quinta-feira, 17 de março de 2011

Mulheres

Revolucionárias sim, mas sem poder


As mulheres participam das mobilizações democráticas dos países árabes. No entanto, estarão presentes na nova configuração do poder?
A reportagem é de Ana Carbajosa e publicada no El País, 06-03-2011. A tradução é do Cepat.
As revoltas populares no mundo árabe abriram passagem para uma nova era democratizadora na região. Não há retorno, concorda a grande maioria dos especialistas. O que não está tão claro é se na futura troca de poder de ditadores eternos para o povo, as mulheres terão participação ativa, começam a se perguntar algumas feministas árabes. Outras acreditam, contudo, que o impulso revolucionário propiciará mudanças culturais capazes de por um fim ao quase monopólio masculino do poder em muitos países árabes.
“Nos dizem que não é o momento de falar dos direitos da mulher, mas é precisamente agora que temos que trabalhar mais do que nunca essa questão. Homens e mulheres lutamos ombro a ombro para acabar com o regime de Mubarak, mas já começamos a ver que na hora da tomada de decisões políticas são eles os que decidem por nós”, sustenta Nihad Abul Qomsan, advogada e presidente do Centro Egípcio para os Direitos da Mulher.
Abul Qomsan faz alusão à famosa foto da reunião do então vice-presidente egípcio Omar Suleiman com o chamado conselho de sábios – acadêmicos, empresários e intelectuais – que deviam discutir o caminho da transição democrática pouco antes de Mubarak cair. Naquela grande sala havia 27 sábios e apenas uma sábia. Dias depois, o novo Governo militar egípcio escolheu um grupo de sete especialistas na área de Direito para emendar a Constituição. Todos eles são homens.
A mulheres como Abul Qomsan, a experiência e o profundo conhecimento de sua sociedade lhes impedem de compartilhar plenamente o entusiasmo revolucionário. “A revolução política é fundamental, mas para que a participação das mulheres nos futuros Governos não seja puramente cosmética falta uma verdadeira revolução social e cultural”, disse Shahida el Baz, diretora do Centro de Pesquisa Árabe e Africano com sede no Cairo. Ela é daquelas que, apesar dos temores, pensa que com a revolução política chegarão também as mudanças sociais. “A libertação dos homens está intimamente ligada à das mulheres. Durante uma revolução, as pessoas se transformam ao longo do caminho”, pensa El Baz.
Mas tanto umas como outras acreditam que a democracia por si só não bastará para dar uma guinada na situação em que se encontra a mulher no mundo árabe. Uma situação, dizem as especialistas consultadas, que é consequência da falta de liberdades, mas também das práticas culturais e do avanço das correntes religiosas mais conservadoras. Os dados regionais oferecem um panorama desalentador. Os indicadores em relação ao emprego, a participação política ou as diferenças salariais, situam as mulheres árabes no final da fila, comparadas com outras regiões do mundo.
“O problema é que há muitos homens que nem sequer entendem porque as mulheres querem participar da política. Eles estão convencidos de que são capazes de governar para o bem da mulher”, explica Dena Assaf, diretora regional do Programa das Nações Unidas para a Mulher, com sede na Jordânia.
Os últimos dados da União Interparlamentar mostram, por exemplo, que os países árabes são a região do mundo onde as mulheres têm menor representação parlamentar. São 12,5% no final de 2010, frente a 21,9% na Europa.
Entretanto, as diferenças por países dentro do mundo árabe são enormes. Uma coisa é o Kuwait, onde as mulheres tiveram que esperar até 2005 para obter o direito de voto e de ser votadas; outra coisa é a Tunísia, onde votam desde 1956.
A educação, sobretudo nas novas gerações não costuma ser o problema. As mulheres árabes enchem as salas de aula das universidades e em alguns países inclusive superam o número de estudantes masculinos. Em média, 59,4% das mulheres árabes receberam uma educação formal, segundo o último Relatório de Desenvolvimento Humano do Mundo Árabe elaborado pela ONU, que destaca também abismais diferenças entre países. Enquanto no Marrocos, por exemplo, mais de 60% das mulheres são analfabetas, na Jordânia essa cifra cai para 13% e no Kuwait para 9%.
Diferenças nacionais à parte, são muitas as mulheres que têm formação e determinação para participar da vida política e econômica do país, como ficou claro nas últimas semanas. Vimo-las nas ruas gritando, agitando cartazes, organizando protestos na internet e fugindo das balas. O problema é que suas capacidades não se refletem em mercados de trabalho que seguem priorizando os homens e nos quais a conciliação com a vida familiar é um conceito quase marciano. Os dados são, novamente, desoladores. Revelam que o mundo árabe é a região do mundo onde menos mulheres participam do mercado de trabalho; apenas 28%, segundo os dados da Organização Internacional do Trabalho.
As mulheres se queixam nas pesquisas de que são excluídas das redes informais extratrabalho – quer seja em cafés, clubes, ou eventos para homens – e que precisamente esse constitui um dos maiores obstáculos na hora de ascender na escala de trabalho que tende a deixar de lado a meritocracia. São problemas muito similares aos de outras partes do mundo, inclusive o Ocidente, só que no caso dos países árabes alguns dos problemas são mais acentuados.
Explicam as especialistas que a combinação, por um lado, de um contexto cultural que favorece que a mulher se dedique exclusivamente ao cuidado da família, e, por outro, uma situação econômica precária com altos índices de desemprego, é nefasta para as mulheres. Os dados da ONU falam também de diferenças salariais da metade ou até de um terço do salário dos homens. Indicam que a imensa maioria das mulheres trabalha no setor de serviços ou na agricultura, ao contrário dos homens, que costumam trabalhar na indústria.
As normas sociais não escritas sobre o que se espera de uma mulher ou o que deve ou não fazer, são também com frequência responsáveis por muitas das limitações que as mulheres sofrem para participar da política ou do mundo empresarial. A liberdade, por exemplo, para muitas mulheres para viajar sozinhas, ou para se alojar em um hotel é reduzida ou inexistente. Em muitos lugares do mundo árabe, se uma mulher sofresse um abuso sexual, a honra de toda a grande família ficaria prejudicada. Assim que qualquer precaução – inclusive se isso significa não viajar sozinha – é pequena desde que previna um mal considerado maior.
Não faltam feministas árabes que culpam o auge do islamismo mais conservador por algumas das restrições que em muitos países só aumentaram na última década. “As vozes islamistas mais tradicionais são ouvidas cada vez com mais força. Antes era coisa de alguns especialistas que falavam em voz baixa. Agora fazem parte de redes multinacionais”, sustenta Soukeina Bouraoui, diretora do Centro para a Pesquisa e Formação das Mulheres Árabes, com sede na Tunísia. Bouraoui, como muitos outros especialistas, acredita que o despertar islamista se favoreceu com Governos como o egípcio, que apesar de não permitir a participação política, necessitava deles como ameaça para justificar sua permanência no poder com vistas ao Ocidente e de alguma maneira os alimentava.
A política ocidental na zona – apoio incondicional a Israel, guerra do Iraque... – também tem sua parte de culpa para que o feminismo não seja visto com bons olhos na região, segundo esta advogada tunisiana. “Falar de direitos da mulher é mal visto, porque em seguida te acusam de ser pró-ocidental”, assegura.
Para Bouraoui está claro que depois da revolução virá a luta dos grupos políticos pelo poder. Os mais fortes triunfarão, “e posso lhe assegurar que não serão precisamente as mulheres laicas”, pensa. “As eleições são dinheiro e as vence quem mais dinheiro tem. Sabe quanto milhões recebem os islamistas do estrangeiro? Eles contam com um apoio multinacional. Se os europeus querem uma verdadeira democracia igualitária, terão que nos apoiar, como fizeram com a Espanha. Aqui o que falta é um Plano Marshall”, garante.
Para ler mais:
• A Praça Tahrir humilha o Dia da Mulher
• ‘A mulher é inferior em todas as religiões’, diz feminista egípcia
• Um ponto forte a favor da Tunísia: suas mulheres
• (Inst. Humanitas Unisinos)

Revolta Árabe

Revolta árabe: o colapso da velha ordem do petróleo
Considere o recente aumento nos preços do petróleo apenas um tímido anúncio do petro-terremoto que está por vir. A velha ordem que sustenta o petróleo está morrendo, e com o seu fim veremos também o fim do petróleo barato e de fácil acesso – para sempre. Mesmo que a revolta não alcance a Arábia Saudita, a velha ordem do Oriente Médio não pode ser reconstruída. O resultado será um declínio de longo prazo na disponibilidade futura de petróleo para exportação. Um exemplo: três quartos dos 1,7 milhões de barris produzidos diariamente pela Líbia foram rapidamente tirados do mercado conforme a agitação tomou conta do país. O artigo é de Michael T. Klare.
Michael T. Klare - Tomdispatch.com
Qualquer que seja o resultado dos protestos, levantes e rebeliões que agora varrem o Oriente Médio, uma coisa é certa: o mundo do petróleo será permanentemente transformado. Considere tudo que está acontecendo agora como apenas a primeira vibração de um petro-terremoto que irá sacudir nosso mundo em suas bases.

Por um século, voltando até a descoberta de petróleo no sudoeste da Pérsia, antes da Primeira Guerra, forças ocidentais têm repetidamente promovido intervenções no Oriente Médio para garantir a sobrevivência de governos autoritários dedicados à produção de petróleo. Sem tais intervenções, a expansão das economias ocidentais após a Segunda Guerra e a atual abundância das sociedades industriais seria inconcebível.
Aqui, porém, está a notícia que deveria estar na capa dos jornais em todos os lugares: a velha ordem que sustenta esse petróleo está morrendo, e com o seu fim veremos também o fim do petróleo barato e de fácil acesso – para sempre.

O fim da era do petróleo
Vamos tentar medir o que exatamente está em risco nos tumultos atuais. Para começar, não há praticamente chance alguma de fazer justiça completa ao papel fundamental que o petróleo do Oriente Médio representa na equação de energia do planeta. Embora o carvão barato tenha originalmente movido a Revolução Industrial, sendo o combustível das estradas de ferro, navios a vapor e fábricas, o óleo barato fez possível o automóvel, a indústria da aviação, os subúrbios, a agricultura mecanizada, e uma explosão de economia globalizada. E enquanto umas poucas principais região de produção deram início à era do petróleo– EUA, México, Venezuela, Romênia, a área próxima a Baku (então parte do Império Russo) e as índias Orientais Holandesas – é o Oriente Médio que tem satisfeito a sede de petróleo do planeta desde a Segunda Guerra.

Em 2009, o ano mais recente para o qual existe dados, a BP relatou que os fornecedores no Oriente Médio e norte da África conjuntamente produziram 29 milhões de barris por dia, ou 36% do produzido no planeta – e nem mesmo isso começa a sugerir a importância da região para a economia baseada em petróleo. Mais que qualquer outra local, o Oriente Médio tem canalizado sua produção para a exportação, de modo a satisfazer as necessidades de energia de poderosos importadores de petróleo como os EUA, China, Japão e União Europeia. Estamos falando de 20 milhões de barris destinados aos mercados internacionais a cada dia. Compare isso com a Rússia, o maior produtor individual, com sete milhões de barris destinados a exportação, com o continente africano e seus seis milhões, ou a América do Sul com apenas um milhão.

Os produtores do Oriente Médio serão ainda mais importantes nos anos vindouros pois estima-se que possuam dois terços das reservas não exploradas de petróleo. Segundo projeções recentes do Departamento de Energia dos EUA, o Oriente Médio e o Norte da África irão responder juntos por aproximadamente 43% do suprimento de petróleo do mundo em 2035 (em 2007 era 37%) e irão produzir uma parte maior ainda do que é destinado a exportação.

Falando diretamente: a economia mundial requer um suprimento cada vez maior de petróleo a um preço razoável. O Oriente Médio pode prover isso. É por isso que governos Ocidentais tem apoiado por tanto tempo regimes autoritários “estáveis” pela região, providenciando com regularidade suprimentos e treinamentos para as forças de segurança. Agora essa ordem, ferida e petrificada, cujo maior sucesso foi prover petróleo para a economia mundial, está se desintegrando. Não conte com qualquer nova ordem (ou desordem) para fornecer suficiente petróleo barato para preservar a Era do Petróleo.

Para compreender as razões disso, uma breve aula de História é necessária.

O golpe iraniano
Depois que a Companhia de Petróleo Anglo-Persa (APOC, pela sigla em inglês) descobriu petróleo no Irã (então Pérsia), em 1908, o governo britânico procurou exercer controle imperial sobre o estado persa. O arquiteto-chefe dessa manobra foi Winston Churchill, então primeiro Lorde Comissário do Almirantado da Marinha Real britânica. Tendo ordenado a conversão dos navios de guerra do carvão para o óleo antes da Primeira Guerra e determinado a colocar uma significativa fonte de petróleo sob controle de Londres, Churchill orquestrou a nacionalização da APOC em 1914. Na véspera da Segunda Guerra, o então primeiro-ministro Churchill supervisionou a remoção do pró-germânico mandatário persa Shah Reza Pahlavi e a ascendência de seu filho de 21 anos, Mohammed Reza Pahlavi.

Embora inclinado a explorar (míticos) laços com o passado império Persa, Mohammed Reza Pahavi foi uma ferramenta dos britânicos. Seus comandados, porém, estavam cada vez menos dispostos a tolerar a subserviência a Londres. Em 1951, o democraticamente eleito primeiro-ministro Mohammed Mossadeq ganhou apoio parlamentar para a nacionalização da APOC, renomeando-a Anglo-Iraniana Companhia de Petróleo (AIOC). O movimento foi amplamente popular no Irã, mas causou pânico em Londres. Em 1953, a fim de salvar o seu grande troféu, os líderes britânicos engendraram - conjuntamente com o a administração do presidente Eisenhower em Washington e com a CIA – um golpe de estado que depôs Mossadeq e trouxe Shah Pahlavi de volta do exílio em Roma, uma história recentemente contada por Stephen Kinzer no livro “Todos os Homens do Xá” (editora Bertrand Brasil).

Até sua deposição em 1979, o xá exerceu um controle cruel e ditatorial sobre a sociedade iraniana, graças em parte ao generoso apoio militar e policial dos EUA. Primeiro ele esmagou a esquerda secular, os aliados de Mossadeq, e então a oposição religiosa, liderada do exílio pelo aiatolá Ruhollah Khomeini. Devido à brutal exposição à polícia e ao material de cárcere fornecido pelos EUA, os oponentes do xá vieram a odiar a monarquia e Washington na mesma medida. Em 1979, o povo iraniano tomou as ruas, o xá foi deposto e Khomeini chegou ao poder.

Muito se pode aprender desses eventos que levaram ao atual impasse nas relações entre EUA e Irã. O ponto chave para se ater aqui porém é que a produção de petróleo iraniana nunca se recuperou da revolução de 1979-1980.

Entre 1973 e 1979 o Irã havia alcançado um fluxo de quase seis milhões de barris de petróleo por dia, um dos maiores do mundo. Depois da revolução, AICO (rebatizada British Petroleum ou simplesmente BP) foi nacionalizada pela segunda vez e gestores iranianos assumiram as operações da companhia. Para punir os novos líderes iranianos, Washington impôs duras sanções de comércio, dificultando os esforços da companhia estatal de petróleo para obter tecnologia e ajuda estrangeira. O fluxo iraniano caiu para dois milhões de barris por dia, e mesmo passadas três décadas, retornou para apenas algo perto de quatro milhões de barris por dia, ainda que o país possua a segunda maior reserva do mundo, depois da Arábia Saudita.

Sonhos do invasor
O Iraque seguiu uma trajetória assustadoramente similar. Sob Saddam Hussein, a Iraque Companhia de Petróleo (IPC) produziu até 2,8 milhões de barris por dia até 1991, quando a primeira Guerra do Golfo com os EUA e as sanções derrubaram a produção para meio milhão de barris por dia. Embora em 2001 a produção tenha subido para quase 2,5 milhões de barris por dia, nunca mais encontrou os níveis máximos. Conforme o Pentágono se preparava para a invasão do Iraque em final de 2002, porém, as pessoas de dentro da administração Bush e expatriados iraquianos bem relacionados sonhavam com o surgimento de uma era de ouro na qual empresas estrangeiras de petróleo seriam convidadas a retornar ao país, a companhia nacional de petróleo seria privatizada e a produção chegaria a níveis nunca antes vistos.

Quem esquece os esforços da administração Bush e de seus oficiais em Bagdá para que o sonho virasse realidade? Afinal de contas, os primeiros soldados norte-americanos a chegar a capital iraquiana protegeram o prédio do Ministério do Petróleo, mesmo que isso deixasse os saqueadores livres para agir no resto da cidade. Paul Bremer III, o cônsul mais tarde escolhido pelo presidente Bush para supervisionar a formação do novo Iraque, trouxe uma equipe de executivos do petróleo dos EUA para supervisionar a privatização da indústria de petróleo do país, enquanto que o departamento de Energia previa, confiante, em maio de 2003 que a produção iraquiana poderia subir para 3,4 milhões de barris por dia em 2005 e para 5,6 milhões em 2020.

