani Sánchez é ficar contra revolução. Segundo ele, conquistas sociais do regime importam mais que liberdade para criticar, o que só interessa ao 'inimigo' EUA. Cético com política externa americana, Morais não vê chance de distensão entre Cuba e EUA sob Obama, pois não haveria diferença entre democratas e republicanos. Dilma vai a Cuba segunda.
André Barrocal
Porto Alegre – Jornalista e escritor, e portanto defensor e dependente da liberdade de expressão, Fernando Morais, reconhecido especialista em Cuba, não pretende se envolver no caso da blogueira cubana Yoani Sánchez, cuja tentativa de vir ao Brasil virou notícia nestes dias que antecedem viagem da presidenta Dilma Rousseff à ilha de Fidel Castro.
Morais quer distância do assunto por um motivo simples: política. Amigo da revolução castrista, cujo saldo considera positivo ao povo de lá, o escritor acredita que críticas públicas ao país – e ele diz que também teria razões para criticar - só “ajudariam o inimigo”, os Estados Unidos e seu bloqueio à ilha. Yoani discorda do regime e o ataca via blog. Para Morais, ajudá-la é ficar contra a revolução.
“Sou defensor da liberdade de expressão. Mas, em primeiro lugar, defendo o direito de 11 milhões de cubanos que estão sendo espezinhados pelos americanos”, afirmou o escritor nesta sexta-feira (27), durante um debate sobre livro que lançou no segundo semestre de 2011 sobre a prisão e a condenação de cinco cubanos nos Estados Unidos, chamado “Os últimos soldados da guerra fria”.
“Em nome das minhas convicções, não posso apoiar uma moça que vem dedicando a vida a combater a revolução”, disse Morais no debate, que fez parte das atividades do Fórum Social Temático, grande encontro de esquerda. “Eu não vou mexer um palito para que essa moça venha ao Brasil.”
Quando começou a correr a notícia de que Dilma irá a Cuba – será na próxima segunda-feira (30), a primeira viagem internacional da presidenta em 2012 -, Yoani anunciou no Twitter que queria um visto brasileiro, para vir ao país. Depois, escreveu uma carta a Dilma com o mesmo pedido.
Com dificuldade para obter visto no governo Lula, a blogueira teve mais sorte agora. Quarta-feira (25), o ministério das Relações Exteriores informou que daria um visto especial de 90 dias para ela. Mas ela ainda precisa de autorização do governo cubano para deixar o país, e Morais, que tem contato com as autoridades de lá, não pretende interceder a favor dela.
Para ele, apesar do tipo de crítica que Yoani faz – a falta de liberdade é a principal -, o saldo da revolução cubana não justificaria tentar derrubar o regime. No debate, o escritor disse que não se há crianças pedindo esmola na rua, analfabetismo e (caso único no hemisfério sul) desnutrição infantil, enquanto a taxa de mortalidade infantil é metade da vista nos EUA.
Tudo isso foi conquistado, lembrou, apesar do bloqueio norte-americano, que atrapalha o desenvolvimento cubano. O boicote começou nos anos 60 e foi reforçado nos anos 90 no governo do ex-presidente Bill Clinton, que pertencia ao Partido Democrata, em tese, mais à esquerda, dentro daquilo que pode ser considerado “esquerda” nos EUA.
“Já perdi a inocência com os Estados Unidos. Na política externa, não faz a menor diferença se é democrata ou republicano”, afirmou Morais. “Quem meteu os americanos nas piores aventuras externas foram os democratas. E quem tirou, foram os republicanos”, completou o escritor.
Para Morais, governo Obama "não mudou absolutamente nada" na política externa americana, apesar da expectativa inicial que foi criada. Por isso, ele não acredita que haja qualquer distensão na relação entre Cuba e EUA sob o comando do atual candidato à reeleição.
