A LUTA ARMADA DO POVO COLOMBIANO É TAMBÉM NOSSA LUTA
O caráter internacionalista do conflito armado colombiano
Anncol
Durante os oito anos do governo narco-paramilitar de Álvaro Uribe Vélez (o 82º capo das drogas na lista da Defense Intelligence Agency (DIA), do próprio Pentágono), este dedicou todas as suas energias em tentar acabar com a insurreição guerrilheira comunista das FARC-Exército do Povo e “domesticar” (como um simples problema interno) o conflito social, político e armado, tratado-o com uma ótica reducionista, como se se tratasse de uma expressão delinquencial e ligado à suposta “luta contra o terrorismo”.
Em outras palavras, o “bom regime”, com seu “pobre Estado” sendo atacado por “forças terroristas”, devia se defender do “inimigo interno”, inclusive cometendo crimes.
Enquanto esse discurso era “assumido” pela opinião pública, graças a “jornalistas” a serviço do narco-paramilitarismo, como José Obdulio Gaviria (primo-irmão do capo Pablo Escobar Gaviria) e Ernesto Yamhure, o governo, com um aparato policial de inteligência bem “ajustado” interceptou ilegalmente os telefones de muitos organismos internacionais, que eram os olhos do que é conhecido como “comunidade internacional”, olhos esses que observavam “de perto” o conflito armado colombiano.
Nem o representante da ONU se salvou dos “grampos” (chuzadas). Outros organismos internacionais sofreram a mesma experiência, incluindo outro tipo de guerra suja, mais sutil, mas efetiva, como a coação, intimidações ou ameaças veladas, impedindo-lhes de entrar em certas regiões da Colômbia e asfixiando-os até tornar a situação inviável para eles para, em seguida, “convidá-los a partir” por falta de condições de segurança para realizar seu trabalho investigativo.
Lembremos que a Colômbia é um dos países mais observados pela ONU, que mantém cinco relatores especiais. E, quando estes chegam ao país, o governo procura fazer com que não tenham acesso à informação sobre o verdadeiro terrorismo: o Terrorismo de Estado. São impedidos de visitarem as regiões onde ocorreram os massacres, fazendo com que não tenham acesso a testemunhas, enfim, que não possam documentar as práticas de Terrorismo de Estado.
Estes relatores ficam em Bogotá e só vêem imagens Power Point oficiais com os dados enganosos da versão oficial do conflito. Isso também acontece com algumas ONGs internacionais e com alguns jornalistas, que armam novelões a partir de seu hotel em Bogotá.
Uribe botou para correr todo mundo, inclusive os mediadores internacionais de países amigos da Colômbia, que foram taxados, segundo a cartilha oficial, como colaboradores do terrorismo. Liquidada toda possibilidade de mediação, isolado o conflito do mundo, Uribe se dedicou a isolar a própria Colômbia do mundo, ficando com seu único aliado, seu amo e patrão norte-americano. Brigou com a Venezuela e inclusive muitas vezes tentou iniciar uma agressão armada contra a república irmã. Não duvidou um instante em ordenar o ataque ao Equador, pisoteando todo o direito internacional e todos os tratados internacionais que o próprio Estado colombiano assinou.
Com o atual presidente Santos (ex ministro da defesa de Uribe responsável pelo ataque ilegal ao Equador, que matou o Secretário de Relações Internacionais das FARC-Exército do Povo, cmte Raúl Reyes) as coisas continuam com o mesmo conteúdo, embora suas manifestações públicas tenham mudando. Passamos de uma linguagem mordaz de “coronel fazendeiro” à etiqueta do country club e dos alfaiates ingleses. Mas ambos são os mesmos “encarnados e esculpidos”. Com roupagens diferentes.
Santos continua procurando esconder o conflito colombiano, indo mais além: acabou conseguindo neutralizar o próprio presidente Chávez (que havia reconhecido oficialmente o caráter legítimo e beligerante das FARC-Exército do Povo em 2008), neutralização essa que havia iniciado com Uribe com a chantagem das “provas” obtidas dos famosos “computadores atômicos” (confiscados ilegalmente no ataque ao Equador, “provas” julgadas ilegais e sem validez alguma pela própria Corte Suprema da Colômbia).
Tão mafioso e chantagista o Estado colombiano que o atual inquilino da Casa de Nariño (sede da Presidência da República), Juan Manuel “Chuck” Santos, conseguiu infiltrar (sem uma reação do Brasil e demais países? Por quê?) a própria UNASUL com a senhora María Emma, neutralizando a “liderança” da Venezuela, intimidando-a e obrigando-a a mudar alguns discursos anteriores.
Com essa política internacional bem tramada pelo regime colombiano, contando com as inconsistências e vacilações ideológicas de Chávez (pressionado por quem?), “Chucky” Santos acabou legitimando o golpe de Estado em Honduras, levando esse país de volta ao seio da OEA (esse obsoleto ministério das neo-colônias ianques), de onde tinha sido expulso depois do golpe de 2009 contra o Presidente Constitucional Manuel Zelaya, ressuscitando um cadáver e colocando-o de novo nas mãos de Obama e, de passagem, legitimando um presidente golpista. “Três coelhos com uma única cajadada!”
Enquanto isso ocorre, Santos instrumentaliza a suposta boa amizade com Chávez para continuar expandindo sua “operação condor” nativa, estendendo a repressão e o terrorismo de Estado além fronteiras colombianas.
Foi nesse contexto e dinâmica que o nosso diretor, Joaquín Pérez Becerra, foi seqüestrado na Venezuela e entregue aos aparatos terroristas do Estado colombiano.
Santos se jacta dissimuladamente com muita ironia e em privado por ter conseguido “dobrar a munheca” do ingênuo Chávez. E, para completar, sua ministra de relações exteriores, Holguín, está “encantada” com o da Venezuela, Nicolás Maduro, que está se curvando aos encantos da beleza colombiana, deixando de lado o que se joga no xadrez político com uma oligarquia criminosa e mafiosa como a colombiana.
A neutralização de Chávez implica em vários perigos para o processo político venezuelano, especialmente quando Chávez se deixa rodear de tantos incompetentes e ineptos como Maduro e como Andrés Izarra, ministro das comunicações, embora este não seja propriamente o tema destas reflexões.
Continuemos: escondido e isolado o conflito armado colombiano, a oligarquia do país se sente desobrigada de certos compromissos assumidos internacionalmente e projeta para o mundo a imagem de democracia madura, apta para o investimento estrangeiro (inclusive brasileiro). E essa “confiança investidora” se traduz em uma entrega total de nosso patrimônio ao capital monopolista internacional. A elite econômica oligárquica procura isolar (esconder) o conflito armado interno ao mesmo tempo em que amplia seus contatos e relações econômicas e políticas para legitimar seu projeto hegemônico de economia de mercado dependente.
Diante disso tudo, a tarefa dos colombianos que estamos comprometidos com a saída política para o conflito, é ler o mapa mundi e não perder de vista a perspectiva e a contextualização internacional em torno da solução política para o conflito colombiano.
Continuar com essa visão simplista e provinciana do conflito não ajuda em nada, ao contrário, facilita o trabalho do regime oligárquico.
É necessário contextualizar internacionalmente o conflito armado colombiano por várias e simples razões:
1. As potências capitalistas mundial mantêm uma luta sangrenta pelo controle das matérias primas do terceiro mundo, particularmente da América Latina.
2. Na divisão internacional do trabalho pelo capital monopolista, países de “capitalismo tardio” e periférico como a Colômbia, Brasil e outros, foram designados para cumprir o papel de provedores de matérias primas (petróleo, esmeraldas, aço, minério de ferro, aço, alumínio, cobre, ouro, banana, café, soja, carne, flores, madeiras de lei, etc.;) sem valor agregado, dada a dependência tecnológica de nossos países.
3. Os monopólios multinacionais (que não transferem suas tecnologias), além de não estarem criando empregos nos países em vias de desenvolvimento onde atuam, ainda nos poluem com seus agrotóxicos e emissões de gases contaminantes, deixando-nos o custo ecológico que isso implica para as atuais e futuras gerações.
4. O problema internacional da produção, tráfico, comércio e consumo de drogas.
5. O grau de intromissão e ingerência política, ideológica, diplomática e militar que assumem os países capitalistas centrais que investem em nossos recursos estratégicos e na economia em geral.
6. A doutrina da OTAN (“direito de proteger-R2P”) e a instrumentalização da ONU para promover guerras sob pretextos de “proteção de civis”, não passa de uma reciclagem atualizada do velho sistema de mandatos da outrora Sociedade de Nações, no qual os países capitalistas ocidentais se arvoram no direito de tutelar povos e países e impor-lhes seus modelos de “democracia ocidental”.
Mas poderíamos continuar enumerando “N” aspectos que nos demonstram que o conflito social, político e armado colombiano se inscreve sim em uma LUTA INTERNACIONAL DOS POVOS POR SUA EMANCIPAÇÃO. E não estamos sós nessa luta.
O conflito colombiano está mesmo vinculado umbilicalmente ao que ocorre atualmente no mundo inteiro. Portanto, cabe a todos os povos e movimentos sociais e revolucionários latino-americanos construirmos laços de solidariedade entre nós para, em seguida, consolidá-los organicamente com os setores sociais populares europeus, norte-americanos e mundiais, claro.
Os sindicatos (para ficar em um só exemplo) devem internacionalizar seu trabalho. Uma multinacional alemã que não respeita os direitos de seus trabalhadores em território alemão não vai respeitar também na Colômbia, no Brasil ou em Singapura. Portanto, os trabalhadores alemães, colombianos, brasileiros ou singapurenses têm sim uma luta e interesses comuns únicos, internacionalista.
Cabe-nos lutar para fazer com que os trabalhadores de outros países, principalmente os brasileiros, tomem conhecimento e consciência da situação dos trabalhares e do movimento sindical colombiano e, nesse sentido, que também outros povos e trabalhadores de outros países conheçam a realidade vivida diariamente pelo povo irmão colombiano.
Torna-se necessário que muitos militantes internacionalistas, parlamentares, partidos de esquerda, sindicatos, organizações e movimentos sociais e populares visitem as regiões colombianas onde atuam os esquadrões da morte paramilitares (braço armado do narcotráfico) a serviço do Terrorismo de Estado oficial e vejam com seus próprios olhos como continuam intactos e mobilizados (foram oficialmente “desmobilizados” a partir de 2003 no regime uribista), agora reativados para massacrarem opositores em época pré-eleitoral.
O mundo precisa tomar consciência do que realmente acontece aqui na Colômbia. Urge que trabalhemos todos juntos para nos contrapor e neutralizar o marketing (terrorismo midiático) global e o lobby que o regime mafioso faz junto a governos (embaixadas), Unasul, Celac, parlamentos e justiça, além de enviar agentes encobertos e adidos militares de suas embaixadas para dar palestras e conferências a empresários e polícias, além de oferecer treinamento e doutrinação policial na Colômbia. Uma intromissão verdadeiramente vergonhosa de um regime títere do imperialismo ianque.
É necessário que pensemos em organizar uma Comissão Internacional que vá visitar os prisioneiros políticos do regime e comprovem a ignomínia e podridão do sistema carcerário colombiano atual.
Nesta urgente tarefa, os exilados e a emigração colombiana no exterior têm um papel importante a desempenhar todos os dias, unidos pela solidariedade internacional à luta do povo colombiano, que é também nossa luta.
Esta é uma tarefa de todos nós.
(De um emeio recebido)
quarta-feira, 28 de setembro de 2011
terça-feira, 27 de setembro de 2011
Baden
O violão vadio exuberante de Baden Powell
Há 11 anos, no dia 26 de setembro, a música popular brasileira perdia um dos seus grandes músicos, o violonista Baden Powell de Aquino.
Por Marcos Aurélio Ruy
Baden Powell, juntamente com Vinicius de Moraes, criou o chamado afro-samba, numa das principais parcerias da música popular brasileira. Baden percebeu que os “cânticos afros tinham semelhança com os gregorianos e passou a compor melodias em cima das duas vertentes”, afirma texto do site www.biscoitofino.com.br.
Baden, que estudava música gregoriana, entusiasmou-se pelo candomblé e a sua música, e Vinicius era encantado com o samba de roda e o candomblé da Bahia. Os dois, que se conheceram em 1962, gravaram o LP “Afro-sambas” em 1966, tornando-se uma das parcerias mais profícuas da MPB. É desse disco o clássico “Canto de Ossanha”.
Seu pai lhe deu esse nome por que seu pai era fã do escotismo do general britânico Robert Stephenson Smyth Baden-Powell. Bem, o menino não tem culpa disso. Baden nasceu em Varre-Sai, distrito do município de Itaperuna no Norte do estado do Rio de Janeiro. Mas passou sua infância em Vila Isabel e São Cristóvão, na cidade do Rio, onde teve contato com sambistas de primeira linha. Também levado pelo amigo capoeirista Canjiquinha, aproximou-se da capoeira e do candomblé, utilizando elementos dessas duas formas de expressão artística, religiosa e corporal em sua arte.
Influências do grande músico
Fou muito influenciado pelo guitarrista de jazz, nascido na Bélgica e cigano, Django Reinhardt, considerado um dos maiores guitarristas do mundo, criador do gypsy jazz, ou jazz cigano. E pelo guitarrista norte-americano Barney Kessel, também de jazz, pelo músico alemão jazzístico Joachim Berendt, pelo saxofonista norte-americano Stan Getz, um dos maiores divulgadores da bossa nova nos Estados Unidos.
Getz chegou a compor em parceria com João Gilberto e Tom Jobim. Ainda teve forte influência do instrumentista de corda paulista Aníbal Augusto Sardinha, conhecido como Garoto, e do violonista e compositor carioca de chorinho, Dilermando Reis, entre outros grandes artistas.
Baden estudou canto gregoriano com o maestro Moacyr Santos e da mistura da música clássica com a popular brasileira tornou-se um dos nossos principais músicos. O violonista fluminense sucumbiu ao alcoolismo e faleceu no dia 26 de setembro de 2000, aos 63 anos de idade.
Suas canções e o seu modo inovador de tocar violão deixam saudades em todos os amantes da MPB, um dos grandes nomes de uma vertente da bossa nova, com influência sobre uma gama de autores compositores de gerações posteriores.