Obviamente que nada disso virou verdade. Para muitos iraquianos a decisão dos EUA de se dirigir imediatamente para o prédio do Ministério do Petróleo foi um ato decisivo para que um possível apoio na derrubada de um tirano se transformasse em raiva e hostilidade. A condução de Bremer da privatização da estatal de petróleo produziu forte retaliação nacionalista de engenheiros, que essencialmente sabotaram o plano. Não demorou para a explosão de uma insurgência sunita em larga escala. A produção de petróleo rapidamente caiu, registrando em média 2 milhões de barris por dia entre 2003 e 2009. Em 2010, finalmente voltou à marca dos 2,5 milhões -- ainda um deserto de distância daqueles sonhados 4,1 milhões. Não é difícil chegar a uma conclusão: esforços de forasteiros para controlar a ordem política do Oriente Médio visando um maior fluxo de petróleo irão inevitavelmente gerar pressões opostas que resultarão em menor produção.

Os EUA e outros poderes que observam os levantes, as rebeliões e os protestos que varrem o Oriente Médio devem estar precavidos certamente: seja quais forem seus desejos políticos e religiosos, as populações locais sempre acabam por abraçar uma feroz e apaixonada hostilidade à dominação estrangeira e irão escolher independência e a possibilidade de liberdade ao aumento de produção. As experiências do Irã e do Iraque não podem ser comparadas com as da Argélia, Bahrein, Egito, Jordânia, Líbia, Omã, Marrocos, Arábia Saudita, Sudão, Tunísia e Iêmen.

Todas eles, porém (e outros países próximos de serem arrastados para a crise), exibem alguns elementos de molde politico-autoritário e estão conectados com a velha ordem do petróleo. Argélia, Egito, Iraque, Omã e Sudão são produtores de petróleo; Egito e Jordânia mantêm oleodutos vitais e, no caso do Egito, uma passagem crucial (Canal de Suez) para o transporte do óleo; Bahrein, Iêmen e Omã ocupam pontos estratégicos ao longo de importantes rotas marítimas.

Todos recebiam substancial ajuda militar dos EUA e/ou abrigam importantes bases militares dos norte-americanos. E em todos esses países o coro é o mesmo: "O povo quer que o regime seja derrubado". Dois deles já foram, três estão balançando e há outros em risco. O impacto nos preços internacionais do petróleo têm sido rápido e impiedoso: em 24 de fevereiro, os preços do Brent do Mar do Norte, uma referência da indústria, quase alcançou 115 dólares por barril, o mais alto desde o colapso financeiro de outubro de 2008. O West Texas Intermediate, igualmente padrão, rápida e ameaçadoramente passou a barreira dos 100 dólares.

Por que os Sauditas são fundamentais
Até agora, o mais importante produtor do Oriente Médio, a Arábia Saudita, ainda não exibiu sinais claros de vulnerabilidade, do contrário os preços teriam disparado ainda mais. Porém, o vizinho Bahrein enfrenta profundos problemas; dezenas de milhares de manifestantes -- mais de 20% da sua população de meio milhão de habitantes - tem repetidamente ido às ruas apesar das ameaças de repressão a bala, em um movimento pela abolição do governo autocrático do rei Hamad ibn Isa al-Khalifa, e sua substituição por um comando genuinamente democrático. Esses acontecimentos são especialmente preocupantes para a liderança saudita, já que a pressão por mudanças em Bahrein está sendo conduzida pela maioria xiita, há muito tempo alvo de abusos da minoria sunita encastelada no poder.

A Arábia Saudita também tem grande população xiita (embora não em maioria como em Bahrein) que da mesma forma sofre com a discriminação dos mandatários sunitas. Há nervosismo em Riyadh, medo que a explosão em Bahrein possa se espalhar para a adjacente e rica em petróleo província do oeste – a área do reino onde os xiitas formam a maioria – criando um desafio para o regime.

Parcialmente para obstruir qualquer rebelião juvenil, o rei Abdullah, aos 87 anos, acabou de prometer crédito de 10 bilhões de dólares, parte de um pacote de 36 bilhões em mudanças econômicas, para ajudar jovens sauditas que pretendem se casar e comprar casas e apartamentos.

Mesmo que a revolta não alcance a Arábia Saudita, a velha ordem do Oriente Médio não pode ser reconstruída. O resultado, sem dúvidas, será um declínio de longo prazo na disponibilidade futura de petróleo para exportação. Três quartos dos 1,7 milhões de barris produzidos diariamente pela Líbia foram rapidamente tirados do mercado conforme a agitação tomou conta do país. Muito disso segue desconectado e fora do mercado por um período indefinido. Pode-se esperar que Egito e Tunísia retomem a produção – modesta em ambos os casos – a níveis pré-revolução, mas é improvável que abracem os tipos de parcerias com empresas estrangeiras que possam alavancar a produção às expensas do controle local. Iraque, cuja principal refinaria de petróleo foi severamente danificada por insurgentes na semana passada, e Irã não mostram sinais de serem capazes de aumentar a produção substancialmente nos próximos anos.

O papel fundamental caberá à Arábia Saudita, que acaba de aumentar a produção para compensar as perdas do mercado com a Líbia. Mas não espere que esse padrão se mantenha para sempre. Assumindo que a família real sobreviva ao atual momento de rebeliões, com toda certeza terá que direcionar mais de seu fluxo diário para satisfazer os níveis de consumo doméstico e incentivar a indústria petroquímica local, que poderá oferecer trabalhos mais bem remunerados à sua crescente e inquieta população.

Entre 2005 e 2009, os sauditas usaram cerca de 2,3 milhões de barris diários, deixando aproximadamente 8,3 milhões para a exportação. Apenas se a Arábia continuar a fornecer pelo menos essa quantia para os mercados internacionais o mundo poderá manter seu padrão de consumo de petróleo. Isso não deve acontecer. A família real saudita tem se mostrado relutante em aumentar a extração de petróleo para além de 10 milhões de barris por dia, temendo comprometer os seus campos remanescentes e causar um declínio dos lucros futuros. Ao mesmo tempo, o aumento da demanda doméstica deverá consumir uma parte cada vez maior da produção da Arábia Saudita. Em abril de 2010, o executivo-chefe da saudita Aramco, Khalid al-Falih, previa que o consumo doméstico poderia alcançar surpreendentes 8,3 milhões de barris por dia por volta de 2028, deixando apenas uns poucos milhões de barris para a exportação e garantindo que, se o planeta não conseguir mudar para outras fontes de energia, enfrentará problemas de fornecimento de petróleo.

Em outras palavras, para quem quiser traçar uma trajetória razoável para os atuais acontecimentos no Oriente Médio já há um esboço na parede. Como nenhuma outra região é capaz de substituir o Oriente Médio como principal exportador de energia do planeta, a economia do petróleo irá encolher - e com ela a economia do planeta como um todo..

Considere o recente aumento nos preços do petróleo apenas um tímido anúncio do petro-terremoto que está por vir. O petróleo não desaparecerá dos mercados internacionais, mas nas próximas décadas não irá mais alcançar os volumes necessários para satisfazer a estimada demanda global, o que significa que escassez será a condição dominante do mercado – mais cedo do que tarde. Apenas o veloz desenvolvimento de fontes alternativas de energia e a dramática redução do consumo de derivados de petróleo pode salvar o mundo das mais severas repercussões econômicas.

Tradução: Wilson Sobrinho
(Carta Maior)

quarta-feira, 16 de março de 2011

EUA ll

“Não queremos ser os Estados Unidos dos Negócios”
By
admin
– 10/03/2011Posted in: Destaques
19Share
1

Por Michael Moore, da ocupação em Madison, Wisconsin, EUA | Tradução: Coletivo VilaVudu
Ao contrário do que diz o poder, que quer que vocês desistam das pensões e aposentadorias, que aceitem salários de fome, e voltem para casa em nome do futuro dos netos de vocês, os EUA não estão falidos. Longe disso. Os EUA nadam em dinheiro. O problema é que o dinheiro não chega até vocês, porque foi transferido, no maior assalto da história, dos trabalhadores e consumidores, para os bancos e portfólios dos hiper mega super ricos.
Hoje, 400 norte-americanos têm a mesma quantidade de dinheiro que metade da população dos EUA, somando-se o dinheiro de todos.
Vou repetir. 400 norte-americanos obscenamente ricos, a maior parte dos quais foram beneficiados no ‘resgate’ de 2008, pago aos bancos, com muitos trilhões de dólares dos contribuintes, têm hoje a mesma quantidade de dinheiro, ações e propriedades que tudo que 155 milhões de norte-americanos conseguiram juntar ao longo da vida, tudo somado. Se dissermos que fomos vítimas de um golpe de estado financeiro, não estamos apenas certos, mas, além disso, também sabemos, no fundo do coração, que estamos certos.
Mas não é fácil dizer isso, e sei por quê. Para nós, admitir que deixamos um pequeno grupo roubar praticamente toda a riqueza que faz andar nossa economia, é o mesmo que admitir que aceitamos, humilhados, a ideia de que, de fato, entregamos sem luta a nossa preciosa democracia à elite endinheirada. Wall Street, os bancos, os 500 da revista Fortune governam hoje essa República – e, até o mês passado, todos nós, o resto, os milhões de norte-americanos, nos sentíamos impotentes, sem saber o que fazer.
Nunca freqüentei universidades. Só estudei até o fim do segundo grau. Mas, quando eu estava na escola, todos tínhamos de estudar um semestre de Economia, para concluir o segundo grau. E ali, naquele semestre, aprendi uma coisa: dinheiro não dá em árvores. O dinheiro aparece quando se produzem coisas e quando temos emprego e salário para comprar coisas de que precisamos. E quanto mais compramos, mais empregos se criam. O dinheiro aparece quando há sistema que oferece boa educação, porque assim aparecem inventores, empresários, artistas, cientistas, pensadores que têm as ideias que ajudam o planeta. E cada nova ideia cria novos empregos, e todos pagam impostos, e o Estado também tem dinheiro. Mas se os mais ricos não pagam os impostos que teriam de pagar por justiça, a coisa toda começa a emperrar e o Estado não funciona. E as escolas não ensinam, nem aparecem os mais brilhantes capazes de criar mais e mais empregos. Se os ricos só usam seu dinheiro para produzir mais dinheiro, se de fato só o usam para eles mesmos, já vimos o que eles fazem: põem-se a jogar feito doidos, apostam, trapaceiam, nos mais alucinados esquemas inventados em Wall Street, e destroem a economia.
A loucura que fizeram em Wall Street custou-nos milhões de empregos. O Estado está arrecadando menos. Todos estamos sofrendo, como efeito do que os ricos fizeram.
Mas os EUA não estão falidos, amigos. Wisconsin não está falido. Repetir que o país está falido é repetir uma enorme mentira. As três maiores mentiras da década são: 1) os EUA estão falidos, 2) há armas de destruição em massa no Iraque; e 3) os Packers não ganharão o Super Bowl sem Brett Favre.
A verdade é que há muito dinheiro por aí. Muito. O caso é que os homens do poder enterraram a riqueza num poço profundo, bem guardado dentro dos muros de suas mansões. Sabem que cometeram crimes para conseguir o que conseguiram e sabem que, mais dia menos dias, vocês vão querer recuperar a parte daquele dinheiro que é de vocês. Então, compraram e pagaram centenas de políticos em todo o país, para conduzirem a jogatina em nome deles. Mas, p’ro caso de o golpe micar, já cercaram seus condomínios de luxo e mantêm abastecidos, prontos para decolar, os jatos particulares, motor ligado, à espera do dia que, sonham eles, jamais virá. Para ajudar a garantir que aquele dia nunca cheguasse, o dia em que os norte-americanos exigiriam que seu país lhes fosse devolvido, os ricos tomaram duas providências bem espertas:
1. Controlam todas as comunicações. Como são donos de praticamente todos os jornais e redes de televisão, espertamente conseguiram convencer muitos norte-americanos mais pobres a comprar a versão deles do Sonho Americano e a eleger os candidatos deles, dos ricos. O Sonho Americano, na versão dos ricos, diz que vocês também, algum dia, poderão ser ricos – aqui é a América, onde tudo pode acontecer, se você insistir e nunca desistir de tentar! Convenientemente para eles, encheram vocês com exemplos convincentes, que mostram como um menino pobre pode enriquecer, como um filho criado sem pai, no Havaí, pode ser presidente, como um rapaz que mal concluiu o ginásio pode virar cineasta de sucesso. E repetirão essas histórias mais e mais, o dia inteiro, até que vocês passem a viver como se nunca, nunca, nunca, precisassem agitar a ‘realidade’ – porque, sim, você – você, você mesmo! – pode ser rico/presidente/ganhar o Oscar, algum dia!
A mensagem é clara: continuar a viver de cabeça baixa, nariz virado p’ro trilho, não sacuda o barco, e vote no partido que protege hoje o rico que você algum dia será.
2. Inventaram um veneno que sabem que vocês jamais quererão provar. É a versão deles da mútua destruição garantida. E quando ameaçaram detonar essa arma de destruição econômica em massa, em setembro de 2008, nós nos assustamos,
Quando a economia e a bolsa de valores entraram em espiral rumo ao poço, e os bancos foram apanhados numa “pirâmide Ponzi” global, Wall Street lançou sua ameaça-chantagem: Ou entregam trilhões de dólares do dinheiro dos contribuintes dos EUA, ou quebramos tudo, a economia toda, até os cacos. Entreguem a grana, ou adeus poupanças. Adeus aposentadorias. Adeus Tesouro dos EUA. Adeus empregos e casas e futuro. Foi de apavorar, mesmo, e nos borramos de medo. “Aqui, aqui! Levem tudo, todo o nosso dinheiro. Não ligamos. Até, se quiserem, imprimimos mais dinheiro, só pra vocês. Levem, levem. Mas, por favor, não nos matem. POR FAVOR!”
Os economistas executivos, nas salas de reunião e nos fundos rolavam de rir. De júbilo. E em três meses lá estavam entregando, eles, uns aos outros, os cheques dos ricos bônus obscenos, maravilhados com o quão perfeita e absolutamente haviam conseguido roubar uma nação de otários. Milhões perderam os empregos: pagaram pela chantagem e, mesmo assim, perderam os empregos, e milhões pagaram pela chantagem e perderam as casas. Mas ninguém saiu às ruas. Não houve revolta.
Até que… COMEÇOU! Em Wisconsin!
Jamais um filho de Michigan teve mais orgulho de dividir um mesmo lago com Wisconsin!
Vocês acordaram o gigante adormecido – a grande multidão de trabalhadores dos EUA. Agora, a terra treme sob os pés dos que caminham e estão avançando!
A mensagem de Wisconsin inspirou gente em todos os 50 estados dos EUA. A mensagem é “Basta! Chega! Basta!” Rejeitamos todos os que nos digam que os EUA estão falidos e falindo. É exatamente o contrário. Somos ricos! Temos talento e ideias e sempre trabalhamos muito e, sim, sim, temos amor. Amor e compaixão por todos os que – e não por culpa deles – são hoje os mais pobres dos pobres. Eles ainda querem o mesmo que nós queremos: Queremos nosso país de volta! Queremos, devolvida a nós, a nossa democracia! Nosso nome limpo. Queremos de volta os Estados Unidos da América.
Não somos, não queremos continuar a ser, os Estados dos Business Unidos da América!
Como fazer acontecer? Ora, estamos fazendo aqui, um pouco, o que o Egito está fazendo lá. E o Egito faz, lá, um pouco do que Madison está fazendo aqui.
E paremos um instante, para lembrar que, na Tunísia, um homem desesperado, que tentava vender frutas na rua, deu a vida, para chamar a atenção do mundo, para que todos vissem como e o quanto um governo de bilionários lá estava, afrontando a liberdade e a moral de toda a humanidade.
Obrigado, Wisconsin. Vocês estão fazendo as pessoas ver que temos agora a última chance de vencer uma ameaça mortal e salvar o que nos resta do que somos.
Vocês estão aqui há três semanas, no frio, dormindo no chão – por mais que custe, vocês fizeram. E não tenham dúvidas: Madison é só o começo. Os escandalosamente ricos, dessa vez, pisaram na bola. Bem poderiam ter ficado satisfeitos só com o dinheiro que roubaram do Tesouro. Bem se poderiam ter saciado só com os empregos que nos roubaram, aos milhões, que exportaram para outros pontos do mundo, onde conseguiam explorar ainda mais, gente mais pobre. Mas não bastou. Tiveram de fazer mais, queriam ganhar mais – mais que todos os ricos do mundo. Tentaram matar a nossa alma. Roubaram a dignidade dos trabalhadores dos EUA. Tentaram nos calar pela humilhação. Nos tiraram a mesa de negociações!
Recusam-se até a discutir coisas simples como o tamanho das salas de aula, ou o direito de os policiais usarem coletes à prova de balas, ou o direito de os pilotos e comissários de bordo terem algumas poucas horas a mais de descanso, para que trabalhem com mais segurança para todos e possam fazer melhor o próprio trabalho –, trabalho que eles compram por apenas 19 mil dólares anuais.
Isso é o que ganham os pilotos de linhas curtas, talvez até o piloto que me trouxe hoje a Madison. Contou-me que parou de esperar algum aumento. Que, agora, só pede que lhe deem folgas um pouco maiores, para não ter de dormir no carro entre os turnos de voo no aeroporto O’Hare. A que fundo do poço chegamos!
Os ricos já não se satisfazem com pagar salário de miséria aos pilotos: agora, querem roubar até o sono dos pilotos. Querem humilhar os pilotos, desumanizá-los e esfregar a cara dos pilotos na própria vergonha. Afinal, piloto ou não, ele não passa de mais um sem-teto…
Esse, meus amigos, foi o erro fatal dos Estados dos Business Unidos da América. Ao tentar nos destruir, fizeram nascer um movimento – uma revolta massiva, não violenta, que se alastra pelo país. Sabíamos que, um dia, aquilo teria de acabar. E acabou agora, já começou a acabar.
A mídia não entende o que está acontecendo, muita gente na mídia não entende. Dizem que foram apanhados desprevenidos no Egito, que não previram o que estava por acontecer. Agora, se surpreendem e nada entendem, porque tantas centenas de milhares de pessoas viajam até Madison nas últimas semanas, enfrentando inverno brutal. “O que fazem lá, parados na rua, com vento, com neve?” Afinal… houve eleições em novembro, todos votaram… O que mais podem desejar?!” “Está acontecendo algo em Madison. Que diabo está acontecendo lá? Quem sabe?”
O que está acontecendo é que os EUA não estão falidos. A única coisa que faliu nos EUA foi a bússola moral dos governantes. Viemos para consertar a bússola e assumir o timão para levar o barco, agora, nós mesmos.
Nunca esqueçam: enquanto existir a Constituição, todos são iguais: cada pessoa vale um voto. Isso, aliás, é o que os ricos mais detestam por aqui. Porque, apesar de eles serem os donos do dinheiro e do baralho e da mesa da jogatina, um detalhe eles não conseguem mudar: nós somos muitos e eles são poucos!
Coragem, Madison, força! Não desistam!