(Carta Maior)
No Fórum Social, jornalista e escritor especialista em Cuba diz que ajudar Yoani Sánchez é ficar contra revolução. Segundo ele, conquistas sociais do regime importam mais que liberdade para criticar, o que só interessa ao 'inimigo' EUA. Cético com política externa americana, Morais não vê chance de distensão entre Cuba e EUA sob Obama, pois não haveria diferença entre democratas e republicanos. Dilma vai a Cuba segunda.
André Barrocal
Porto Alegre – Jornalista e escritor, e portanto defensor e dependente da liberdade de expressão, Fernando Morais, reconhecido especialista em Cuba, não pretende se envolver no caso da blogueira cubana Yoani Sánchez, cuja tentativa de vir ao Brasil virou notícia nestes dias que antecedem viagem da presidenta Dilma Rousseff à ilha de Fidel Castro.
Morais quer distância do assunto por um motivo simples: política. Amigo da revolução castrista, cujo saldo considera positivo ao povo de lá, o escritor acredita que críticas públicas ao país – e ele diz que também teria razões para criticar - só “ajudariam o inimigo”, os Estados Unidos e seu bloqueio à ilha. Yoani discorda do regime e o ataca via blog. Para Morais, ajudá-la é ficar contra a revolução.
“Sou defensor da liberdade de expressão. Mas, em primeiro lugar, defendo o direito de 11 milhões de cubanos que estão sendo espezinhados pelos americanos”, afirmou o escritor nesta sexta-feira (27), durante um debate sobre livro que lançou no segundo semestre de 2011 sobre a prisão e a condenação de cinco cubanos nos Estados Unidos, chamado “Os últimos soldados da guerra fria”.
“Em nome das minhas convicções, não posso apoiar uma moça que vem dedicando a vida a combater a revolução”, disse Morais no debate, que fez parte das atividades do Fórum Social Temático, grande encontro de esquerda. “Eu não vou mexer um palito para que essa moça venha ao Brasil.”
Quando começou a correr a notícia de que Dilma irá a Cuba – será na próxima segunda-feira (30), a primeira viagem internacional da presidenta em 2012 -, Yoani anunciou no Twitter que queria um visto brasileiro, para vir ao país. Depois, escreveu uma carta a Dilma com o mesmo pedido.
Com dificuldade para obter visto no governo Lula, a blogueira teve mais sorte agora. Quarta-feira (25), o ministério das Relações Exteriores informou que daria um visto especial de 90 dias para ela. Mas ela ainda precisa de autorização do governo cubano para deixar o país, e Morais, que tem contato com as autoridades de lá, não pretende interceder a favor dela.
Para ele, apesar do tipo de crítica que Yoani faz – a falta de liberdade é a principal -, o saldo da revolução cubana não justificaria tentar derrubar o regime. No debate, o escritor disse que não se há crianças pedindo esmola na rua, analfabetismo e (caso único no hemisfério sul) desnutrição infantil, enquanto a taxa de mortalidade infantil é metade da vista nos EUA.
Tudo isso foi conquistado, lembrou, apesar do bloqueio norte-americano, que atrapalha o desenvolvimento cubano. O boicote começou nos anos 60 e foi reforçado nos anos 90 no governo do ex-presidente Bill Clinton, que pertencia ao Partido Democrata, em tese, mais à esquerda, dentro daquilo que pode ser considerado “esquerda” nos EUA.
“Já perdi a inocência com os Estados Unidos. Na política externa, não faz a menor diferença se é democrata ou republicano”, afirmou Morais. “Quem meteu os americanos nas piores aventuras externas foram os democratas. E quem tirou, foram os republicanos”, completou o escritor.
Para Morais, governo Obama "não mudou absolutamente nada" na política externa americana, apesar da expectativa inicial que foi criada. Por isso, ele não acredita que haja qualquer distensão na relação entre Cuba e EUA sob o comando do atual candidato à reeleição.
(Carta Maior)
BBB
A paixão no tempo do Big Brother
Posted on 31/01/2012 | Deixe um comentário
Por Urariano Mota.