Alguns vídeos e letras de suas obras:
Canto de Ossanha (com Vinicius de Moraes, 1966)
O homem que diz "dou" não dá, porque quem dá mesmo não diz
O homem que diz "vou" não vai, porque quando foi já não quis
O homem que diz "sou" não é, porque quem é mesmo é "não sou"
O homem que diz "tô" não tá, porque ninguém tá quando quer
Coitado do homem que cai no canto de Ossanha, traidor
Coitado do homem que vai atrás de mandinga de amor
Vai, vai, vai, vai, não vou
Vai, vai, vai, vai, não vou
Vai, vai, vai, vai, não vou
Vai, vai, vai, vai, não vou
Que eu não sou ninguém de ir em conversa de esquecer
A tristeza de um amor que passou
Não, eu só vou se for pra ver uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor
Amigo senhor, saravá, Xangô me mandou lhe dizer
Se é canto de Ossanha, não vá, que muito vai se arrepender
Pergunte ao seu Orixá, o amor só é bom pra valer
Pergunte ao seu Orixá, o amor só é bom se doer
Vai, vai, vai, vai, amar
Vai, vai, vai, sofrer
Vai, vai, vai, vai, chorar
Vai, vai, vai, dizer
Que eu não sou ninguém de ir em conversa de esquecer
A tristeza de um amor que passou
Não, eu só vou se for pra ver uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor
Samba da Bênção (com Vinicius de Moraes, 1962)
É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração
Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza
Senão, não se faz um samba não
Senão é como amar uma mulher só linda
E daí? Uma mulher tem que ter
Qualquer coisa além de beleza
Qualquer coisa de triste
Qualquer coisa que chora
Qualquer coisa que sente saudade
Um molejo de amor machucado
Uma beleza que vem da tristeza
De se saber mulher
Feita apenas para amar
Para sofrer pelo seu amor
E pra ser só perdão
Fazer samba não é contar piada
E quem faz samba assim não é de nada
O bom samba é uma forma de oração
Porque o samba é a tristeza que balança
E a tristeza tem sempre uma esperança
A tristeza tem sempre uma esperança
De um dia não ser mais triste não
Feito essa gente que anda por aí
Brincando com a vida
Cuidado, companheiro!
A vida é pra valer
E não se engane não, tem uma só
Duas mesmo que é bom
Ninguém vai me provar que tem
Sem provar muito bem provado
Com certidão passada em cartório do céu
E assim mesmo assinado embaixo: Deus
E com firma reconhecida!
A vida não é brincadeira, amigo
A vida é arte do encontro
Embora haja tanto desencontro pela vida
Há sempre uma mulher à sua espera
Com os olhos cheios de carinho
E as mãos cheias de perdão
Ponha um pouco de amor na sua vida
Como no seu samba
Ponha um pouco de amor numa cadência
E vai ver que ninguém no mundo vence
A beleza que tem um samba, não
Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração
Vinicius de Moraes, por exemplo, o capitão do mato
Poeta e ex-diplomata
Como ele mesmo diz:
É o branco mais preto do Brasil
Na linha direta de Xangô, saravá!
A bênção, Senhora
A maior babalorixá da Bahia
Terra de Caymmi e João Gilberto
A bênção, Pixinguinha
Que choraste na flauta
Todas as minhas mágoas de amor
A bênção, Sinhô, a benção, Cartola
A bênção, Ismael Silva
Sua bênção, Heitor dos Prazeres
A bênção, Nelson Cavaquinho
A bênção, Geraldo Pereira
A bênção, meu bom Cyro Monteiro
Você, sobrinho de Nonô
A bênção, Noel, sua bênção, Ary
A bênção, todos os grandes
Sambistas do Brasil
Branco, preto, mulato
Lindo como a pele macia de Oxum
A bênção, maestro Antonio Carlos Jobim
Parceiro e amigo querido
Que já viajaste tantas canções comigo
E ainda há tantas por viajar
A bênção, Carlinhos Lyra
Parceiro cem por cento
Você que une a ação ao sentimento
E ao pensamento
A bênção, a bênção, Baden Powell
Amigo novo, parceiro novo
Que fizeste este samba comigo
A bênção, amigo
A bênção, maestro Moacir Santos
Não és um só, és tantos como
O meu Brasil de todos os santos
Inclusive meu São Sebastião
Saravá! A bênção, que eu vou partir
Eu vou ter que dizer adeus
Ponha um pouco de amor numa cadência
E vai ver que ninguém no mundo vence
A beleza que tem um samba, não
Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração
(vermelho.org)
Há 11 anos, no dia 26 de setembro, a música popular brasileira perdia um dos seus grandes músicos, o violonista Baden Powell de Aquino.
Por Marcos Aurélio Ruy
Baden Powell, juntamente com Vinicius de Moraes, criou o chamado afro-samba, numa das principais parcerias da música popular brasileira. Baden percebeu que os “cânticos afros tinham semelhança com os gregorianos e passou a compor melodias em cima das duas vertentes”, afirma texto do site www.biscoitofino.com.br.
Baden, que estudava música gregoriana, entusiasmou-se pelo candomblé e a sua música, e Vinicius era encantado com o samba de roda e o candomblé da Bahia. Os dois, que se conheceram em 1962, gravaram o LP “Afro-sambas” em 1966, tornando-se uma das parcerias mais profícuas da MPB. É desse disco o clássico “Canto de Ossanha”.
Seu pai lhe deu esse nome por que seu pai era fã do escotismo do general britânico Robert Stephenson Smyth Baden-Powell. Bem, o menino não tem culpa disso. Baden nasceu em Varre-Sai, distrito do município de Itaperuna no Norte do estado do Rio de Janeiro. Mas passou sua infância em Vila Isabel e São Cristóvão, na cidade do Rio, onde teve contato com sambistas de primeira linha. Também levado pelo amigo capoeirista Canjiquinha, aproximou-se da capoeira e do candomblé, utilizando elementos dessas duas formas de expressão artística, religiosa e corporal em sua arte.
Influências do grande músico
Fou muito influenciado pelo guitarrista de jazz, nascido na Bélgica e cigano, Django Reinhardt, considerado um dos maiores guitarristas do mundo, criador do gypsy jazz, ou jazz cigano. E pelo guitarrista norte-americano Barney Kessel, também de jazz, pelo músico alemão jazzístico Joachim Berendt, pelo saxofonista norte-americano Stan Getz, um dos maiores divulgadores da bossa nova nos Estados Unidos.
Getz chegou a compor em parceria com João Gilberto e Tom Jobim. Ainda teve forte influência do instrumentista de corda paulista Aníbal Augusto Sardinha, conhecido como Garoto, e do violonista e compositor carioca de chorinho, Dilermando Reis, entre outros grandes artistas.
Baden estudou canto gregoriano com o maestro Moacyr Santos e da mistura da música clássica com a popular brasileira tornou-se um dos nossos principais músicos. O violonista fluminense sucumbiu ao alcoolismo e faleceu no dia 26 de setembro de 2000, aos 63 anos de idade.
Suas canções e o seu modo inovador de tocar violão deixam saudades em todos os amantes da MPB, um dos grandes nomes de uma vertente da bossa nova, com influência sobre uma gama de autores compositores de gerações posteriores.
Alguns vídeos e letras de suas obras:
Canto de Ossanha (com Vinicius de Moraes, 1966)
O homem que diz "dou" não dá, porque quem dá mesmo não diz
O homem que diz "vou" não vai, porque quando foi já não quis
O homem que diz "sou" não é, porque quem é mesmo é "não sou"
O homem que diz "tô" não tá, porque ninguém tá quando quer
Coitado do homem que cai no canto de Ossanha, traidor
Coitado do homem que vai atrás de mandinga de amor
Vai, vai, vai, vai, não vou
Vai, vai, vai, vai, não vou
Vai, vai, vai, vai, não vou
Vai, vai, vai, vai, não vou
Que eu não sou ninguém de ir em conversa de esquecer
A tristeza de um amor que passou
Não, eu só vou se for pra ver uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor
Amigo senhor, saravá, Xangô me mandou lhe dizer
Se é canto de Ossanha, não vá, que muito vai se arrepender
Pergunte ao seu Orixá, o amor só é bom pra valer
Pergunte ao seu Orixá, o amor só é bom se doer
Vai, vai, vai, vai, amar
Vai, vai, vai, sofrer
Vai, vai, vai, vai, chorar
Vai, vai, vai, dizer
Que eu não sou ninguém de ir em conversa de esquecer
A tristeza de um amor que passou
Não, eu só vou se for pra ver uma estrela aparecer
Na manhã de um novo amor
Samba da Bênção (com Vinicius de Moraes, 1962)
É melhor ser alegre que ser triste
Alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração
Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
É preciso um bocado de tristeza
Senão, não se faz um samba não
Senão é como amar uma mulher só linda
E daí? Uma mulher tem que ter
Qualquer coisa além de beleza
Qualquer coisa de triste
Qualquer coisa que chora
Qualquer coisa que sente saudade
Um molejo de amor machucado
Uma beleza que vem da tristeza
De se saber mulher
Feita apenas para amar
Para sofrer pelo seu amor
E pra ser só perdão
Fazer samba não é contar piada
E quem faz samba assim não é de nada
O bom samba é uma forma de oração
Porque o samba é a tristeza que balança
E a tristeza tem sempre uma esperança
A tristeza tem sempre uma esperança
De um dia não ser mais triste não
Feito essa gente que anda por aí
Brincando com a vida
Cuidado, companheiro!
A vida é pra valer
E não se engane não, tem uma só
Duas mesmo que é bom
Ninguém vai me provar que tem
Sem provar muito bem provado
Com certidão passada em cartório do céu
E assim mesmo assinado embaixo: Deus
E com firma reconhecida!
A vida não é brincadeira, amigo
A vida é arte do encontro
Embora haja tanto desencontro pela vida
Há sempre uma mulher à sua espera
Com os olhos cheios de carinho
E as mãos cheias de perdão
Ponha um pouco de amor na sua vida
Como no seu samba
Ponha um pouco de amor numa cadência
E vai ver que ninguém no mundo vence
A beleza que tem um samba, não
Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração
Vinicius de Moraes, por exemplo, o capitão do mato
Poeta e ex-diplomata
Como ele mesmo diz:
É o branco mais preto do Brasil
Na linha direta de Xangô, saravá!
A bênção, Senhora
A maior babalorixá da Bahia
Terra de Caymmi e João Gilberto
A bênção, Pixinguinha
Que choraste na flauta
Todas as minhas mágoas de amor
A bênção, Sinhô, a benção, Cartola
A bênção, Ismael Silva
Sua bênção, Heitor dos Prazeres
A bênção, Nelson Cavaquinho
A bênção, Geraldo Pereira
A bênção, meu bom Cyro Monteiro
Você, sobrinho de Nonô
A bênção, Noel, sua bênção, Ary
A bênção, todos os grandes
Sambistas do Brasil
Branco, preto, mulato
Lindo como a pele macia de Oxum
A bênção, maestro Antonio Carlos Jobim
Parceiro e amigo querido
Que já viajaste tantas canções comigo
E ainda há tantas por viajar
A bênção, Carlinhos Lyra
Parceiro cem por cento
Você que une a ação ao sentimento
E ao pensamento
A bênção, a bênção, Baden Powell
Amigo novo, parceiro novo
Que fizeste este samba comigo
A bênção, amigo
A bênção, maestro Moacir Santos
Não és um só, és tantos como
O meu Brasil de todos os santos
Inclusive meu São Sebastião
Saravá! A bênção, que eu vou partir
Eu vou ter que dizer adeus
Ponha um pouco de amor numa cadência
E vai ver que ninguém no mundo vence
A beleza que tem um samba, não
Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração
(vermelho.org)
Betinho
Filme registra passagem clandestina de Betinho por Mauá
Durante o fim da década de 1960, o sociólogo Herbert José de Souza, o Betinho, viveu clandestinamente em Mauá para escapar do regime militar e continuar atuando como membro da AP (Ação Popular). De acordo com a cineasta e cientista social Ana Paula Quintino, a passagem do ativista icônico pelo município “era quase uma lenda”, confirmada ao entrevistar quatro moradores que conviveram e colaboraram com os ideais políticos e humanos do mineiro que ficou conhecido como Chico no ABCD paulista.
O batismo falso tinha como intuito despistar a perseguição da ditadura, portanto, usava um “Nome Frio”, título do documentário de Ana Paula que será lançado na quarta-feira (29), às 19h, na Livraria Cultura do Market Place (avenida Dr. Chucri Zaidan, 902, Capital) e que narra o ano em que Betinho se escondeu e lutou em Mauá.
De acordo com a diretora do filme, o movimento do qual Betinho fazia parte tinha o seguinte lema: misturar intelectuais aos operários para propagar ideais e angariar aliados. “Mauá convergia duas situações que interessavam ao AP: era uma área industrial, porém interiorana, e o sociólogo pôde estruturar e influenciar os militantes locais com a bagagem que tinha”, declarou Ana Paula, moradora da cidade.
Betinho foi um dos fundadores da AP, cuja orientação era maoísta, e se estabeleceu no Jardim Zaíra com a mulher e o filho. “Boa parte do tempo que passou na cidade foi no bairro mais pobre, auxiliando a população a conseguir posto de saúde, saneamento básico e transporte”, disse a cineasta.
A pesquisa para o filme começou a ser feita em junho do ano passado e contou com entrevistas de Gilda Fioravantte, Getúlio de Souza, Josefina Gonçalves e Olivier Negri Filho, moradores que abrigaram e ajudaram a esconder o companheiro de luta, além da segunda esposa do ativista e da biógrafa, Carla Rodrigues. “Por intermédio do grande sociólogo pude contar a história de outras pessoas importantes que moram na cidade em que vivo.”
Operário
Apesar da saúde debilitada em decorrência da hemofilia, Betinho chegou a trabalhar como operário em uma das indústrias de Mauá. Foi funcionário da Porcelana Real para se aproximar do povo. No fim da estadia no município, após delatarem a base, viu-se obrigado a mudar para Santo André e depois exilou-se no Chile, uma vez que o cerco estava apertando e corria risco de vida.
Os amigos e parceiros que o receberam foram presos e torturados para que contassem o paradeiro do militante subversivo. “Eu e meu marido sofremos muito para que revelássemos a localização de Betinho, mas não abrimos o bico”, contou Gilda Fioravantte, que recebeu o sociólogo na casa em que morava na Vila Vitória. “A maior contribuição que ele nos trouxe foi a formação política para os jovens e adultos que queriam democracia”, enfatizou.
O financiamento do projeto é do Observatório Social do Instituto Henfil (Henfil era o cartunista irmão de Betinho), e a duração do filme é de 25 minutos.