EUA

Para EUA, Mercosul é “antinorteamericano”
Um documento secreto do Departamento de Estado ao qual o jornal Página/12 teve acesso via Wikileaks revela o temor estadunidense diante da consolidação de um bloco regional que inclua também a Venezuela. O texto revela o conteúdo de uma reunião de embaixadores estadunidenses no Cone Sul, realizada no Rio de Janeiro. Segundo o texto final do encontro, a chave que, segundo os EUA, muda a natureza do Mercosul é a decisão de incorporar a Venezuela aos quatro membros originais: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. “O Mercosul gradualmente foi transformando-se de uma união aduaneira imperfeita em uma organização mais restritiva e anti-norteamericana”, afirma.
Martín Granovsky - Página/12
Pela primeira vez vem a público um documento do Departamento de Estado dos Estados Unidos que qualifica o Mercosul como um organismo “antinorteamericano”. Não consta nos arquivos públicos nenhuma menção neste sentido por parte de uma autoridade do Departamento de Estado. O documento ao qual o Página/12 teve acesso via Wikileaks revela o conteúdo de uma reunião de embaixadores estadunidenses no Cone Sul, realizada no Rio de Janeiro. Segundo o texto final do encontro, a chave que, segundo os EUA, muda a natureza do Mercosul é a decisão de incorporar a Venezuela aos quatro membros originais: Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai. “A entrada da Venezuela no Mercosul altera claramente o balanço e a dinâmica da organização”, diz o texto. “O Mercosul gradualmente foi transformando-se de uma união aduaneira imperfeita em uma organização mais restritiva e anti-norteamericana”.

A reunião ocorreu nos dias 8 e 9 de maio de 2007 no Rio de Janeiro. O telegrama com um resumo foi classificado como secreto no dia 17 de maio pelo número dois da embaixada no Paraguai, Michael J. Fitzpatrick. Seu título original é “Conferência: uma perspectiva do Cone Sul sobre a influência de Chávez”. Participaram os embaixadores norteamericanos no Brasil, Uruguai, Argentina, Paraguai e Chile, e o relatório agradece ainda as contribuições da embaixada na Bolívia.

Quase quatro anos depois do encontro adquire ainda mais importância que tenha sido um diplomata sediado no Paraguai o encarregado de qualificar o grau de confidencialidade da reunião. O protocolo de adesão da Venezuela foi firmado em março de 2006. Mas até hoje não entrou em pleno vigor porque um país só passa a ser membro pleno do Mercosul quando os parlamentos dos países que já são membros ratificam a decisão dos poderes executivos. A única coisa que falta para a entrada da Venezuela no bloco é, hoje, a ratificação do Senado paraguaio.

Na última reunião do Mercosul (Foz do Iguaçu, em 2010), a presidenta Cristina Fernández de Kirchner disse que “a incorporação da Venezuela ao Mercosul, além de aportar sua generosidade, vai ajudar estrategicamente a consolidar-nos em uma das frentes mais importantes deste século, a energética”. Cristina disse confiar “nos irmãos do Paraguai”, destacou o Mercosul como um bloco que permitiu deixar para trás uma hipótese absurda como o enfrentamento entre a Argentina e o Brasil e acrescentou que o peso dos mercados internos dos dois países permitiu “superar a crise global mais importante desde 1930”.

O atrativo de Chávez
A conclusão final dos embaixadores é que “a campanha de Chávez para expandir sua influência no Cone Sul é multifacetada e repousa em boa medida, mas não totalmente, em uma generosa assistência energética e em acordos de investimento”. Concede que a figura de Chávez pode ser “atrativa para muitos dos despossuídos da região, que todavia esperam que a globalização lhes traga os benefícios do livre comércio e o governo verdadeiramente democrático”.

Segundo o telegrama, “ao integrar a Venezuela às instituições existentes e ao criar novos organismos regionais, Chávez quer que o Cone Sul siga essa ideia”. Que resultados teria produzido a suposta campanha do presidente venezuelano? “Poucos países provaram ser capazes de resistir ao atrativo da ajuda venezuelana e de seus pacotes de investimento”.

Para a sorte dos críticos da integração venezuelana, “ao mesmo tempo que a influência de Chávez na região se expandiu significativamente, os líderes regionais suspeitam de seus motivos e objetivos”. Muitos desses líderes “coincidem na ideia de que o Cone Sul, e sobretudo a América do Sul, deve estabelecer uma identidade separada em relação à hegemonia norte-americana, mas não se sentem cômodos se são usados”.

Uma frase dos embaixadores indica o estado do diagnóstico estadunidense: “os Estados Unidos não podem esperar que os líderes da região corram em nossa defesa”.

E depois do diagnóstico vem a recomendação: “Precisamos nos convencer da necessidade de implementar uma estratégia transparente para a região”. O texto segue assim: “Nossa ideia de uma comunidade de nações democrática e inclusiva que assegura a perspectiva de um futuro mais próspero para seus cidadãos é a resposta correta a Chávez”. Os participantes também pediram “mais ferramentas e recurso” para se contrapor ao que definem como “esforços políticos de rachar a democracia, desenhar estratégias econômicas para estrangular o comércio livre, a politização do Mercosul, a expansão das relações na área da Defesa e a campanha nos meios de comunicação de massa”.

País por país
Os diplomatas reunidos no Rio de Janeiro se manifestaram convencidos de que existe uma campanha pública de Chávez e outra clandestina, de distribuição de recursos, e analisaram a posição dos governos da América do Sul detalhadamente.

No caso argentino, um dado chave é o fato de que, segundo os participantes, “uma pesquisa realizada em dezembro de 2006 apontava que Chávez era popular para 52% dos argentinos” e que a imagem dos EUA não era popular. Ao mencionar o nome de Néstor Kirchner, então presidente da Argentina, o relatório diz que “Kirchner tentou distanciar-se publicamente da posição antinorte-americana de Chávez e tratou de manter a percepção de uma linha mais independente para resultar potável ao eleitor médio, mas sua estratégia econômica claramente busca laços mais estreitos com Chávez no comércio e nas finanças, procurando posicionar-se, além disso, entre Lulz e Chávez no espectro regional”. Na visão estadunidense, Kirchner tentava balancear a relação com Chávez. “Isso é evidente no apoio de Kirchner e sua esposa à comunidade judia da Venezuela e, simultaneamente, no fato de que tenham se abstido de qualquer comunicado em favor da liberdade de imprensa no caso da RCTV, por exemplo”.

“Ainda que Kirchner compartilhe algumas das posturas esquerdistas de Chávez, ele é muito mais um pragmático”, diz o texto. E nomeia os empréstimos de 4,2 bilhões de dólares concedidos a Argentina.

O documento assinala ainda que “o que levou o Brasil a apoiar a admissão da Venezuela no Mercosul foi a crença de que Chávez poderia ser controlado mais facilmente dentro do organismo do que se deixado a sua própria inspiração fora dele”. O texto põe em questão essa ideia com dois exemplos. Um, que Chávez estimulou Evo Morales a nacionalizar a Petrobras na Bolívia. Outro, que Chávez disputava protagonismo com Lula nas reuniões do Mercosul.

“Esse atrito oferece uma oportunidade”, analisa o texto (e parece encher-se de esperança) classificado por Fitzpatrick em 2007. Obviamente se refere a uma oportunidade para os EUA causar alguma erosão nas relações do bloco sulamericano.

No entanto, quando Morales nacionalizou o petróleo, nacionalizou também a Petrobras e não só a Petrobras. Brasil se irritou com a ocupação militar das suas unidades, mas um diálogo entre os dois países solucionou a diferença.

Tampouco houve, finalmente, uma disputa de protagonismo entre Lula e Chávez, a tal ponto que o então presidente brasileiro seguiu impulsionando a entrada da Venezuela no Mercosul. O Senado brasileiro ratificou a posição em 2009, com Lula presidente. E sua sucessora, Dilma Rousseff, disse em janeiro último em uma entrevista com meios de comunicação argentinos, entre eles Página/12, que “a Venezuela é um grande produtor de petróleo e gás”. Opinou que o país “tem muito a ganhar entrando no Mercosul, e nós com sua presença”. Também tocou na questão da liderança, mas despersonalizou-a, preferindo colocá-la em um plano binacional argentino-brasileiro por tamanho e desenvolvimento econômico. “Até para os outros países é absolutamente importante que Brasil e Argentina estejam juntos porque não é uma relação de hegemonia a que os dois países se propõem a estabelecer com o resto da América Latina”, declarou.

Na visão norte-americana daquele momento, outro tema a seguir de perto eram os contatos militares venezuelanos e, no caso da Bolívia, os supostos contatos na área da inteligência. Até o Uruguai aparece sob suspeita, porque segundo o telegrama os temas relacionados à segurança, do então presidente Tabaré Vázquez, eram implementados no dia a dia por seu irmão, Jorge, “um ex-membro da guerrilha POR-33”. Vázquez, subsecretário do Interior, teria trabalhado segundo os Estados Unidos com “agentes do serviço secreto recrutados sob o guarda-chuva da central sindical PIT-CNT, dominada pelo Partido Comunista, e treinados em Caracas e Havana”.

Na verdade, a OPR-33 foi mais libertária do que comunista e na PIT-CNT há também peso de socialistas e do Movimento de Participação Popular do ex-tupamaro Pepe Mujica. Jorge Vázquez é o mesmo que denunciou no Uruguai uma campanha por meio do qual teria sido falsamente acusado de armazenar para o Irã em combinação com a Venezuela.

Tradução: Katarina Peixoto

Envie para um amigo Versão para Impressão
(Carta Maior)

terça-feira, 15 de março de 2011

Revoluções...

Revolucionárias sim, mas sem poder


As mulheres participam das mobilizações democráticas dos países árabes. No entanto, estarão presentes na nova configuração do poder?
A reportagem é de Ana Carbajosa e publicada no El País, 06-03-2011. A tradução é do Cepat.
As revoltas populares no mundo árabe abriram passagem para uma nova era democratizadora na região. Não há retorno, concorda a grande maioria dos especialistas. O que não está tão claro é se na futura troca de poder de ditadores eternos para o povo, as mulheres terão participação ativa, começam a se perguntar algumas feministas árabes. Outras acreditam, contudo, que o impulso revolucionário propiciará mudanças culturais capazes de por um fim ao quase monopólio masculino do poder em muitos países árabes.
“Nos dizem que não é o momento de falar dos direitos da mulher, mas é precisamente agora que temos que trabalhar mais do que nunca essa questão. Homens e mulheres lutamos ombro a ombro para acabar com o regime de Mubarak, mas já começamos a ver que na hora da tomada de decisões políticas são eles os que decidem por nós”, sustenta Nihad Abul Qomsan, advogada e presidente do Centro Egípcio para os Direitos da Mulher.
Abul Qomsan faz alusão à famosa foto da reunião do então vice-presidente egípcio Omar Suleiman com o chamado conselho de sábios – acadêmicos, empresários e intelectuais – que deviam discutir o caminho da transição democrática pouco antes de Mubarak cair. Naquela grande sala havia 27 sábios e apenas uma sábia. Dias depois, o novo Governo militar egípcio escolheu um grupo de sete especialistas na área de Direito para emendar a Constituição. Todos eles são homens.
A mulheres como Abul Qomsan, a experiência e o profundo conhecimento de sua sociedade lhes impedem de compartilhar plenamente o entusiasmo revolucionário. “A revolução política é fundamental, mas para que a participação das mulheres nos futuros Governos não seja puramente cosmética falta uma verdadeira revolução social e cultural”, disse Shahida el Baz, diretora do Centro de Pesquisa Árabe e Africano com sede no Cairo. Ela é daquelas que, apesar dos temores, pensa que com a revolução política chegarão também as mudanças sociais. “A libertação dos homens está intimamente ligada à das mulheres. Durante uma revolução, as pessoas se transformam ao longo do caminho”, pensa El Baz.
Mas tanto umas como outras acreditam que a democracia por si só não bastará para dar uma guinada na situação em que se encontra a mulher no mundo árabe. Uma situação, dizem as especialistas consultadas, que é consequência da falta de liberdades, mas também das práticas culturais e do avanço das correntes religiosas mais conservadoras. Os dados regionais oferecem um panorama desalentador. Os indicadores em relação ao emprego, a participação política ou as diferenças salariais, situam as mulheres árabes no final da fila, comparadas com outras regiões do mundo.
“O problema é que há muitos homens que nem sequer entendem porque as mulheres querem participar da política. Eles estão convencidos de que são capazes de governar para o bem da mulher”, explica Dena Assaf, diretora regional do Programa das Nações Unidas para a Mulher, com sede na Jordânia.
Os últimos dados da União Interparlamentar mostram, por exemplo, que os países árabes são a região do mundo onde as mulheres têm menor representação parlamentar. São 12,5% no final de 2010, frente a 21,9% na Europa.
Entretanto, as diferenças por países dentro do mundo árabe são enormes. Uma coisa é o Kuwait, onde as mulheres tiveram que esperar até 2005 para obter o direito de voto e de ser votadas; outra coisa é a Tunísia, onde votam desde 1956.
A educação, sobretudo nas novas gerações não costuma ser o problema. As mulheres árabes enchem as salas de aula das universidades e em alguns países inclusive superam o número de estudantes masculinos. Em média, 59,4% das mulheres árabes receberam uma educação formal, segundo o último Relatório de Desenvolvimento Humano do Mundo Árabe elaborado pela ONU, que destaca também abismais diferenças entre países. Enquanto no Marrocos, por exemplo, mais de 60% das mulheres são analfabetas, na Jordânia essa cifra cai para 13% e no Kuwait para 9%.
Diferenças nacionais à parte, são muitas as mulheres que têm formação e determinação para participar da vida política e econômica do país, como ficou claro nas últimas semanas. Vimo-las nas ruas gritando, agitando cartazes, organizando protestos na internet e fugindo das balas. O problema é que suas capacidades não se refletem em mercados de trabalho que seguem priorizando os homens e nos quais a conciliação com a vida familiar é um conceito quase marciano. Os dados são, novamente, desoladores. Revelam que o mundo árabe é a região do mundo onde menos mulheres participam do mercado de trabalho; apenas 28%, segundo os dados da Organização Internacional do Trabalho.
As mulheres se queixam nas pesquisas de que são excluídas das redes informais extratrabalho – quer seja em cafés, clubes, ou eventos para homens – e que precisamente esse constitui um dos maiores obstáculos na hora de ascender na escala de trabalho que tende a deixar de lado a meritocracia. São problemas muito similares aos de outras partes do mundo, inclusive o Ocidente, só que no caso dos países árabes alguns dos problemas são mais acentuados.
Explicam as especialistas que a combinação, por um lado, de um contexto cultural que favorece que a mulher se dedique exclusivamente ao cuidado da família, e, por outro, uma situação econômica precária com altos índices de desemprego, é nefasta para as mulheres. Os dados da ONU falam também de diferenças salariais da metade ou até de um terço do salário dos homens. Indicam que a imensa maioria das mulheres trabalha no setor de serviços ou na agricultura, ao contrário dos homens, que costumam trabalhar na indústria.
As normas sociais não escritas sobre o que se espera de uma mulher ou o que deve ou não fazer, são também com frequência responsáveis por muitas das limitações que as mulheres sofrem para participar da política ou do mundo empresarial. A liberdade, por exemplo, para muitas mulheres para viajar sozinhas, ou para se alojar em um hotel é reduzida ou inexistente. Em muitos lugares do mundo árabe, se uma mulher sofresse um abuso sexual, a honra de toda a grande família ficaria prejudicada. Assim que qualquer precaução – inclusive se isso significa não viajar sozinha – é pequena desde que previna um mal considerado maior.
Não faltam feministas árabes que culpam o auge do islamismo mais conservador por algumas das restrições que em muitos países só aumentaram na última década. “As vozes islamistas mais tradicionais são ouvidas cada vez com mais força. Antes era coisa de alguns especialistas que falavam em voz baixa. Agora fazem parte de redes multinacionais”, sustenta Soukeina Bouraoui, diretora do Centro para a Pesquisa e Formação das Mulheres Árabes, com sede na Tunísia. Bouraoui, como muitos outros especialistas, acredita que o despertar islamista se favoreceu com Governos como o egípcio, que apesar de não permitir a participação política, necessitava deles como ameaça para justificar sua permanência no poder com vistas ao Ocidente e de alguma maneira os alimentava.
A política ocidental na zona – apoio incondicional a Israel, guerra do Iraque... – também tem sua parte de culpa para que o feminismo não seja visto com bons olhos na região, segundo esta advogada tunisiana. “Falar de direitos da mulher é mal visto, porque em seguida te acusam de ser pró-ocidental”, assegura.
Para Bouraoui está claro que depois da revolução virá a luta dos grupos políticos pelo poder. Os mais fortes triunfarão, “e posso lhe assegurar que não serão precisamente as mulheres laicas”, pensa. “As eleições são dinheiro e as vence quem mais dinheiro tem. Sabe quanto milhões recebem os islamistas do estrangeiro? Eles contam com um apoio multinacional. Se os europeus querem uma verdadeira democracia igualitária, terão que nos apoiar, como fizeram com a Espanha. Aqui o que falta é um Plano Marshall”, garante.
Para ler mais:
• A Praça Tahrir humilha o Dia da Mulher
• ‘A mulher é inferior em todas as religiões’, diz feminista egípcia
• Um ponto forte a favor da Tunísia: suas mulheres
• (Inst. Humanitas Unisinos)