Eu tenho visto, e as pessoas que me cercam também, aqui e ali jovens que se agarram, e se apertam, e se sufocam aos beijos em público. Agem assim nas filas dos supermercados, nos transportes coletivos, nas feiras livres, nos teatros, em todos os lugares abertos à visitação da gente. Até parece haver uma onda, um vagalhão de ternura que arrasta e assalta os corpos de nossos jovens. É como se o amor estivesse no ar. É como se uma ardente atração fizesse com que se friccionassem amorosa, irresistível e interminavelmente. Como se amam! dizemos de início. Que paixão irreprimível! dizemos mais adiante. Que despudor! dizemo-nos enfim, em silêncio.
A evidência manda dizer que somente observa jovens quem não mais é um deles. Mas consideremos que o não ter mais 20 anos de idade nos deixa mais à vontade, permite à gente refletir melhor sobre os que estão no fogo. Então nos perguntamos: que mal há na exibição da necessidade de uma pessoa que exige, urgente, outra? O escândalo que sentimos diante de tais exibições não é já manifestação de conservadorismo? Não é já, como nos diria um jovem, a expressão de uma inveja, porque já não mais sentimos o fogo doce e vital da paixão? Então nós, que não temos mais 20 anos, mas nem por isso alcançamos o tempo da invenção da lâmpada elétrica, respondemos. Mas aos poucos, como convém a nossas pausas de respiração.
Achamos que assim como na organização da vida social, há fronteiras entre o público e o privado. Isso se estende ao reino das paixões, cremos. Existem as públicas, necessária e indissoluvelmente públicas, como a expressão do pensamento em palavras, em símbolos, em imagens, em música. Um poema, um romance, um relato, ainda que expressem a maior intimidade, aquela mesma que em palavras não saberíamos expressar no cotidiano, esse poema, essa criação, ainda que atinja o âmago do nosso ser, é por necessidade e realização um expressar para o mundo. Que infelicidade seria, para todos nós, a poesia de Mario Benedetti cercada para sempre entre quatro paredes. Que tristeza vil nos alcançaria se não soubéssemos do verbo de João Cabral. Paixões assim trazem o destino de se tornar públicas. E elas só se realizam na medida mesmo em que as conheçam toda a gente. A criação, quando guardada, fechada por injustificáveis escrúpulos ou descaso, ainda não atingiu a sua força. É botão sem florescer.
O que é diferente, acreditamos, das paixões dos indivíduos que se realizam neles mesmos. Que importa ao distinto público a maneira como amamos a amada na intimidade da nossa cama? Que importa à vida de toda a gente a expulsão de humores, vale dizer, o orgasmo do nosso sexo? Se não fazemos disso a expressão de algo menos físico, se não fundamos nesse ato, perdoem o termo, uma ontologia, que importância tem para o mundo? Um cínico nos diria, com evidente inversão do sentido da pergunta, que muito importa o mostrar o que é bom: “O que é bom é para ser mostrado”. E que o beijar, o abraçar, o devorar, são atos naturais, e, portanto, ao serem mostrados, é bom. Ao que responderíamos: existem outros atos naturais, intestinos, mas que nem por isso devem ou podem em público ser mostrados. É certo que ao respondermos assim, descemos ao rés do chão. Embora a isto nos leve o nível da objeção, diria melhor, da abjeção dos cínicos, tentemos subir um pouco acima do piso. Queremos dizer:
O amor tem um significado que é a própria expressão do humano. Ele se ferramenta, digamos assim, ele transforma em ferramentas a seu serviço tudo o que de bom e de mau ao longo de uma vida, inteligência e sensibilidade somos. O tocar das mãos, dos dedos das mãos, o viajar juntinhos, em silêncio, conversando sem palavras, não é já uma eloquência do sentimento? “Nós nos queremos”, insinuam-se os casais com um ser além até da consciência. Se o amor é tão íntimo, para quê demonstrá-lo?
Mas alto! Alto lá! Não podemos, em tempos tão raivosamente ferozes, ser tão ternos. É tempo de fogo, de chumbo e de sangue, de catchup, de fast food, de correr e viver veloz, tudo pode sumir num instante, e não podemos esperar de casais jovens o conhecimento de anos. Em obediência, estacamos. Então fazemos a volta, até o ponto mais preciso da paixão. Cheguemos àquele sentimento avassalador que não respeita modos, regras e conveniências. E à sua mostra.