Ana Paula Quintino já fez outro documentário que também tem Mauá como pano de fundo, “Sambaleço – A memória está no corpo”, e está em fase de produção do fim da trilogia mauaense com “Catira Ás de Ouro”, sobre um grupo cultural tombado da cidade. Tem ainda planos de um documentário sobre a vida de Celso Daniel.
(vermelho.org)
Durante o fim da década de 1960, o sociólogo Herbert José de Souza, o Betinho, viveu clandestinamente em Mauá para escapar do regime militar e continuar atuando como membro da AP (Ação Popular). De acordo com a cineasta e cientista social Ana Paula Quintino, a passagem do ativista icônico pelo município “era quase uma lenda”, confirmada ao entrevistar quatro moradores que conviveram e colaboraram com os ideais políticos e humanos do mineiro que ficou conhecido como Chico no ABCD paulista.
O batismo falso tinha como intuito despistar a perseguição da ditadura, portanto, usava um “Nome Frio”, título do documentário de Ana Paula que será lançado na quarta-feira (29), às 19h, na Livraria Cultura do Market Place (avenida Dr. Chucri Zaidan, 902, Capital) e que narra o ano em que Betinho se escondeu e lutou em Mauá.
De acordo com a diretora do filme, o movimento do qual Betinho fazia parte tinha o seguinte lema: misturar intelectuais aos operários para propagar ideais e angariar aliados. “Mauá convergia duas situações que interessavam ao AP: era uma área industrial, porém interiorana, e o sociólogo pôde estruturar e influenciar os militantes locais com a bagagem que tinha”, declarou Ana Paula, moradora da cidade.
Betinho foi um dos fundadores da AP, cuja orientação era maoísta, e se estabeleceu no Jardim Zaíra com a mulher e o filho. “Boa parte do tempo que passou na cidade foi no bairro mais pobre, auxiliando a população a conseguir posto de saúde, saneamento básico e transporte”, disse a cineasta.
A pesquisa para o filme começou a ser feita em junho do ano passado e contou com entrevistas de Gilda Fioravantte, Getúlio de Souza, Josefina Gonçalves e Olivier Negri Filho, moradores que abrigaram e ajudaram a esconder o companheiro de luta, além da segunda esposa do ativista e da biógrafa, Carla Rodrigues. “Por intermédio do grande sociólogo pude contar a história de outras pessoas importantes que moram na cidade em que vivo.”
Operário
Apesar da saúde debilitada em decorrência da hemofilia, Betinho chegou a trabalhar como operário em uma das indústrias de Mauá. Foi funcionário da Porcelana Real para se aproximar do povo. No fim da estadia no município, após delatarem a base, viu-se obrigado a mudar para Santo André e depois exilou-se no Chile, uma vez que o cerco estava apertando e corria risco de vida.
Os amigos e parceiros que o receberam foram presos e torturados para que contassem o paradeiro do militante subversivo. “Eu e meu marido sofremos muito para que revelássemos a localização de Betinho, mas não abrimos o bico”, contou Gilda Fioravantte, que recebeu o sociólogo na casa em que morava na Vila Vitória. “A maior contribuição que ele nos trouxe foi a formação política para os jovens e adultos que queriam democracia”, enfatizou.
O financiamento do projeto é do Observatório Social do Instituto Henfil (Henfil era o cartunista irmão de Betinho), e a duração do filme é de 25 minutos.
Ana Paula Quintino já fez outro documentário que também tem Mauá como pano de fundo, “Sambaleço – A memória está no corpo”, e está em fase de produção do fim da trilogia mauaense com “Catira Ás de Ouro”, sobre um grupo cultural tombado da cidade. Tem ainda planos de um documentário sobre a vida de Celso Daniel.
(vermelho.org)
DITADURA
Comissão da Meia Verdade, ou a volta da ‘conciliação nacional’ de Tancredo
Pedro Estevam da Rocha Pomar
Jornalista, editor da Revista Adusp
Adital
Aos desavisados, pode ter parecido que a aprovação do PL 7.376/2010 pela Câmara dos Deputados, na noite de 21 de setembro, foi uma vitória da democracia. Afinal de contas, o projeto impôs uma derrota aos setores de extrema-direita representados por parlamentares como o ex-capitão Jair Bolsonaro. Afinal de contas, dirão os otimistas, conseguiu-se criar a Comissão Nacional da Verdade, antiga reivindicação de ex-presos políticos e de familiares de desaparecidos políticos.
Ocorre que a Comissão Nacional da Verdade —na configuração em que foi aprovada e caso o Senado mantenha inalterado o texto do projeto— tende a resultar em mero embuste, um simulacro de investigação, tais as limitações que lhe foram impostas. Será preciso enorme pressão dos movimentos sociais para que elarepresente qualquer avanço em relação ao que já se sabe dos crimes cometidos pela Ditadura Militar, e, particularmente, para que obtenha qualquer progresso em matéria de punição dos autores intelectuais e materiais das atrocidades praticadas pelos órgãos de repressão política.
A verdade pura e simples é que o acordo mediante o qual o governo aceitou emendas do DEM, do PSDB e até do PPS, mas rejeitou sem apelação e sem remorsos as diversas emendas propostas pela esquerda e pelos movimentos sociais, é a renovação da transição conservadora de Tancredo Neves. O acordo que selou a "conciliação nacional”, celebrado nos estertores da Ditadura entre o líder do conservadorismo civil e a cúpula militar, foi preservado por Lula e acaba de ser repaginado e remoçado por Dilma Rousseff. Os militares são intocáveis, não importa que crimes tenham cometido, e seus financiadores e ideólogos civis idem.
Não foi por outra razão que o líder do DEM, deputado ACM Neto, subiu à tribuna ao final da sessão, minutos antes da votação decisiva, para elogiar "a boa fé e o espírito público” da presidenta da República. "O Democratas está pronto para votar, pronto para dizer sim à História do Brasil”, acrescentou gloriosamente. O deputado Duarte Nogueira, líder do PSDB, também comportou-se à altura da ocasião. Depois que o líder do governo, deputado Candido Vaccarezza, dispôs-se a incorporar uma emenda conjunta da deputada Luiza Erundina e do PSOL, Nogueira elegantemente pediu a palavra para objetar e declarar inaceitável o seu teor. Foi o que bastou para o líder do governo imediatamente recuar.
Muito sintomático do tipo de acordo que se arquitetou, e do papel que se pretende reservar à Comissão Nacional da Verdade, foram as repetidas homenagens que ACM Neto, Vaccarezza e até o líder do PT, deputado Paulo Teixeira, prestaram ao ex-ministro Nelson Jobim e ao seu assessor José Genoíno. Estes dois personagens foram osleva-e-trazdos altos comandos das Forças Armadas nas "negociações” entre estas e o governo ao qual deveriam prestar obediência. O líder do governo foi mais longe em suas demonstrações de subserviência e chegou a agradecer expressamente aos comandantes militares.
Na tribuna, o deputado Paulo Teixeira fraudou a história ao declarar que,"como todos sabem”, as violações ditatoriais"foram praticadas entre 1968 e 1980”! Portanto, não houve golpe militar nem qualquer atrocidade entre 1964 e 1968. Gregório Bezerra não foi arrastado seminu pelas ruas de Recife. Os militantes das ligas camponesas não foram executados pela repressão. Comunistas não foram presos e torturados na Bahia. Otenente-coronel aviador Alfeu de Alcântara Monteiro não foi assassinado na Base Aérea de Canoas, e o sargento Manoel Raimundo Soares não foi atirado, de mãos amarradas, nas águas do Guaíba. Nada disso. E, para arrematar, o líder do PT citou a boa tese de Tancredo: a "conciliação nacional”, a ser propiciada pela Comissão Nacional da Verdade.
O setor da esquerda que embarcou no acordo para manter viva a Ditadura acredita piamente que não é possível, nem desejável, avançar um milímetro em punições, porque a correlação de forças está dada, ad eternum, desde a transição. Nisso, consegue apequenar-se perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que, ao julgar o caso da Guerrilha do Araguaia, decretou que"as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos” e que "são inadmissíveis as disposições de anistias, as disposições de prescrição e o estabelecimento de excludentes de responsabilidade, que pretendam impedir a investigação e punição dos responsáveis por graves violações dos direitos humanos, como tortura, as execuções sumárias, extrajudiciárias ou arbitrárias e os desaparecimentos forçados”.
Mas qual será mesmo a finalidade da Comissão Nacional da Verdade, se contar com apenas sete membros, alguns dos quais poderão ser até militares; se não dispuser de autonomia financeira; se tiver de investigar quatro décadas em apenas dois anos; se for sujeita ao sigilo; e, finalmente, se não puder remeter suas conclusões ao Ministério Público e à Justiça, para que os autores dos crimes e atrocidades cometidos pela Ditadura Militar sejam julgados e processados na forma da lei?
A resposta é uma só. Na visão desse setor que envergonha a memória dos heróis tombados na luta contra a Ditadura, ela foi assim enunciada pelo ex-ministro Nilmário Miranda: "O objetivo principal da Comissão da Verdade é produzir um relatório que seja base para os currículos escolares. Essa que é a grande novidade, nunca tivemos isso na história do Brasil”.
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Pedro Estevam da Rocha Pomar
Jornalista, editor da Revista Adusp
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Aos desavisados, pode ter parecido que a aprovação do PL 7.376/2010 pela Câmara dos Deputados, na noite de 21 de setembro, foi uma vitória da democracia. Afinal de contas, o projeto impôs uma derrota aos setores de extrema-direita representados por parlamentares como o ex-capitão Jair Bolsonaro. Afinal de contas, dirão os otimistas, conseguiu-se criar a Comissão Nacional da Verdade, antiga reivindicação de ex-presos políticos e de familiares de desaparecidos políticos.
Ocorre que a Comissão Nacional da Verdade —na configuração em que foi aprovada e caso o Senado mantenha inalterado o texto do projeto— tende a resultar em mero embuste, um simulacro de investigação, tais as limitações que lhe foram impostas. Será preciso enorme pressão dos movimentos sociais para que elarepresente qualquer avanço em relação ao que já se sabe dos crimes cometidos pela Ditadura Militar, e, particularmente, para que obtenha qualquer progresso em matéria de punição dos autores intelectuais e materiais das atrocidades praticadas pelos órgãos de repressão política.
A verdade pura e simples é que o acordo mediante o qual o governo aceitou emendas do DEM, do PSDB e até do PPS, mas rejeitou sem apelação e sem remorsos as diversas emendas propostas pela esquerda e pelos movimentos sociais, é a renovação da transição conservadora de Tancredo Neves. O acordo que selou a "conciliação nacional”, celebrado nos estertores da Ditadura entre o líder do conservadorismo civil e a cúpula militar, foi preservado por Lula e acaba de ser repaginado e remoçado por Dilma Rousseff. Os militares são intocáveis, não importa que crimes tenham cometido, e seus financiadores e ideólogos civis idem.
Não foi por outra razão que o líder do DEM, deputado ACM Neto, subiu à tribuna ao final da sessão, minutos antes da votação decisiva, para elogiar "a boa fé e o espírito público” da presidenta da República. "O Democratas está pronto para votar, pronto para dizer sim à História do Brasil”, acrescentou gloriosamente. O deputado Duarte Nogueira, líder do PSDB, também comportou-se à altura da ocasião. Depois que o líder do governo, deputado Candido Vaccarezza, dispôs-se a incorporar uma emenda conjunta da deputada Luiza Erundina e do PSOL, Nogueira elegantemente pediu a palavra para objetar e declarar inaceitável o seu teor. Foi o que bastou para o líder do governo imediatamente recuar.
Muito sintomático do tipo de acordo que se arquitetou, e do papel que se pretende reservar à Comissão Nacional da Verdade, foram as repetidas homenagens que ACM Neto, Vaccarezza e até o líder do PT, deputado Paulo Teixeira, prestaram ao ex-ministro Nelson Jobim e ao seu assessor José Genoíno. Estes dois personagens foram osleva-e-trazdos altos comandos das Forças Armadas nas "negociações” entre estas e o governo ao qual deveriam prestar obediência. O líder do governo foi mais longe em suas demonstrações de subserviência e chegou a agradecer expressamente aos comandantes militares.
Na tribuna, o deputado Paulo Teixeira fraudou a história ao declarar que,"como todos sabem”, as violações ditatoriais"foram praticadas entre 1968 e 1980”! Portanto, não houve golpe militar nem qualquer atrocidade entre 1964 e 1968. Gregório Bezerra não foi arrastado seminu pelas ruas de Recife. Os militantes das ligas camponesas não foram executados pela repressão. Comunistas não foram presos e torturados na Bahia. Otenente-coronel aviador Alfeu de Alcântara Monteiro não foi assassinado na Base Aérea de Canoas, e o sargento Manoel Raimundo Soares não foi atirado, de mãos amarradas, nas águas do Guaíba. Nada disso. E, para arrematar, o líder do PT citou a boa tese de Tancredo: a "conciliação nacional”, a ser propiciada pela Comissão Nacional da Verdade.
O setor da esquerda que embarcou no acordo para manter viva a Ditadura acredita piamente que não é possível, nem desejável, avançar um milímetro em punições, porque a correlação de forças está dada, ad eternum, desde a transição. Nisso, consegue apequenar-se perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que, ao julgar o caso da Guerrilha do Araguaia, decretou que"as disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos” e que "são inadmissíveis as disposições de anistias, as disposições de prescrição e o estabelecimento de excludentes de responsabilidade, que pretendam impedir a investigação e punição dos responsáveis por graves violações dos direitos humanos, como tortura, as execuções sumárias, extrajudiciárias ou arbitrárias e os desaparecimentos forçados”.
Mas qual será mesmo a finalidade da Comissão Nacional da Verdade, se contar com apenas sete membros, alguns dos quais poderão ser até militares; se não dispuser de autonomia financeira; se tiver de investigar quatro décadas em apenas dois anos; se for sujeita ao sigilo; e, finalmente, se não puder remeter suas conclusões ao Ministério Público e à Justiça, para que os autores dos crimes e atrocidades cometidos pela Ditadura Militar sejam julgados e processados na forma da lei?
A resposta é uma só. Na visão desse setor que envergonha a memória dos heróis tombados na luta contra a Ditadura, ela foi assim enunciada pelo ex-ministro Nilmário Miranda: "O objetivo principal da Comissão da Verdade é produzir um relatório que seja base para os currículos escolares. Essa que é a grande novidade, nunca tivemos isso na história do Brasil”.