O. Médio

Tariq Ali: “Assistimos à segunda vaga histórica do despertar árabe”
"A absurda ideia neo-conservadora segundo a qual os árabes e os muçulmanos são geneticamente hostis à democracia derreteu-se como um pergaminho lançado no fogo". Entrevista de Tariq Ali, feita por Christophe Ventura.
ARTIGO | 5 MARÇO, 2011 - 01:01

“Se os dirigentes do Bahrein forem destituídos, então será difícil impedir um levantamento nacional-democrático na Arábia Saudita” - Manifestação em Manama, Bahrein, 4 de Março de 2011, foto de Mazen Mahdi/Epa/Lusa
Mémoires des Luttes (MDL - "Memórias das Lutas"): Que se passa actualmente no mundo árabe?
Tariq Ali (TA): Acho que estamos a assistir à segunda vaga histórica do despertar árabe. A recusa dos povos a beijar, durante mais tempo, a mão que segura o pau que os puniu durante décadas abriu um novo capítulo na história da nação árabe. A absurda ideia neo-conservadora segundo a qual os árabes e os muçulmanos são geneticamente hostis à democracia derreteu-se como um pergaminho lançado no fogo. Os que faziam a promoção desta ideia são os que estão mais descontentes. Penso em Israel e nos seus lóbis na Europa e nos Estados Unidos – o que eu chamo a Euro-América -, na indústria militar que vendia tudo o que podia àqueles regimes, mas igualmente nos presionados dirigentes da Arábia Saudita que se interrogam hoje sobre se a epidemia democrática vai propagar-se até ao seu reino tirânico.
Até agora, estes últimos deram refúgio a numerosos déspotas, mas, quando o momento vier, onde vai a família real saudita encontrar refúgio? Os dirigentes sauditas devem saber que os seus protectores ocidentais, antigos ou novos, os deitarão fora sem cerimónia como meias velhas e proclamarão que sempre foram favoráveis à democracia.
Se houvesse comparação a fazer com a história europeia, seria com 1848, quando os levantamentos revolucionários tomaram forma continental, poupando apenas a Grã-Bretanha e a Espanha.
Como os Europeus de 1848, os povos árabes lutam contra a dominação estrangeira: 82% dos egípcios têm uma “imagem negativa dos Estados Unidos”, recordava recentemente uma sondagem. Não julgaram útil pôr a questão a respeito dos europeus... Eles lutam contra a violação dos seus direitos democráticos e contra uma elite cega pela sua própria ilegitimidade. Eles querem mais justiça económica.
MDL: Quais são as características desta “segunda vaga do despertar árabe”?
TA: A situação é diferente da que conhecemos na primeira vaga do nacionalismo árabe. Essa foi essencialmente anti-imperialista e tinha como principal objectivo libertar a região dos vestígios do império britânico.
As actuais revoluções árabes, desencadeadas pela crise económica, mobilizaram a vontade, a criatividade e poder de enormes movimentos de massas. No entanto, nem todos os aspectos da vida humana não foram postos em questão. Os direitos sociais, políticos e religiosos são alvo de fortes polémicas na Tunísia, mas não noutros lugares, pelo menos para já. Até agora, nenhum novo partido se formou, o que leva a pensar que as futuras batalhas eleitorais oporão o liberalismo e o conservadorismo árabe, neste último caso sob a forma das Irmandades muçulmanas, versão local da democracia cristã europeia.
Estes últimos tomarão como modelos os seus correlegionários actualmente no poder na Turquia e na Indonésia e confortavelmente instalados no regaço dos Estados Unidos. Os dirigentes da Confraria propõem uma transição ultra-ordenada se Washington os apoiar, o que poderá acontecer. A diferença com a Turquia reside no facto que foram movimentos de massas que derrubaram ou ameaçam os déspotas do mundo árabe. O futuro poderá ainda reservar-nos surpresas se os regimes de transição ou de sucessão provocarem decepções na frente social.
MDL: Como vão reagir os Estados Unidos?
TA: A hegemonia dos Estados Unidos na região foi beliscada, mas não destruída. Ela retornará, mas não da mesma forma. Os regimes pós-despóticos vão ser mais independentes, mesmo que, no Egipto ou na Tunísia, o exército esteja sempre presente para garantir que nada vai longe de mais. O novo grande problema para a Euro-América tem por nome Bahrein. Se os dirigentes deste pequeno reino – que dependem de um exército dominado por oficiais e soldados reformados do exército paquistanês – forem destituídos, então será difícil impedir um levantamento nacional-democrático na Arábia Saudita. Pode Washington dar-se ao luxo de ficar de braços cruzados perante uma tal perspectiva? Ou vão os Estados Unidos implicar as suas forças armadas na manutenção no poder dos cleptocratas wahabitas?
MDL: Como analisa a situação na Líbia?
TA: As raízes dos levantamentos na Líbia não são diferentes dos que explicam os acontecimentos na Tunísia ou no Egipto.
Mouamar Kadhafi dirigiu o país com mão de ferro. Se por vezes recorreu a uma retórica anti-imperialista num passado longínquo, ele colaborou directamente, nas últimas décadas, com a Euro-América. O ideólogo de Tony Blair, Anthony Giddens, fez elogios ditirâmbicos ao Guia. O estilo de vida deste último e as suas políticas excêntricas tornaram-no inapto para modernizar o seu país. Apesar dos quarenta anos que passou no poder, os líbios têm um nível de educação muito pior que os tunisinos e o sistema de saúde do país é muito deficiente.
O balanço de Kadhafi é um Estado de partido único degenerado, as prisões e a utilização da tortura. E tudo isto para manter a sua família no poder. A sua decisão de recorrer ao exército e à aviação para reprimir o seu próprio povo levou à libertação de Benghazi e provocou uma dissidência na instituição militar. Os soldados que recusaram abrir fogo sobre o povo foram executados pelos esquadrões da morte do ditador, como pudemos ver na Al-Jazeera. Fazer querer que este regime é progressista é uma vergonha. Com um país dilacerado e um exército dividido, os dias de Kadhafi estão contados.
Entrevista publicada em Mémoires des luttes, traduzida por Carlos Santos para esquerda.net

segunda-feira, 14 de março de 2011

Tunísia

Bem-vindo à revolução: 4 dias na Tunísia




Internacional

Pedro Fuentes
Qui, 03 de Março de 2011 13:11
Tive a sorte de poder passar quatro dias em Túnis, a cidade onde se iniciou a revolução árabe, enviado pelo PSOL; sem dúvida uma experiência inesquecível, talvez a mais intensa e rica que vivi, maior que a queda da ditadura na Argentina ou o Cordobazo no mesmo país. Cheguei em domingo, e cedo, na manhã seguinte me encontrei com Jabel, um revolucionário que passou uma década no exílio e várias mais militando na clandestinidade. Ele é dirigente da Liga de Esquerda Operária, integrante do Movimento 14 de Janeiro. Quando apareceu no lobby do hotel, entre tímido e respeitoso eu o estendi a mão; ele a tomou com um gesto emotivo para dar-me um forte abraço e me dizer "camarada, seja bem-vindo a revolução".
Desde a minha chegada ao aeroporto já estava sentindo a revolução. Quando saí do setor de imigração me deparei com o setor de desembarque cheio de manifestantes. Não vieram saudar um time de futebol ou algum artista famoso, como seria comum em manifestações nos aeroportos. Estavam lá para receber vários defensores de direitos humanos, entre eles um jornalista que havia sido deportado em 2008 por seu programa de defesa de direitos humanos. Eram várias dezenas de famílias com cartazes e com crianças na primeira fileira, segurando bandeiras, habitantes de uma cidade do interior da Tunísia. Quando apareceram na porta do hall ele irrompeu de gritos e júbilo. Ali tive a primeira sensação de que era uma revolução que havia sacudido todos os cantos do país. Essa impressão continuou quando peguei um taxi para procurar um hotel. O taxista me perguntou por que eu havia vindo e como me apresentei como jornalista e socialista brasileiro, me disse que me levaria a um hotel bom e barato na Av. Burguiba, o centro das mobilizações, onde eu poderia trabalhar comodamente. Cobraria-me os três euros da viagem se o hotel estivesse em condições para que pudesse fazer meu trabalho, se não, continuaria comigo até que encontrasse um alojamento adequado sem cobrar-me um euro. Fez questão de ir por uma avenida para me mostrar como havia ficado a sede principal do partido de Ben Alí, um prédio monumental localizado no meio de um grande terreno, no estilo dos ministérios de Brasília, que teve uma parede e um grande portão derrubados pelos manifestantes. Assim revolução tunisiana começou a me receber antes de eu me encontrar com Jabel.
A simpatia com a América Latina
O diálogo com Jabel foi imediatamente fluido. Ele estava interessadíssimo em iniciar contato com revolucionários latino americanos. Não só por que admirava Che Guevara; ele havia acompanhado os processos de queda das ditaduras da Argentina e do Brasil nos anos 1980 e, mais recentemente, os processos bolivarianos. Nos dias seguintes entendi melhor seu interesse pela América Latina que é parte de um sentimento generalizado presente na revolução árabe. O povo simpatiza com Evo e Chávez pelas posições assumidas com relação à causa palestina, questão muito presente na revolução. Enquanto também observa o Brasil com simpatia, por que o sentimento de nação que surge com a revolução, de ruptura com o imperialismo europeu e norteamericano, -que os dominaram política e economicamente-, os leva também a observar com uma perspectiva econômica a atual ascensão do Brasil como exemplo do que poderia ser seu próprio desenvolvimento.
Jabel contou que a revolução tinha um caráter nacional e que todo o povo havia participado. Destacou, dentro disso, o papel dos trabalhadores. Explicou como os professores, que possuem um sindicato nacional, haviam cumprido um papel importante nas tarefas e na extensão da revolução. Ele havia estado no sábado, em uma cidade do interior na qual havia assistido a uma manifestação popular que reuniu mais de 10 mil pessoas. Nela, como em toda Túnisia, existem edifícios públicos ocupados por jovens e trabalhadores, especialmente as sedes confortáveis do partido de Ben Alí.
O povo na ofensiva
Em sua primeira fala foi pouco entusiasta com a frente de partidos do movimento 14 de Janeiro que sua Liga integra. Com razão ele falou que alguns grupos como os nasseristas e os socialistas pan-árabes são somente figuras públicas com um número pequeno de pessoas. Contudo, salienta que o Movimento 14 de Fevereiro é uma perspectiva real, um lugar no qual deve-se estar para ser parte do processo. No sábado anterior a minha chegada havia sido realizado um ato do movimento. O local havia sido previsto para duas mil pessoas, mas se aglomeraram mais de oito mil, mais uma constatação da situação revolucionária em que se vive.
Trocamos opiniões sobre o que a revolução havia conquistado e as perspectivas que a Assembleia Constituinte tinha. É muito fácil perceber que todo o povo se sente orgulhoso e participou da derrubada de Ben Alí e a vê como um grande triunfo. "Tiramos do presidente ladrão que havia roubado meio país", nos dizia orgulhosa uma tunisiana." Agora bem, se olha só pelas mudanças ocorridas para o regime, poderia se dizer que a mudança foi muito parcial, já que até agora o governo atual de Ganuchi mantém a polícia que foi a coluna vertebral do velho regime, o exercito e muitos personagens do mesmo. Deste ponto de vista, seria necessário mediar o que foi esse triunfo.
Mas, esse novo governo está na defensiva e as mudanças de conquistas democráticas são já irreversíveis. A situação revolucionária não se fechou. A relação de forças depois da derrubada de Ben Alí é totalmente favorável ao povo. Isso se vive nas ruas, que estão nas mãos do povo. A polícia e o exercito estão em alguns lugares escondidos defendendo ministérios, estão encurralados e protegidos por vales e arame farpado, enquanto o povo se manifesta todos os dias sem nenhum medo ao seu lado. Agora está nas ruas por reivindicações econômicas, há muitas greves operárias e mobilizações permanentes na Av. Burguiba da juventude desempregada. O povo se sente triunfante por ter derrubado Ben Alí e seus quarenta ladrões.
Ghanouchi se mantém por que prometeu eleições em seis meses e começou a dar legalidade aos partidos políticos opositores. 31 partidos já se apresentaram e só são necessárias algumas assinaturas e formalidades para que sejam reconhecidos. Entre eles está o Partido Comunista Operário da Tunísia que também participa do Movimento 14 de Fevereiro e tem origem na tradição albanesa. Diferente do Partido Comunista "oficial", que não enfrentava a ditadura e que participa, com ministros, desde o primeiro governo formado por Ben Alí, o PCOT tem uma longa trajetória de luta contra a ditadura. O dirigente Mohamed contou para mim com orgulho que durante 20 anos mantiveram sua imprensa clandestina regularmente e que tem grande interesse de manter relações com os socialistas brasileiros.
Tarefas concretas de solidariedade
Das conversas surgiu a proposta de uma grande reunião internacional de solidariedade com a revolução árabe convocada pelo Movimento 14 de Fevereiro; uma reunião ampla para apoiar o programa dessa organização que inclui, entre outros pontos, uma Assembleia Constituinte. Demonstramos nosso interesse em uma ação desse tipo que seguramente convocaria muitas correntes socialistas e democráticas antiimperialistas do mundo.
Na terça-feira participei de uma reunião com a direção da Liga de Esquerda Operária. Além de Jabel, participaram quatro militantes, todos dirigentes sindicais do sindicato de correios e telecomunicações, dos professores e dos trabalhadores da justiça.
Logo após as apresentações, conversamos sobre a conjuntura e as possibilidades que foram abertas com ela. Uma nova crise revolucionária que acabe com o governo de Ghanouchi e imponha a Assembléia Constituinte ou a realização de novas eleições daqui a seis meses. Evidentemente a Liga está empurrando com todas as forças pela primeira saída mas eles mesmos sabem que a segunda não pode ser descartada. Seja qual forem as perspectivas, a liga está decidida a formar um novo partido amplo com todos os novos ativistas e militantes que conheceram no curso da revolução. Um novo partido anticapitalista no estilo do PSOL. Um dos companheiros colocou as coisas se forma muito precisa no sentido de manter uma colaboração com o PSOL, para que ajude nessa tarefa. Sem pensar duas vezes oferecemos toda nossa colaboração para essa tarefa que apresentaram. A conclusão prática foi a organização de um giro de uma semana de um de seus dirigentes no Brasil para difundir a revolução árabe e para poder obter fundos para abrir sedes e levar adiante a construção de um novo partido.
O povo da Tunísia deu muito de si para fazer essa revolução árabe. Já deixou mais de duzentos mortos. O povo brasileiro tem que reconhecer e apoiar essa grande obra que sem dúvidas vai mudar o mundo em que vivemos.
23/02/2011
Pedro Fuentes é secretário de relações internacionais do PSol
(Boletim da Fund. Lauro Campós)