Haveria em tais demonstrações de afeto uma genuína paixão? Sim, concedamos, se não por método, pelo menos em respeito ao princípio de que sem prova não cabe imputar crime a ninguém. Sim, concedamos: a julgar pelas exteriorizações, os jovens estão cada vez mais apaixonados. Que bom! Mas … permitam-nos a reflexão, esse mal da idade. Essa genuína paixão não estaria vestida do exibicionismo do Big Brother? Vestida, queremos dizer, em roupa que se apresenta ao público, e de tal maneira que, ao ser retirada, desvela um rei nu sem nenhuma majestade. Sim, essa vestimenta, hipotética, é de ouro, e reluz, pelo que se proclama à vista de todos nós. É um Big Brother da paixão, essa roupa. Uma exibição onde os portadores mais simplórios viram celebridades. Sob que atos? Ora, pela exibição do que fazem na cama, no edredom, para toda a gente. É o próprio espetáculo do afeto. Eles não se dizem (nem têm necessidade de dizer) eu te amo. Os lençóis lhes falam, por eles. Se não há uma cama nos supermercados, o que se há de fazer? Se as palavras lhes faltam, então as realizam com a mais brava (ia dizer bravata) das eloquências: agem, com o furor das sugadas no cangote, do amassar dos seios, diante dos olhos de todo nós, numa televisão ao vivo. Nós, que viramos os grandes irmãos, os voyeurs basbaques. “Então isto é a paixão e eu não o sabia”, dizemo-nos, como um novo Monsieur Jourdain, de Molière.
Refeitos da descoberta, acordamos. Então um demônio nos sopra aos ouvidos que há uma vulgarização do afeto. E vulgar, acrescenta o demo, não somente no sentido de divulgar, de tornar público, ou no significado de que o sentimento da paixão é comum a todos os homens. Mas no sentido mais corriqueiro, vulgar, de algo que desceu de uma instância mais digna, que se acanalhou, sorri o demo. Se o amor, se a nossa paixão é uma pepita guardada, rara, única, para quê exibi-la como um novo-rico, como um bárbaro? Mas aí, a acreditar nessa pergunta-afirmação, entraríamos no terreno que nega ao sentimento que se exibe o status de uma genuína paixão. Façamos então uma última pausa, para concluir.
Imaginemos esses casais, se prosperarem até uma união mais duradoura, imaginemos esses jovens quando as dificuldades da vida baterem à sua porta. Queremos dizer, imaginemo-los naquele provável tempo em que o dinheiro para a diversão lhes faltar. Mais grave, imaginemo-los naquele tempo em que a doença lhes bater no domicílio, sem aviso e sem agenda. Pior do que tudo, imaginemo-los naquele tempo em que o fogo da paixão tiver queimado o vigor das melhores forças. Como reagirão? Se o amor se foi, se a paixão queimou até as cinzas, o que é o mesmo que dizer: se os corpinhos sarados perderam a forma, se os apertos, por morte do exterior estímulo, não mais se dão, se um beijo, num supremo esforço, não mais substitui a palavra e o sentimento amor….
“Corta”, diz-nos o diabo. Sabemos porque ele pula e nos interrompe. Esse final não está no Big Brother.
***
O livro de Urariano Mota publicado pela Boitempo, Soledad no Recife, já está à venda em versão eletrônica (ebook). Para comprar, clique aqui ou aqui.
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Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997). Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.
(Blog da Boitempo)
Posted on 31/01/2012 | Deixe um comentário
Por Urariano Mota.
Eu tenho visto, e as pessoas que me cercam também, aqui e ali jovens que se agarram, e se apertam, e se sufocam aos beijos em público. Agem assim nas filas dos supermercados, nos transportes coletivos, nas feiras livres, nos teatros, em todos os lugares abertos à visitação da gente. Até parece haver uma onda, um vagalhão de ternura que arrasta e assalta os corpos de nossos jovens. É como se o amor estivesse no ar. É como se uma ardente atração fizesse com que se friccionassem amorosa, irresistível e interminavelmente. Como se amam! dizemos de início. Que paixão irreprimível! dizemos mais adiante. Que despudor! dizemo-nos enfim, em silêncio.