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Pensamentando
¿SOMOS TOLERANTES?
Maribel Rodríguez
Psiquiatra
Adital
En diferentes momentos de mi vida, me he encontrado a personas bienintencionadas, e incluso bondadosas que han mostrado diversas expresiones de intolerancia, hacia las opiniones, posiciones, religiones o perspectivas ajenas. Y la intolerancia me parece que, entre otras cosas, es más que miedo a mirar un mapa diferente al propio, por si acaso hay algo equivocado en el que tenemaribelmos.
Tener un mapa o un determinado esquema mental es legítimo y necesario, para todo el mundo. En general, los seres humanos pensamos que tenemos derecho a tener nuestros valores, parámetros ideas, inquietudes, etc. Si alguien pisa nuestra libertad a expresar nuestras ideas nos sentimos contrariados. Ya que se supone que vivimos en un mundo plural y tolerante y por eso, queremos tener derecho a pensar por nosotros mismos, a tener nuestra propia manera de ver el mundo.
Cada uno, cuando se mira a sí mismo, suele pensar que su punto de vista es el correcto. Pero a veces, hay quién cree que la incorrección está en pensar diferente a lo que piensa uno. ¿Y cuál es el criterio para saber que el propio punto de vista es el correcto? Podría ser que uno lo ha meditado profundamente, a través de una sesuda reflexión, introspección, autoconocimiento, experiencias personales, etc. Pero el problema es que esta no es la tónica general.
Muchas personas sostienen con ahínco sus mapas y esquemas personales, e incluso los exhiben con orgullo. Muchos de estos mapas pueden ser mapas muy completos y legítimos. Pero ¿qué ocurre si uno lleva debajo del brazo un mapa de un territorio que no ha explorado? ¿Qué ocurre si se lleva un mapa prestado por otro? ¿Qué pasa si uno afirma que algo es así porque se lo han dicho sus padres, como si éstos fueran dioses? Pues que este es un terreno abonado para el fanatismo, la ignorancia y por supuesto, el sufrimiento. Como ya dijo Chesterton "El hombre está dispuesto a morir por una idea, siempre que no tenga una idea muy clara de ella”. Es decir, luchamos con más fanatismo, con frecuencia, por las ideas en las que menos hemos profundizado y sobre las que menos hemos reflexionado. Es importante elaborar, pensar y digerir lo que se aprende y aprehenderlo, y por supuesto, experimentarlo (hasta donde sea posible).
Vivimos en una época en la que se predica sobre la libertad de expresión, que paradójicamente coexiste con una gran intolerancia a lo que no esté en sintonía con lo que se lleva. Por ejemplo, entre algunas personas que se llaman a sí mismas modernas y progresistas, hay actitudes intolerantes y despectivas hacia quienes no mantienen su misma ideología, que se supone que es abierta y tolerante. Con lo que se genera una militancia agresiva de la tolerancia, que es intolerante con cualquier posición opuesta a la propia. Lo mismo se puede decir de lo que sucede en algunas personas conservadoras, que por conservar los valores espirituales o religiosos, se cargan el alma de los que consideran ajenos a sus creencias, mediante insultos, burlas, condenaciones, etc. El mismo esquema mental de intolerancia, en un caso desde el aperturismo y en otro caso desde el supuesto amor al prójimo, se da en dos posturas aparentemente enfrentadas y opuestas. Una vez más, los extremos se tocan.
Por eso siempre he defendido el derecho a buscar la verdad por uno mismo, aunque uno pueda equivocarse. Es mejor tener una auténtica porción de la Verdad y saborearla, que siempre vivir de prestado. Es como si alguien dijese ser experto en los caminos y recorridos de Birmania, porque conoce unos mapas y ha visto unas fotos del país, o peor aún, porque alguien que pasó por allí le contó algo... Así que en mi caso, opto por ver a las personas antes que a sus mapas, y a defender su derecho a sostener sus mapas, a explorar la realidad, a expresar sus propias ideas y a ser libres. Pero sin perder criterio, reflexión, sentido común… pues no todas las verdades y caminos para buscarla son igualmente legítimos, ni es tolerable cualquier cosa, aunque sí toleremos y respetemos a las personas.
De ahí que mis amigos puedan ser cristianos, ateos, musulmanes, hindúes, budistas, agnósticos, etc. aunque yo sea cristiana. Cristo, entre otras cosas nos enseñó a amar a todos los seres humanos de la tierra, pensaran o no como uno mismo. Eso no significa que el cristiano pierda su identidad o principios por conocer a personas diferentes.
Cristo incluso planteó eso de amar a los enemigos, que a veces uno se cree que son los que llevan "mapas” diferentes a los nuestros. Si mirásemos a la persona en lugar de mirar y comparar los mapas, es muy probable que fuera mucho más sencillo tener y hacer amigos que enemigos y ver que, en lo más profundo de nuestras almas, todos buscamos lo mismo, Verdad, Bondad, Belleza y sobre todo Amor.
Lo malo es cuando no lo sabemos… O creemos que ya sabemos…
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- Mundo - Em Outubro a Terra terá 7 bilhões de pessoas
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Maribel Rodríguez
Psiquiatra
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En diferentes momentos de mi vida, me he encontrado a personas bienintencionadas, e incluso bondadosas que han mostrado diversas expresiones de intolerancia, hacia las opiniones, posiciones, religiones o perspectivas ajenas. Y la intolerancia me parece que, entre otras cosas, es más que miedo a mirar un mapa diferente al propio, por si acaso hay algo equivocado en el que tenemaribelmos.
Tener un mapa o un determinado esquema mental es legítimo y necesario, para todo el mundo. En general, los seres humanos pensamos que tenemos derecho a tener nuestros valores, parámetros ideas, inquietudes, etc. Si alguien pisa nuestra libertad a expresar nuestras ideas nos sentimos contrariados. Ya que se supone que vivimos en un mundo plural y tolerante y por eso, queremos tener derecho a pensar por nosotros mismos, a tener nuestra propia manera de ver el mundo.
Cada uno, cuando se mira a sí mismo, suele pensar que su punto de vista es el correcto. Pero a veces, hay quién cree que la incorrección está en pensar diferente a lo que piensa uno. ¿Y cuál es el criterio para saber que el propio punto de vista es el correcto? Podría ser que uno lo ha meditado profundamente, a través de una sesuda reflexión, introspección, autoconocimiento, experiencias personales, etc. Pero el problema es que esta no es la tónica general.
Muchas personas sostienen con ahínco sus mapas y esquemas personales, e incluso los exhiben con orgullo. Muchos de estos mapas pueden ser mapas muy completos y legítimos. Pero ¿qué ocurre si uno lleva debajo del brazo un mapa de un territorio que no ha explorado? ¿Qué ocurre si se lleva un mapa prestado por otro? ¿Qué pasa si uno afirma que algo es así porque se lo han dicho sus padres, como si éstos fueran dioses? Pues que este es un terreno abonado para el fanatismo, la ignorancia y por supuesto, el sufrimiento. Como ya dijo Chesterton "El hombre está dispuesto a morir por una idea, siempre que no tenga una idea muy clara de ella”. Es decir, luchamos con más fanatismo, con frecuencia, por las ideas en las que menos hemos profundizado y sobre las que menos hemos reflexionado. Es importante elaborar, pensar y digerir lo que se aprende y aprehenderlo, y por supuesto, experimentarlo (hasta donde sea posible).
Vivimos en una época en la que se predica sobre la libertad de expresión, que paradójicamente coexiste con una gran intolerancia a lo que no esté en sintonía con lo que se lleva. Por ejemplo, entre algunas personas que se llaman a sí mismas modernas y progresistas, hay actitudes intolerantes y despectivas hacia quienes no mantienen su misma ideología, que se supone que es abierta y tolerante. Con lo que se genera una militancia agresiva de la tolerancia, que es intolerante con cualquier posición opuesta a la propia. Lo mismo se puede decir de lo que sucede en algunas personas conservadoras, que por conservar los valores espirituales o religiosos, se cargan el alma de los que consideran ajenos a sus creencias, mediante insultos, burlas, condenaciones, etc. El mismo esquema mental de intolerancia, en un caso desde el aperturismo y en otro caso desde el supuesto amor al prójimo, se da en dos posturas aparentemente enfrentadas y opuestas. Una vez más, los extremos se tocan.
Por eso siempre he defendido el derecho a buscar la verdad por uno mismo, aunque uno pueda equivocarse. Es mejor tener una auténtica porción de la Verdad y saborearla, que siempre vivir de prestado. Es como si alguien dijese ser experto en los caminos y recorridos de Birmania, porque conoce unos mapas y ha visto unas fotos del país, o peor aún, porque alguien que pasó por allí le contó algo... Así que en mi caso, opto por ver a las personas antes que a sus mapas, y a defender su derecho a sostener sus mapas, a explorar la realidad, a expresar sus propias ideas y a ser libres. Pero sin perder criterio, reflexión, sentido común… pues no todas las verdades y caminos para buscarla son igualmente legítimos, ni es tolerable cualquier cosa, aunque sí toleremos y respetemos a las personas.
De ahí que mis amigos puedan ser cristianos, ateos, musulmanes, hindúes, budistas, agnósticos, etc. aunque yo sea cristiana. Cristo, entre otras cosas nos enseñó a amar a todos los seres humanos de la tierra, pensaran o no como uno mismo. Eso no significa que el cristiano pierda su identidad o principios por conocer a personas diferentes.
Cristo incluso planteó eso de amar a los enemigos, que a veces uno se cree que son los que llevan "mapas” diferentes a los nuestros. Si mirásemos a la persona en lugar de mirar y comparar los mapas, es muy probable que fuera mucho más sencillo tener y hacer amigos que enemigos y ver que, en lo más profundo de nuestras almas, todos buscamos lo mismo, Verdad, Bondad, Belleza y sobre todo Amor.
Lo malo es cuando no lo sabemos… O creemos que ya sabemos…
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segunda-feira, 26 de setembro de 2011
Paulo Freire
Paulo Freire: educação como processo libertador
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio
Adital
No último dia 19 de setembro faria 90 anos o grande educador brasileiro Paulo Freire. "Distraídos” estávamos pela vergonha da corrupção, a reunião de Nova York onde a presidente pronunciou discurso, o Rock in Rio e todas as idas e vindas dos times de futebol jogando inumeráveis e sempre novas competições para justificar seus milionários salários. Por isso, talvez, a data tenha passado menos celebrada do que seria justo e necessário. E por isso voltamos a ela ainda na "oitava” – nos oito dias que se seguem à mesma – para agregar homenagem a este que tanto a merece.
Paulo Freire nasceu em Recife, a 19 de setembro de 1921. Formou-se em Direito em 1947, mas cedo revelou sua paixão pela educação e pela cultura. No mesmo ano, assumiu a diretoria da Divisão de Educação e Cultura do Sesi-Pernambuco e em 1954 foi nomeado diretor superintendente do Departamento Regional do mesmo órgão, cargo que ocupou até outubro de 1956.
Em 1960 doutorou-se em Filosofia e História da Educação ao defender a tese "Educação e atualidade brasileira”, na qual lançou a proposta pioneira de uma escola democrática, centrada no educando e na problemática da comunidade em que está situado. O objetivo da educação aí traçado por Paulo Freire pretende ser capaz de provocar no estudante a passagem de uma consciência ingênua para uma consciência crítica e transformadora. Essa tese, levemente modificada, foi publicada sob o título "Educação como prática da liberdade”, primeira grande obra do notável pedagogo.
Em 1962, Paulo Freire criou o Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife, sendo seu primeiro diretor. E em 1963 sua obra ganhou amplidão nacional, com a experiência de alfabetização de Angicos, Rio Grande do Norte, onde foram lançadas as bases do Programa Nacional de Alfabetização do Governo João Goulart. O golpe militar extinguiu o Programa, que pretendia educar os brasileiros de forma libertadora, prendeu e exilou seu idealizador.
Paulo Freire passou a viver fora do Brasil: Bolívia, Chile, Estados Unidos, Suíça. Nesses países trabalhou incessantemente, escrevendo e disseminando suas ideias de uma pedagogia que partisse do universo vocabular do oprimido. Edificava seu método em palavras geradoras que vão construindo o mundo de expressão do indivíduo situado, o qual passa a ser sujeito de sua história e da transformação que ela exige. Suas obras adquiriram renome mundial e Paulo Freire, impedido de voltar à sua pátria, tornou-se um verdadeiro andarilho da educação, levando suas ideias e propostas mundo afora.
Ainda em Genebra dedicou-se de modo especial ao trabalho de educação em alguns países africanos e fundou o Instituto de Ação Cultural, juntamente com outros exilados. A anistia o trouxe de volta ao Brasil no início dos anos 1980. Lecionou, então, na PUC de São Paulo e na Unicamp, e assumiu, em 1989, o cargo de secretário de Educação da cidade de São Paulo. Em 1997, os olhos incansáveis do educador que não cessava de observar e "ruminar” a realidade para devolvê-la ao povo sob a forma de pedagogia libertadora fecharam-se. No Hospital Albert Einstein, na capital paulista, o coração que batia em ritmo acelerado em zelo constante por uma educação que libertasse o oprimido foi atingido por um infarto do miocárdio.
A morte, porém, não permitiu que Paulo Freire se ausentasse da frente da cena da educação no país e no continente. Seu método, que contempla o destinatário da educação sem empanturrá-lo de ideias a serem consumidas, mas dando-lhe espaço para fazer emergir suas ideias, criá-las e recriá-las sob a forma de palavras, continua mais vivo do que nunca. O caminho que Paulo Freire ousou seguir na alfabetização sonhava permitir a homens e mulheres se apropriarem da escrita e da palavra, a fim de se comprometerem politicamente a partir de uma visão integral da linguagem e do mundo. As experiências de vida partilhadas entre os educandos e a relação entre o educador e o educando eram e são ingredientes obrigatórios do processo educativo, que vai construindo, através dos temas e palavras geradoras dos alunos e sua decodificação, a aquisição da palavra escrita e da compreensão da mesma.
Em tempos de voraz consumo de tudo e de todos, inclusive da educação e do conhecimento, possa a celebração dos 90 anos deste grande pedagogo brasileiro ensinar-nos algumas coisas fundamentais. Por exemplo, que a educação, seja formal ou informal, familiar, escolar, ou universitária deve - antes de mais nada - ajudar a pensar sem impor; ajudar a criar sem oprimir; ajudar a interferir libertadoramente na realidade sem medo e sem censura.
[Autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).