Veríssimo

CONTO DE VERÃO N° 2: BANDEIRA BRANCA
LUIS FERNANDO VERÍSSIMO

Ele: tirolês. Ela: odalisca; Eram de culturas muito diferentes, não podia dar certo. Mas tinham só quatro anos e se entenderam. No mundo dos quatro anos todos se entendem, de um jeito ou de outro. Em vez de dançarem, pularem e entrarem no cordão, resistiram a todos os apelos desesperados das mães e ficaram sentados no chão, fazendo um montinho de confete, serpentina e poeira, até serem arrastados para casa, sob ameaças de jamais serem levados a outro baile de Carnaval.
Encontraram-se de novo no baile infantil do clube, no ano seguinte. Ele com o mesmo tirolês, agora apertado nos fundilhos, ela de egípcia. Tentaram recomeçar o montinho, mas dessa vez as mães reagiram e os dois foram obrigados a dançar, pular e entrar no cordão, sob ameaça de levarem uns tapas. Passaram o tempo todo de mãos dadas.
Só no terceiro Carnaval se falaram.
- Como é teu nome?
- Janice. E o teu?
- Píndaro.
- O quê?!
- Píndaro.
- Que nome!
Ele de legionário romano, ela de índia americana.
* * *
Só no sétimo baile (pirata, chinesa) desvendaram o mistério de só se encontrarem no Carnaval e nunca se encontrarem no clube, no resto do ano. Ela morava no interior, vinha visitar uma tia no Carnaval, a tia é que era sócia.
- Ah.
Foi o ano em que ele preferiu ficar com a sua turma tentando encher a boca das meninas de confete, e ela ficou na mesa, brigando com a mãe, se recusando a brincar, o queixo enterrado na gola alta do vestido de imperadora. Mas quase no fim do baile, na hora do Bandeira Branca, ele veio e a puxou pelo braço, e os dois foram para o meio do salão, abraçados. E, quando se despediram, ela o beijou na face, disse “Até o Carnaval que vem” e saiu correndo.
No baile do ano em que fizeram 13 anos, pela primeira vez as fantasias dos dois combinaram. Toureiro e bailarina espanhola. Formavam um casal! Beijaram-se muito, quando as mães não estavam olhando. Até na boca. Na hora da despedida, ele pediu:
- Me dá alguma coisa.
- O quê?
- Qualquer coisa.
- O leque. O leque da bailarina.
Ela diria para a mãe que o tinha perdido no salão.
* * *
No ano seguinte, ela não apareceu no baile. Ele ficou o tempo todo à procura, um havaiano desconsolado. Não sabia nem como perguntar por ela. Não conhecia a tal tia. Passara um ano inteiro pensando nela, às vezes tirando o leque do seu esconderijo para cheirá-lo, antegozando o momento de encontrá-la outra vez no baile. E ela não apareceu. Marcelão, o mau elemento da sua turma, tinha levado gim para misturar com o guaraná. Ele bebeu demais. Teve que ser carregado para casa. Acordou na sua cama sem lençol, que estava sendo lavado. O que acontecera?
- Você vomitou a alma – disse a mãe.
Era exatamente como se sentia. Como alguém que vomitara a alma e nunca a teria de volta. Nunca. Nem o leque tinha mais o cheiro dela.
Mas, no ano seguinte, ele foi ao baile dos adultos no clube – e lá estava ela! Quinze anos. Uma moça. Peitos, tudo. Uma fantasia indefinida.
- Sei lá. Bávara tropical – disse ela, rindo.
Estava diferente. Não era só o corpo. Menos tímida, o riso mais alto. Contou que faltara no ano anterior porque a avó morrera, logo no Carnaval.
- E aquela bailarina espanhola?
– Nem me fala. E o toureiro?
– Aposentado.
A fantasia dele era de nada. Camisa florida, bermuda, finalmente um brasileiro. Ela estava com um grupo. Primos, amigos dos primos. Todos vagamente bávaros. Quando ela o apresentou ao grupo, alguém disse “Píndaro?!” e todos caíram na risada. Ele viu que ela estava rindo também. Deu uma desculpa e afastou-se. Foi procurar o Marcelão. O Marcelão anunciara que levaria várias garrafas presas nas pernas, escondidas sob as calças da fantasia de sultão. O Marcelão tinha o que ele precisava para encher o buraco deixado pela alma. Quinze anos, pensou ele, e já estou perdendo todas as ilusões da vida, começando pelo Carnaval. Não devo chegar aos 30, pelo menos não inteiro. Passou todo o baile encostado numa coluna adornada, bebendo o guaraná clandestino do Marcelão, vendo ela passar abraçada com uma sucessão de primos e amigos de primos, principalmente um halterofilista, certamente burro, talvez até criminoso, que reduzira sua fantasia a um par de calças curtas de couro. Pensou em dizer alguma coisa, mas só o que lhe ocorreu dizer foi “pelo menos o meu tirolês era autêntico” e desistiu. Mas, quando a banda começou a tocar Bandeira Branca e ele se dirigiu para a saída, tonto e amargurado, sentiu que alguém o pegava pela mão, virou-se e era ela. Era ela, meu Deus, puxando-o para o salão. Ela enlaçando-o com os dois braços para dançarem assim, ela dizendo “não vale, você cresceu mais do que eu” e encostando a cabeça no seu ombro. Ela encostando a cabeça no seu ombro.
* * *
Encontraram-se de novo 15 anos depois. Aliás, neste Carnaval. Por acaso, num aeroporto. Ela desembarcando, a caminho do interior, para visitar a mãe. Ele embarcando para encontrar os filhos no Rio. Ela disse “quase não reconheci você sem fantasias”. Ele custou a reconhecê-la. Ela estava gorda, nunca a reconheceria, muito menos de bailarina espanhola. A última coisa que ele lhe dissera fora “preciso te dizer uma coisa”, e ela dissera “no Carnaval que vem, no Carnaval que vem” e no Carnaval seguinte ela não aparecera, ela nunca mais aparecera. Explicou que o pai tinha sido transferido para outro estado, sabe como é, Banco do Brasil, e como ela não tinha o endereço dele, como não sabia nem o sobrenome dele e, mesmo, não teria onde tomar nota na fantasia de falsa bávara...
- O que você ia me dizer, no outro Carnaval? – perguntou ela.
– Esqueci – mentiu ele.
Trocaram informações. Os dois casaram, mas ele já se separou. Os filhos dele moram no Rio, com a mãe. Ela, o marido e a filha moram em Curitiba, o marido também é do Banco do Brasil. E a todas essas ele pensando: digo ou não digo que aquele foi o momento mais feliz da minha vida, Bandeira Branca, a cabeça dela no meu ombro, e que todo o resto da minha vida será apenas o resto da minha vida? E ela pensando: como é mesmo o nome dele? Péricles. Será Péricles? Ele: digo ou não digo que não cheguei mesmo inteiro aos 30, e que ainda tenho o leque? Ela: Petrarco. Pôncio. Ptolomeu.
Luis Fernando Veríssimo em Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, Editora Objetiva.
(Blog do César Cardoso)

domingo, 13 de março de 2011

Comunismo

SÁBADO, 5 DE MARÇO DE 2011
Morre Lucilia Rosa - A "comunista convicta"


Lucilia em seu aniversário de 98 anos, em agosto de 2010. Esta bandeira e a do PT ficaram sobre o caixão. Ela votou em petistas e em Lula desde 1988. O prefeito de Uberaba, Anderson Adauto (PMDB) decretou luto oficial por três dias.
Por Luiz Alberto Molinar (*), jornalista

A "comunista convicta" - como sempre fazia questão de reafirmar - Lucilia Soares Rosa, 98 anos, morreu de causa natural, anteontem (3/3), às 18h30. Depois de jantar, deu um de seus gritos costumeiros. Foi sua despedida. O hino “A Internacional”, o qual cantava com frequência, foi tocado na flauta e levou à emoção amigos e companheiros presentes ao velório. Ela será homenageada pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, no final deste mês, juntamente com nove mulheres, entre elas Clara Charf, ex-mulher do deputado baiano constituinte de 1946 e guerrilheiro, Carlos Marighela.

Lucilia Rosa, aos 35 anos, foi uma das 17 primeiras vereadoras eleitas em Minas. Ela era de Uberaba, mas morava em Campo Florido, a 70km, onde conquistou, em 1947, uma cadeira da Câmara Municipal. Foi escolhida pelo PSD, porém era militante do PCB (Partido Comunista do Brasil) desde os 18 anos, quando se filiou e foi batizada como "Lucrécia", seu "nome de guerra".

Ousou e enfrentou preconceitos ao ligar as trompas, em 1939, depois de ter dois filhos. Essa operação somente realizava-se na Europa. Foi presa duas vezes. Em 1949, ao cuspir no rosto do delegado, em Campo Florido. Ficou detida por 13 dias por participar de manifestação contra o envio de jovens brasileiros para a Guerra na Coreia. Foi em 1951, em Uberlândia. Morou, em São Paulo, durante 15 anos, de 1958 a 1972, quando trabalhou como doméstica, entre outras patroas, para a deputada federal Ivete Vargas (PTB), sobrinha do presidente Getúlio Vargas, que conseguiu-lhe emprego na Caixa Econômica e nos Correios. Rejeitou e manteve-se na profissão que possibilitou-lhe as formaturas, em odontologia, dos dois filhos.

Ela chegou aos 98 anos, em agosto de 2010, e tinha memória extraordinária. Deixou um acervo rico de documentos, entre eles, correspondências que manteve com Luiz Carlos Prestes, secretário-geral do PCB entre os anos de 1930 e 1980, e com Anita Leocádia, filha dele com Olga Benário, morta em campo de concentração nazista, na Alemanha. Lucilia mantinha contato permanente com ela há mais de 30 anos. Moraram juntas durante dois anos e meio, entre 70 e 72, clandestinamente, durante os mais sangrentos da ditadura militar, em São Paulo. Passava-se por tia de "Alice Nascimento", codinome de Anita. Residiu também, durante três meses, em 1962, com a família de Prestes, a quem ajudava a cuidar de seis dos sete filhos.

Sua vida vai ser registrada em livro: “Lucilia - Rosa Vermelha”. O projeto de pesquisa sobre sua história surgiu durante visita do então presidente da Câmara de vereadores de Uberaba, Lourival dos Santos (PC do B), a ela. Estava, em 2006, com a saúde debilitada após 25 dias em coma. Ao ser indagada sobre seu sonho, disse que gostaria de ter sua trajetória publicada em livro. A partir daí a diretora de Comunicação do Legislativo, Evacira de Coraspe, coordena o trabalho desenvolvido pela historiadora Luciana Maluf Vilela e pelo jornalista Luiz Alberto Molinar. A obra, que será lançada brevemente, vai revelar a personalidade, os caminhos de Lucilia, de libertários, anarquistas, socialistas. Enfim, a origem dos movimentos populares e de seus protagonistas em Uberaba e região, desde o final do século 19 até 2000.

“O Capital” e a “Bíblia”

Lucilia era filha de anarquista. Não foi batizada na igreja. Nunca pintou as unhas e nem se maquiou. Namorou muitos. Dois primos a pediram em casamento. Foi costureira de vestido de noiva. Casou por contrato com homem casado. Foi professora, faxineira, doméstica e cozinheira de 'mão cheia'. Ateia desde criancinha. Espiritualista aos 90 anos: "Há algo mais. Eu não acredito em Deus, mas alguns amigos acreditam e eu acredito neles".

“O Capital” - principal livro sobre as ideias socialistas - foi sua cartilha durante décadas, mas ultimamente gostava que lessem a “Bíblia” para ela. Dedicou toda sua vida à causa revolucionária. Lutou por uma sociedade justa para todos. Lucilia significava solidariedade, sinceridade. Disciplinadora, porém doce, amável, às vezes, até angelical. Gostava muito de conversar. De contar causos seus e dos outros. Todos sem censura.

Lucilia deixou dois filhos dentistas: Calixto Rosa Neto, que foi vereador pelo PSD em Campo Florido, de 1963 a 1964, e depois em Uberaba, de 1983 a 1988, pelo PMDB, e Moizés Soares Rosa, diretor a cooperativa Uniodonto, além 13 netos, oito bisnetos e uma trineta.

*Agradeço ao companheiro Luiz Alberto pelo envio do texto.
Postado por Ana Helena Tavares às 21:02
Marcadores: comunismo, Lucilia Rosa
Enviar por e-mail BlogThis! Compartilhar no Twitter Compartilhar no Facebook Compartilhar no Google Buzz
(QTML)

sábado, 12 de março de 2011

Crônicas

Chéri à Paris: Um abrigo e um centro cultural peculiar
By
admin
– 15/02/2011Posted in: Posts
6Share
0saves
Save


(Chéri à Paris, por Daniel Cariello)
Esse texto faz parte da série “Autour de Paris”, de crônicas dedicadas a cada um dos bairros da cidade. Para ler os outros, clique aqui
O grande point do 8º arrondissement de Paris não é o Arco do Triunfo, com suas toneladas diárias de turistas e as 12 avenidas que ali se encontram e formam, segundo os parisienses, o balão mais complicado do mundo. Um balão que tive a ocasião de enfrentar a bordo do carro de Márcio Jacuzzi, atacante banheirista do Paristeama, que fez manobras em um espaço do tamanho de um guardanapo e demonstrou no volante uma habilidade em desviar de automóveis, ônibus, motos e velhinhas comparável à facilidade com a qual se desvencilha de defensores adversários. Talvez Jacuzzi possua mesmo o dom da escapada, mas o mais provável é que tamanha valentia se explique pelo fato de ser eu, e não ele, que estava no banco do carona, servindo de escudo no caso de acidente.
Não é tampouco o gigantesco obelisco de mais de 20 metros, que fazia parte do templo de Ramsés II e hoje está situado na place de la Concorde. Um monumento doado pelo Egito, segundo a França, e larapiado pela França, segundo o Egito. Tomando como verdadeira a segunda hipótese, há duas versões para o furto, ocorrido nos anos 1830. A primeira diz que os supostos ladrões se aproveitaram do exato momento em que entrou areia do Saara no olho do guarda da fronteira para embarcar o objeto em um navio. A segunda, mais crível, relata que um francês muito parecido com o Gérard Dépardieu (mas 150 anos mais jovem) passou carregando o obelisco nas costas, dizendo que estava ensaiando para as filmagens de Astérix e Obélix, que ainda nem haviam sido inventados mas fatalmente fariam grande sucesso no século XX.
A igreja de la Madeleine e suas grandes colunas de inspiração grego-romana também não são a principal atração do bairro. Impressionante construção que inicialmente seria um templo em honra às tropas de Napoleão, a Madeleine quase virou uma estação de trem e, por fim, acabou transformando-se em igreja católica. Fortes babados dão conta que o McDonald’s estaria prestes a adquirir o local. Mas o Papa Bento XVI teria negado o boato, alegando que o Pizza Hut chegou na frente e ainda ofereceu melhor cardápio infantil.
O grande point do 8º arrondissement de Paris é – prepare-se para uma grande tiração de onda – a casa de Hosni Mubarak, o “[ex]presidente” do Egito (olha o Egito aí de novo!). Pra ser mais preciso, todo o prédio de Hosni Mubarak, com sua escadaria de mármore e seus apartamentos gigantes e ultra luxuosos. Não, ele nunca me convidou pra ir lá, mas mesmo assim já fui incontáveis vezes, graças ao coletivo Jeudi Noir e à associação Macaq, que tomaram conta do lugar e ali fundaram o mais descolado squat de Paris. Além de abrigar pessoas que não têm onde morar, é palco das melhores festas da cidade. Graças a uma brecha nas leis francesas, os squats são completamente legais. O processo de expulsão dos moradores que se neles instalam leva cerca de 5 anos.
Na casa de Mubarak sempre tem algo acontecendo. Lá eu já assisti a shows de bandas tocando na sala, visitei uma instalação com um grande barraco montado na entrada do apartamento, acompanhei filmagens para o cinema e participei de uma roda de samba.
Também já passei um reveillon, quando fazia –5ºC do lado de fora e uns 35ºC do lado de dentro, de tanta gente que tinha. Em outra ocasião, fiz com um amigo um caldo de feijão para mais de 100 pessoas. E até fui DJ em uma festa afro-franco-brasileira, que só terminou porque o som era alugado e o dono da aparelhagem deu um piti e não quis prolongar a noitada.
É claro que um lugar desses só poderia estar na place Rio de Janeiro, localização que por si só explica muita coisa. Muita gente já participou dos sensacionais eventos que ali acontecem. Só quem ainda não apareceu foi o próprio Hosni Mubarak. Se ele ler esse texto, quero que saiba que está convidado a ir à próxima festa. Basta deixar uma colaboração na entrada. Afinal, é preciso manter a associação Macaq funcionando.
Daniel Cariello, editor da revista Brazuca, é colaborador regular daBiblioteca Diplô /Outras Palavras. Escreve a coluna Chéri à Paris, uma crônica semanal que vê a cidade com olhar brasileiro. Os textos publicados entre março de 2008 e março de 2009 podem ser acessados aqui.
(Le Monde Diplomatique)

Arte

Quando não há despedida
publicado em artes e ideias por Isabella Kantek em 2 mar 2011
Graciliana tinha uma tristeza que tomava conta das ideias grandes e pequenas. E que circundava o quintal e a bicharada igual dia abafado e denso. Ela não falava da tristeza pros filhos de modo que cresceram achando que ela tinha aquele ar seco e taciturno por causa da pouca comida e das dificuldades do lugarejo.