A evidência manda dizer que somente observa jovens quem não mais é um deles. Mas consideremos que o não ter mais 20 anos de idade nos deixa mais à vontade, permite à gente refletir melhor sobre os que estão no fogo. Então nos perguntamos: que mal há na exibição da necessidade de uma pessoa que exige, urgente, outra? O escândalo que sentimos diante de tais exibições não é já manifestação de conservadorismo? Não é já, como nos diria um jovem, a expressão de uma inveja, porque já não mais sentimos o fogo doce e vital da paixão? Então nós, que não temos mais 20 anos, mas nem por isso alcançamos o tempo da invenção da lâmpada elétrica, respondemos. Mas aos poucos, como convém a nossas pausas de respiração.
Achamos que assim como na organização da vida social, há fronteiras entre o público e o privado. Isso se estende ao reino das paixões, cremos. Existem as públicas, necessária e indissoluvelmente públicas, como a expressão do pensamento em palavras, em símbolos, em imagens, em música. Um poema, um romance, um relato, ainda que expressem a maior intimidade, aquela mesma que em palavras não saberíamos expressar no cotidiano, esse poema, essa criação, ainda que atinja o âmago do nosso ser, é por necessidade e realização um expressar para o mundo. Que infelicidade seria, para todos nós, a poesia de Mario Benedetti cercada para sempre entre quatro paredes. Que tristeza vil nos alcançaria se não soubéssemos do verbo de João Cabral. Paixões assim trazem o destino de se tornar públicas. E elas só se realizam na medida mesmo em que as conheçam toda a gente. A criação, quando guardada, fechada por injustificáveis escrúpulos ou descaso, ainda não atingiu a sua força. É botão sem florescer.
O que é diferente, acreditamos, das paixões dos indivíduos que se realizam neles mesmos. Que importa ao distinto público a maneira como amamos a amada na intimidade da nossa cama? Que importa à vida de toda a gente a expulsão de humores, vale dizer, o orgasmo do nosso sexo? Se não fazemos disso a expressão de algo menos físico, se não fundamos nesse ato, perdoem o termo, uma ontologia, que importância tem para o mundo? Um cínico nos diria, com evidente inversão do sentido da pergunta, que muito importa o mostrar o que é bom: “O que é bom é para ser mostrado”. E que o beijar, o abraçar, o devorar, são atos naturais, e, portanto, ao serem mostrados, é bom. Ao que responderíamos: existem outros atos naturais, intestinos, mas que nem por isso devem ou podem em público ser mostrados. É certo que ao respondermos assim, descemos ao rés do chão. Embora a isto nos leve o nível da objeção, diria melhor, da abjeção dos cínicos, tentemos subir um pouco acima do piso. Queremos dizer:
O amor tem um significado que é a própria expressão do humano. Ele se ferramenta, digamos assim, ele transforma em ferramentas a seu serviço tudo o que de bom e de mau ao longo de uma vida, inteligência e sensibilidade somos. O tocar das mãos, dos dedos das mãos, o viajar juntinhos, em silêncio, conversando sem palavras, não é já uma eloquência do sentimento? “Nós nos queremos”, insinuam-se os casais com um ser além até da consciência. Se o amor é tão íntimo, para quê demonstrá-lo?
Mas alto! Alto lá! Não podemos, em tempos tão raivosamente ferozes, ser tão ternos. É tempo de fogo, de chumbo e de sangue, de catchup, de fast food, de correr e viver veloz, tudo pode sumir num instante, e não podemos esperar de casais jovens o conhecimento de anos. Em obediência, estacamos. Então fazemos a volta, até o ponto mais preciso da paixão. Cheguemos àquele sentimento avassalador que não respeita modos, regras e conveniências. E à sua mostra.