Copyright 2011 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)].
(Adital)
Maria Clara Lucchetti Bingemer
Teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio
Adital
No último dia 19 de setembro faria 90 anos o grande educador brasileiro Paulo Freire. "Distraídos” estávamos pela vergonha da corrupção, a reunião de Nova York onde a presidente pronunciou discurso, o Rock in Rio e todas as idas e vindas dos times de futebol jogando inumeráveis e sempre novas competições para justificar seus milionários salários. Por isso, talvez, a data tenha passado menos celebrada do que seria justo e necessário. E por isso voltamos a ela ainda na "oitava” – nos oito dias que se seguem à mesma – para agregar homenagem a este que tanto a merece.
Paulo Freire nasceu em Recife, a 19 de setembro de 1921. Formou-se em Direito em 1947, mas cedo revelou sua paixão pela educação e pela cultura. No mesmo ano, assumiu a diretoria da Divisão de Educação e Cultura do Sesi-Pernambuco e em 1954 foi nomeado diretor superintendente do Departamento Regional do mesmo órgão, cargo que ocupou até outubro de 1956.
Em 1960 doutorou-se em Filosofia e História da Educação ao defender a tese "Educação e atualidade brasileira”, na qual lançou a proposta pioneira de uma escola democrática, centrada no educando e na problemática da comunidade em que está situado. O objetivo da educação aí traçado por Paulo Freire pretende ser capaz de provocar no estudante a passagem de uma consciência ingênua para uma consciência crítica e transformadora. Essa tese, levemente modificada, foi publicada sob o título "Educação como prática da liberdade”, primeira grande obra do notável pedagogo.
Em 1962, Paulo Freire criou o Serviço de Extensão Cultural da Universidade do Recife, sendo seu primeiro diretor. E em 1963 sua obra ganhou amplidão nacional, com a experiência de alfabetização de Angicos, Rio Grande do Norte, onde foram lançadas as bases do Programa Nacional de Alfabetização do Governo João Goulart. O golpe militar extinguiu o Programa, que pretendia educar os brasileiros de forma libertadora, prendeu e exilou seu idealizador.
Paulo Freire passou a viver fora do Brasil: Bolívia, Chile, Estados Unidos, Suíça. Nesses países trabalhou incessantemente, escrevendo e disseminando suas ideias de uma pedagogia que partisse do universo vocabular do oprimido. Edificava seu método em palavras geradoras que vão construindo o mundo de expressão do indivíduo situado, o qual passa a ser sujeito de sua história e da transformação que ela exige. Suas obras adquiriram renome mundial e Paulo Freire, impedido de voltar à sua pátria, tornou-se um verdadeiro andarilho da educação, levando suas ideias e propostas mundo afora.
Ainda em Genebra dedicou-se de modo especial ao trabalho de educação em alguns países africanos e fundou o Instituto de Ação Cultural, juntamente com outros exilados. A anistia o trouxe de volta ao Brasil no início dos anos 1980. Lecionou, então, na PUC de São Paulo e na Unicamp, e assumiu, em 1989, o cargo de secretário de Educação da cidade de São Paulo. Em 1997, os olhos incansáveis do educador que não cessava de observar e "ruminar” a realidade para devolvê-la ao povo sob a forma de pedagogia libertadora fecharam-se. No Hospital Albert Einstein, na capital paulista, o coração que batia em ritmo acelerado em zelo constante por uma educação que libertasse o oprimido foi atingido por um infarto do miocárdio.
A morte, porém, não permitiu que Paulo Freire se ausentasse da frente da cena da educação no país e no continente. Seu método, que contempla o destinatário da educação sem empanturrá-lo de ideias a serem consumidas, mas dando-lhe espaço para fazer emergir suas ideias, criá-las e recriá-las sob a forma de palavras, continua mais vivo do que nunca. O caminho que Paulo Freire ousou seguir na alfabetização sonhava permitir a homens e mulheres se apropriarem da escrita e da palavra, a fim de se comprometerem politicamente a partir de uma visão integral da linguagem e do mundo. As experiências de vida partilhadas entre os educandos e a relação entre o educador e o educando eram e são ingredientes obrigatórios do processo educativo, que vai construindo, através dos temas e palavras geradoras dos alunos e sua decodificação, a aquisição da palavra escrita e da compreensão da mesma.
Em tempos de voraz consumo de tudo e de todos, inclusive da educação e do conhecimento, possa a celebração dos 90 anos deste grande pedagogo brasileiro ensinar-nos algumas coisas fundamentais. Por exemplo, que a educação, seja formal ou informal, familiar, escolar, ou universitária deve - antes de mais nada - ajudar a pensar sem impor; ajudar a criar sem oprimir; ajudar a interferir libertadoramente na realidade sem medo e sem censura.
[Autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor” (Ed. Rocco).
Copyright 2011 – MARIA CLARA LUCCHETTI BINGEMER - É proibida a reprodução deste artigo em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização. Contato – MHPAL – Agência Literária (mhpal@terra.com.br)].
(Adital)
Esquivel
Carta de um Prêmio Nobel da Paz a outro
Adolfo Pérez Esquivel
Escritor - Prêmio Nobel da Paz
Adital
Tradução: ADITAL
Barack Obama: Se os Estados Unidos entram em default, a América Latina ajudará
Estimado Barack Obama,
Mais do que uma carta, a intenção é tentar ‘dar-te uma mão' desde a América Latina frente à crise econômica, política e de valores que atinge os Estados Unidos, a Europa, a Grécia e outros países do mal chamado "primeiro mundo”. Sempre afirmei que somos um só mundo mal distribuído e agora a crise toca aos intocáveis.
Como Fausto que, por um amor, vendeu sua alma ao diabo, o grave é que alguns países venderam sua alma à Bolsa que os embolsou e lhes reclama o pagamento da dívida e os juros; semelhante ao Mercador de Veneza que reclama o pagamento da dívida com uma libra de carne de seu próprio corpo.
Esclareçamos as coisas, Barack. A América Latina não pode dar-te crédito algum; está desfalcada graças à gentileza do FMI e do Banco Mundial, com suas receitas. O primeiro conselho é que não aceites receitas de organismos tóxicos. O que, sim, podemos fazer é transmitir-te algumas experiências que podem ajudar.
Temos que aprender a viver com a crise; nós a assumimos quase que como uma irmã mais velha. Algumas vezes a amamos e, outras vezes, a odiamos; são como problemas de família.
Temos que revisar e ver "que o armário de ideias está vazio”, como dizia alguém cujo nome não recordo; portanto, deves gerar ideias superadoras e aprender os mecanismos impostos pela dívida externa como instrumento de dominação. Nisso, vocês são mestres.
Porém, os latino-americanos sabemos bastante sobre as pragas bíblicas que são "esse monstro grande que pisa forte toda a inocência das pessoas”, como canta León.
Heráclito dizia que nunca nos banhamos nas mesmas águas, apesar de ser o mesmo rio. Tudo muda. Até teu país, que se cria poderoso amo do mundo, hoje, deve enfrentar a maior dívida externa do mundo, que deixa aos norte-americanos com a boca aberta e o bolso tremendo na angústia existencial, quando a Standard & Poor's faz sinal de negativo nas qualificações, no melhor estilo imperial.
Tenho que dizer-te que não tenho suficientes dedos nas mãos e nos pés para contar a dívida de teu país em bilhões, trilhões; cifras que não entram em minha cabeça, e tento compreender que o impossível é possível.
É demais para meus neurônios comprovar que o maior credor dos Estados Unidos é a China "capicomunista” e, entre os mistérios desse legendário país, é saber como fará para cobrar aos Estados Unidos a dívida externa. Porém, a China também controla o mercado de metais para alta tecnologia, o que torna os EUA mais dependentes da China. Tudo isso me parece um ‘conto chinês'.
Me pergunto: Os chineses terão que convocar aos seus deuses e magos de todas as dinastias e ao sábio Confúcio, que deve estar bem confuso com o que acontece em teu país? Quem sabe! Nisso não podemos ajudar-te. O que, sim, podemos, é ensinar-te o jogo da dívida externa:
1. Deves saber que as regras são postas pelos que mandam e não por teu país, que passou a ser membro do clube dos devedores. Portanto: "Bem vindo ao clube dos devedores!”
2. No jogo, os credores usam dados viciados e o resultado será sempre o mesmo: "quanto mais pagas, mais deves e menos tens”. Jogar é uma forma de fazer-te acreditar que podes ganhar.
3. Não te desesperes; o jogo vem com surpresas. Estás condenado à perpetuidade, como o mítico Sísifo: nunca chegarás ao cume; uma e outra vezes deves carregar o peso da dívida que, passo a passo, pesa mais e mais.
Pega o lápis, estimado Barack, e anota; porém, não te desesperes; coloca todos os números que queiras e sempre obterás o mesmo resultado.
Até o momento, aplicaste um duro programa de ajuste fiscal em gastos sociais, educação, saúde, alimentação por 2,5 bilhões de dólares e aumentaste o gasto militar com a cumplicidade do Congresso para elevar o endividamento até 16,4 bilhões de dólares, cifra superior em uns dois bilhões ao PIB de teu país. Segundo os dados que o politólogo Atilio Borón recolhe em sua nota "Uma estafa de 16 bilhões de dólares”. Não perderei tempo em colocar dados que já tens.
Se continuas com essa loucura, esperando resolver o déficit, é como colocar a cabeça na guilhotina para que tu mesmo a cortes. Estimado Barack, por favor, não sejas suicida. Tenta encarar políticas públicas a favor de teu povo para evitar que o país pegue fogo, como está acontecendo na Europa e em outras latitudes, com os indignados... indignadíssimos...
Em vez de enfrentar a pobreza, a fome e o desemprego que atinge a mais de 54 milhões de pessoas, envias milhões de dólares para salvar aos que mais têm. São 659 milhões de dólares que foram abonados a instituições bancárias e a empresas financeiras. Algo cheira mal, Barack, e pode apodrecer.
Teu governo decidiu continuar aumentando o gasto militar, as bases em diversas partes do mundo, para promover guerras e conflitos à custa do direito de teu povo e de outros povos, vítimas de teu país. Se crês que apoiando o complexo industrial-militar resolverás a crise, chegarás a um ponto sem retorno.
Não deves esquecer que quem semeia violência recolhe mais violência; teu país suportando o bumerangue das receitas neoliberais que impuseram a outros povos. Tens uma possibilidade: nos EUA há pessoas sábias e com ideias que têm propostas para teu armário vazio e podem ajudar a superar a crise.
Porém, vamos ao concreto e tentemos visualizar algumas soluções. Como o problema é muito mais complexo, se necessita ter pensamento holístico:
Quanto custa aos Estados Unidos a guerra no Iraque?
Teu antecessor, George W. Bush, mais mentiroso do que Pinóquio, disse que a guerra no Iraque custaria 50 bilhões de dólares. Os EUA estão gastando essa quantia no Iraque a cada três meses, como diz o Prêmio Nobel de Economia, Joseph Stiglitz: "Se situamos essa quantidade em seu marco, o resultado é que por uma sexta parte do custo da guerra dos EUA, seu sistema de seguridade social poderia ser dotado de uma sólida base econômica durante mais de meio século, sem reduzir as prestações sociais e nem aumentar as contribuições”. Mais claro, impossível.
Quanto custa uma bomba que teu exército e teus aliados detonam sobre a Líbia, o Iraque e o Afeganistão?
Te recordo que 146 entidades financeiras de 16 países investiram e prestaram serviços financeiros pelo valor de 43 bilhões de dólares para fabricar bombas de fragmentação entre os anos de 2007 e 2009.
Um míssil Trident DII5, de longo alcance, pode transportar uma cabeça nuclear e seu custo é de 30.9 milhões de dólares. A empresa Lockheed Martín é a contratista ganhadora a um custo de 789,9 milhões de dólares.
Quanto custa um tanque de guerra e um avião de combate?
Anota, Barack, pára não esquecer e soma as cifras inimagináveis para promover a morte e a destruição.
Outra pergunta: Te povo sabe quanto o governo gasta em guerras que desencadeiam em diversas partes do mundo e para onde vão os impostos que pagam?
O AH-Apache, usado pelos Estados Unidos no Iraque, é um helicóptero de ataque utilizado pelos britânicos, por Israel, pelo Japão e outros; o custo do programa foi de 10 bilhões e 500 milhões de dólares. O custo de despegue é de 18 milhões de dólares e o custo de compra da versão AH-64D, em 2003, era de 56 milhões de dólares.
Aqui vem o prato principal: Segundo a TIME, na lista de 2009, um simples caça de combate costa 94 milhões de dólares e soma até o poderoso e letal bombardeio avaliado em 2.400 milhões de dólares o B-2 SPIRIT.
Nem falar dos porta-aviões que entram no imaginário do incrível; porém, dolorosamente certo, como a classe NIMITZ, que alcançam por unidade os 4.000 milhões de dólares; que necessita um equipamento anual de 150 milhões de dólares. Isso sem contar os 80 aviões que podem aumentar sua capacidade até 100.
Me cansei, Barack; estou esgotado com tanta loucura e irresponsabilidade... Necessito respirar.
Porém, temos que continuar. Outras medidas que podes utilizar para reduzir o déficit de teu país –medidas que prometeste; porém, não cumpriste- é fechar as prisões de Abu-Graib (Iraque) de Guantánamo (Cuba). E levantar o bloqueio a Cuba e liberar aos cinco cubanos que manténs presos por mais de 10 anos. Isso permitiria que teu país economizasse milhões de dólares. Me diz, Barack: Quanto custa ao teu país o salário dos torturadores, assassinos e carcereiros formados na Escola das Américas, que, mesmo tendo mudado de nome, continua usando os mesmos métodos?
O problema mais grave que atinge ao teu país é o medo. Medo dos demais e medo de si mesmo. Porém, se empenha em aferrar-se ao salva vidas de chumbo e inventa mecanismos de segurança que torna a vida mais insegura e angustiante. O orçamento militar de teu país para 2011 supera os 700 bilhões de dólares.
As guerras, o petróleo, os minérios, a água, o poder político e econômico custam milhares de vidas humanas; provocam fome e violência. Porém, para os que mandam, negócios são negócios; e a humanidade passa a ser uma abstração.
Hoje é a Líbia; a guerra pelo petróleo. Amanhã? Será pela água, pelos recursos e bens naturais? Quem sabe! O que, sim, sabemos é que estás hipotecando o presente e destruindo o futuro de teu povo e de outros povos do mundo.