Então assim se diz que foram felizes. Os filhos. Uma alegriazinha contada que repartiam para dar um pouco todo dia, deixando sobras para aniversários e quermesses.
Quase não se via que no arregalo maior da noite Graciliana chorava seco. De não cair nem uma lágrima. Vinha segurando o coração na mão desde que o marido sumira nas terras do João Alabastro. Há coisa de alguns anos. Elas, as mãos, tinham o aspecto de fruta seca, vestígio de ameixa ou uva-passa, que o patrão dele enviara de presente no dia do Bom Jesus, em uma época de fartura e fazer filhos em cangote de cavalo.
Tiveram sete. Dois se foram antes do primeiro ano e eles enterraram nos fundos do cemitério para não pagar o lote que custava dinheiro de um ano de trabalho. Outros sobreviveram coisa de sete estrelas e depois, já meninotes, morreram de pneumonia, tuberculose e raiva. Cada um com a sua sina. Sobrou uma menina, a Ingracia; e um menino, o Graciliano. Quando pequeno, menor que uma roseira, adorava segurar a mão da mãe e apertar a pele cheia de veias e dobras. Andava atrás dela feito bezerro que não quer desmamar. Numa insistência custosa. Graciliana não ligava e tocava os seus afazeres devota, sem emitir um resmungo. Sem entoar uma reza.
A força da paisagem selvagem exercia um peso sobre a vida da família. Eram os bichos ou eles. O calor ou o de comer. Vida e morte em constante entrave. Quando Graciliano adoeceu, o bando todo ficou à guisa do pior, beirando a cama dele em turnos de três em três horas, marcando o tempo como as estações marcam o ano. A tosse havia sugado todo o pulmãozinho dele e o lábio roxo aflito causava aperto.

O pai fez das tripas coração. O seu repertório de simpatias dava para curar o povoado e mais quem fosse. A primeira que tentou foi a do gato. Tinha que cortar as unhas da mão direita com unhas do pé esquerdo do menino e colocá-las dentro da boca de um peixe, costurar e dar para um gato comer. E vigiar o gato era crucial. Vigiar como quem vigia uma presa. Mas não encontraram gato nenhum, batendo desânimo geral.
Nos idos da semana alguém se lembrou do benzedeiro. E tinha o cabrito amarrado no portão. Parecia coisa armada. Graciliana recolheu aquele monte de bola seca que o bicho dispensava sem esforço algum, já quase sem cheiro, e levou pro homem do povoado vizinho. O Seu Mequelelem era conhecido pelos seus patuás. Costurava como quem reza com fervor e a relíquia que criava tinha poderes. Assim dizia e não se contestava. Ele vivia numa cabana escura com um fio de luz pendurado no meio. Era quase aquilo, imagina, um fio de luz do céu no meio da casa. Comia aquilo que traziam, forma de pagamento, e não passava miséria. Tinha ares grandes, modo que Graciliana o olhou de soslaio, com respeito. Ela esperou do lado de fora. O sol rachava a terra e um pouco d'água, resto de chuva, evaporava penosa.
O menino passou as noites seguintes com o patuá apertado na mão, segurando com força como quem tem a vida por quase nada. A tosse ia e vinha, ia e vinha. Às vezes tentavam lhe tirar a relíquia da mão, temiam que o suor pudesse afetar o efeito, mas quem disse. Esperança tem quase tronco na gente. E a Ingracia, era ela quem passava as tardes com ele quando a mãe não podia, numa saudade tamanha da companhia do irmão lá fora. Trazia pedrinha e pena de pássaro, inclusive o estilingue bem do lado dele na cama para ele não se entregar e se esquecer da alegriazinha que eles tinham de cuidar.

Foi na sexta-feira Santa com o menino quase bom. O pai mais calado do que nunca teceu a última simpatia do ovo e da galinha. Era como voltar as origens. Graciliana sentiu o ar úmido e imaginou que o sal estava a formar pelotas. Nuvens cinza tomavam o céu no meio-dia. Chamou o marido que de longe fez sinal para ela entrar. Em seguida apareceu com o ovo na mão. Com cuidado fez um furo de prego no ovo e ali depositou as unhas do Graciliano. Pendurou o ovo num alpendre e entrou. Ingracia queria saber. Ficou olhando o ovo pendurado balançando com o vento. Passou horas assim. Arregalava o olho quando achava que ia cair. Bocejava quando nada acontecia. Agora o ovo e o seu conteúdo precisava secar. E secando, secava também a tosse. Pondo fim naquela angústia.
O pai foi embora semanas depois. O menino já estava bom. Ingracia tinha voltado à rotina de futucar terra e ninho de passarinho. Ninguém não viu a hora, ficaram sem a partida. Graciliana acordou com metade da cama fria. A bota não estava na porta nem o chapéu. Imaginou coisa de saída rápida. Andança pela redondeza, mas no fundo sabia pois que sentia um aperto seguido de um vazio. Quando as crianças perguntavam do pai ela dizia que tinha ido fazer serviço nas terras do João Alabastro. Na cabeça das crianças virou serviço grande e importante. E faziam planos pra quando ele voltasse, até que devagar já não o mencionavam mais. Graciliana entrou num estado de saudade aguda de um tempo que eram só os dois. Às vezes sonhava com ele e o choro que se seguia era primitivo.

Fontes das imagens: 1.
Share6

Sobre a autora: Isabella Kantek nasceu em Lorena, mas atualmente vive em Astoria. Faz barquinhos de papel e deposita santinhos na lagoa onde a água flutua sobre as folhas, sujeiras diversas e constelações. Saiba como fazer parte do obvious.


Leia mais: http://obviousmag.org/archives/2011/03/quando_nao_ha_despedida.html?utm_source=feedburner&utm_medium=email&utm_campaign=Feed%3A+OBVIOUS+%28o+b+v+i+o+u+s%29&utm_content=Yahoo%21+Mail#ixzz1FflihZpC
(Obvious)

sexta-feira, 11 de março de 2011

Praça Tahrir

Os dias da Praça Tahrir
By
admin
– 03/03/2011Posted in: Capa
4Share
0saves
Save


Por Wendell Steavenson, na New Yorker (28.02.2011) | Tradução: Bruno Cava
Em árabe, tahrir quer dizer “libertação”. A Praça Tahrir foi batizada depois do golpe de 1952, que depôs o Rei Farouk e reconfigurou o poder pelo mundo árabe. A praça é um vasto espaço aberto, adjacente a empoeiradas e tumultuadas ruas e ao apertado emaranhado de travessas e becos do centro do Cairo outrora um bairro chique, mas decadente desde que a maior parte da elite se mudou para os subúrbios.
Ao redor da Praça Tahrir, erguem-se várias construções imponentes, que quase parecem formar um diagrama da vida egípcia. No canto norte, está o Museu Egípcio, abrigando um tesouro faraônico de milênios. A oeste, fica o moderno complexo do escritório central do Partido Nacional Democrático (PND). Ao sul dele, a sede da Liga Árabe que, noutros tempos, alimentou as esperanças do movimento pan-árabe, mas agora é considerada um lugar moribundo, de muita falação e pouca ação. No lado leste da Praça, situa-se o antigo campus elegante da Universidade Americana no Cairo, em parte construída a partir de um palácio otomano do paxá, no século 19. No canto mais ao sul, se localiza a mesquita de Omar Makram, onde se realizam os funerais de estado, e o Mogamma, um robusto edifício construído no começo dos anos 1950, como presente da União Soviética. O Mogamma aloja uma extensa burocracia — escritórios da receita, da imigração, do departamento de trânsito, bem como vários cartórios —, cuja lógica labiríntica é notória junto à população egípcia. A um quarteirão da Praça, numa rua lateral, está a Embaixada Americana, uma das maiores missões diplomáticas dos EUA, e lembrete permanente da ajuda de US$ 2 bilhões, dos quais US$ 1,3 bi em patrocínio militar, que fluem a cada ano ao país. Três grandes hotéis — o Ramses Hilton, o Nilo Hilton e o Semiramis Intercontinental — cercam a Praça, alojando alguns dos 12 milhões de turistas que contribuem com parcela significativa da receita da economia do Egito.
O camareiro que me mostrou o quarto no Semíramis brincou: “Trabalho aqui há 20 anos e é a primeira vez que alguém me pede um quarto com vista para a cidade. Sempre as pessoas chegam desesperadas por uma vista para o Nilo.” Por muitos dias, a praça esteve lotada de multidões exigindo o fim do regime do presidente Hosni Mubarak. Do hotel, era possível ver a fumaça subindo das paredes enegrecidas do quartel-general do PND, que os manifestantes incendiaram em 28 de janeiro, a Sexta da Ira. O edifício fumegou por dois dias.
Favelados e patricinhas, militantes e “despolitizados”
Na praça, havia trabalhadores vindos das favelas, com sapatos quebrados; professores universitários; ex-militares; patricinhas da classe-média alta com seus longos cabelos negros e óculos escuros Fendi; padres coptas e imãs; membros do PND. Todos queriam ser ouvidos. “Com licença, jornalista estrangeiro?”, diziam, polidamente parando-me. “Tenho algo a declarar!” Conversei com um militante que trabalhava na Vodafone. “Existe uma consciência coletiva”, disse. “Mesmo depois que os celulares se foram” — o regime desligou toda a telefonia celular e o serviço de internet por vários dias — “havia uma espécie de telepatia nacional dizendo para onde ir”. Dia após dia, eles engrossaram o ímpeto da revolução, inspirados por seu próprio atrevimento, mas com cautela diante dos tanques, estacionados de modo permanente, ao longo do perímetro da praça.