Haveria em tais demonstrações de afeto uma genuína paixão? Sim, concedamos, se não por método, pelo menos em respeito ao princípio de que sem prova não cabe imputar crime a ninguém. Sim, concedamos: a julgar pelas exteriorizações, os jovens estão cada vez mais apaixonados. Que bom! Mas … permitam-nos a reflexão, esse mal da idade. Essa genuína paixão não estaria vestida do exibicionismo do Big Brother? Vestida, queremos dizer, em roupa que se apresenta ao público, e de tal maneira que, ao ser retirada, desvela um rei nu sem nenhuma majestade. Sim, essa vestimenta, hipotética, é de ouro, e reluz, pelo que se proclama à vista de todos nós. É um Big Brother da paixão, essa roupa. Uma exibição onde os portadores mais simplórios viram celebridades. Sob que atos? Ora, pela exibição do que fazem na cama, no edredom, para toda a gente. É o próprio espetáculo do afeto. Eles não se dizem (nem têm necessidade de dizer) eu te amo. Os lençóis lhes falam, por eles. Se não há uma cama nos supermercados, o que se há de fazer? Se as palavras lhes faltam, então as realizam com a mais brava (ia dizer bravata) das eloquências: agem, com o furor das sugadas no cangote, do amassar dos seios, diante dos olhos de todo nós, numa televisão ao vivo. Nós, que viramos os grandes irmãos, os voyeurs basbaques. “Então isto é a paixão e eu não o sabia”, dizemo-nos, como um novo Monsieur Jourdain, de Molière.
Refeitos da descoberta, acordamos. Então um demônio nos sopra aos ouvidos que há uma vulgarização do afeto. E vulgar, acrescenta o demo, não somente no sentido de divulgar, de tornar público, ou no significado de que o sentimento da paixão é comum a todos os homens. Mas no sentido mais corriqueiro, vulgar, de algo que desceu de uma instância mais digna, que se acanalhou, sorri o demo. Se o amor, se a nossa paixão é uma pepita guardada, rara, única, para quê exibi-la como um novo-rico, como um bárbaro? Mas aí, a acreditar nessa pergunta-afirmação, entraríamos no terreno que nega ao sentimento que se exibe o status de uma genuína paixão. Façamos então uma última pausa, para concluir.
Imaginemos esses casais, se prosperarem até uma união mais duradoura, imaginemos esses jovens quando as dificuldades da vida baterem à sua porta. Queremos dizer, imaginemo-los naquele provável tempo em que o dinheiro para a diversão lhes faltar. Mais grave, imaginemo-los naquele tempo em que a doença lhes bater no domicílio, sem aviso e sem agenda. Pior do que tudo, imaginemo-los naquele tempo em que o fogo da paixão tiver queimado o vigor das melhores forças. Como reagirão? Se o amor se foi, se a paixão queimou até as cinzas, o que é o mesmo que dizer: se os corpinhos sarados perderam a forma, se os apertos, por morte do exterior estímulo, não mais se dão, se um beijo, num supremo esforço, não mais substitui a palavra e o sentimento amor….
“Corta”, diz-nos o diabo. Sabemos porque ele pula e nos interrompe. Esse final não está no Big Brother.
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O livro de Urariano Mota publicado pela Boitempo, Soledad no Recife, já está à venda em versão eletrônica (ebook). Para comprar, clique aqui ou aqui.
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Urariano Mota é natural de Água Fria, subúrbio da zona norte do Recife. Escritor e jornalista, publicou contos em Movimento, Opinião, Escrita, Ficção e outros periódicos de oposição à ditadura. Atualmente, é colunista do Direto da Redação e colaborador do Observatório da Imprensa. As revistas Carta Capital, Fórum e Continente também já veicularam seus textos. Autor de Soledad no Recife (Boitempo, 2009) sobre a passagem da militante paraguaia Soledad Barret pelo Recife, em 1973, e Os corações futuristas (Recife, Bagaço, 1997). Colabora para o Blog da Boitempo quinzenalmente, às terças.
(Blog da Boitempo)
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