Não podemos continuar lamentando a situação em que vivemos; devemos construir na esperança. Te proponho o seguinte:
Doa o valor de um dos aviões de combate e, como dizia Raoul Follereau, poderás ver quantos hospitais, escolas e empregos dignos podem ser construídos para os povos.
Com o valor de uma das bombas que teu exército joga sobre o Iraque, o Afeganistão ou a Líbia podem ser construídos centros de saúde e dar de comer e educar a milhões de crianças, que te oferecerão um sorriso e esperança de vida.
Se fossem somados todos os milhões investidos para a morte, quanto mais teu país poderia fazer para a vida de teu povo e da humanidade? Poderias pagar a dívida externa e interna.
Minha saudação de Paz e Bem.
(Adital)
Adolfo Pérez Esquivel
Escritor - Prêmio Nobel da Paz
Adital
Tradução: ADITAL
Barack Obama: Se os Estados Unidos entram em default, a América Latina ajudará
Estimado Barack Obama,
Mais do que uma carta, a intenção é tentar ‘dar-te uma mão' desde a América Latina frente à crise econômica, política e de valores que atinge os Estados Unidos, a Europa, a Grécia e outros países do mal chamado "primeiro mundo”. Sempre afirmei que somos um só mundo mal distribuído e agora a crise toca aos intocáveis.
Como Fausto que, por um amor, vendeu sua alma ao diabo, o grave é que alguns países venderam sua alma à Bolsa que os embolsou e lhes reclama o pagamento da dívida e os juros; semelhante ao Mercador de Veneza que reclama o pagamento da dívida com uma libra de carne de seu próprio corpo.
Esclareçamos as coisas, Barack. A América Latina não pode dar-te crédito algum; está desfalcada graças à gentileza do FMI e do Banco Mundial, com suas receitas. O primeiro conselho é que não aceites receitas de organismos tóxicos. O que, sim, podemos fazer é transmitir-te algumas experiências que podem ajudar.
Temos que aprender a viver com a crise; nós a assumimos quase que como uma irmã mais velha. Algumas vezes a amamos e, outras vezes, a odiamos; são como problemas de família.
Temos que revisar e ver "que o armário de ideias está vazio”, como dizia alguém cujo nome não recordo; portanto, deves gerar ideias superadoras e aprender os mecanismos impostos pela dívida externa como instrumento de dominação. Nisso, vocês são mestres.
Porém, os latino-americanos sabemos bastante sobre as pragas bíblicas que são "esse monstro grande que pisa forte toda a inocência das pessoas”, como canta León.
Heráclito dizia que nunca nos banhamos nas mesmas águas, apesar de ser o mesmo rio. Tudo muda. Até teu país, que se cria poderoso amo do mundo, hoje, deve enfrentar a maior dívida externa do mundo, que deixa aos norte-americanos com a boca aberta e o bolso tremendo na angústia existencial, quando a Standard & Poor's faz sinal de negativo nas qualificações, no melhor estilo imperial.
Tenho que dizer-te que não tenho suficientes dedos nas mãos e nos pés para contar a dívida de teu país em bilhões, trilhões; cifras que não entram em minha cabeça, e tento compreender que o impossível é possível.
É demais para meus neurônios comprovar que o maior credor dos Estados Unidos é a China "capicomunista” e, entre os mistérios desse legendário país, é saber como fará para cobrar aos Estados Unidos a dívida externa. Porém, a China também controla o mercado de metais para alta tecnologia, o que torna os EUA mais dependentes da China. Tudo isso me parece um ‘conto chinês'.
Me pergunto: Os chineses terão que convocar aos seus deuses e magos de todas as dinastias e ao sábio Confúcio, que deve estar bem confuso com o que acontece em teu país? Quem sabe! Nisso não podemos ajudar-te. O que, sim, podemos, é ensinar-te o jogo da dívida externa:
1. Deves saber que as regras são postas pelos que mandam e não por teu país, que passou a ser membro do clube dos devedores. Portanto: "Bem vindo ao clube dos devedores!”
2. No jogo, os credores usam dados viciados e o resultado será sempre o mesmo: "quanto mais pagas, mais deves e menos tens”. Jogar é uma forma de fazer-te acreditar que podes ganhar.
3. Não te desesperes; o jogo vem com surpresas. Estás condenado à perpetuidade, como o mítico Sísifo: nunca chegarás ao cume; uma e outra vezes deves carregar o peso da dívida que, passo a passo, pesa mais e mais.
Pega o lápis, estimado Barack, e anota; porém, não te desesperes; coloca todos os números que queiras e sempre obterás o mesmo resultado.
Até o momento, aplicaste um duro programa de ajuste fiscal em gastos sociais, educação, saúde, alimentação por 2,5 bilhões de dólares e aumentaste o gasto militar com a cumplicidade do Congresso para elevar o endividamento até 16,4 bilhões de dólares, cifra superior em uns dois bilhões ao PIB de teu país. Segundo os dados que o politólogo Atilio Borón recolhe em sua nota "Uma estafa de 16 bilhões de dólares”. Não perderei tempo em colocar dados que já tens.
Se continuas com essa loucura, esperando resolver o déficit, é como colocar a cabeça na guilhotina para que tu mesmo a cortes. Estimado Barack, por favor, não sejas suicida. Tenta encarar políticas públicas a favor de teu povo para evitar que o país pegue fogo, como está acontecendo na Europa e em outras latitudes, com os indignados... indignadíssimos...
Em vez de enfrentar a pobreza, a fome e o desemprego que atinge a mais de 54 milhões de pessoas, envias milhões de dólares para salvar aos que mais têm. São 659 milhões de dólares que foram abonados a instituições bancárias e a empresas financeiras. Algo cheira mal, Barack, e pode apodrecer.
Teu governo decidiu continuar aumentando o gasto militar, as bases em diversas partes do mundo, para promover guerras e conflitos à custa do direito de teu povo e de outros povos, vítimas de teu país. Se crês que apoiando o complexo industrial-militar resolverás a crise, chegarás a um ponto sem retorno.
Não deves esquecer que quem semeia violência recolhe mais violência; teu país suportando o bumerangue das receitas neoliberais que impuseram a outros povos. Tens uma possibilidade: nos EUA há pessoas sábias e com ideias que têm propostas para teu armário vazio e podem ajudar a superar a crise.
Porém, vamos ao concreto e tentemos visualizar algumas soluções. Como o problema é muito mais complexo, se necessita ter pensamento holístico:
Quanto custa aos Estados Unidos a guerra no Iraque?
Teu antecessor, George W. Bush, mais mentiroso do que Pinóquio, disse que a guerra no Iraque custaria 50 bilhões de dólares. Os EUA estão gastando essa quantia no Iraque a cada três meses, como diz o Prêmio Nobel de Economia, Joseph Stiglitz: "Se situamos essa quantidade em seu marco, o resultado é que por uma sexta parte do custo da guerra dos EUA, seu sistema de seguridade social poderia ser dotado de uma sólida base econômica durante mais de meio século, sem reduzir as prestações sociais e nem aumentar as contribuições”. Mais claro, impossível.
Quanto custa uma bomba que teu exército e teus aliados detonam sobre a Líbia, o Iraque e o Afeganistão?
Te recordo que 146 entidades financeiras de 16 países investiram e prestaram serviços financeiros pelo valor de 43 bilhões de dólares para fabricar bombas de fragmentação entre os anos de 2007 e 2009.
Um míssil Trident DII5, de longo alcance, pode transportar uma cabeça nuclear e seu custo é de 30.9 milhões de dólares. A empresa Lockheed Martín é a contratista ganhadora a um custo de 789,9 milhões de dólares.
Quanto custa um tanque de guerra e um avião de combate?
Anota, Barack, pára não esquecer e soma as cifras inimagináveis para promover a morte e a destruição.
Outra pergunta: Te povo sabe quanto o governo gasta em guerras que desencadeiam em diversas partes do mundo e para onde vão os impostos que pagam?
O AH-Apache, usado pelos Estados Unidos no Iraque, é um helicóptero de ataque utilizado pelos britânicos, por Israel, pelo Japão e outros; o custo do programa foi de 10 bilhões e 500 milhões de dólares. O custo de despegue é de 18 milhões de dólares e o custo de compra da versão AH-64D, em 2003, era de 56 milhões de dólares.
Aqui vem o prato principal: Segundo a TIME, na lista de 2009, um simples caça de combate costa 94 milhões de dólares e soma até o poderoso e letal bombardeio avaliado em 2.400 milhões de dólares o B-2 SPIRIT.
Nem falar dos porta-aviões que entram no imaginário do incrível; porém, dolorosamente certo, como a classe NIMITZ, que alcançam por unidade os 4.000 milhões de dólares; que necessita um equipamento anual de 150 milhões de dólares. Isso sem contar os 80 aviões que podem aumentar sua capacidade até 100.
Me cansei, Barack; estou esgotado com tanta loucura e irresponsabilidade... Necessito respirar.
Porém, temos que continuar. Outras medidas que podes utilizar para reduzir o déficit de teu país –medidas que prometeste; porém, não cumpriste- é fechar as prisões de Abu-Graib (Iraque) de Guantánamo (Cuba). E levantar o bloqueio a Cuba e liberar aos cinco cubanos que manténs presos por mais de 10 anos. Isso permitiria que teu país economizasse milhões de dólares. Me diz, Barack: Quanto custa ao teu país o salário dos torturadores, assassinos e carcereiros formados na Escola das Américas, que, mesmo tendo mudado de nome, continua usando os mesmos métodos?
O problema mais grave que atinge ao teu país é o medo. Medo dos demais e medo de si mesmo. Porém, se empenha em aferrar-se ao salva vidas de chumbo e inventa mecanismos de segurança que torna a vida mais insegura e angustiante. O orçamento militar de teu país para 2011 supera os 700 bilhões de dólares.
As guerras, o petróleo, os minérios, a água, o poder político e econômico custam milhares de vidas humanas; provocam fome e violência. Porém, para os que mandam, negócios são negócios; e a humanidade passa a ser uma abstração.
Hoje é a Líbia; a guerra pelo petróleo. Amanhã? Será pela água, pelos recursos e bens naturais? Quem sabe! O que, sim, sabemos é que estás hipotecando o presente e destruindo o futuro de teu povo e de outros povos do mundo.
Não podemos continuar lamentando a situação em que vivemos; devemos construir na esperança. Te proponho o seguinte:
Doa o valor de um dos aviões de combate e, como dizia Raoul Follereau, poderás ver quantos hospitais, escolas e empregos dignos podem ser construídos para os povos.
Com o valor de uma das bombas que teu exército joga sobre o Iraque, o Afeganistão ou a Líbia podem ser construídos centros de saúde e dar de comer e educar a milhões de crianças, que te oferecerão um sorriso e esperança de vida.
Se fossem somados todos os milhões investidos para a morte, quanto mais teu país poderia fazer para a vida de teu povo e da humanidade? Poderias pagar a dívida externa e interna.
Minha saudação de Paz e Bem.
(Adital)
Palestina
Robert Fisk: Obama fala aos marcianos
Hoje Mahmoud Abbas deveria viver seus melhores momentos. Mesmo o New York Times descobriu que “um homem cinza em ternos cinzas e sapatos sensíveis, pode estar lentamente emergindo de sua própria sombra”. Mas isso é nonsense.
Por Robert Fisk, no Independet
O líder incolor da Autoridade Palestina, que escreveu um livro de 600 páginas sobre o conflito de seu povo com Israel sem mencionar uma só vez a palavra “ocupação”, não deveria ter dificuldades esta noite para fazer melhor que o discurso patético e humilhante de Barack Hussein Obama nas Nações Unidas, na quarta-feira, no qual ele entregou a política dos Estados Unidos no Oriente Médio ao governo engenhoso de Israel.
Para o presidente norte-americano que já pediu o fim da ocupação israelense de terras árabes, o fim do roubo de terras árabes na Cisjordânia — “assentamentos” israelenses é o que ele usava — e um estado palestino até 2011, a performance de Obama foi patética.
Como sempre, Hanan Ashrawi, a única voz palestina eloquente em Nova York esta semana, acertou. “Não pude acreditar no que ouvi”, ela disse ao Haaretz, o melhor dos jornais israelenses. “Soou como se os palestinos estivessem ocupando Israel. Não houve uma palavra de empatia com os palestinos. Ele falou apenas das dificuldades dos israelenses…” É bem verdade. E, como sempre, os mais sãos dos jornalistas israelenses, em sua condenação aberta de Obama, provaram que os príncipes do jornalismo norte-americano foram covardes. ” O claudicante, pouco imaginativo discurso que o presidente dos Estados Unidos fez nas Nações Unidas… reflete quanto o presidente norte-americano é incapaz de enfrentar a realidade do Oriente Médio”, escreveu Yael Sternhell.
E assim como os dias vão e vem, descobriremos se os palestinos vão responder à performance tíbia de Obama com uma terceira intifada ou com um dar de ombros de quem reconhece que sempre foi assim, que os fatos continuam a provar que o governo dos Estados Unidos permanece uma ferramenta de Israel, quando se trata da recusa de Israel em dar aos palestinos um estado.
Como é, perguntamos, que o embaixador dos Estados Unidos em Israel, Dan Shapiro, voou de Tel Aviv a Nova York para o debate sobre o estado palestino no mesmo avião que o primeiro-ministro israelense Netanyahu? Como é que Netanyahu estava muito ocupado batendo papo com o presidente colombiano em vez de ouvir o discurso de Obama? Ele apenas olhou de relance na parte do texto que mencionava os palestinos, quando estava ao vivo, face a face, com o presidente norte-americano. Isso não foi “chutzpah”. Foi insulto, puro e simples.
E Obama mereceu. Depois de elogiar a primavera/verão/outono árabe, seja lá o que for — mencionando os atos de coragem individual de tunisianos árabes e egípcios como se ele, Obama, tivesse estado por trás do Acordar Árabe o tempo todo, o homem se dignou a dar 10 minutos de seu tempo aos palestinos, esbofeteando-os por ousar pedir um estado nas Nações Unidas. Obama até sugeriu — e esta foi a parte mais engraçada de seu disparatado discurso nas Nações Unidas — que os palestinos e os israelenses eram dois “partidos” iguais no conflito.