Em 30 de janeiro, assisti a uma coluna de tanques avançar em direção ao centro da praça. Manifestantes bloqueavam o caminho deles, enquanto dois caças F-16 zumbiram, barulhentos e intimidadores, sobre as cabeças de todos. “O povo e o exército são um só!”, as massas entoavam, escalando os tanques, pichando “Fora Mubarak!” nas laterais, e dialogando diretamente com os soldados.
“Somos seus irmãos”, as pessoas diziam.
“Não vamos ferir vocês”, um soldado retrucou.
“Vocês vão atirar na gente?”, alguém perguntou. “Vocês vão atirar se receberem a ordem, não é?”
“Não”, um soldado replicou. “Eu nunca faria isso. Nem mesmo se for dada a ordem.”
No impasse entre regime e manifestantes, o exército se tornou um fator crucial. O exército egípcio instila enorme respeito entre os civis. As forças armadas têm sido há tempos a instituição mais forte do país. Ela controla não apenas a defesa e a segurança, mas também muitas atividades econômicas, incluindo fábricas, projetos de habitação e construção de estradas. Com o passar dos dias, as multidões em Tahrir cresciam enquanto Mubarak procrastinava, e eu tentei compreender o papel do exército.
Já deram o recado agora vão embora, exige oficial do exército
Havia algo de surreal na cena dos tanques estacionados na praça. Poucos exércitos gostam de ser colocados na rua para restaurar a ordem pública, e os tanques não estavam acompanhados por qualquer infantaria. Falei com George Ishak, o cabeça do movimento de oposição Kefaya (“Basta!”), que disse: “Acredito que as forças armadas vão proteger-nos.” Ele também se perguntava por que o exército não havia contido os manifestantes com mais eficácia. “Não sei por que”, disse, “mas eles estão um pouco leves — delicados.” Ele esfregou um dedo no polegar, como se testasse um pedaço de tecido: “Eles encaram as pessoas de um modo muito gentil”. E também disse: “Os militares são uma caixa preta, ninguém sabe o que acontece dentro da instituição.”
No dia seguinte, escutei por acaso uma conversa entre elementos da multidão e um tenente-coronel postado ao lado de um tanque, que bloqueava a entrada do Ministério do Interior.
“Quanto tempo você vai ficar aí?”, perguntaram.
“Até vocês, rapazes, se acalmarem”, respondeu. Ele parecia um pouco frustrado com a missão que cumpria. “Pessoal, vocês estão indo longe um pouco demais. Vocês estiveram quietos por 30 anos e para eles isso significa que estavam contentes. Agora vocês se expressaram. Vocês já deram o recado, mas desse jeito vão rasgar o país em pedaços.”
O militar estava preocupado. Talvez tenha enxergado, como o regime alertava às pessoas através da TV estatal, uma conspiração islamista ou estrangeira. Alguém na multidão ofereceu a ele uma garrafa d´água.
“Gostaria de saber de onde vem toda essa coisa”, ele disse. “De onde vem o dinheiro? A quem interessa tudo isso?”. Ele estendeu o braço em direção à imensa ocupação na praça.
A carga de camelos e cavalos pró-Mubarak
A fase mais violenta da revolução veio em 2 de fevereiro, quando os manifestantes mantiveram a posição, numa vitória decisiva contra grupos simpatizantes do regime. De tarde, uma coluna pró-Mubarak, com vários milhares de pessoas, forçou caminho para dentro da praça. A certa altura, houve uma carga de cavalos e camelos. Ao longo da tarde, os manifestantes empurraram a multidão mubarakista de volta para o perímetro, investindo diretamente contra ela com pedras. No anoitecer, vi soldados dispostos numa das entradas da praça, perto da Ponte Qasr al Nil, meterem-se dentro de seus tanques, que estavam estacionados entre os manifestantes e a multidão pró-Mubarak, e então trancarem as escotilhas. Os tanques formavam uma linha fronteiriça, ao longo dela os mubarakistas provocavam os manifestantes. De repente, pedras começaram a voar nos dois sentidos. Há nove vias e numerosas travessas que levam à Praça Tahrir, e praticamente todos os pontos de acesso se encontravam sob ataque: parecia um território impossível de ser defendido. Ainda assim, nas horas seguintes, assisti aos manifestantes manterem a posição que eles tanto lutaram para ocupar cinco dias antes.
Os manifestantes arrancaram pedras dos calçamentos da praça e pedaços de metal das cercas de uma obra próxima, para servir como escudos. Às vezes, a batalha ficava inteiramente turvada pela poeira, e se podia ouvir somente o som das pedras quicando nos tanques estacionados. Massas flamejantes de lixo foram arrastadas pelas ruas, deixando rastros de fogo, que os manifestantes depois tentavam apagar. Perto das oito da noite, os manifestantes dispararam uma saraivada de pedras, como fogo de cobertura, no instante que uma vanguarda partiu pra cima e perseguiu os mubarakistas, pela curva de acesso e na rua diretamente abaixo da minha sacada. O grupo pró-Mubarak dispersou, alguns buscando proteção na entrada de uma construção abandonada, reaparecendo apenas para atirar projéteis em chamas sobre os manifestantes que avançavam. Nas horas seguintes, o grupo mubarakista recuou para lugares escuros, fora do perímetro. Rapidamente, os manifestantes erigiram uma barricada com placas de sinalização e pedaços de metal das cercas. Sempre que um grupo pró-Mubarak reaparecia em algum ponto de acesso, os manifestantes batucavam com os metais, e assim convocavam reforços do coração da praça.
Fim da batalha de Tahrir: a praça é nossa
No amanhecer no dia seguinte, a Praça Tahrir estava dominada. Era como se as pessoas não acreditassem no que havia acontecido. Caminhei através dos tanques, suas pinturas riscadas onde as pedras haviam batido. Um militar, cansado e com barba por fazer, despontava da escotilha lendo o jornal da manhã e falando no celular. Perguntei porque os soldados não haviam intervido na noite anterior.
“O que poderíamos fazer?”, ele disse. “Afinal de contas, não iríamos atirar nas pessoas. Eles estavam atirando coquetéis Molotov uns nos outros. Um por acaso pousou na gente.”
Ele apontou para a lataria chamuscada.
“E o que vai acontecer hoje”, perguntei.
“Espero que seja mais pacífico, mais quieto”, ele disse, o que todo soldado do mundo espera a cada manhã. “É nosso país e devemos temer por ele.”
Ao redor de nós, homens estavam preenchendo sacos com entulho tirado do pavimento e prendendo-os às barricadas, para a hipótese de novos ataques. Outros dormiam, enrolados em camas e cobertas floridas. Muitos tinham a cabeça enfaixada e os narizes tamponados, ou estavam mancando ou tinham braços nas tipóias. As pessoas tinham amarrado vários pedaços de papelão na cabeça com elástico, e também usavam caixas de isopor ou baldes de plástico como capacetes. No extremo norte da praça, perto do Museu Egípcio, a batalha durou a noite inteira e ainda havia embates rolando. Eu pude ver um arco de pedras subindo depois da barricada, feita de destroços de metal e carros virados e carbonizados.
Um grupo de manifestantes passou, gesticulando e gritando; um funcionário das forças policiais havia sido identificado entre os manifestantes. “Não devolvam ele! Devemos ficar com ele!”, um manifestante berrava. “Não!”, alguém gritou de volta. “Vamos amarrá-lo na barricada!”. Mas o homem foi levado embora, e reparei como manifestantes eram cuidadosos em protegê-lo do espancamento por elementos mais raivosos.
Comecei a conversar com um farmacêutico que tinha ficado junto do grupo de médicos da linha de frente, apoiando os feridos. Seu nome era Sherif Omar e tinha 30 anos, com olhos suaves e um cabelo ondulado negro. Seu casaco branco estava empapado de sangue. “Estou parecendo um açougueiro!”, ele disse, e riu. De noite, ele participou de uma unidade móvel de campo, indo e voltando no compasso da frente de combate, pelo lado dos manifestantes. Perguntei sobre o número de feridos. “Não existem estatísticas”, disse. “Centenas eu posso garantir. Lá pelas quatro ou quatro e meia, nossos rapazes subiram na ponte e expulsaram os invasores”. Ele apontou para a passagem de nível atrás do museu, que era a última fortaleza mantida pelo grupo mubarakista. Ele tratou queimaduras de coquetéis Molotov e segurou em seus braços duas pessoas que morreram vitimadas por munição real.
Como superar o paradoxo militar
Enquanto conversávamos, um pelotão marchou ao nosso lado. A multidão voltava a entoar: “O povo e o exército são um só!”. O slogan se tornou um bordão crucial da revolução. Cantando, os manifestantes pareciam tentar vencer um paradoxo ameaçador: eles exigiam a queda de um regime que, desde 1952, tem sido dominado pela elite militar.
Assim que a tropa passou, Sherif me mostrou um tubo queimado de gás lacrimogêneo. Via isso como evidência que muitos dos mubarakistas estavam ligados aos serviços policiais e que haviam sido recrutados pelo regime. Ele os chamava de mercenários, e disse que muitos dos pacientes do hospital de campanha portavam identidades de policial e notas de cem libras egípcias nos bolsos.
Nesse momento, o General Hassan al-Roweny, comandante do exército no Cairo, atravessou as barricadas cercado por soldados e pela polícia do exército, com suas boinas vermelhas. Veio em nossa direção e começou a repreender Sherif, agitando bruscamente as mãos. Disse que os manifestantes tinham que sair da praça, que todo aquele caos era trabalho de forças estrangeiras que conspiraavam para desestabilizar o Egito. Sherif ironizou essa idéia, e então Rowendy foi em direção a um manifestante ferido, arrancou uma das faixas de sua cabeça, e reclamou: “Está vendo?, é só um arranhão”. Vi uma poça de sangue seco na altura da franja do rapaz. Rowendy foi até outro homem, que tinha um chumaço de algodão preso a uma ferida no crânio, e deu outro puxão violento, mas desta vez o curativo não saía de jeito nenhum, porque estava grudado na carna ensangüentada da cabeça. Aí uma coisa estranha aconteceu. Roweny segurou o homem e deu um abraço apertado e beijou-o à força bem no topo da cabeça, como se o ferido fosse um filho relapso, que ele simultaneamente amava e repreendia. Mais tarde, Sherif comentou: “Por que ele estava arrancando os curativos das pessoas? Agora ele vai ter que colocá-los de novo!”
Encontrei com Sherif freqüentemente na praça. Ele me disse que era de Alexandria, que há sete ou oito anos, quando ainda estava na faculdade, decidiu ignorar a política. Contou que, um dia, pegara um exemplar da Time e lera as manchetes sobre a Guerra do Iraque – Presidente Bush, Israel e Palestina, terrorismo. Então se apercebeu que a revista era de 1991. “Aí pensei comigo, são as mesmas notícias, tem sido a mesma política. Isso não vai mudar.” Agora, sentado ao lado de uma barraca na praça, cercado por centenas de milhares de pessoas exigindo o fim do regime de Mubarak, ele sorriu desdenhando de sua antiga apatia. “Agora eu tenho opinião. Agora eu estou falando de política.”
Para Sherif, a grande virada foi a Sexta da Ira [28 de janeiro de 2011], quando pessoas marchando à praça se depararam com a tropa de choque da polícia, munida de cassetetes e munição de borracha e gás lacrimogêneo. Aquela foi a primeira manifestação anti-regime que ele já havia participado. “Na realidade, eu não estava muito a favor da saída de Mubarak, mas mais pela melhoria do sistema. Eu pensava, por que essas pessoas estão tão radicais?” Mas a brutalidade da polícia naquele dia convenceu-o que o regime tinha que acabar. “Todo mundo estava tentando respirar, e nessa hora eles viraram os canhões de água e nos bateram feio com os cassetetes. Eles batiam na gente pra valer sem dar nenhuma chance de retirada.” Sherif sofre de asma, e estava asfixiando. “Eu fiquei no meio do gás lacrimogêneo por três ou quatro horas inteiras. Em certo momento, eu não conseguia respirar ou ver pra onde ia. Tinha um cara na minha frente na mesma condição, e ele me disse: ‘acho que morro hoje’. Eu acho que todo mundo se sentia assim.”
Nos dias depois do combate na praça, o exército despachou mais soldados e guarneceu várias entradas ao local com concertina. A impressão era que Cairo tinha sido dividida em duas realidades: dentro e fora da praça. Fora, a ameaça dos espancamentos pelos bandos mubarakistas era grande. Notícias e boatos circulavam sobre a polícia prendendo diversos advogados de direitos humanos,sobre militantes e jornalistas sendo detidos e seu equipamento confiscado pela polícia e pelo exército. Muitas pessoas, inclusive meu tradutor, Mohamed El Dashnan, um jornalista e tuiteiro dedicado, foram roubados por comandos de vigilantes. Grupos se organizavam para proteger as ruas à noite, pois a polícia simplesmente desapareceu depois da Sexta da Ira. Muitas pessoas agora parecem acatar a tese do governo que a crise era culpa de forças estrangeiras e de pessoas com notebooks.
República de Tahrir
Dentro, era a República de Tahrir, onde manifestantes instauraram uma espécie de utopia revolucionária. Assim que você atravessava as barricadas pela Ponte Qasr al Nil, um funil de manifestantes dava as boas vindas e aplaudia e cantava: “Bem-vindo! Bem-vindo aos livres, que se uniram aos revolucionários!” A cena era indescritivelmente comovente. Não havia hierarquia formal na praça, mas mesmo assim as tarefas eram divididas: alguns patrulhavam as barricadas, outros acumulavam os entulhos em pilhas, e outros revistavam as pessoas atrás de armas de fogo. As pessoas traziam alimentos e água e remédios à praça e distribuiam-nos de graça. “Nós estamos nos preparando!”, me disse um militante que havia batizado a sua barraca de Motel da Liberdade, incrédulo do número de pessoas fluindo à praça. “Qual foi a última vez que você viu os egípcios se preparando assim?”. Perguntei a uma jovem voluntária com um lenço florido na cabeça se ela estava com alguma organização em particular. “Não estou com ninguém”, me respondeu com simplicidade, “Eu estou com o povo.”
“Está ficando mais complicado a cada momento”, me alertou Sherif num certo momento. “As demandas que colocávamos há uma semana agora não são mais válidas. O céu da democracia está ficando mais alto.” Mais o regime resistia às exigências dos manifestantes, mais ousadas elas se tornavam. Depois de três dias de protesto, Mubarak discursou à nação, nomeando Omar Suleiman, então chefe da agência nacional de inteligência, como vice-presidente. Num segundo pronunciamento, Mubarak prometeu que não tentaria a reeleição em setembro, nas próximas eleições presidenciais. Várias pessoas me disseram que achavam essas concessões adequadas; elas tinham aguardado 30 anos, podiam muito bem esperar mais seis meses. Mas a violência de 2 de fevereiro, que todos consideravam ter sido comandada por Mubarak, destruiu a confiança das pessoas nas promessas presidenciais.
Nabil Fahmy, o embaixador egípcio em Washington desde 2008, mal podia conter sua raiva quando se falava em uma turba achacando os manifestantes. Perguntei a ele se era certo que aquela violência tinha sido planejada pelo regime. Ele engasgou: talvez houvessem simpatizantes genuínos de Mubarak entre eles, mas então se sentiu desencorajado a manter o raciocínio, diante da informação que não houve qualquer intervenção oficial para conter a violência. Como muitos egípcios, ele parecia estar se esforçando pra apreender o sentido de eventos tão desenfreados, que abalavam como a elite via o país, e preocupavam-na ante a erosão de suas crenças tradicionais. “Isso tudo me fez perguntar o que a nossa geração e a geração mais antiga fizeram”, ele disse. Também falou sobre quando se deu conta da força e da determinação dos jovens militantes. No começo dos protestos, quando o regime impôs o toque de recolher, o seu filho e um grupo de amigos estavam na praça o dia todo e voltaram a seu apartamento, só a dois quarteirões de distância, para descansar. Nabil os convidou a dormir ali, mas estavam todos decididos a retornar à praça. Então lembrou-os que havia um toque de recolher em vigor. “Eles disseram: ‘e quem vai aplicar esse toque de recolher’? e falaram num tom tão autoconfiante e direto, que isso me atingiu em cheio, e me convenceu que agora esses meninos finalmente acreditavam ser donos do país.
Na praça, uma agência de viagens abandonada foi tomada por membros do partido de oposição. Ali, vários políticos profissionais discursaram à multidão — inclusive Ayman Noor, que havia se candidatado como adversário de Mubarak nas eleições de 2005 e encarcerado, logo depois, por três anos. Mas seus discursos eram anódinos e causaram pouco impacto. A maioria das pessoas com quem falei na praça disse não apoiar partido algum.
As pretensões dos islamistas
Na prece de sexta, fileiras de homens colocaram no chão esteiras improvisadas para orar: jornais, toalhas, a bandeira egípcia, cartazes. Limparam as mãos no pó das pedras destruídas dos pavimentos, porque o Alcorão diz que se não houver água e você estiver no deserto, pode utilizar areia para limpar as mãos antes da oração. Quando tocavam o solo com seus cenhos, um pequeno disco de poeira se formava, grudando onde havia suor. Muitos egípcios são devotos, mas as pessoas em Tahrir especulavam que o apoio eleitoral à Fraternidade Muçulmana, o partido islamista oficialmente banido mas semi-tolerado, estaria somente entre 10 e 20%.
A Fraternidade Muçulmana tinha uma forte, porém não majoritária, presença na praça. “Nossa estratégia era participar do evento, mas não o liderar”, disse o Dr. Essam E-Erian, membro do Conselho Guia da Fraternidade, quando encontrei com ele na deteriorada sede da entidade, no terceiro piso de um prédio ordinário de apartamentos. Ele explicou que a Fraternidade assumiu essa posição passiva para que o governo não possa usar o envolvimento deles como desculpa para a repressão. Apesar disso, ele e 33 outros Irmãos Muçulmanos foram presos por dois dias, no começo dos protestos. El-Erian foi preso várias vezes na sua carreira, e numa delas cumpriu oito anos seguidos de cadeia. Ele gargalhou e disse que, desta vez, tinha sido sua detenção mais curta. Na noite de domingo, 30 de janeiro, assim que o Ministério do Interior parou de funcionar, os portões da cadeia foram abertos e ele saiu caminhando, livre.
Por décadas, a política no Oriente Médio tem sido retratada como uma escolha dual entre ditadores e islamistas, e El-Erian estava naturalmente se esforçando ao máximo para desmontar essa interpretação. Ele disse que a Fraternidade não lançaria candidato nas próximas eleições presidenciais ou disputaria qualquer participação numa eleição parlamentar, e falou em termos vagos sobre a esperança de o Egito mover-se em direção a um estilo diferente de democracia — “outro modelo tolerante e moderado”. Os Irmãos Muçulmanos que eu conheci na praça passavam uma mensagem similar, mas é difícil saber o que esse partido — banido por mais de meio século no Egito e demonizado fora dele — poderia fazer se chegar ao poder. A Fraternidade Muçulmana “tem uma visão de longo prazo para a sociedade, e ela tem sido muito consistente”, um diplomata ocidental me falou. “A política é somente uma parte dela.”
Enquanto o impasse continuava, os manifestantes se entricheiravam e se tornavam mais audaciosos. As pessoas montaram uma mini-cidade de barracas e tendas, a partir de faixas de plástico e entulho. Vendedores instalaram fogareiros para fazer chá e penduraram cabos elétricos para recarregar dúzias de celulares a cada vez. As pessoas rearranjaram as pedras empilhadas para montar slogans anti-Mubarak. Novos cobertores foram distribuídos. Havia uma abundância de cartazes feitos à mão. Os egípcios têm um senso fino de sátira. Um homem levantou uma placa que dizia: “Vá embora logo, meus braços estão cansados”. Porém, depois de décadas de repressão política, alguns manifestantes pareciam não ter idéia sobre que tipo de mensagem poderia ser adequada num cartaz. Junto de cartazes mais curtos e sagazes, havia placas com longos e intermináveis manifestos de descontentamento e reclamação.
Revolução: medo e apatia se transformam em revolta e alegria
“Existe a barreira psicológica do medo numa revolução,” me disse o romancista Alaa Al Aswany, complementando que, uma vez rompida essa barreira, o processo se torna “irreversível”. Aswany, como muitos na praça, sofreu com o estado policial. Apesar de sua reputação literária internacional, ele nunca foi publicado pelas editoras oficiais ou recebeu qualquer espaço na TV estatal egípcia, e o dono de um café, onde ele se reunia com jovens escritores semanalmente, foi ameaçado pela polícia. Aswany também exerce a profissão de dentista, e falou comigo em seu consultório, perto da Praça Tahrir. “O regime não consegue entender como é que pessoas amedrontadas por 30 anos, de repente, não têm mais nenhum medo”, ele disse. Contou-me que os manifestantes passaram a ironizar com um dos títulos de seus livros: “Porque os egípcios não se revoltam”, dizendo que ele deveria agora escrever uma seqüência: “Porque os egípcios se revoltaram”. Ele discursou às massas várias vezes. “Como escritor, eu escrevi muitas, muitas vezes a palavra ‘povo’, mas foi só agora, pela primeira vez na vida, que eu senti o significado da palavra ‘povo’”. Ele me disse que está muito impressionado: “Eles são muito organizados, muito corajosos, muito civilizados, muito cuidadosos uns com os outros. Nós comemos na manifestação todos os dias e ninguém podia dizer exatamente de onde tinha vindo a comida. É como uma grande família. Eu joguei um maço de cigarros no chão e uma senhora de 70 anos recolheu-o e disse, ‘Dr. Alaa, por favor jogue o lixo no lixo, porque estamos construindo um novo país e tem que ser um país limpo’”.