Um marciano que ouvisse o discurso pensaria que, como sugeriu a srta. Ashrawi, os palestinos estão ocupando Israel em vez do contrário. Nenhuma menção da ocupação israelense, nenhuma menção de refugiados, do direito de retorno ou do roubo de terra árabe-palestina pelo governo israelense violando todas as leis internacionais. Mas Obama lamentou pelo povo cercado de Israel, pelos foguetes atirados contra suas casas, pelas bombas suicidas — pecados palestinos, naturalmente, mas nenhuma referência à carnificina de Gaza, às mortes massivas de palestinos — e mesmo pela perseguição histórica do povo judeu e pelo Holocauto.
A perseguição é um fato histórico. Assim é o maligno Holocausto. Mas os palestinos não cometeram estes atos. Foram os europeus — cuja ajuda Obama agora busca para negar o estado aos palestinos — que cometerem esse crime dos crimes. E então voltamos ao trecho dos “partidos iguais”, como se os israelenses ocupantes e os palestinos ocupados estivessem em um mesmo campo.
Madeleine Albright adotava esta mentira abominável. “Cabe aos próprios partidos”, ela dizia, lavando as mãos, como Pilatos, das negociações, assim que Israel ameaçava chamar seus apoiadores nos Estados Unidos. Ninguém sabe se Mahmoud Abbas conseguirá produzir um discurso de 1940 nas Nações Unidas, hoje. Mas pelo menos já sabemos quem é o apaziguador.
Tradução: Luiz Carlos Azenha
PS do Viomundo: Obama quer se reeleger. Para isso, precisa vencer em Ohio e na Flórida. Qualquer palavra de desafio às posições de Israel coloca em risco a vitória de Obama nos dois estados. Ou seja, é o instinto de sobrevivência…
Hoje Mahmoud Abbas deveria viver seus melhores momentos. Mesmo o New York Times descobriu que “um homem cinza em ternos cinzas e sapatos sensíveis, pode estar lentamente emergindo de sua própria sombra”. Mas isso é nonsense.
Por Robert Fisk, no Independet
O líder incolor da Autoridade Palestina, que escreveu um livro de 600 páginas sobre o conflito de seu povo com Israel sem mencionar uma só vez a palavra “ocupação”, não deveria ter dificuldades esta noite para fazer melhor que o discurso patético e humilhante de Barack Hussein Obama nas Nações Unidas, na quarta-feira, no qual ele entregou a política dos Estados Unidos no Oriente Médio ao governo engenhoso de Israel.
Para o presidente norte-americano que já pediu o fim da ocupação israelense de terras árabes, o fim do roubo de terras árabes na Cisjordânia — “assentamentos” israelenses é o que ele usava — e um estado palestino até 2011, a performance de Obama foi patética.
Como sempre, Hanan Ashrawi, a única voz palestina eloquente em Nova York esta semana, acertou. “Não pude acreditar no que ouvi”, ela disse ao Haaretz, o melhor dos jornais israelenses. “Soou como se os palestinos estivessem ocupando Israel. Não houve uma palavra de empatia com os palestinos. Ele falou apenas das dificuldades dos israelenses…” É bem verdade. E, como sempre, os mais sãos dos jornalistas israelenses, em sua condenação aberta de Obama, provaram que os príncipes do jornalismo norte-americano foram covardes. ” O claudicante, pouco imaginativo discurso que o presidente dos Estados Unidos fez nas Nações Unidas… reflete quanto o presidente norte-americano é incapaz de enfrentar a realidade do Oriente Médio”, escreveu Yael Sternhell.
E assim como os dias vão e vem, descobriremos se os palestinos vão responder à performance tíbia de Obama com uma terceira intifada ou com um dar de ombros de quem reconhece que sempre foi assim, que os fatos continuam a provar que o governo dos Estados Unidos permanece uma ferramenta de Israel, quando se trata da recusa de Israel em dar aos palestinos um estado.
Como é, perguntamos, que o embaixador dos Estados Unidos em Israel, Dan Shapiro, voou de Tel Aviv a Nova York para o debate sobre o estado palestino no mesmo avião que o primeiro-ministro israelense Netanyahu? Como é que Netanyahu estava muito ocupado batendo papo com o presidente colombiano em vez de ouvir o discurso de Obama? Ele apenas olhou de relance na parte do texto que mencionava os palestinos, quando estava ao vivo, face a face, com o presidente norte-americano. Isso não foi “chutzpah”. Foi insulto, puro e simples.
E Obama mereceu. Depois de elogiar a primavera/verão/outono árabe, seja lá o que for — mencionando os atos de coragem individual de tunisianos árabes e egípcios como se ele, Obama, tivesse estado por trás do Acordar Árabe o tempo todo, o homem se dignou a dar 10 minutos de seu tempo aos palestinos, esbofeteando-os por ousar pedir um estado nas Nações Unidas. Obama até sugeriu — e esta foi a parte mais engraçada de seu disparatado discurso nas Nações Unidas — que os palestinos e os israelenses eram dois “partidos” iguais no conflito.
Um marciano que ouvisse o discurso pensaria que, como sugeriu a srta. Ashrawi, os palestinos estão ocupando Israel em vez do contrário. Nenhuma menção da ocupação israelense, nenhuma menção de refugiados, do direito de retorno ou do roubo de terra árabe-palestina pelo governo israelense violando todas as leis internacionais. Mas Obama lamentou pelo povo cercado de Israel, pelos foguetes atirados contra suas casas, pelas bombas suicidas — pecados palestinos, naturalmente, mas nenhuma referência à carnificina de Gaza, às mortes massivas de palestinos — e mesmo pela perseguição histórica do povo judeu e pelo Holocauto.
A perseguição é um fato histórico. Assim é o maligno Holocausto. Mas os palestinos não cometeram estes atos. Foram os europeus — cuja ajuda Obama agora busca para negar o estado aos palestinos — que cometerem esse crime dos crimes. E então voltamos ao trecho dos “partidos iguais”, como se os israelenses ocupantes e os palestinos ocupados estivessem em um mesmo campo.
Madeleine Albright adotava esta mentira abominável. “Cabe aos próprios partidos”, ela dizia, lavando as mãos, como Pilatos, das negociações, assim que Israel ameaçava chamar seus apoiadores nos Estados Unidos. Ninguém sabe se Mahmoud Abbas conseguirá produzir um discurso de 1940 nas Nações Unidas, hoje. Mas pelo menos já sabemos quem é o apaziguador.
Tradução: Luiz Carlos Azenha
PS do Viomundo: Obama quer se reeleger. Para isso, precisa vencer em Ohio e na Flórida. Qualquer palavra de desafio às posições de Israel coloca em risco a vitória de Obama nos dois estados. Ou seja, é o instinto de sobrevivência…
Graciliano
Angústia: quando o problema é o herói
O grande romance de Graciliano Ramos foi publicado inicialmente em agosto de 1936, quando o autor estava trancafiado nos cárceres do Estado Novo, é uma das mais importantes obras literárias modernas no Brasil.
Por José Carlos Ruy
“Angústia”, de Graciliano Ramos, publicado em agosto de 1936 (há 75 anos, portanto) é reconhecidamente um dos mais importantes romances brasileiros modernos. A história de Luís da Silva, filho da oligarquia rural decadente que se tornou funcionário público e um medíocre subliterato, fornece a trama para uma realística (e cruel) descrição (ou narração – como decidir, neste caso, o dilema proposto por Lukacs?) das contradições provocadas pelas profundas mudanças que a sociedade brasileira vivia, forjando a modernidade perversa e mal resolvida que predominou no país nas décadas seguintes.
Alguns já viram o romance “Angústia”, recheado de frustrações e de um amor fracassado, como “existencialista”. Avaliação provocada, talvez, pela ousada experiência narrativa que o romance é: tudo se passa, na mente de Luís da Silva, nos instantes seguintes ao crime que ele cometeu, o assassinato de seu desafeto Julião Tavares.
As imagens se sucedem, em sua mente, num fluxo de consciência intenso. Alfredo Bosi diz (em História Concisa da Literatura Brasileira, São Paulo, 1972) que “o livro avança com a rapidez de um objeto que cai”. A novidade narrativa representada pelo monólogo interior e pelo fluxo de consciência, inaugurada por James Joyce e incorporada por Graciliano Ramos (e também, em outro registro, por Clarice Lispector), parece fundamentar a leitura “existencialista”. Trata-se de um recurso que permite o embaralhamento do tempo, misturando presente, passado e futuro (como ocorre, realmente, em nosso pensamento) e faz supor que toda a trama se situa apenas no indivíduo e suas vicissitudes e na maneira como ele percebe o mundo e suas contradições e reage a elas.
Luís da Silva, correndo pelo trilho da ferrovia, fugindo ao crime que cometera, repassa a trajetória concluída por aquela tragédia, revê sua miséria humana, sua impotência ante o pequeno mundo no qual vivia e que o obrigava a funções burocráticas destituídas de significado, na repartição (o trabalho alienado e sem sentido descrito por Karl Marx) ou a prostituir-se literariamente na mesquinha imprensa local escrevendo o que lhe mandassem, concordasse ou não, desde que recebesse alguns trocados para reforçar o orçamento. Revê também a aurora representada pela aparição de Marina em sua vida, e também o inferno que agravou sua frustração e a perda de sentido da vida, e que diretamente o motivo de sua ruína.
Mas é apenas superficialmente que as contradições dessa vida cinzenta e em ponto menor apontam para a visão “existencialista” da trama de “Angústia”. Focado no indivíduo e suas contradições, a obra de Graciliano (e principalmente esta, que é considerada sua obra-prima) tem um profundo sentido realista que, paradoxalmente, a forma narrativa empregada encobre e ressalta.
Alfredo Bosi incluiu toda a obra de Graciliano Ramos numa categoria analítica que chamou de “romances de tensão crítica”, sendo o “ponto mais alto da tensão entre o eu do escritor e a sociedade que o formou”. E seu realismo, pensa o historiador da literatura, “não é orgânico nem espontâneo”, mas crítico, com seus heróis profundamente problemáticos (“o ‘herói’ é sempre um problema”, escreve Bosi), em conflito com os outros, com a sociedade e consigo mesmos.
São as contradições sociais que movem o herói problemático. Ressaltando o caráter profundamente realista da obra de Graciliano, o crítico Carlos Nelson Coutinho (no ensaio “Graciliano Ramos”, publicado no livro “Literatura e humanismo”, Rio de Janeiro, 1967) localiza, com razão, aquelas contradições no quadro das mudanças que o país vivia. Elas que encerravam a transição entre o passado colonial e escravista e inauguravam, na década de 1930, a hegemonia do modo de produção capitalista e seu corolário, o domínio cru e aberto do dinheiro sobre as pessoas, as coisas, as relações humanas em geral.
Neste sentido, a marca da literatura de Graciliano Ramos seria – diz Coutinho – a “narração do destino de homens concretos, socialmente determinados, vivendo em uma realidade concreta”, onde as contradições sociais andam de braços dados com as “lutas individuais por descobrir, no interior deste mundo alienado ou em oposição a ele, um sentido para a vida”.
A novidade narrativa representada por “Angústia” está a serviço da expressão “mental” de uma realidade contraditória. Isto é, o “fluxo de consciência” não é autônomo em relação à vida concreta do personagem, mas é reflexo dela e das expectativas favoráveis e negativas que essa existência projeta em sua consciência. Há uma ligação íntima, dialética, entre o mundo mental e as condições concretas do mundo real, ligação que desautoriza, na obra de Graciliano, qualquer compreensão de uma eventual autonomia do mental em relação ao real e concreto. Este é um ponto chave para a compreensão mais profunda dos romances do grande alagoano e condena todo enquadramento de sua obra como meramente “existencial” ou, em outra forma limitada de considerá-la, “regionalista”.
Como em todo grande romance e todo grande romancista, o que interessa a Graciliano é o que há de universal no particular e no singular. Assim, no indivíduo Luís da Silva ele encontra uma situação humana profunda e significativa não de um “homem” abstrato, de uma universalidade “conceitual”, mas de homens concretos e reais que vivem em situações reais e concretas. Assim, pensa Coutinho, “as deformações psíquicas do personagem, sua frustração agressiva, e sua incapacidade de equilíbrio estão todas centradas sobre a miséria, sobre a sua inferioridade econômica e social”. E no medo ante a decadência e da ruína. Graciliano “retrata magistralmente a psicologia típica do pequeno burguês: a luta por atingir a condição de grande burguês, por subir na hierarquia social, e o profundo recalque que decorre da constatação de que é impossível esta ascensão”, conduzindo à revolta e à frustração agressiva, que se agravam na luta do personagem para não se proletarizar e cair na miséria.
Esta relação dialética entre particular, singular e universal transparece também no uso de vivências locais que geraram o rótulo de “regionalista” aplicado a uma obra tão universal quanto a de Graciliano.
É um rótulo que a crítica mais informada e rigorosa rejeita. É “precária, se não falsa, a nota de regionalismo que se costuma dar a obras em tudo universais” colmo a de Graciliano, escreveu Bosi. “Nada existe nele em comum com aquele estreito regionalismo”, concorda Coutinho, para quem a “Graciliano interessa apenas o que é comum a toda a sociedade brasileira, o que é ‘universal’”.
Angústia
(Alguns trechos)
“Ao chegar à rua do Macena recebi um choque tremendo. Foi a decepção maior que já experimentei. À janela da minha casa, caído para fora, vermelho, papudo, Julião Tavares pregava os olhos em Marina, que, da casa vizinha, se derretia para ele, tão embebida que não percebeu a minha chegada. Empurrei a porta brutalmente, o coração estalando de raiva, e fiquei em pé diante de Julião Tavares, sentindo um enorme desejo de apertar-lhe as goelas. O homem perturbou-se, sorriu amarelo, esgueirou-se para o sofá, onde se abateu.”
. . .
“Um mês depois éramos inimigos. (...) Marina estava realmente com a cabeça virada para Julião Tavares. (...) O sem-vergonha metera-se na casa, ficava lá horas, íntimo da família, unha com carne. Empurrava a porta, entrava como se aquilo fosse dele.”
. . .
“Julião Tavares passava como um pavão. E o pessoal se calava, arregalava os olhos para Marina, que não ligava importância a ninguém, ia fofa, com o vestido colado às nádegas, as unhas vermelhas, os beiços vermelhos, as sobrancelhas arrancadas a pinça. (...) Sim senhor. Que bicho de sorte! Marina fazia água na boca dos homens.”
. . .
“Por que foi que aquela criatura não procedeu com fraqueza? Devia ter-me chamado e dito: ‘Luís, vamos acabar com isto. Pensei que gostava de você, enganei-me, estou embeiçada por outro. Fica zangado comigo?’ Eu teria respondido: ‘Não fico não, Marina. Você pode se casar contra vontade? Seria um desastre. Adeus. Seja feliz.’ Era o que eu teria dito. Sentiria despeito, mas nenhuma desgraça teria acontecido. Lembrar-me-ia de Marina com vaidade, até com orgulho.”
...
“— “Minha Santa Margarida...” O dono da bodega, triste, fincava os cotovelos no balcão engordurado. As crianças faziam voltas em redor da barca de terra e varas. A rapariga pintada de vermelho espalhava um cheiro esquisito. O engraxate escutava histórias de capoeiras. O homem acaboclado cruzava os braços, mostrando bíceps enormes. O mendigo estirava a perna entrapada e ensanguentada. As moscas dormiam, e o mendigo, com a multa esquecida, bebia cachaça e ria. Passos na calçada.
Quem ia entrar? Quem tinha negócio comigo àquela hora? Necessário Vitória fechar as portas e despedir o hóspede incômodo que não se arredava da sala. Mas Vitória contava moedas, na parede, resmungava a entrada e a saída dos navios. A placa azul de D. Albertina escondia-se a um canto, suja de piche. Todo aquele pessoal estendia-se perfeitamente. O homem cabeludo que só cuidava da sua vida, a mulher que trazia uma garrafa pendurada ao dedo por um cordão, Rosenda, cabo José da Luz, Amaro Vaqueiro, as figuras de um reisado, um vagabundo que dormia debaixo das árvores, tudo estava na parede, fazendo um zumbido de carapanãs, um burburinho que ia crescendo e se transformava em grande clamor José Bahia acenava-me de longe, sorrindo, mostrando as gengivas banguelas e agitando os cabelos brancos.”
...
“José Bahia, trôpego, rompia a marcha. Um, dois, um, dois... A multidão que fervilhava na parede acompanhava José Bahia e vinha deitar-se na minha cama. Quitéria, Sinhá Terta, o cego dos bilhetes, o contínuo da repartição, os cangaceiros e os vagabundos, vinham deitar-se na minha cama. Cirilo de Engrácia, esticado, amarrado, marchando nas pontas dos pés mortos que não tocavam o chão, vinha deitar-se na minha cama. Fernando Inguitai, com o braço carregado de voltas de contas, vinha deitar-se na minha cama. As riscas de piche cruzavam-se, formavam grades.”
...
“Nas redações, na repartição, no bonde, eu era um trouxa, um infeliz, amarrado. Mas ali, na estrada deserta, (Julião Tavares) voltar-me as costas como a um cachorro sem dentes! Não. Donde vinha aquela grandeza? Por que aquela segurança? Eu era um homem. Ali eu era um homem... A obsessão ia desaparecer. Tive um deslumbramento. O homenzinho da repartição e do jornal não era eu ... Tinham-me enganado. Em trinta e cinco anos haviam-me convencido de que só me podia mexer pela vontade dos outros. Os mergulhos que meu pai dava no poço da Pedra, a palmatória do mestre Antônio Justino, os berros do sargento, a grosseria do chefe da repartição, a impertinência macia do diretor, tudo virou fumaça.”
...
“O proprietário da casa, o diretor da repartição, o chefe da redação são homens que me dominam sem mostrar o focinho, manifestam-se pelo arame, num pedaço de papel.”
(vermelho.org)
O grande romance de Graciliano Ramos foi publicado inicialmente em agosto de 1936, quando o autor estava trancafiado nos cárceres do Estado Novo, é uma das mais importantes obras literárias modernas no Brasil.
Por José Carlos Ruy
“Angústia”, de Graciliano Ramos, publicado em agosto de 1936 (há 75 anos, portanto) é reconhecidamente um dos mais importantes romances brasileiros modernos. A história de Luís da Silva, filho da oligarquia rural decadente que se tornou funcionário público e um medíocre subliterato, fornece a trama para uma realística (e cruel) descrição (ou narração – como decidir, neste caso, o dilema proposto por Lukacs?) das contradições provocadas pelas profundas mudanças que a sociedade brasileira vivia, forjando a modernidade perversa e mal resolvida que predominou no país nas décadas seguintes.
Alguns já viram o romance “Angústia”, recheado de frustrações e de um amor fracassado, como “existencialista”. Avaliação provocada, talvez, pela ousada experiência narrativa que o romance é: tudo se passa, na mente de Luís da Silva, nos instantes seguintes ao crime que ele cometeu, o assassinato de seu desafeto Julião Tavares.
As imagens se sucedem, em sua mente, num fluxo de consciência intenso. Alfredo Bosi diz (em História Concisa da Literatura Brasileira, São Paulo, 1972) que “o livro avança com a rapidez de um objeto que cai”. A novidade narrativa representada pelo monólogo interior e pelo fluxo de consciência, inaugurada por James Joyce e incorporada por Graciliano Ramos (e também, em outro registro, por Clarice Lispector), parece fundamentar a leitura “existencialista”. Trata-se de um recurso que permite o embaralhamento do tempo, misturando presente, passado e futuro (como ocorre, realmente, em nosso pensamento) e faz supor que toda a trama se situa apenas no indivíduo e suas vicissitudes e na maneira como ele percebe o mundo e suas contradições e reage a elas.
Luís da Silva, correndo pelo trilho da ferrovia, fugindo ao crime que cometera, repassa a trajetória concluída por aquela tragédia, revê sua miséria humana, sua impotência ante o pequeno mundo no qual vivia e que o obrigava a funções burocráticas destituídas de significado, na repartição (o trabalho alienado e sem sentido descrito por Karl Marx) ou a prostituir-se literariamente na mesquinha imprensa local escrevendo o que lhe mandassem, concordasse ou não, desde que recebesse alguns trocados para reforçar o orçamento. Revê também a aurora representada pela aparição de Marina em sua vida, e também o inferno que agravou sua frustração e a perda de sentido da vida, e que diretamente o motivo de sua ruína.
Mas é apenas superficialmente que as contradições dessa vida cinzenta e em ponto menor apontam para a visão “existencialista” da trama de “Angústia”. Focado no indivíduo e suas contradições, a obra de Graciliano (e principalmente esta, que é considerada sua obra-prima) tem um profundo sentido realista que, paradoxalmente, a forma narrativa empregada encobre e ressalta.
Alfredo Bosi incluiu toda a obra de Graciliano Ramos numa categoria analítica que chamou de “romances de tensão crítica”, sendo o “ponto mais alto da tensão entre o eu do escritor e a sociedade que o formou”. E seu realismo, pensa o historiador da literatura, “não é orgânico nem espontâneo”, mas crítico, com seus heróis profundamente problemáticos (“o ‘herói’ é sempre um problema”, escreve Bosi), em conflito com os outros, com a sociedade e consigo mesmos.
São as contradições sociais que movem o herói problemático. Ressaltando o caráter profundamente realista da obra de Graciliano, o crítico Carlos Nelson Coutinho (no ensaio “Graciliano Ramos”, publicado no livro “Literatura e humanismo”, Rio de Janeiro, 1967) localiza, com razão, aquelas contradições no quadro das mudanças que o país vivia. Elas que encerravam a transição entre o passado colonial e escravista e inauguravam, na década de 1930, a hegemonia do modo de produção capitalista e seu corolário, o domínio cru e aberto do dinheiro sobre as pessoas, as coisas, as relações humanas em geral.
Neste sentido, a marca da literatura de Graciliano Ramos seria – diz Coutinho – a “narração do destino de homens concretos, socialmente determinados, vivendo em uma realidade concreta”, onde as contradições sociais andam de braços dados com as “lutas individuais por descobrir, no interior deste mundo alienado ou em oposição a ele, um sentido para a vida”.
A novidade narrativa representada por “Angústia” está a serviço da expressão “mental” de uma realidade contraditória. Isto é, o “fluxo de consciência” não é autônomo em relação à vida concreta do personagem, mas é reflexo dela e das expectativas favoráveis e negativas que essa existência projeta em sua consciência. Há uma ligação íntima, dialética, entre o mundo mental e as condições concretas do mundo real, ligação que desautoriza, na obra de Graciliano, qualquer compreensão de uma eventual autonomia do mental em relação ao real e concreto. Este é um ponto chave para a compreensão mais profunda dos romances do grande alagoano e condena todo enquadramento de sua obra como meramente “existencial” ou, em outra forma limitada de considerá-la, “regionalista”.
Como em todo grande romance e todo grande romancista, o que interessa a Graciliano é o que há de universal no particular e no singular. Assim, no indivíduo Luís da Silva ele encontra uma situação humana profunda e significativa não de um “homem” abstrato, de uma universalidade “conceitual”, mas de homens concretos e reais que vivem em situações reais e concretas. Assim, pensa Coutinho, “as deformações psíquicas do personagem, sua frustração agressiva, e sua incapacidade de equilíbrio estão todas centradas sobre a miséria, sobre a sua inferioridade econômica e social”. E no medo ante a decadência e da ruína. Graciliano “retrata magistralmente a psicologia típica do pequeno burguês: a luta por atingir a condição de grande burguês, por subir na hierarquia social, e o profundo recalque que decorre da constatação de que é impossível esta ascensão”, conduzindo à revolta e à frustração agressiva, que se agravam na luta do personagem para não se proletarizar e cair na miséria.
Esta relação dialética entre particular, singular e universal transparece também no uso de vivências locais que geraram o rótulo de “regionalista” aplicado a uma obra tão universal quanto a de Graciliano.
É um rótulo que a crítica mais informada e rigorosa rejeita. É “precária, se não falsa, a nota de regionalismo que se costuma dar a obras em tudo universais” colmo a de Graciliano, escreveu Bosi. “Nada existe nele em comum com aquele estreito regionalismo”, concorda Coutinho, para quem a “Graciliano interessa apenas o que é comum a toda a sociedade brasileira, o que é ‘universal’”.
Angústia
(Alguns trechos)
“Ao chegar à rua do Macena recebi um choque tremendo. Foi a decepção maior que já experimentei. À janela da minha casa, caído para fora, vermelho, papudo, Julião Tavares pregava os olhos em Marina, que, da casa vizinha, se derretia para ele, tão embebida que não percebeu a minha chegada. Empurrei a porta brutalmente, o coração estalando de raiva, e fiquei em pé diante de Julião Tavares, sentindo um enorme desejo de apertar-lhe as goelas. O homem perturbou-se, sorriu amarelo, esgueirou-se para o sofá, onde se abateu.”
. . .
“Um mês depois éramos inimigos. (...) Marina estava realmente com a cabeça virada para Julião Tavares. (...) O sem-vergonha metera-se na casa, ficava lá horas, íntimo da família, unha com carne. Empurrava a porta, entrava como se aquilo fosse dele.”
. . .
“Julião Tavares passava como um pavão. E o pessoal se calava, arregalava os olhos para Marina, que não ligava importância a ninguém, ia fofa, com o vestido colado às nádegas, as unhas vermelhas, os beiços vermelhos, as sobrancelhas arrancadas a pinça. (...) Sim senhor. Que bicho de sorte! Marina fazia água na boca dos homens.”
. . .
“Por que foi que aquela criatura não procedeu com fraqueza? Devia ter-me chamado e dito: ‘Luís, vamos acabar com isto. Pensei que gostava de você, enganei-me, estou embeiçada por outro. Fica zangado comigo?’ Eu teria respondido: ‘Não fico não, Marina. Você pode se casar contra vontade? Seria um desastre. Adeus. Seja feliz.’ Era o que eu teria dito. Sentiria despeito, mas nenhuma desgraça teria acontecido. Lembrar-me-ia de Marina com vaidade, até com orgulho.”
...
“— “Minha Santa Margarida...” O dono da bodega, triste, fincava os cotovelos no balcão engordurado. As crianças faziam voltas em redor da barca de terra e varas. A rapariga pintada de vermelho espalhava um cheiro esquisito. O engraxate escutava histórias de capoeiras. O homem acaboclado cruzava os braços, mostrando bíceps enormes. O mendigo estirava a perna entrapada e ensanguentada. As moscas dormiam, e o mendigo, com a multa esquecida, bebia cachaça e ria. Passos na calçada.
Quem ia entrar? Quem tinha negócio comigo àquela hora? Necessário Vitória fechar as portas e despedir o hóspede incômodo que não se arredava da sala. Mas Vitória contava moedas, na parede, resmungava a entrada e a saída dos navios. A placa azul de D. Albertina escondia-se a um canto, suja de piche. Todo aquele pessoal estendia-se perfeitamente. O homem cabeludo que só cuidava da sua vida, a mulher que trazia uma garrafa pendurada ao dedo por um cordão, Rosenda, cabo José da Luz, Amaro Vaqueiro, as figuras de um reisado, um vagabundo que dormia debaixo das árvores, tudo estava na parede, fazendo um zumbido de carapanãs, um burburinho que ia crescendo e se transformava em grande clamor José Bahia acenava-me de longe, sorrindo, mostrando as gengivas banguelas e agitando os cabelos brancos.”
...
“José Bahia, trôpego, rompia a marcha. Um, dois, um, dois... A multidão que fervilhava na parede acompanhava José Bahia e vinha deitar-se na minha cama. Quitéria, Sinhá Terta, o cego dos bilhetes, o contínuo da repartição, os cangaceiros e os vagabundos, vinham deitar-se na minha cama. Cirilo de Engrácia, esticado, amarrado, marchando nas pontas dos pés mortos que não tocavam o chão, vinha deitar-se na minha cama. Fernando Inguitai, com o braço carregado de voltas de contas, vinha deitar-se na minha cama. As riscas de piche cruzavam-se, formavam grades.”
...
“Nas redações, na repartição, no bonde, eu era um trouxa, um infeliz, amarrado. Mas ali, na estrada deserta, (Julião Tavares) voltar-me as costas como a um cachorro sem dentes! Não. Donde vinha aquela grandeza? Por que aquela segurança? Eu era um homem. Ali eu era um homem... A obsessão ia desaparecer. Tive um deslumbramento. O homenzinho da repartição e do jornal não era eu ... Tinham-me enganado. Em trinta e cinco anos haviam-me convencido de que só me podia mexer pela vontade dos outros. Os mergulhos que meu pai dava no poço da Pedra, a palmatória do mestre Antônio Justino, os berros do sargento, a grosseria do chefe da repartição, a impertinência macia do diretor, tudo virou fumaça.”
...
“O proprietário da casa, o diretor da repartição, o chefe da redação são homens que me dominam sem mostrar o focinho, manifestam-se pelo arame, num pedaço de papel.”
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