Manual de sobrevivência em protestos urbanos
Encontrei um militante amigo de Sherif chamado Ramy Shaath. Meio palestino e meio egípcio, Shaath tinha estudado estratégia militar no King´s College, em Londres, e passou um tempo no Líbano e na Palestina durante a segunda intifada. Seu emprego formal era como consultor administrativo, mas ele acumulou experiência a respeito de barricadas e gás lacrimogêneo. “É só um hobby”, disse, sorrindo. O passatempo de Shaath tornou-o conhecido pelas autoridades. Ele me disse que, na Sexta da Ira, quando a polícia havia sido finalmente superada, ele correu até o Mogamma para recuperar o arquivo secreto com seu nome. “Eu sei até em que sala está: no segundo andar, a última da esquerda!”
Na internet, Shaath e outros militantes agenciaram idéias para enfrentar a tropa de choque. Ele enumerou várias táticas improvisadas: “Como usar vinagre e cebolas contra o gás lacrimogêno. Coisas como: não usar água, use Coca-Cola para esfregar os olhos.” Referindo-se aos protestos na Tunísia, que recentemente depuseram o presidente de lá, ele falou: “Nós pegamos um monte de idéias da Tunísia porque muitos tunisianos escrevem em blogues.” Na primeira semana dos protestos, ele dormiu cada noite num lugar diferente, e continuamente trocou seus números de celular. “Alguns dias atrás, eu parei”, me disse. Abriu as mãos em sinal de satisfação com o desenrolar dos eventos. “Fim da história. Game over. O medo acabou!”
Tentei encontrar Amre Moussa, o secretário-geral da Liga Árabe e antigo ministro das relações exteriores do Egito. Junto com Nabil Famy e outros notáveis, ele se uniu a um comitê informal de “homens sábios”, que queriam ajudar a levar as exigências da juventude e do povo na praça ao vice-presidente Suleiman. Aos 74 anos, Moussa é vigoroso, erudito e encantador. Na praça, ouvi ele ser mencionado várias vezes como um bom homem para liderar o país. As pessoas respeitam-no como um ancião, estadista e independente. Moussa me disse: “A praça se tornou o lugar que se você não for, terá perdido um momento histórico”. Ele acreditava que o regime primeiro tentou sair da tempestade: “Talvez pensando que aqueles manifestantes ficariam cansados, e aos poucos dispersariam, mas todo mundo viu, naquela sexta, que havia mais gente do que antes, do que quando tudo começou.” Agora os esforços na reforma não são mais uma extravagância, mas uma “questão de necessidade”.
A domesticação dos tanques de guerra
Nos dias após os choques, o exército tentou assumir o controle. O general Roweny podia ser visto percorrendo a via ao Museu Egípcio. Atrás dele o exército havia montado seu quartel-general de campanha. Sherif me disse que, naquele dia em que Roweny estava arrancando os curativos, depois ele ainda retornou com uma equipe da televisão egípcia e confrontou a mim e ao grupo de médicos. O general disse-nos para irmos pra casa e “parar com essa brincadeira ingênua.” Sherif respondeu: “Você chama o sangue dos egípcios uma brincadeira ingênua!” Roweny disse a Sherif que o exército tinha decidido esvaziar a praça, porque queria restabelecer o trânsito normal no dia seguinte. “Não podemos usar violência, mas podemos ser bastante severos com as pessoas”, ele avisou. Sherif perguntou o que significaria essa severidade. “Como um pai com seu filho”, Roweny replicou, sorrindo e respondendo as perguntas na frente das câmeras da TV. Mais tarde, ele discursou às multidões na praça: “Vocês todos têm o direito de se expressar, mas por favor salvem o que sobrou do Egito”. A multidão alegre respondeu com palavras-de-ordem que Hosni Mubarak deveria ir embora. Roweny então desistiu do seu discurso, dizendo: “Eu não vou falar em meio a isso.”
Em certo ponto, o exército tentou empurrar uma linha de tanques mais para dentro da praça, perto do Museu Egípcio. Mas os manifestantes sentaram-se embaixo dos veículos. Eu me sentei junto deles e falei com um homem doente, cujo corpo estava coberto de psoríase. Ele veio de uma pequena cidade não muito longe de Cairo e trabalhou para a municipalidade local. Ele disse que seu salário de 700 libras egípcias (cerca de US$ 120) não era suficiente para alimentar a família e pagar o tratamento para a sua pele. Ele tentou explicar a situação: “O exército está tentando nos pressionar e afastar as pessoas da praça”. Quando voltei no dia seguinte, os manifestantes tinham se instalado em definitivo no lugar, estocando sanduíches e cobertores em nichos entre as esteiras dos tanques, dormindo sob suas turretas e orando cinco vezes ao dia em linhas organizadas diante deles. Quando os tanques haviam chegado pela primeira vez, os manifestantes viam-nos como bestas misteriosas, mas agora elas pareciam domadas. Pais colocavam seus filhos no tombadilho e tiravam fotos. Os soldados não se importavam com essa domesticação.
O alto comando militar também é parte do regime
O exército, conquanto ostensivamente neutro, estava obviamente implicado no status quo. Depois que Mubarak despediu a maior parte de seu gabinete de governo, nos primeiros dias do protesto, a elite militar se viu no controle de postos-chave. Suleiman, o chefe da inteligência militar, se tornou vice-presidente, e Ahmed Shafik, antigo comandante da força aérea (como antes dele, Mubarak), se tornou o novo primeiro-ministro. Enquanto isso, o marechal-de-campo Mohamed Hussein Tantawi permaneceu na posição que ocupava há quase 20 anos: ministro da defesa e da produção militar. Inicialmente, esse triunvirato pareceu formar uma guarda pretoriana ao redor do presidente, eles eram todos militares, todos perto de seus 70, todos próximos de Mubarak. Nesse momento, o diplomata ocidental me disse que não há diferenças significativas entre Suleiman e seu presidente; que o regime pensava que poderia dispersar os protestos, e que Mubarak ainda sustentava a idéia que tudo não passava de uma grande maquinação estrangeira — “um ponto de vista sólido como rocha que vimos ele defender há muitos anos”. Tantawi, o diplomata esperava, continuaria com a política de não-violência por parte do exército: “Sim, ele é produto do regime e está perfeitamente feliz em prender pessoas, mas não atirará nelas.”
Mas parece agora que sempre existiram diferenças entre a elite militar e os elementos mais orgânicos do regime — a cúpula de Mubarak, o Ministério do Interior e a polícia, os altos dirigentes do PND, e as forças domésticas de segurança. Essa foi talvez a razão que, nos dias seguintes, os pronunciamentos do triunvirato militar, assim como o comportamento mercurial do general Roweny na praça, tenham parecido oscilar entre o tom conciliatório e impacientes ameaças. Depois dos choques com multidões mubarakistas, o primeiro-ministro Shafik se desculpou pela violência na TV nacional, e então começaram tratativas entre o vice-presidente e alguns dos grupos oposicionistas. Contudo, apenas alguns dias depois, Suleiman pareceu ameaçar uma repressão marcial. Nessa hora, era difícil ver onde o balanço de força residia, entre o regime e a elite militar. Porém, através dos protestos no Cairo, duas constantes se mantiveram firmes: o exército nunca atirou nos manifestantes e nunca preveniu as pessoas de vir para a praça.
A elite militar nunca gostou do filho de Mubarak, Gamal, geralmente retratado como o cabeça do grupo que promoveu as reformas econômicas neoliberais da última década. Nos últimos anos, membros do alto escalão expressaram desconforto diante da indicação implícita dele como sucessor. Quando Mubarak nomeou Suleiman como vice-presidente, tradicionalmente a posição ocupada pelo sucessor, aqueles insatisfeitos podem ter se sentido contemplados. Mas as multidões na praça, não. E, nos dias que se seguiram, elas foram capazes, graças aos números e por reiterar a confiança no exército, de cooptar as forças armadas como um parceiro relutante da revolução.
Na segunda semana dos protestos, além da praça, Cairo voltou ao trabalho. Bancos reabriram, as ruas retomaram seu estado costumeiro de engarrafamento. E ainda assim os números na praça continuavam inflando. Na hora do almoço e depois do expediente, as pessoas fluiam à praça para participar do fenômeno da liberdade. Todos com quem falei pareciam insistir que tinham estado ali desde o primeiro dia. “As pessoas estão tentando se juntar ao circo”, um militante disse, rindo.
Sherif voltou ao trabalho, também, mas retornava em cada tarde a seus novos amigos na praça. Depois do primeiro dia de volta ao “mundo real”, como o descreveu, — imaginando o que seria esse mundo real agora — ele admitiu que estava se sentido “muito pra baixo. Porque começou a sedimentar todo o banho de sangue.” Mas seus novos amigos — nenhum dos médicos voluntários em Tahrir se conhecia antes — motivaram-no. “É incrível quão pacífico é aqui, e fora de todo esse zunzunzum do cotidiano. Caminhei através da praça, e ela dá esperança a você, isto tudo não é por nada, alguma coisa vai acontecer”. Ele começou a ir nos encontros militantes, grupos de jovens que discutiam como seguir em frente com a revolução. “A falta de liderança é positiva e negativa”, ele havia me dito, “mas mostra que esta realmente é uma revolução do povo.”
Discutimos possíveis líderes. Nenhum dos partidos da oposição foi capaz de reunir apoio suficiente entre os manifestantes. Muitos pareciam bem-intencionados, mas amadores, e eram guiados pela geração mais antiga. Mencionei Mohamed ElBaradei, o vencedor do Prêmio Nobel, que tinha estado em Viena e agora voltou ao Egito, e se tornou rapidamente associado com os protestos. Sherif, como muitos na praça, não estava impressionado. “Baradei? Cadê ele? Veio à praça por quatro ou cinco minutos e então saiu. Minha irmã diz que ele está na TV a cada cinco minutos, dizendo: eu fiz isso, eu fiz aquilo, eu fiz tudo e eu previ tudo. Mas ele estava em Viena o tempo todo.”
Sem um líder claro ou ideologia dominante, a praça se tornou uma espécie de trampolim para oradores. Uma mulher com véu falou de seu sonho com o Profeta Maomé circundando a praça; um psiquiatra fascinou a multidão com sua teoria sobre como Mubarak era um psicopata. As pessoas colocavam manifestos xerocopiados em minhas mãos e perguntavam-me porque o presidente Obama estava se equivocando tanto. Todos tinham se tornado especialistas na Constituição egípcia e nas cláusulas com os critérios de elegibilidade a presidente e a parlamentar. Falavam sobre o “modelo turco”, que teria as forças armadas como garantidores do estado. Sherif sublinhou que a praça tinha se tornado como uma universidade de ciência política — “a taxa de aprendizado era incrível para todos”. Ele queria estar envolvido. “Nós não podemos deixar o sangue dos mártires e dos feridos ser desperdiçado. Eles foram mortos por uma causa, e nós temos de levá-la adiante. Não podemos voltar a nossa vida normal como se nada tivesse acontecido.”.
Com esse pano de fundo de fervor e expectativa, em 10 de fevereiro, todos — a CIA, a CNN, o líder do PND, o primeiro-ministro egípcio, Barack Obama, e mesmo o saca-curativos general Roweny, que agora dizia que “todas as suas exigências serão atendidas hoje” — todos acreditavam que Mubarak anunciaria a sua renúncia. Houve uma chuvarada na hora do almoço, um sinal de boa sorte num país desértico, e depois disso o arco-íris apareceu e foi tuitado pelo mundo afora.
O anticlímax mubarakista
Às 10:45 da noite, Mubarak começou a falar, e a multidão aquietou. Mohamed, meu tradutor, tinha ido pra casa, pra comparecer à festa de noivado de seu irmão, e então passei a interpretar o discurso através da reação da massa a ele. A voz de Mubarak ecoou por alto-falantes na praça — rosnada, baixa, estridente, e ocasionalmente distorcida pelo retorno da fonia. As pessoas ouviam em celulares, e no centro de rodas com dezenas de cabeças curvadas se via o brilho de telas de notebooks. Gradualmente, os rostos ao redor de mim petrificaram à medida que as pessoas percebiam que já tinham ouvido esse discurso antes. Mais ou menos na metade, uma atmosfera de descrença se generalizou. Mais tarde descobri que foi na hora que Mubarak paternalmente lembrou aos ouvintes que ele um dia tinha sido jovem. Daí por diante, as pessoas simplesmente pararam de ouvir. Levaram as mãos à cabeça, silenciosas em choque e desespero. Um por um, eles brandiram seus sapatos sobre as cabeças, num gesto de desprezo. Quando Mubarak terminou o discurso, havia um enorme rugido, um uníssono desafiador de “Fora! fora! fora!” Socavam o ar com fúria. Um homem atrás de mim gritou e colapsou, incontrolável. Alguém perto de mim me disse que seu irmão havia sido morto nos protestos. As pessoas tentavam consolá-lo, mas ele subitamente se enfureceu, berrando e chutando o ar. Quatro ou cinco pessoas tentaram contê-lo, mas era impossível controlar a sua ira. Atrás dele, um homem orava comos punhos cerrados.
Encontrei Sherif na enfermaria de campanha, próxima da barricada. Ele usava uma bandana com as cores da bandeira egípcia. Sua expressão era incompreensivelmente apática e exausta. “Não sei ao certo o que ele ganha com isso”, me disse. Estava tentando compreender o gigantesco grau de negação da realidade que acometia Mubarak. “Nós já estamos celebrando e agora” — ele corta o ar com sua mão — “ninguém mais sabe o que está acontecendo”. Havia uma dureza em sua expressão como eu não havia visto antes. Ele me aconselhou a ficar no hotel amanhã. “Será muito ruim?”, perguntei. “É possível, é possível”, ele disse. “Eu não sei o que aquele idiota irá tirar de sua cartola.” Sherif decidiu pernoitar na praça.
Carnaval revolucionário
Na verdade, Mubarak nunca renunciou. Coube a Omar Suleiman anunciar a sua saída, no dia seguinte. Na praça, as notícias foram comemoradas com uma ventania de assovios alegres e uma nuvem de bandeiras. Era um júbilo exultante e unificado. As luzes de trânsito mostravam todas as cores simultaneamente, como numa boate. Fogos de artifício, aparentemente improvisados com aerosóis, explodiram na multidão. Não havia frases articuladas, apenas uma palavra: “sensacional”, repetida sem parar. Manifestantes abraçaram os soldados, que desceram dos tanques e tiraram os capacetes para se juntar à festa. Assisti a alguém apertar a mão de um oficial e tirar uma foto com o pequeno filho junto do militar.
Sherif não estava na praça no momento do anúncio e perdeu essas cenas extraordinárias, mas ele viu uma coisa mais reveladora. Naquele dia, multidões tinham marchado pacificamente ao Palácio Presidencial, em Heliópoles, a nordeste de Tahrir, e Sherif resolveu participar. Perto das quatro horas, um par de horas antes do discurso de Suleiman, ele estava fora do palácio, tratando uns poucos feridos. Vários tanques estavam estacionados ali, os seus canhões apontando na direção da massa. Mas, como Sherif presenciou, os tanques moveram suas torres — parece que aconteceu, disse ele, em câmera lenta — de modo que passaram a apontar ao palácio. Os soldados então começaram a agitar bandeiras do Egito e cantar com a multidão: “Egito! Egito! O exército e o povo são um só!”.
Na manhã seguinte, sentei num café na praça, falando sobre os eventos. Todos liam os jornais e num deles vi uma fotografia do general Roweny apertando a mão de outro oficial, sobre um pano de fundo da multidão em Tahrir. O homem com o jornal disse que era uma foto dos tempos antigos, quando o exército pela primeira vez veio à praça.
“Ele é bom?”, perguntei sobre Roweny.
“Agora, é sim!”, o homem respondeu.
“Mas e antes?”
Ele balançou a mão aberta e fez uma careta: “Quem sabe?”
Alaa Al Aswny me disse que pensou na revolução egípcia como uma mudança fundamental no paradigma de um Oriente Médio de populações apáticas oprimidas por ditadores e se refugiando na religião. “Nós estamos vendo agora o fim das ditaduras pós-independência no mundo árabe”, ele disse. “O que nós vemos agora é o fim de uma era. Analistas ocidentais estão totalmente confusos, porque vai muito além do Sr. Mubarak. Os analistas ocidentais vão ter que jogar fora seus livros velhos”.
Naquela tarde, conheci Mahmoud Zaher, um general reformado da inteligência militar do Egito, que agora exercia um papel cujos contornos ele hesitava em definir. Quando cheguei na casa dele, perto de uma mesquita numa vizinhança agradável no lado esquerdo do Nilo, ele estava orando. Era um anfitrião gracioso, sentado bem reto enquanto seu filho que, ele me disse, esteve muitos dias na praça, trouxe copos de suco natural de laranja e de café turco. Quando fiz as perguntas, suas respostas tendiam a evitar fatos mais específicos, concentrando-se em assuntos teóricos sobre a história e o caráter nacional do Egito. A sombra de um sorriso se apresentava nas beiras de seu bigode, como se ele estivesse dizendo: “Sim, bem, é claro que sei a pergunta óbvia, e eu sei muito bem qual é a resposta, mas como eu poderia colocá-la?”
Mahmoud não era defensor de Mubarak, que ele sentia tinha “se tornado uma influência corrupta ao Egito e à reputação da elite militar”. Ele estava certo que até o fim Mubarak pretendeu induzir a violência e o caos — possivelmente usando a Guarda Republicana, que é leal mais ao presidente do que à nação — a fim de parecer justificada a repressão. Perguntei a ele se alguém das forças armadas “colocou Mubarak num helicóptero” — se a mecânica do que ocorreu contribui para a interpretação de que ocorreu um golpe militar. Ele refletiu antes de responder: “Existe uma grande diferença entre o que pode ser dito e o que deve ser feito”. Ele pausou. “O que aconteceu foi um desejo muito forte e legítimo do povo da revolução do Egito que, nesse momento, se tornou também da instituição das forças armadas.” Ele disse que se uma pessoa “chega num ponto de insensibilidade que se torna incapaz de perceber a decisão certa na hora certa, outros precisam assumir o controle e decidir no seu lugar.”
Ele falou do exército como “servidor do povo e do desejo popular”, mas enfatizou que o papel do exército no Egito não ficou confinado à esfera militar, e que foi “politicamente influente e policitamente envolvente e politicamente digno.” O exército não pareceu querer ou esperar a mudança da situação, e Mahmoud falou da possibilidade de, no futuro, haver “limitações” ao sistema político egípcio, “que venham a fazer com que gente de fora diga que nossa democracia seja diferente da democracia deles”. Ele exprimiu que quem quer que se torne presidente deve possuir um passado militar.
O devir: nada será como antes
Na praça, montes de pessoas estavam com vassouras, limpando em júbilo o seu país. Eles transportaram pra fora da praça os entulhos soltos do pavimento e empilharam os quadros de metal de suas barracas. Eu vi um homem, que carregava um saco de lixo preto, com uma placa sobre o peito: “Ontem eu fui um manifestante. Hoje eu construo o Egito”. Conheci um casal de jovens estudantes da Universidade Americana no Cairo, carregando vassouras. Um disse que ela estava debatendo o novo espírito de comunidade com o pai dela. “Nós pensamos que as pessoas não ligavam”, ela disse, “e elas jogavam o lixo de casa na rua, mas agora vemos que no fundo pensavam que o país não tinha esperança — porque se preocupar se está tudo tão sujo? Por que não ser corrupto quando todo o sistema está corrompido? Mas agora as coisas mudaram, e um humor diferente se alastrou. Eu mesma não consigo parar de rir comigo mesma.”
Consegui encontrar Sherif e perguntei a ele sobre seu grupo de militantes. Eles tinham decidido que continuariam a se encontrar e discutir modos de ajudar o país, mas não formariam um partido político. Perguntei se estava preocupado com a possibilidade de o Exército assumir o controle inteiramente da situação. Ele disse que haveria caos no futuro e que seus amigos estão preocupados. “Mas como eu estava dizendo: ‘pessoal, olha o que nós já fizemos. Nada é impossível.’”
Muitas pessoas na celebração disseram que jamais poderá existir outro ditador, agora que descobriram a sua voz política. “Nós sabemos o caminho à Praça Tahrir”, alguém disse.
—-
Wendell Steavenson, correspondente freelance, autora de The Weight of a Mustard Seed: An Iraqi General’s Moral Journey During the Time of Saddam (2009) e Stories that I stole (2002).

(Le Monde Diplomatique)